progressos e limites do ateísmo volney robespierre e o culto da razão

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SABORIT, IT. Religiosidade na Revolução Francesa [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. Progressos e limites do ateísmo. pp. 95-149. ISBN: 978-85-99662-98-4. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Progressos e limites do ateísmo Ignasi Terradas Saborit

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O ateísmo em Volney, autor de caticismo do cidadão, publicado na revolução francesa como uma alternativa laica ao catecismo da igreja católica até então imposto nas escolas francesas.

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  • SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SABORIT, IT. Religiosidade na Revoluo Francesa [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. Progressos e limites do atesmo. pp. 95-149. ISBN: 978-85-99662-98-4. Available from SciELO Books .

    All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste captulo, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de este captulo, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Progressos e limites do atesmo

    Ignasi Terradas Saborit

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    PROGRESSOS E LIMITES DO ATESMO

    Volney: o atesmo moderado

    Volney enriquece o pensamento revolucionrio com suas reflexes concebidas no Egito e na Sria em 1785 e, dez anos depois, na Amrica do Norte. Este homem que implantou cultivos tropicais na Crsega e foi professor de Histria na cole Normale de Paris, tinha muita clareza a respeito das bases da sociedade1:

    O poder de um Estado depende de sua populao; a populao depende da abundncia; a abundncia depende da atividade de tudo que se cultiva, e esta atividade por sua vez depende do interesse pessoal e direto, quer dizer, do esprito de propriedade: de onde deriva que, quanto mais o agricultor se aproxima do estado passivo de mercenrio, menos iniciativa e atividade possui. Ao contrrio, quanto mais perto estiver da condio de proprietrio livre e pleno, mais vai desenvolver as foras e produtos da terra e a riqueza geral do Estado.

    Com essa declarao to prpria da fisiocracia ilustrada como do conservadorismo econmico do sculo XIX, Volney inicia uma trajetria que se desviar consideravelmente da avaliao moderada e prtica de tais tendncias. o que podemos ver em suas Runas e em seu Catecismo.

    No incio de suas Runas, ou Meditao sobre as Revolues dos Imprios, Volney j evoca a nova tica da Revoluo Francesa: ...confundindo os despojos dos reis com os do ltimo escravo, testemunhais o santo dogma da igualdade.

    O tema da meditao de Volney a decadncia dos imprios do Mediterrneo e do Oriente Mdio. Palmira o lugar onde suas reflexes mais parecem se materializar: o imprio do fatalismo oriental, a dificuldade de raciocinar sobre o prprio destino e sobre a organizao da sociedade, os perigos e deficincias da natureza paliados pela sociedade, a ignorncia e a cobia como principais causas dos males sociais, a funo educativa e

    1 VOLNEY, C.F., Oeuvres Choisies, Paris, 1836, p. xxij.

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    moral que os governos devem ter, a volta dos imprios a sua barbrie inicial como causa de sua decadncia: a teocracia e o esprito de conquista como retomada da superstio e da barbrie originais...

    No que tange religio, Volney critica os ministros do culto por exporem a f mais nos hbitos do que na convico do dever. Quanto teologia, afirma ser sempre contrria razo e, em seu captulo XXII, nos fala da Origem e filiao das ideias religiosas2:

    Foi s depois de ter ultrapassado vrios obstculos naturais e descrito uma longa trajetria na noite da histria que o homem, meditando sobre sua condio, comeou a dar-se conta de que estava submetido a foras superiores sua e independentes de sua vontade... o sol... o fogo... Autmato por muito tempo, suportou a ao dessas foras sem perguntar-se qual era a sua causa; mas desde o momento em que quis dar-se conta, caiu em grande assombro; e, passando da surpresa de uma primeira reflexo fantasia da curiosidade, elaborou uma srie de raciocnios.

    No comeo, considerando a ao dos elementos sobre ele, compreendeu sua situao com uma ideia de fraqueza, de sujeio, e a situao da natureza foi-lhe sugerida por uma ideia de poder, de domnio; e esta ideia de poder constituiu o tipo primitivo e fundamental de toda ideia de divindade.

    Em segundo lugar, os seres naturais, em sua atividade, proporcionavam-lhe sensaes de prazer ou de dor, de bem ou de mal: por um efeito natural de sua prpria constituio, concebeu em relao a eles amor ou averso; desejou ou temeu sua presena; e o temor ou a esperana foram o princpio de toda ideia de religio.

    Depois, julgando tudo por comparao e observando nesses seres um movimento espontneo como o seu, atribuiu uma vontade a tal movimento, uma inteligncia da mesma espcie que a sua; e assim, por induo, fez um novo raciocnio. Tendo observado que certas prticas para com seus semelhantes haviam surtido o efeito de modificar conforme seu desejo os afetos e a conduta dos mesmos, decidiu empregar essas prticas com os seres poderosos do universo...

    2 VOLNEY, C.F., Les Ruines, ou Mditation sur les Rvolutions des Empires, Paris, 1791.

    I:6; Caps. V, VII, VIII, IX, XXI, XXII: pp. 166 e segs.

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    Assim, as ideias de Deus e de religio, como todas as demais, tiveram sua origem nos objetos fsicos e foram, no entendimento humano, o produto de suas sensaes, de suas necessidades, das circunstncias de sua vida e do estado progressivo de seus conhecimentos.

    Quando as ideias de divindade tinham por primeiros modelos os seres fsicos, ento a divindade era igualmente variada e mltipla, assim como as formas sob as quais parecia agir: cada ser foi um poder, um gnio, e o universo se encheu, para esses primeiros homens, de inmeros deuses.

    E quando as ideias de divindade tinham por geradores os afetos do corao humano, experimentavam uma diviso calcada nas sensaes de dor e de prazer, de amor e de dio; as foras naturais, os deuses e os gnios se dividiram em benfeitores e malvolos, bons e maus: da a universalidade dessas duas caractersticas em todos os sistemas de religio.

    (...) Os antigos telogos viram-se obrigados a compor trs graus ou escales de pessoas divinas que foram: 1 o demiurgo ou deus criador; 2 o logos, palavra e raciocnio; 3 o esprito ou alma (do mundo). Eis, cristos, a lenda sobre a qual fundastes vossa Trindade; eis aqui o sistema que, nascido herege nos templos egpcios, trasladado pago nas escolas italianas e gregas, encontra-se hoje em dia catlico ortodoxo, tendo-se convertido seus partidrios, os discpulos de Pitgoras e de Plato, ao cristianismo.3

    Se resumirdes a histria inteira do esprito religioso, vereis que em seu comeo no teve outro autor alm das sensaes e das necessidades do homem; que a ideia de Deus no teve outro tipo e modelo alm das foras fsicas, dos seres materiais agindo no bem ou no mal, quer dizer, em impresses de prazer ou de dor no ser sensvel... que em todos os sistemas religiosos suas causas e meio de propagao e estabelecimento sempre propiciaram as mesmas cenas de paixes e de acontecimentos, sempre as disputas de palavras, os pretextos de cime, as revolues e as guerras suscitadas pela ambio dos chefes, pela trapaa dos legisladores, pela credulidade dos proslitos, pela ignorncia do vulgo, pela cobia exclusiva e pelo orgulho intolerante de todos. Por fim, vereis que a histria inteira do

    3 Idem, pp. 205, 221. 98

    esprito religioso no seno a das incertezas do esprito humano que, colocado num mundo que no entende, quer, contudo, decifr-lo como enigma.

    Com essa histria psicolgica, ou pelo menos de conjectura psicolgica, Volney descreve e detalha com preciso os passos dados dos primeiros crticos da conscincia europeia aos discpulos de dHolbach. O atesmo como virtude humana fica assim realado filosfica e politicamente4:

    O que crer, se a crena no conduz a nenhuma ao? E a que ao conduz, por exemplo, crer ou no crer no mundo eterno?

    (...) E os sacerdotes inquietos responderam: , legislador, somos humanos; e os povos so to supersticiosos! Eles mesmos provocaram os nossos erros.

    E os reis disseram: , legislador, os povos so to servis e to ignorantes! Eles mesmos se prosternavam ante o jugo que mal ousvamos mostrar-lhes.

    Ento o legislador dirigiu-se aos povos e lhes disse:

    Povos! Lembrai do que acabastes de escutar: so duas profundas verdades. Se vs mesmos causais os males de que vos queixais, sois vs que encorajais os tiranos com a adulao covarde de seu poder, com uma complacncia imprudente, com suas falsas bondades, com o envi1ecimento na obedincia, com a licena na liberdade, com a crdula aceitao de toda impostura: a quem quereis castigar pelas faltas de vossa ignorncia e de vossa cobia?

    E os povos enquanto isso permaneceram num humilde silncio.

    A nica pretenso de Volney na prtica legislativa foi despojar de todo efeito civil as opinies teolgicas e religiosas.

    Mas, no catecismo de 1793, Volney mais tolerante com o desmo filosfico-poltico que reina no campo da Conveno5:

    4 Idem, pp. 225, 234, 235 e 242.

    5 VOLNEY, C.F., Catchisme du Citoyen Franais, Paris, 1793. (H uma edio posterior

    com o ttulo de La loi naturelle ou principes physiques de la morale.) Comeo, Cap.II, p. 257 e Capo XII, p. 297.

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    O que a lei natural? a ordem regular e constante dos fatos, por meio da qual Deus rege o universo; ordem que sua sabedoria apresenta aos sentidos e razo dos homens... Para todo homem que observa reflexivamente o assombroso espetculo do universo, quanto mais ele medita sobre as propriedades e os atributos de cada ser, sobre a ordem admirvel e a harmonia de seus movimentos, mais fica demonstrado que existe um agente supremo, um motor universal e idntico, designado sob o nome de Deus; e to verdade que a lei natural suficiente para obter o conhecimento de Deus, que todo o conhecimento que, por meios estranhos mesma, os homens pretenderam obter, foi logo considerado ridculo, absurdo, e foi necessrio voltar s noes imutveis da lei natural.

    No ento verdade que os partidrios da lei natural sejam ateus? No, no verdade. Ao contrrio, eles tm ideias mais fortes e mais nobres acerca da Divindade do que a maior parte dos demais homens, j que no a mancham com todas as fraquezas e paixes da humanidade.

    Estipulando que a justia, e no a propriedade, seja a base do contrato social, Volney concorda com a ideia crist de caridade:

    A caridade no ento mais do que a justia? No, ela a justia, mas com uma nuana. A justia estrita limita-se a dizer: No faas a outro o mal que no queres que ele te faa; ao invs disto, a caridade, ou o amor ao prximo, chega a dizer: Faze ao outro o bem que queres receber. Assim tambm o Evangelho, ao dizer que este preceito encerrava toda-a lei e os profetas, no fez seno enunciar o preceito da lei natural.

    Esse conjunto de citaes nos leva posio do atesmo moderado durante a Revoluo: convico psicolgica do atesmo, utilidade poltica do tesmo, precauo ante a associao entre atesmo e aristocracia, e acordo com a moral crist sem comentar seus dogmas.

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    Cabanis e Marat: a alma explicada psicologicamente

    Para Cabanis, Marat e outras pessoas fiis filosofia da medicina e tradio moralista francesa a seu respeito, a relao fundamental para compreender os fenmenos humanos a existncia entre os sentimentos e o organismo fsico, subentendendo a constante realizao social dos sentimentos. Assim, Cabanis revaloriza o amor entre um higienismo moral e um humanismo poltico:

    No, o amor, tal como a natureza o desenvolve, no essa torrente arrasadora que tudo transtorna; tampouco esse fantasma teatral que se alimenta de sua prpria ostentao, se compraz numa v representao e se embriaga com os efeitos que causa nos espectadores. ainda menos esta galanteria fria que zomba de si mesma e de seu objeto, que desnatura com expresso rebuscada os sentimentos ternos e delicados, e que inclusive no tem sequer a pretenso de enganar a pessoa qual se dirige; ou essa metafsica sutil que, nascida da impotncia do corao e da imaginao, encontrou o meio de molestar os desejos mais caros s almas verdadeiramente sensveis. No, no nada disto. Os antigos, mal sados da infncia social, ao que parece haviam percebido melhor o que deve ser, o que verdadeiramente essa paixo, ou essa inclinao imperiosa, num estado natural das coisas: haviam-na pintado em quadros que, embora desfigurados pelas desordens e extravagncias que os costumes daquele tempo toleravam, eram mais simples e verdadeiros.

    Sob o regime benfazejo da igualdade, sob a influncia todo-poderosa da razo pblica, livre, por fim, de todos os grilhes que lhe haviam sido impostos pelos absurdos polticos, civis ou supersticiosos, estranho a todo entusiasmo ridculo, o amor ser o consolo, e no o rbitro da vida; ele a embelezar, mas no a preencher. Porque quando a preenche, a degrada; e logo o prprio amor se extingue no tdio... medida que a arte de existir consigo mesmo e com os demais, essa arte to necessria vida e, no entanto, quase totalmente inexistente entre ns, ou ao menos desconhecida em nosso sistema educacional (Cabanis diz que s foi cultivada pela filosofia grega, que integrava a medicina, a lgica e a moral), medida que essa arte fizer progressos, veremos como esses fantasmas imponentes se desvanecero, essas falsas virtudes, esses falsos bens que, por muito

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    tempo, ocuparam quase a totalidade da existncia moral do homem social... Desta mesma maneira, ao mesmo tempo em que a arte social rumar cada vez mais para a perfeio, quase todas essas grandes maravilhas polticas, objeto de admirao na histria, progressivamente desprovidas do brilho vo que as revestia, parecero apenas jogos frvolos, e quase sempre funestos, da infncia do gnero humano. Os acontecimentos, as instituies, as opinies que o entusiasmo ignorante deificou no merecero mais do que um sorriso de assombro.1

    Marat apresenta sua obra filosfica como uma crtica ao materialismo iluminista, tentando diferenciar-se muito de La Mettrie e de Helvetius, autores que, por outro lado, imita consideravelmente. D por estabelecida a existncia da alma e o erro do atesmo. Situa nas meninges a alma que, a partir da, acha-se unida a nossos rgos por laos impenetrveis.2

    Sua contribuio ao conhecimento das leis da influncia da alma sobre o corpo, e do corpo sobre a alma consiste na descoberta de um fludo de tipo nervoso que transmite as sensaes nervosas alma. De que maneira? Marat admite que um mistrio, o mistrio da unio da alma e do corpo.

    Afirma que h dois sentimentos inatos: o amor por si mesmo (As paixes tm sua origem no amor por si mesmo) e o amor das mes por seus filhos. Oposta ao amor por si mesmo existe a piedade, mas esta no natural, pois no comum a todos os homens. Define a piedade como um sentimento artificial, adquirido na sociedade... esse sentimento nasce da ideia da dor e das relaes travadas pelo homem com os demais seres sensveis, j que para compadecer-se dos outros preciso conhecer seus males.

    Sem discutir a existncia dos instintos, d prioridade s reaes de prazer-dor como a maioria dos materialistas iluministas; antecipando reflexes do romantismo, como as de Leopardi, diz a respeito do amor-prprio:

    o amor-prprio que nos faz contemplar com deleite as privaes dos demais. ele que proporciona a essas mulheres vaidosas, to

    1 CABANIS, P.J.G., Rapports du Physique et du Moral de lhomme, Paris, 1855 (1796-97), p. 295. 2 MARAT, J.P., De lhomme ou des principes et des loix de linfluence de lme sur le corps,

    et du corps sur lme, 2 v., Amsterd, 1775.Vol.I: pp. 158, 162, 165,171, 190, 196, 293, 294 e 295.

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    conhecidas pelo nome de coquetes, um prazer secreto em ter a seus ps uma multido de admiradores submissos, em dobrar sob sua vontade almas fortes e austeras, em multiplicar suas conquistas e mostrar seu triunfo ante os olhos assombrados de seus rivais. Foi ele que levou esses enganosos austeros, que a antiguidade ornou com o nome de sbios, a desprezar tudo o que as pessoas comuns estimam, f-los correr sem cessar atrs do extraordinrio, a aspirar s honras divinas e a arrogar-se o poder dos Deuses. Em suma, o amor-prprio que, no podendo suportar nada acima de ns, nos faz pr em jogo tudo o que temos para nos elevarmos; e quando vemos nossos semelhantes sob nossos ps, ele nos faz gemer e lamentar em segredo a desdita de no sermos mais do que homens.

    Marat humanista, tentando um equilbrio entre o materialismo e a moral espiritual, defendendo a sociabilidade, psiclogo sensorialista e filsofo psicologista, apresenta uma doutrina dividida entre Rousseau e Cabanis (com acrscimos e crticas obra de Buffon) que o situa entre os moralistas mais realistas da Conveno. Mais do que Robespierre e do que sua esquerda. A questo est em saber at que ponto o seu trabalho filosfico anterior Revoluo influenciou-o no transcurso da mesma.

    Como expoente do realismo moral destaca sua crtica da imaginao na prtica do amor3:

    O amor, essa emoo voluptuosa, que torna um sexo necessrio ao outro, doce e moderado no estado de natureza, quer dizer, quando a imaginao se acha ausente... Est sobrecarregado o corpo do licor prolfico? O homem sente o impulso da natureza e se entrega ao mesmo com prazer, nunca com furor. Mas quando os costumes morais dessa paixo se unem a esse impulso natural; quando a imaginao, encontrando num objeto as ideias convencionais de beleza e de mrito que temos, aumenta a atrao do prazer e nos mostra a posse desse objeto como a de um bem soberano, apenas ento o amor se transforma numa paixo desenfreada que agita com fora o nosso corao.

    Ante essas proposies e depois de elogiar Cato, Marat conclui: no a ao que faz a fora da alma, a resistncia que esta ope s paixes. Essa

    3 Idem, pp. 295, 298, 315 e 323. As comparaes com Cabanis e as fontes de ambos so

    fceis.

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    resistncia se confunde com a razo. Mas a razo pode pouco. O realismo moral nos adverte pela boca de Marat, com nuanas curiosamente evocadoras do pessimismo moral de Leopardi:

    O que mais surpreendente, porm, que os sbios, essas pretensas almas fortes to famosas, so realmente os mais fracos dos homens. No mesmo momento em que se crem vencedores das paixes e cantam sua vitria, esto obedecendo ao mais imperioso dos donos, j que a razo no pode jamais contrabalanar um sentimento a no ser com outro sentimento oposto, nem reprimir uma paixo a no ser com uma paixo ainda mais forte; quer dizer, entregar a alma ao mais feroz dos tiranos, querendo, no entanto, livr-la de uma escravido.

    O corpo e seus sentidos precedem qualquer representao. Assim sendo, quanto mais adequada ao nvel e capacidade de nossos sentidos for uma sensao, mais real ser. Um sensorialismo empirista acompanha, assim, o realismo moralista em Marat. Fica, contudo, pendente a relao misteriosa entre a alma e o corpo e fracamente enunciada a ideia de criao. O Marat mdico de orientao fsica e filsofo de orientao realista no mnimo incompatvel com o poltico que trata na populao a espcie e nas pessoas os instintos, tratamento cmplice da cruzada moralista de Robespierre e outros jacobinos. Entretanto, a posio de Marat ser brutal demais para uns e eventualmente utilizvel para outros. A mesma posio como mdico teria, sem dvida, atrado aprovao unnime.

    Se David escolheu expressar Marat principalmente atravs de seu rosto, deixemos Marat nos evocar os princpios de sua filosofia tambm atravs do rosto e do corpo humanos, pressgio de filosofias do sculo XX4:

    Vede as produes do esprito, as obras da imaginao, as mais singulares, as que parecem afastar-se mais da natureza, sempre tm por forma objetos sensveis ou relaes entre estes objetos. A maioria de nossos pensamentos no passa de imagens corporais; e as ideias mais etreas no existem (isto to verdadeiro que, para dar ao homem uma ideia da extenso, solidez, composio, impenetrabilidade, peso, etc., preciso remet-lo aos seus sentidos) sem serem fixadas pelos sentidos de nosso corpo: na natureza no existe obra alguma de puro intelecto.

    4 Vol. II: pp. 5, 8, 211, 225, 226 e 324.

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    Quando queremos, por exemplo, elaborar alguma ideia de Deus, sempre o consideramos atravs de relaes humanas, s vezes como pai, s vezes como rei glorioso, outras vezes como um senhor poderoso ou um juiz irritado. Quem quer se elevar at o ser dos seres e contempl-lo em sua essncia sem recorrer s imagens corporais no sabe como consegui-lo, e seu esprito inquieto se perde em sublimes meditaes. Eis por que todas as religies se mantiveram por meio de um culto grosseiro que forosamente interpe objetos sensveis entre o criador e a criatura. Um contempla a Divindade em suas obras, outro a adora sob simulacros, j que o Esprito, como o corao, s sabe relacionar-se atravs dos sentidos do corpo... Da mesma maneira, quando queremos elaborar alguma noo da alma, sempre a representamos como uma exalao leve, uma matria sutil, um ser corporal, enfim, caso contrrio no imaginamos absolutamente nada.

    Marat termina seu livro invocando Rousseau. Antes investiga o conhecimento dos valores supremos. Conclui que, assim como a razo mais forte quando melhor acompanhada dos sentidos, a melhor filosofia deve decorrer do exerccio de boas faculdades, tanto sensveis como da imaginao ou raciocnio puro. Mas o simples uso da imaginao debilita a razo e a realidade. Assim, a melhor impresso do Ser Supremo ser a do indivduo mais saudvel: com melhores condies propiciadas por suas faculdades sensoriais em equilbrio com a razo. Dessa maneira, Marat defende a psicologia emprica no que diz respeito validade da percepo do mundo e das proposies a seu respeito. Marat seria censurado por uns em virtude de seu realismo moral e, por outros, de sua abertura metafsica. Em qualquer caso, o descrdito que a obra de Marat mereceu entre os ilustrados no se explica apenas por motivos intelectuais, a no ser que a avaliassem exclusivamente em funo de seus plgios, tambm comuns entre os filsofos de sua poca.

    Ao considerar a obra pr-revolucionria de Marat, preciso ter em mente que sua trajetria facilmente poderia ter sido bem diferente. Marat esteve prestes a desenvolver na Espanha uma carreira cientfica que lhe foi negada em seu pas natal. Sob o reinado de Carlos III, oferecera seus servios corte espanhola para presidir uma Academia de Cincias: seria para mim o auge da felicidade poder dedicar meus talentos ao bem de uma nao que amo e respeito... h muito tempo meu corao espanhol.5

    5 FAYET. J., La Rvolution franaise et la science, Paris, 1960, p. 36.

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    Fatalidade e repouso. DHolbach e sua influncia

    notvel a influncia de dHolbach na obra de Charles de Moy, que, por sua vez, desenvolve de modo interessante a aplicao das ideias secularizadoras poltica cultural da repblica. Neste sentido, convm destacar sua reflexo sobre a percepo social da morte e a atribuio das cerimnias fnebres e dos cemitrios. Moy no se ope ideia de imortalidade em seu sentido pleno, mas a coloca em termos j familiares nos rituais funerrios do descanso desta vida; quer dizer, faz com que a imortalidade ou seu desejo sejam percebidos como um sono que propicia o descanso maior, o supremo alvio que se pode alcanar nesta vida. Como em outras obras, e aqui sob a influncia de dHolbach, encontramos a imortalidade substituda pela ideia de rquiem ou descanso da vida e da morte e pela de consolo entre os sobreviventes, esta ltima inspirada em Rousseau.

    Na verdade, a percepo da vida como uma alternncia de viglia e de sono, vida consciente e vida letrgica ou metamorfoseada, foi fundamental na filosofia de alguns iluministas, de Bayle a dHolbach. Marat ou Cabanis, ou Sade, tambm levam muito em conta essa alternncia como chave para a compreenso dos fenmenos humanos.

    Porm nos direis, como representaremos a morte? Mas no to difcil, j que todos os dias topais com uma imagem bem verdadeira, representada pelo sono: morrer dormir pela ltima vez, dormir sem despertar, sem a esperana do retomo a essa longa viglia que chamamos de vida;1 sem dvida conveniente, depois de um longo e penoso trabalho, poder por fim repousar, e deixar a outros mais jovens e dispostos os cuidados, as penas e os trabalhos que por tanto tempo at nos oprimiram. A morte essa letargia na qual entramos quando nossos corpos sucumbem dor ou desabam sob o peso da caducidade. Assim acabam nossas misrias e nossas fraquezas; se a natureza no tivesse nos preparado esse meio digno de sua sabedoria e de sua benevolncia, nossas penas e tormentos no teriam fim; tudo o que acontece com nossos corpos, depois de mergulhar nessa

    1 MOY, Charles A. de, Accord de la Religion et des Cultes chez une nation libre, Paris, ano

    IV (1795-96), capo XX. As influncias de dHoIbach, HeIvetius e La Mettrle so quase literais.

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    letargia, j no a morte: a morte no seno o instante em que se passa da vida ao repouso; tudo que se segue a esse repouso j no a morte, o preldio de uma nova vida, rumo qual a natureza se apressa a encaminhar as diversas partes, os diversos elementos que compunham nosso ser, j que a natureza, apesar de todo o seu poder, no pode organizar mquinas eternas: essas mquinas envelhecem; so compostas por tantas molas, tantos rolamentos se sucedem em movimentos, h tantos atritos que normal que se alterem e finalmente se decomponham; mas a natureza, sempre ativa, no abandona nenhum suprfluo, e cada pea, que se transformara em intil no sistema j caduco, encontra seu lugar em novos sistemas, onde so novamente ativas, cumprindo suas funes como se fossem utilizadas pela primeira vez...

    Mas se a morte um sono, como os antigos sempre pensaram e todas as religies procuraram insinuar, no a representemos ento sob horrveis aspectos, afastemos tudo que, nessas circunstncias, pode nos inspirar sentimentos de horror.2

    Depois de aconselhar a composio de cantos fnebres semelhantes aos utilizados para atrair o sono, prossegue:

    ...imitai a natureza que, quando adormece, nessa estao do ano em que parece finalmente se entregar ao repouso, faz desaparecer as variadas cores que a vestem durante as outras estaes, para ficar coberta de uma alvura imensa. Ento a superfcie da terra se encontra envolvida, sepultada no deslumbrante sudrio que as neves teceram, ao mesmo tempo em que os cus se ocultam por trs de uma imensa tela de espessas nuvens.

    Assim andamos sobre a alvura e atravs das brumas, com o azul do cu desaparecido, com o disco radiante do sol escondido, com a interrupo do canto dos pssaros, com os campos desertos, com o sono e o entorpecimento da maioria dos animais, com a vegetao paralisada, a seiva esgotada, com as plantas oferecendo a crua imagem da esterilidade, sem folhagem, sem verdor, sem sombras, com os riachos emudecidos, sem os seus suaves murmrios, parados em seu curso, com as torrentes metamorfoseadas em geladas rochas, e os rios, que serviam para transportar todas as nossas provises, fixos em seus leitos e no oferecendo outra estrada alm de um

    2 Idem, pp. 116 e 117.

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    caminho quebradio e escorregadio; enfim, tudo dorme, tudo repousa, tudo cala; o homem, quase o nico dentre os animais, ainda est acordado e caminha sobre a terra por entre o silncio e as sombras, assombrado com os desertos que deve percorrer e com a solido que o envolve.

    Assemelha-se ento alma, uma vez desatados os laos corporais, apagam-se todos os objetos que o faziam perceber, o horizonte se esfuma na vaguidade dos cus; errando e flutuando, por assim dizer, em meio aos espaos, a imaginao, que de um aqui e de um agora, perde toda lembrana e gera ideias sem limites, vastas como a imensido, profundas como a eternidade.

    DHolbach considerou, de maneira explcita, a ideia de Deus como resposta humana experincia e ao sentimento das necessidades, sendo a divindade criada imagem dos temores e ansiedades do homem. O mais imorredouro a natureza, a matria; o esprito algo j afirmado pelos empiristas ingleses: no seno o sentido que empalidece mais fraco e perecvel. A morte um retorno a outras formas materiais e no deve ser mais temida do que a maioria dos males de que se padece nesta vida. Por isto, um recurso de que no deve ser despojada a virtude oprimida, que a injustia dos homens frequentemente reduz ao desespero. O homem deve experimentar a morte como um sono, morrer dormir, como um descanso eterno. Curiosamente, essa ideia j era predominante na celebrao crist da morte. O rquiem era mais enfatizado do que a ressurreio. Os msicos o superestimavam em sua arte, at, por exemplo, o prprio msico da Revoluo, Gossec.

    Essa ideia da morte teria uma influncia na secularizao dos cemitrios e cerimnias fnebres da Revoluo. Aos antifonrios truculentos, aos horrores do inferno ou s iluses insolentes de uma ressurreio se oporia a imagem de Condorcet fechando os olhos de dAlembert. imortalidade dos corruptos se queria opor a beleza do rquiem.

    Consideremos estes pargrafos de dHolbach3:

    3 DHOLBACH, Systme de la Nature, Londres, 1775. Comeo do 2 vol., pp. 191, 218; vol.

    I, pp. 268, 279, 292, 339, 396. 108

    ... a matria existe por si s, age segundo sua prpria energia e no se anular jamais. Digamos que a matria eterna, e que a natureza sempre esteve, est e estar ocupada em produzir, destruir, fazer e desfazer, em seguir as leis resultantes de seu sistema necessrio.

    Quando queremos remontar origem das coisas, sempre acabamos descobrindo que a ignorncia e o temor criaram os Deuses, que a imaginao, o entusiasmo e a impostura os adornaram ou desfiguraram, que a fraqueza que os adora, a credulidade que os alimenta, o hbito que os respeita, a tirania que os sustenta, com a finalidade de se aproveitar da cegueira dos homens.

    DHolbach considera a intuio do paganismo mais fiel verdade do que a doutrina da providncia divina segundo o cristianismo:

    Foi chamada de divindade a causa necessria e invisvel que desencadeava as aes de uma natureza na qual tudo agia conforme leis imutveis e necessrias. Foi chamada de destino ou fatalidade a relao necessria entre causas e efeitos desconhecidos que experimentamos em nosso mundo; servimo-nos da palavra acaso para designar efeitos que no podemos predizer ou cujo nexo causal ignoramos. O fatalista no deve se orgulhar de seus prprios talentos ou virtudes; sabe que essas qualidades no passam de consequncias de sua constituio natural, modificada por circunstncias sobre as quais teve escassssima influncia. No dever ter dio nem desprezo por aqueles que a natureza e as circunstncias tero favorecido menos. O fatalista deve ser humilde e modesto por princpio; no se v ele forado a reconhecer que no possui nada que no tenha previamente recebido?

    Em suma, aquele que est convencido por experincia da necessidade das coisas no pode deixar de ser indulgente. V com pesar que devido a sua prpria essncia que uma sociedade mal constituda, mal governada, sujeita a preconceitos e a prticas irracionais, submetida a leis insensatas, degradada pelo despotismo, corrompida pelo luxo, saturada de falsas opinies, cheia de cidados frvolos e viciosos, de escravos baixos e envaidecidos por seus grilhes, de ambiciosos desprovidos de conhecimento da glria verdadeira, de avarentos e prdigos, de fanticos e libertinos...

    (...) E assim, o homem mais virtuoso pode, mediante uma combinao estranha de circunstncias inesperadas, chegar subitamente a ser o maior dos criminosos.

  • 109

    Essa verdade ser, sem dvida, considerada como terrvel e horrorosa. Mas, no fundo, no suscita mais indignao do que a que nos ensina que esta vida, qual nos sentimos to fortemente atados, pode se perder a cada instante em virtude de uma infinidade de acidentes to irremediveis como imprevisveis. O fatalismo faz o homem de bem decidir-se facilmente pela morte...

    A essa linguagem da virtude ateia, natural e fatalista, Sade opor, com os mesmos princpios filosficos, a linguagem do desejo sentido na dor e na destruio como sendo absoluto na psicologia de uma sociedade irremediavelmente submetida s coisas.

    Robespierre, seguindo os passos de Mably, propor a linguagem da virtude patritica, familiar e cvica como fora de maior efeito social e maior satisfao para a sociabilidade. Mercier, Fauchet e especialmente Restif de la Bretonne dissolvero os princpios dessa sociabilidade numa filosofia do amor de inspirao rousseauniana , que em Restif se desenvolver como anttese teoria de Sade: o desejo de amar maior que o de odiar ou destruir com prazer, por isso sua satisfao atinge maiores propores.

    Jacob Dupont, matemtico e membro da Conveno, defenderia o atesmo em nome da cincia4, procedendo unio de dHolbach com o Newton que fora divulgado na Frana, o prottipo da razo natural em confronto com a especulao metafsica. Segundo Dupont, o desenvolvimento da razo pressuporia a garantia da liberdade. Era bvio que a liberdade no poderia aliar-se religio porque, ao prescindir ostensivamente da razo, esta prejudicava a manifestao inequvoca da razo e da cincia. Nesse sentido, Dupont criticava Rousseau, reivindicando, por sua vez, a tradio moralista e materialista construda em torno de dHolbach e Helvetius. A Natureza e a Razo, eis os deuses do homem, estes so os meus deuses! Admitirei de boa-f na Conveno: sou ateu. Pronunciadas essas palavras, ergueu-se um burburinho na Conveno. As aclamaes de vrios de seus membros prolongaram o tumulto: Pouco importa ouviu-se tambm , sois um homem honrado!

    4. ROBlNET, Le Mouvement Religieux Paris pendant la Rvolution, Paris, 1896, t.II, pp.

    335 e segs. 110

    Snac de Meilhan, que morreria no exlio da revoluo (1803), encarava positivamente as razes do atesmo de dHolbach ou do ateu mais publicista do perodo revolucionrio, Sylvain Marchal: O medo e a esperana so os motores das aes humanas. Uma fria verdade e uma demonstrao seca no geraro jamais cidados zelosos ou sditos fiis.5 O atesmo tambm via-se limitado por seu racionalismo sem expresso e, portanto, pouco comunicativo.

    O prprio Snac de Meilhan imputa o avano do atesmo e da secularizao despreocupao das elites, que deixam nas mos do povo a salvaguarda dos valores religiosos6: os livros contra a religio se multiplicaram, e a f e o exerccio das prticas religiosas foram, de algum modo, relegados s classes mais baixas da sociedade.

    Para esses primeiros conservadores, a religio estava se adulterando devido a suas concesses ao racionalismo e popularidade, s exigncias racionais entre as elites e s exigncias demaggicas entre a populao. Trata-se de uma argumentao prxima s teses de Robespierre: o atesmo o novo estigma das classes aristocrticas, que o conjugam ao racionalismo egosta, gerando o despotismo e a corrupo da repblica.

    Parte do atesmo no pode prescindir da ideia ou da realizao de alguma liturgia. Sylvain Marchal7 props a seguinte forma:

    Preliminar: Um grave escndalo acontece desde tempos imemoriais. Uma mentira poltica, com alguns milhares de anos de antiguidade, pretende tornar ilusria a perfectibilidade da espcie humana.

    Ainda no existe instituio alguma especialmente destinada a combater e a destruir a crena em Deus que, de todos os preconceitos, o que maior mal gera.

    Marchal passa a propor o culto da sociedade dos homens sem Deus (H.S.D.):

    5 MEILHAN, Snac de, Des Principes et des Causes de la Rvolution en France, Londres,

    1790, pp. 16-17. O reino das ideias religiosas passou: o da liberdade parece renascer; mas, entre os antigos, o amor liberdade tinha sua raiz no corao, era uma paixo; o que agora se manifesta tem sua raiz no esprito (inteligncia), pensado e sistemtico. Idem, p. 84. 6 Idem, p. 15.

    7 MARCHAL, SyIvain, Culte et Loix dune socit dhommes sans Dieu, Lan ler de la

    Raison, Vleme de La Rpublique Franaise (1797-98), p. 77.

  • 111

    I. Os homens sem Deus professam um Culto. Seu objetivo a virtude. Nada mais.

    II. Este culto consiste em proclamar as boas aes, estando vivos seus autores; e a homenage-los depois de mortos.

    III. Os H.S.D. tm um grande Livro aberto para nele reunir e conservar os traos honrosos da espcie humana.

    V. Este volume, objeto material do culto dos H.S.D., deve conter todo o bem que foi e que ser feito.

    VI. Todos os anos um trecho do grande Livro tornado pblico, encabeando as Memrias da Sociedade sem Deus.

    VII. Os H.S.D. cultuam a virtude num templo que no serviu para outros cultos.

    IX. A incumbncia de queimar incensos e de ornar com flores o Livro da Virtude reservada s mulheres jovens e puras.

    XIII. Os H.S.D. no defendem uma doutrina dplice: mais verazes ou mais corajosos do que seus contemporneos e do que os filsofos da antiguidade, dizem e publicam todo o seu pensamento.

    XIV. No abrem nenhuma escola, nem fundam uma seita, dirigida unicamente contra a Existncia divina.

    XV. Seu objetivo principal convencer o homem de que ele pode e deve prescindir de Deus, pretexto de todos os crimes e de todas as calamidades.

    XVI. Sua religio essa piedade natural que leva a se compadecer das desgraas dos demais e a unir-se para trabalhar contra as mesmas.

    XVII. O pai de famlia leva s assembleias os seus filhos de mais de nove anos. Os primeiros lugares a eles esto reservados.

    112

    XXII. Uma hora para ouvir as verdades mais fortes a medida do intelecto humano: mais o cansaria.

    XXXVII. Os H.S.D. septuagenrios tambm consagram a unio dos jovens esposos: recusam a bno a segundas npcias.

    LVIII. Uma sociedade de H.S.D. deve ser mais perfeita do que qualquer outra.

    LX. O pai de um homicida, de uma mulher adltera, etc., no pode permanecer entre os H.S.D.

    LXI. preciso ser pai de famlia, ou t-lo sido; ou substituir o de um rfo, para entrar na associao.

    LXVIII. Os H.S.D. adotam como carter distintivo a idade e os costumes antigos.

    LXX. No momento de sua admisso Sociedade, pronunciam, com a mo sobre o Livro da Virtude, as seguintes palavras: Prometo e me entrego para combater, sem descanso, apenas com as armas da Razo, o erro fatal e enorme da crena em Deus.

    LXXXIII. A Sociedade no admite nenhum indivduo convertido ao atesmo com a finalidade de obter a impunidade para seus crimes, seja ele padre, nobre, criado, pensionista de um prncipe, letrado da corte...

    LXXXVI. Os H.S.D. recusam todo indivduo cuja fortuna ultrapassar em mais de trs vezes as suas necessidades.

  • 113

    XC. Abstm-se de entrar em questes polticas: elevados demais para descer a coisas to miserveis, a regenerao dos costumes ocupa-os inteiramente.

    XCIX. Quando houver uma perseguio, os H.S.D. se retiram ao campo de suas comuns sepulturas.

    Ali, envolvem-se em suas capas e esperam...

    O atesmo assim exposto no parece poder, precisamente em virtude de sua possibilidade social, fugir da liturgia e de uma ou outra forma de religiosidade comunitria. O que esse atesmo enfatiza a substituio da ideia de Deus pela de um dever coletivo sagrado e da emoo da f religiosa por uma piedade considerada mais natural.

    Com tudo isto, o atesmo se aproxima muito de algum tipo de desmo. Durkheim certamente no hesitaria em observar que se o atesmo podia ser pensado como uma prtica realizada por uma comunidade, que a entende como um dever sagrado e como uma reao de piedade natural no homem, sociologicamente deve-se falar de uma religio.

    Os progressos do atesmo durante a Revoluo Francesa sero seus prprios limites: sua divulgao social, sua facilidade de congregar e celebrar e sua fcil conexo com estilos prprios religio natural, faro o atesmo competir enquanto religio enquanto f e celebrao litrgica ou social com as outras formas de religio. Nessa situao, perder para o desmo e tambm para o cristianismo. Confrontado com o desmo robespierrista, no poder substituir o legado desta da filosofia iluminista nem a crtica do atesmo aristocratizante e enaltecedor do individualismo. Confrontado com o catolicismo, no conseguir se colocar acima das exigncias sociais revolucionrias da caridade crist.

    Contudo, a implantao dos cultos Razo e Liberdade, embora vinculados ao desmo, tambm o foram a esse atesmo praticado com religiosidade. E obras como o novo calendrio revelaro algumas possibilidades de transcendncia humana tipicamente naturalistas e ateias. O prprio Sylvain Marchal, que tambm no deve ser esquecido como redator do Manifesto dos Iguais, divulgava em 1788 um Almanach des Honntes Gens, onde j dividia os meses em dcadas; propunha como

    114

    festas extraordinrias a do amor (31 de maro), a do himeneu (31 de maio), a do agradecimento ou ao de graas (31 de agosto) e a da amizade (31 de dezembro). Cada dia recebia como invocao o nome de um sbio, de um poltico que se distinguisse por sua grandeza e nobreza e tambm dos fundadores das grandes religies, bem como o de Thomas de Kempis e de Malebranche. As invocaes de 25 de dezembro eram Jesus Cristo e Newton. A publicao desse almanaque valeu a Marchal trs meses de priso.8

    8 _______, Almanach des Honntes Cens, 1788; Rvolutions de Paris, n 212, 1793.

  • 115

    O culto da razo e da liberdade

    Robinet1 via no culto da razo praticado em 1793 o antecessor da religio positivista de Auguste Comte. Para tanto distinguia totalmente o culto da Razo, que associava nascente sociedade humanista e cientfica, do culto do Ser Supremo e da imortalidade da alma, que identificava como um simples ato retrgrado protagonizado por Robespierre.

    A tese comtiana de Robinet afirmava que a chamada descristianizao do ano II foi uma antecipao da religio regenerada, a da Humanidade e no a de Deus2. Essa religio j tencionava possuir o sistema completo das cincias em lugar dos dogmas teolgicos:

    O culto da Razo, com seus acessrios, sacramentos cvicos, altares da Ptria, calendrio republicano, ensinamento moral, festas sociais, decadrias e anuais, no tinha outra origem, outro pressentimento, outras tendncias, nem outro objetivo.

    Esse argumento, juntamente com a disputa entre Aulard e Mathiez acerca da convergncia ou da diferena entre o culto da Razo e o culto do Ser Supremo, careceria de interesse para ns se no fosse por uma questo que a historiografia mais recente inclinou-se a esquecer: o carter teleolgico das religies ou religiosidades suscitadas durante a Revoluo. Quer dizer, uma vez que a Revoluo era vivida como uma superao social (da a ideia de progresso da historiografia romntica e liberal radical no estar to distante da mentalidade revolucionria), a religiosidade tinha tendncia a se definir por meio de rupturas ou inovaes que se fizessem sentir paralelamente s que intervinham a nvel social. Assim, a encruzilhada de ideias e cultos religiosos durante a Revoluo no deveria tanto ser interpretada como conflitiva, mas antes como uma recapitulao ou sntese de vrias tendncias, no intuito de dar-lhes uma nova forma adaptada aos novos tempos. Ou seja, a criatividade religiosa da Revoluo onde o prprio atesmo ficaria imerso tentava fazer outro Novo Testamento, que no significaria uma ruptura absoluta com o anterior, embora devesse dar a entender sua superao. Nesse sentido ficam mais

    1 ROBINET, dr., Le Mouvement Religieux Paris Pendant la Rvolution t. I, Paris, 1896.

    2 Idem, p. 7.

    116

    ntidas as manobras ideolgicas intentadas por todas as iniciativas religiosas da Revoluo: recapitular Antigos Testamentos (cristianismo, judasmo, desmo e inclusive o islamismo) para melhor legitimar o Novo Testamento ou religio revolucionria. Dessa maneira, embora a nfase parecesse recair na nova religio revolucionria (atesmo, desmo patritico, cristianismo evanglico, teofilantropia, desmo filosfico, etc.), nenhuma apresentao deveria deixar de lado sua legitimidade histrica, seu Antigo Testamento, para, precisamente, poder englobar e dialogar com todas as expectativas e projees de uma religiosidade que pudesse parecer mais extensa e poderosa, e dialogar com elas.

    Dito isso, passemos a considerar a celebrao ou culto da Razo. O contexto da famosa festa da Razo celebrada em Notre-Dame em 10 de novembro de 1793 foi integrado por acontecimentos muito significativos: o decreto de panteonizao de Marat, a deteno dos partidrios de Danton, a pardia do culto catlico representada na Conveno por membros da seo da Unidade (20-XI), a posterior ordem de fechamento de todos os locais de culto de Paris (23-XI) e a despanteonizao de Mirabeau (25-XI).

    Rvolutions de Paris3 afirmava, referindo-se festa da Razo, que at a realizao da mesma no houvera um triunfo to definitivo a favor da liberdade e da religio verdadeiras. Lamentando que os sacerdotes, desde o incio, quiseram se apoderar de nossa revoluo,4 pois regozijavam-se com o rumo dos acontecimentos. A revista de Prudhomme, Marchal, Loustalot, Chaumette, Fabre dglantine, etc., estava decidida a acabar com a iniciativa de uma parte dos catlicos a favor da Revoluo. Para tanto, incentivava uma devoo e um culto mais estritamente cvicos, patriticos e seu: referncias to explcitas ao desmo e sim, em troca, s virtudes da filosofia e da nova repblica.

    A interpretao dada por Rvolutions de Paris Festa da Razo em Notre-Dame parece querer evitar tanto o batismo evanglico da Revoluo como sua paganizao desta. Robespierre logo veria nela uma manobra dos indulgentes dantonianos e dos demagogos do Pere Duchne, Hbert.

    3 N 215, 23-30 de Brumrio do ano II = 13-20 de novembro de 1793.

    4 Idem, p. 210.

  • 117

    Esta cerimnia no se parecia em nada a essas patuscadas gregas e latinas5; assim, tocava diretamente alma. Os instrumentos musicais no soavam de forma alguma como os rgos das Igrejas. Era uma msica republicana: colocada ao p da montanha (elevao de madeira no coro da baslica e sobre a qual erguia-se um pequeno templo dedicado Razo), a orquestra executava, em estilo vernculo, o hino6 que o povo entendia tanto melhor porque expressava verdades naturais e no encmios msticos e quimricos. Enquanto escutava-se essa msica majestosa, via-se duas fileiras de moas, vestidas de branco e coroadas com folhas de carvalho, descer e atravessar a montanha, com tochas nas mos, e depois tomar a subir a montanha na mesma direo. A liberdade, representada por uma bela mulher (Srta. Aubry), saa ento do templo da filosofia e la at um assento ornado de folhagens para receber as homenagens dos republicanos e republicanas, que cantavam um hino em seu louvor, estendendo-lhe os braos. A liberdade a seguir descia para tomar a entrar no templo, parando antes e voltando-se para dedicar um olhar benfazejo a seus seres queridos. Assim que entrou, o entusiasmo irrompeu em cantos de alegria e em juramentos de nunca cessar de lhe ser fiel.

    Como a Conveno Nacional no pde assistir a esta cerimnia de manh, ela foi repetida tarde em sua presena.7

    No houve, digamos, apenas preocupao com o espao entre a sesso da Conveno, que to dignamente enterrou o fanatismo, e o dia em que foi celebrada essa vitria grande e eterna: tudo foi convenientemente ordenado e preciso destacar, em especial, o cuidado que se teve em representar a liberdade com uma mulher

    5 N 214. David parece ser o destinatrio dessa crtica.

    6 O hino Liberdade. Letra de M. J. Chnier e msica de Gossec.

    7 A Conveno estava dividida e preocupada. No dia seguinte Bailly seria executado, como

    na vspera fora executada Mme. Roland. Chaumette to admirado por Michelet convenceu parte da Conveno a participar da festa tarde, mas muitos no compareceram. A desculpa por no ter ido de manh foi para no interromper uma sesso que aparentemente no tinha nada de importante ou extraordinrio. No dia seguinte, a Conveno tambm no quis encaminhar a petio de exclusividade para o culto da Razo e da Liberdade, suprimindo todos os demais. Segundo Durand de Maillane (Histoire de la Convention Nationale, Paris, 1825, p. 182), a metade dos convencionais no assistiu celebrao do culto da Razo.

    118

    viva, e no com uma esttua.8 Desde o novo comeo se quis desacostumar os espritos de qualquer espcie de idolatria; evitou-se, com toda certeza, substituir o santo sacramento por um simulacro inanimado da liberdade, j que os espritos grosseiros poderiam ser induzidos a erro se no lugar do deus de po simplesmente tivesse sido colocado um deus de pedra; as supersties j no so necessrias aos homens: se derrubamos os cultos fraudulentos, no foi para continuar ludibriando com outros, apresentando novos objetos capazes de iludir a imaginao e o corao. Essa mulher viva, apesar de todos os encantos que a embelezavam, no podia ser deificada pelos ignorantes, tal como teria acontecido com uma esttua de pedra.

    Trata-se de algo que no se deve cansar de repetir ao povo: a liberdade, a razo e a verdade no passam de seres abstratos. Mas isso no quer dizer que sejam deusas, j que, corretamente falando, so partes de ns mesmos.

    A liberdade no seno nossa vontade, que tem o poder de se manifestar e de se realizar. A razo no seno essa faculdade que est em ns de captar a natureza e as relaes entre as coisas; e a verdade, por fim, no seno a prpria natureza. a relao real e primitiva das coisas, no uma parte de ns mesmos que desejamos adorar; isto seria adorar nossas prprias pessoas. Ao realizar a festa da liberdade, da razo, limitamo-nos a festejar as vantagens que nos proporciona esta poro de ns mesmos que se regenera, que se desenvolve em ns para nos beneficiar.9

    Se qualidades abstratas e metafsicas so preconizadas, atravs de uma linguagem figurada, porque essas maneiras de falar10 desencadeiam mais presteza e vivacidade nos discursos e nas grandes assembleias. Os organizadores das festas devem portanto evitar dar falsas ideias aos ignorantes colocando esttuas sobre um altar. Inclusive talvez tenha sido um erro ter-se dado, em Paris, o nome de

    8 Embora a atuao dessa deusa faa pensar mais em quadros escultricos, de acordo com o estilo praticado pelo prprio David. 9 Depois de criticar a idolatria, o que no deixa de ser uma crtica original do judasmo e do cristianismo, passa-se a celebrar as qualidades naturais, celebrao tpica da ideia de criao tal como era transmitida pelos destas. 10

    curioso como, em mais de uma oportunidade durante a Revoluo Francesa, ideias foram defendidas ou atacadas em funo das consequncias sociais da maneira de falar das mesmas.

  • 119

    templo da razo a sua ex-baslica metropolitana; teria sido melhor cham-la de casa da verdade; considerando que os altares, os templos, tudo isso que um culto pressupe, tambm pressupe sacerdotes; ento pouco importa que esses sacerdotes sejam idlatras ou catlicos, todos tm o mesmo esprito, sempre para sua prpria vantagem, para seu prprio interesse, que diversificaram a impostura e o engano segundo as convenincias das pocas e dos lugares. Que os organizadores das festas, se quiserem seguir o exemplo de Paris e lanar mo de uma mulher para representar a razo, faam amanh uma escolha digna da festa,11 que ofeream vista do povo urna mulher cuja conduta torne a beleza respeitvel, cuja sobriedade de costumes e apetites, cuja reputao sem mcula, afastem a tolerncia de desejos e propsitos ocultos; que a encarregada de um papel to augusto, longe de aviltar a liberdade ou a razo, cuja imagem encarna momentaneamente, imprima em todos os coraes, com sua presena, o devido respeito.

    Por outro lado, os cultos da Razo e da Liberdade no podiam manter-se unicamente como celebraes filosficas. Sua fora precisava ser unida ao patriotismo e o anticatolicismo associado defesa do Estado, o que aparece claramente no contexto da guerra com a Espanha. As festas da Razo e da Liberdade tornaram-se notveis nas terras fronteirias onde se encontravam os heris da liberdade e da igualdade contra os lacaios da Inquisio e os seguidores dos dspotas.12

    Joseph Mongin, capito do exrcito francs, elaborou um culto decadrio, enquanto estava preso na Belle-Tour de Reims, pelos termidorianos13:

    O Culto em questo no foi pensado em princpio para ser executado publicamente. O autor encarcerado pelas manobras de alguns de seus colegas frente dos quais se encontrava seu coronel , habituado vida turbulenta de soldado, viu-se condenado inatividade fsica; nesse estado, as ocupaes do esprito se tornam um recurso... Tal foi a primeira causa dessa obra que se realizou nos calabouos da Belle-Tour de Reims.

    11 A escolha da atriz Aubry no fora do agrado de todos.

    12 O representante da Conveno nos altos e baixos Pirineus, Orthez, 10-11-1794: Recueil

    des Actes du Comit de Salut Public, Paris, 1971, supl. ao t. VI 13

    Messe des sans-culottes chante la Belle-Tour de Reims (ed. 1854), pp. 45 e segs. 120

    Como impossvel resistir linguagem da liberdade, cada um dos detentos tomou parte prazerosamente como ator ou espectador desta cerimnia; todos participaram com o silncio, com o recolhimento que demonstra o recebimento pela alma das impresses que lhe querem comunicar.

    Assim, de dez em dez dias transformvamos um lugar sempre habitado pela desgraa, s vezes pelo crime, amide pela inocncia perseguida, num templo erguido Liberdade.

    Segue-se o texto da Missa decadria, verdadeira rplica litrgica da missa catlica, com inverses simblicas evidentes:

    Missa Decadria

    Nota O Sumo Sacerdote, o primeiro Ministro, no deve usar nenhum traje especial. Deve estar vestido de soldado, ou usar a faixa de magistrado do Povo. Na medida do possvel, deve ter uma voz dotada de extenso e emoo...

    A sala est escura, a esttua da Liberdade se encontra sobre o altar colocado ao fundo do templo.

    O Sumo Sacerdote (pegando um copo cheio de vinho das mos do mestre de cerimnias, que deve se colocar atrs dele): Que esta libao seja hoje o sinal da aliana de todos os franceses. em tua honra, Divindade tutelar da Frana, que derramamos este vinho sobre a terra, que o sangue de nossos inimigos umedea assim a nossa terra natal. (Derrama o vinho no cho.) Que nossos prazeres se transformem em vitrias, e que a vitria seja para ns um prazer. O Sumo Sacerdote (no meio do altar): Glria: Glria seja dada, no cu e na terra, aos homens livres. Ns te glorificamos, te bendizemos, te adoramos santa liberdade, porque asseguraste ao povo francs uma felicidade imorredoura, aniquilando os animais ferozes que viviam de seu sangue, conduzindo Lus Capeto, os brissotinos, fuldenses e outros Guilhotina...

    Sumo Sacerdote: Que a Igualdade esteja entre ns. Ministros: Que nos una com os mais suaves laos. Credo: Creio na declarao dos direitos do homem...

  • 121

    Um ministro: No incio da criao, a igualdade reinou entre os homens. Os produtos da terra eram de propriedade comum e o grande autor da natureza colocara no corao dos humanos a necessidade de se amarem uns aos outros. Assim, a fraternidade teve como fonte sublime a nossa existncia, nasceu com a nossa espcie. Esta idade feliz durou apenas um instante. Logo o preguioso pretendeu viver do campo de seu vizinho, abandonando o cultivo do seu prprio. Aquele que foi dotado de uma constituio vigorosa logo se aproveitou de sua fora para arrancar do fraco o fruto de seu trabalho. Desses dois tipos de indivduos nasceram os padres e os nobres, e as santas leis das Igualdades foram aniquiladas. Os primeiros urdiram uma religio insensata que legitimou sua rapina e deu-lhes um carter sagrado, abusando de nossa credulidade e nos submergindo num dilvio de males. Os segundos, menos culpados, apresentaram-nos a espada que os armava e nos persuadiram de que s se utilizariam dela para nos defender; mas abusaram, transformaram-nos em servos, e de protetores passaram a tiranos. O povo se achava mergulhado na superstio e no fanatismo, o po que o alimentava era um po de dor e amargura, a vida das geraes no era seno um crculo de calamidades. Todavia, um anjo de luz planou um instante sobre a Frana e nossa cegueira desapareceu; lembramos de nossos direitos usurpados e imprescritveis; indignados por uma longa opresso, criamos uma Ptria para ns. A partir desse momento, nossos dspotas e nossos padres corruptores foram ignominiosamente expulsos. O sangue dos culpados serviu de vingana Frana trada, e o estandarte da Liberdade foi cravado nas runas da Bastilha. Desde esse tempo, o sentimento de nossas desgraas passadas nos faz ter mais apreo por nossa nova existncia; fiis s leis da natureza, defenderemos a Igualdade at o ltimo suspiro, nossos filhos abenoaro nossa memria e viveremos eternamente na memria dos justos.

    Os ministros pem incenso nos turbulos. Ao mesmo tempo, outros dois ministros ou dois participantes trazem com gravidade um boneco representando um rei coroado. Depositam-no ao p do altar... O sumo sacerdote corta a cabea do tirano, todos os participantes gritam: Viva a repblica! Viva a repblica!.

    Alm da inverso simblica de diversos aspectos da liturgia catlica, essa missa sans-culotte reflete a mescla dos cultos da liberdade, da igualdade e do Ser Supremo, bem como o papel das pantomimas nas

    122

    representaes da poca, fenmeno mal interpretado num perodo que apenas comea a redescobrir a fora da pantomima.

    A ideia de poder separar de modo absoluto os interesses e a atividade do Estado da moral e espiritualidade da Revoluo uma ideia que nunca triunfa no perodo revolucionrio. Na verdade, essa ideia no chega a se impor com certa normalidade antes do Diretrio. Contudo, algumas interpretaes teleolgicas, algumas coetneas, embora distantes, como a de Fichte,14 afirmaram que a Revoluo Francesa operara conscientemente essa diviso. Mas no foi assim. Em princpio, a prpria religio catlica protagonizou a celebrao da Revoluo e influenciou a apresentao dos fatos. Depois, serviu ao Estado, enquanto o Estado tambm procurava outras sadas religiosas (cultos revolucionrios, filosficos, patriticos) para sua legitimidade e fora histricas. Finalmente, a preocupao moral em tomo da poltica e o apego religiosidade popular, tanto da direita como da esquerda, ocupam os pensamentos da ltima etapa da Conveno, antes e depois do Termidor. At a poca do Diretrio, no obtm hegemonia a ideia liberal que Fichte atribua erroneamente Revoluo: a separao estrita entre o Estado e a Igreja, a Poltica e a Religio, no sentido de separar o mundo considerado visvel e civil do mundo encarado como invisvel e espiritual. Afirmando que a natureza diversa da religio impossibilitava seu contato racional ou sensvel, Fichte deixava assim a poltica livre de qualquer condicionamento que no fosse o de sua prpria racionalidade. O mesmo ocorria no caso da economia. esse aspecto liberal que Fichte atribua Revoluo Francesa. Mas o que esta fez foi precisamente continuar procurando os condicionamentos morais e religiosos da poltica e da economia, j que de outro modo elas eram consideradas indignas de serem vividas por homens livres. E isso foi sentido tanto por catlicos fervorosos e consequentes como por revolucionrios humanistas ou destas. O liberalismo surgiu apesar dos esforos morais de grande parte dos lderes da Revoluo, no graas a eles. Em suma, a representao liberal do mundo capitalista com seus corpos autnomos e dotados de uma lgica interna econmica, poltica, etc. no foi propiciada pelo esforo

    14 FICHTE, J. G., Considrations destines rectifier les jugements du public sur la

    Rvolution Franaise, prcdes de la revendication de la libert de penser auprs des princes de lEurope qui lont opprime jusquici (1793), Paris, 1858. Especialmente pp. 320 e segs.

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    revolucionrio de tomar parte desses corpos, conseguindo assim uma responsabilidade ou um compromisso que permeasse todas as atividades da sociedade. O liberalismo surgiu com a Revoluo, mas tambm preciso dizer que apesar da Revoluo. Nesse sentido, a Revoluo Francesa no foi to burguesa quanto a transio ocorrida entre os sculos XVIII e XIX, cuja durao estaria vinculada s mudanas lentas que acarretaram a supremacia do sistema capitalista nas formas de reunir e distribuir a populao; produzir, distribuir e trocar bens; expropriar, transpor e apropriar esforos e coisas; e lutar contra tudo que se opusesse a essas tendncias, s vezes mais escamoteadamente, s vezes mais abertamente.

    o Diretrio republicano que vai afirmar sem rodeios no apenas a separao mais estrita entre Igreja e Estado em tudo que se refere cidadania e seus direitos, como tambm a substituio mais absoluta das finalidades morais e dos mtodos religiosos pelos da moral da repblica leiga. Essa laicizao no ter, contudo, nenhum escrpulo em imitar ou retomar procedimentos tpicos da religio para os seus objetivos, questo ainda mais embaraosa durante o perodo convencional. Essa atitude se reflete nas propostas de Mentelle em plena euforia republicana do Diretrio15:

    Depois de ter refletido com rigor acerca das bases que o Legislador deve adotar para assentar slida e convenientemente a Instruo necessria a toda a Repblica, creio que posso provar:

    1 Que no deve ocupar-se em absoluto com nada que possa se relacionar com a religio;

    2 Que deve considerar nica e exclusivamente a moral; 3 Que para ensin-la com. eficcia e faz-la germinar em todos os coraes, preciso empregar os meios usados anteriormente para o ensino da religio catlica.

    (...) Creio poder assegurar que a moral, uma vez instalada no corao do homem, ser to duradoura como o foram os preconceitos religiosos; e, ademais, ser melhor e mais til.

    15 MENTELLE, Mmoire lu la Classe des Sciences morales et politiques de lInstitut

    national, 3-IX-1797, pp. 3,12 e 13. 124

    Porm, dir-me-o, como tomar a moral to poderosa e conseguir dar-lhe um imprio to universal? Eis aqui minha resposta. No h outros meios para tanto a no ser os que foram utilizados para perpetuar o ensino da religio...

    Mentelle prope que o professor de primeiro grau tambm desempenhe o papel de educador moral, e que a alfabetizao, unida ao conhecimento dos novos valores morais, substitua a cidadania catlica, outorgada pelo batismo, pela cidadania republicana. Assim, a alfabetizao e o catecismo republicano dariam o batismo ao cidado da Repblica.

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    A teofilantropia. A fora do desmo comparada do atesmo ante o catolicismo

    O opositor mais prximo ao atesmo durante a Revoluo foi o desmo, demonstrando que este, ao contrrio da afirmao dos proslitos cristos, nem era um atesmo disfarado nem o seu preldio. Pelo contrrio, quando desfrutou de maior liberdade, apresentou-se como inimigo vigoroso do catolicismo e de qualquer religio derivada do vcio eclesistico, tanto quanto e com fora igualou ainda maior inimigo sistemtico do atesmo. Portanto, o desenvolvimento do desmo durante a Revoluo deve ser considerado como um dos limites ao progresso do atesmo. A fora do desmo parecia basear-se principalmente em trs fatores: a associao do atesmo a vcios aristocratizantes, a persistncia da linguagem da moral na religiosidade e o maior compromisso patritico e republicano do desmo francs em comparao ao cristianismo revolucionrio, mais cosmopolita e menos beligerante.

    Assim como acontecia com o atesmo, que no conseguia escapar das formas sociais e litrgicas de uma institucionalizao religiosa, o desmo difundiu-se durante a Revoluo com formas anlogas. Uma das mais significativas foi o culto teofilantrpico. E um de seus textos bsicos foi o Trait de la Religion Naturelle1 de Pithou de Loinville. No pargrafo que citamos a seguir, observemos como o ataque contra o atesmo e o materialismo do mesmo calibre e se conjuga num mesmo propsito que o ataque suscitado pelo farisasmo e pela corrupo eclesistica. Nesse sentido, so igualmente anatematizados a imoralidade e o fanatismo, da mesma maneira como j fazia toda uma tradio desta do Iluminismo.

    Expulsar o fanatismo e a superstio, purificar de toda licena o solo da liberdade, limpar o ar e a terra do contgio do atesmo, combater os horrores monstruosos e sanguinrios dos sacerdotes; perseguir a espantosa hidra dos erros at sua aniquilao mais absoluta; este nosso cometimento... preciso derrubar o jugo de todas as imposturas fanticas, polticas e supersticiosas. Mais ainda, preciso castigar com rigor extremo os corruptores dos costumes morais.

    1 PITHOU DE LOINVILLE, J. J., Trait de la Religion Naturelle, Paris, (1797, W ed.), pp. 3

    e 11. 126

    necessrio esmagar com o tremendo peso do desprezo os materialistas, os ateus e os egostas. fundamental desterrar esse tipo de moral anti-social e sacrlega. E, por ltimo, desterrar todas as opinies abusivas desses seres comprometidos com as rotinas de seus antepassados.

    Depois de estabelecer esses objetivos, Pithou de Loinville passa a expor as bases de uma teologia desta segundo os argumentos clssicos da religio natural: a criao, as maravilhas de sua ordem e a imponncia de seus enigmas. Deve-se considerar que o conhecimento da Criao a virtude bsica, a f da religio natural. Por essa razo, os proslitos dessa doutrina enfatizam, como Pithou,2 a importncia de uma educao atenta ao estudo da natureza, chegando a considerar o Ser Supremo como o arquiteto sublime, conceito comum a todos os desmos naturalistas. nessa linha de argumentao que Pithou ope o altar da natureza ao altar do clero.3

    O que considerado mais execrvel na Religio catlica so os seus ministros, papel igualmente abominvel em qualquer religio (e no se deve esquecer que a teofilantropia tambm teve uma espcie de ministros ou pregadores formais de seu culto)4:

    Efetivamente, tudo que pode receber a denominao de sacerdcio, no importa como se chame em cada caso, possui um esprito comum de seduo apesar de seus meios divergentes.

    Por toda parte derrubaram a Religio Natural, substituindo-a por outra de sua inveno.

    Aquela era bela demais, queria virtudes em lugar de cerimnias. Aquela era simples demais, queria apenas virtudes em lugar de cerimnias.

    Aquela era to simples que nos dispensava de seu ministrio; mas era preciso que vergonha! , era preciso, e ainda , que haja intermedirios entre o cu e a terra.

    Foram os sacerdotes os primeiros a afirmar que o homem nasce criminoso e que convm purific-lo dos pecados de seus pais. Eles

    2 Idem, pp. 58-59.

    3 Idem, pp. 45-46.

    4 Idem, pp. 33-34.

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    mesmos lhe atriburam inclinaes ms e, com o pretexto de corrigi-las, puderam seduzi-lo melhor. Na verdade, chegaram a govern-lo como donos e senhores de sua alma, declarando terem recebido do cu essa misso; em suma, todos os vcios e todos os crimes contriburam para a origem do sacerdcio; sua vida foi um entrelaamento de todos eles e o infortnio humano foi seu resultado. H que reconhecer, para maior desgraa da terra, que tais foram a origem, a vida e os costumes dos sacerdotes.

    A grandeza da religio natural se ope dessa maneira mesquinhez da religio administrada5: Olha quo grande e admirvel o homem, quando ouvindo unicamente os conselhos de seu corao e de sua alma o que deve ser! Quo sublime ele ao elevar-se at seu autor numa contemplao religiosa isenta de intermedirios! E quo abjeto, desprezvel e cheio de baixeza fica o homem quando se dispe a submeter suas faculdades naturais a seres absurdos e amide criminosos!

    A divindade tambm respeitada pelo discurso anticatlico, antiprotestante e antijudeu de Lambert-Lequinio;6 seus oponentes, no entanto sobretudo Robespierre acusam-no (a Lequinio) de ateu desmoralizador.

    Cidados, vou demonstrar-vos que em princpio todos os cultos so claras imposturas que aviltam o homem e a divindade; no vos provarei por meio da filosofia, no a conheo, mas unicamente com as luzes da razo. Depois provarei que apenas com a moral, bem compreendida e livre de toda superstio, possvel obter-se uma boa conduta, e que a maneira de honrar o eterno fazer o bem a seus semelhantes: tal , cidados, o objetivo de meu discurso.

    A grande sede da moral e da mxima felicidade em vida o matrimnio. Por isso, se a melhor maneira de honrar o eterno amando ao prximo, a mesma mxima crist prope a unio sagrada dos esposos como paradigma da moral secular. Paradigma de amor e liberdade:

    Agora vamos considerar, cidados, a mais interessante das satisfaes, a que promove a felicidade em todos os sentidos; e,

    5 Idem, p. 47.

    6 LAMBERT, A., e KERBLA Y, Lequinio de, Discours de morale, prononc le 2me

    dcadi, 20 frimaire, lan 2me de la rpublique une et indvisible, au temple de la Vrit. Paris, 1793.

    128

    ademais, um dos deveres da moral, e o mais simples e agradvel de cumprir. vnculo sagrado dos esposos! Quando penso em vs, minha alma se eleva e se enche de amor; nunca pronunciei vosso nome sem prazer. De fato, cidados, graas a nossos legisladores, jamais a unio conjugal foi satisfeita com tanta felicidade como em nossos dias; os padres cruis j no tm o direito de controlar os coraes, de unir as pessoas que a antipatia afasta, que se sentem cheias de averso e dio recprocos; j no tm o direito de pr no claustro uma filha que, amando um jovem que o amor formou para ela, no quer desposar um velho cadver cujos passos vacilantes s o aproximam da tumba. Ao contrrio, unidos por sua prpria escolha, com seu desejo formal que os esposos juram partilhar seus dias. Dessa maneira, a lei do divrcio ser quase intil; s existiro casais felizes...

    Cessai, mmias de batina, de falar-nos de uma felicidade distante, atravs dos espinhos e dos sarais que vs mesmos forjastes. O cu est perto de ns; encontra-se na prtica da moral, no exerccio dos direitos do homem e da natureza: pai, esposo, filhos, estes so os nossos deveres e nossos prazeres, no desejamos outros, seria caro demais obt-los custa da humanidade... Longe de ns os egostas, os aambarcadores brbaros que esto dispostos a basear sua satisfao na desgraa de seus semelhantes; que sejam para sempre aniquilados com os padres e os dspotas...

    Essa moral humanista, ligeiramente desta, que enaltece os papis da reproduo social e reprime os vcios mais tpicos do capitalismo, a que Lambert-Lequinio preconiza como sendo a dos verdadeiros sans-culottes. O enaltecimento do matrimnio e da famlia (maternidade, paternidade, fraternidade) ser a maior originalidade moral do desmo patritico e republicano do perodo robespierrista da Conveno. Embora no incio tenha tido uma formulao menos comprometida com o desmo e o republicanismo, logo se combinaria com eles e, ademais, curiosamente, coincidiria com os pilares da nova moral conservadora ps-revolucionria.

    A Providncia como explicao e ao mesmo tempo sacralizao da Revoluo seria outro recurso para limitar o atesmo da Revoluo. por esse motivo que nos discursos mais populares no se pode deixar de tratar a fortaleza da Revoluo Francesa como fato providencial. Assim, se j no se quer fazer apelo ao Deus cristo ou desta, ao menos se apela liberdade

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    ou razo em termos no menos providencialistas em mais de uma ocasio7:

    ... as piras devoradoras do maquiavelismo consumiam sem cessar nossos esforos generosos: aqui, latifundirios, grandes fornecedores aambarcavam o trigo no intuito de exaurir o povo e se enriquecer; ali, padres hipcritas e anticristos agitavam os archotes incendirios do fanatismo; e, por toda parte, os homens de estado, combinados com os departamentos, urdiam secretos compls a favor do federalismo desorganizador; fabricantes de falsos soldos, tentavam desacreditar a moeda nacional; em suma, tudo que a maldade pode imaginar de horroroso era arquitetado e praticado. Mas a divindade tutelar e querida dos franceses, coberta com um escudo impenetrvel, nossa santa Liberdade, nesses momentos de crise, acompanhada por seu poderoso gnio, colocada nos pncaros de uma majestosa montanha, percorrendo com o olhar penetrante e veloz o solo da Repblica, prodigalizava por toda parte as centelhas da verdade...

    o verstil Boissy dAnglas, esteio das festas nacionais robespierristas, amigo das finanas e da restaurao, eleito pelo terceiro estado e nomeado par de Frana por Lus XVIII, que nos descreve com grande acerto o balano do debate sobre a liberdade de cultos8:

    No se trata simplesmente de examinar se aos homens necessria uma religio, se quando podem guiar-se pelas luzes da razo e unir-se uns aos outros apenas por meio dos laos do interesse comum, dos princpios da organizao social e desse sentimento imperioso que os leva a aproximar-se e a amar-se, ainda preciso criar-lhes iluses, ou deixar que opinies errneas se transformem em regras de sua conduta ou em princpio de suas relaes: cabe ao tempo e experincia instru-los sobre essa questo; cabe filosofia esclarecer a espcie humana e extirpar da terra os velhos erros que a dominaram. Ah! Se aos homens necessria uma religio, se a origem de seus deveres deve ser encontrada em opinies sobrenaturais, se os erros religiosos foram para a humanidade o fundamento de alguma vantagem, -me impossvel, pousando meu olhar no decorrer dos sculos, no me sentir dolorosamente

    7 PASSOT, Aristide, Discours prononc dans le Temple de La Raison et la Socit des

    Sans-culottes de Nevers... , (1793), p. 2. 8 DANGLAS, Boissy, Rapport sur ta libert des cultes, fait au nom des Comits de Salut

    Public, de Sret gnrale et de Lgistation... , Paris, 1795, pp. 6, 8, 9, 11 e 13. 130

    comovido pelos males horrorosos que tiveram a religio por origem ou pretexto. A religio vendeu a preo muito alto os consolos que propiciou aos humanos... Uma moral doce e benfazeja envolvia s vezes o absurdo de seus dogmas e a atrocidade de sua poltica; um brilho imponente e sedutor mesclava-se puerilidade de suas prticas; as abstinncias ordenadas s serviam para espicaar o amor-prprio, e algumas iluses s vezes comovedoras ofereciam alimento sensibilidade, esperana desdita...

    Boissy dAnglas relaciona, igualmente, os idiomas minoritrios, os costumes locais e a persistncia do culto catlico retrgrado:

    ...a barbrie de alguns idiomas que conservam a ignorncia em algumas regies da Repblica, os encantos do costume de que algumas almas preguiosas so incapazes de se livrar, a influncia sempre poderosa das primeiras impresses da alma que se refletem com tanta fora sobre todo o resto da vida e, mais do que tudo, uma funesta perseguio dirigida por homens ferozes contra homens extraviados, ajudaram a reanimar em muitos lugares o fervor de um culto em extino...

    Boissy dAnglas critica, por outro lado, a perseguio realizada por Hbert e Chaumette em nome do atesmo republicano. E acaba se aproximando da proposta de Robespierre sem dar-lhe seu beneplcito, mas invocando a liberdade de culto:

    O homem deseja iluses e quimeras. Sob um governo opressor, que a cada instante aflige seu pensamento, sente a necessidade de procurar longe de si mesmo os consolos que no pode encontrar no que o rodeia; necessita de uma autoridade suprema, acima da autoridade que o fustiga. Sena o mais desgraado dos seres se, quando est oprimido na terra, no esperasse um vingador no cu; e esse sentimento o criador de todos os erros religiosos. S o homem verdadeiramente livre goza da independncia e da plenitude de sua razo. O segredo do governo em matria de religio certamente est nestas palavras: Quereis destruir o fanatismo e a superstio, oferecei ao homem uma ilustrao; quereis v-lo disposto a receber essa ilustrao, sabei faz-lo livre e feliz .... Mas, enfim, as prticas religiosas podem tambm ser exercidas; elas no constituem delitos contra a sociedade. Seu relatrio do Comit de Salvao Pblica, de Segurana Geral e de Legislao termina recomendando evitar as provocaes s prticas religiosas evitando martirolgios e

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    apologias , considerar a religio como uma opinio privada e vigiar apenas as consequncias polticas e morais dos cultos.

    Esse relatrio deu lugar ao decreto sobre liberdade de culto de 21 de fevereiro (3 do ventoso) de 1795.

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    O calendrio republicano

    Estamos diante de outra iniciativa do progresso ateu, mas que precisamente para seu prprio realce no hesita em se utilizar desde o incio das vantagens da linguagem providencialista e sacralizadora da Religio. Os redatores de Rvolutions de Paris1 julgaram com toques de predestinao, providencialismo e ordem csmica o advento temporal da Repblica, que seria tomado como comeo cronolgico do novo calendrio. Do tropel de exaltaes cndidas, polticas e profundas da Revoluo, destaca-se este texto:

    O Comit de Instruo Pblica consulta neste momento a Academia de Cincias para fazer o nosso novo regime poltico coincidir com o sistema planetrio, e para obter um novo calendrio. Os sbios j calculam, computam e esforam-se denodadamente, como antes j acontecera, para fazer coincidir as pocas religiosas com os fenmenos astronmicos; e alguns de nossos deputados j parecem temer a vergonha e as consequncias dessa inovao, como se a repblica francesa devesse temer abordar uma reforma que Jlio Csar e um papa no temeram empreender e concluram com sucesso.

    Mas graas a uma coincidncia das mais felizes, o trabalho que nossos legisladores pediram aos astrnomos j parece resolvido de antemo. No entramos na repblica em 21 de setembro? Pois esta data vem a ser o ponto equinocial do outono, designado pelo signo do zodaco que justamente cai nesse ms, ou seja, a Balana, smbolo da igualdade. Quem nos impediria portanto de comear a partir de agora os nossos anos em 21 de setembro? Este limite, fcil de apreender, no atrapalha em nada a diviso em pocas da histria dos diferentes povos, e no gerar nenhum caos na cronologia ou na ordem civil. Ser suficiente, para coincidir com as pocas das demais naes, subtrair os nove primeiros meses do ano de 1792.

    Que belo tema de horoscopia para um astrlogo, se agora ainda fosse correto s-lo! Feliz Frana! Exclamaria o sol, no signo de Balana, entrando no ponto equinocial do outono quando juravas a igualdade e

    1 Rvolutions de Paris, n 183,5-12 de I, 1793.

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    fundavas a repblica; reinava nesse momento uma concordncia perfeita entre o cu e a terra; sob esses belos auspcios anatematizavas a realeza e davas liberdade, para sua fortaleza, a santa e eterna igualdade, que o sol ento tambm estabelece entre os dias e as noites. Repblica dos francos, esto pois os teus altos destinos escritos no prprio livro da natureza? Nao poderosa e afortunada entre todas as demais, todos os anos, no mesmo dia, em 21 de setembro, encontrars o sol no signo da Balana! Sem dvida, esse astro que faz os dias e as noites, que duas vezes os divide por igual, encontrar-te- fiel a partir de agora, como ele, aos deveres e aos direitos que juraste cumprir e defender. Franceses!, lembrai-vos de que vossa repblica nasceu sob o signo da igualdade!

    Renouvier glosaria assim o advento do novo calendrio: A mais alta frmula do novo culto apareceu no admirvel Calendrio Republicano, promulgado pela Conveno em dois prazos, segundo os relatrios de Romme e de Fabre dglantine... A nova era adotava como caracterstica sagrada e religiosa, tal como demonstrava o austero convencional, a coincidncia impressionante, e talvez nica na histria, de que seu ponto de partida, 22 de setembro de 1792, dia da proclamao da Repblica, tambm era o equincio de outono.

    Renouvier prossegue enumerando os emblemas dos dias, das dcadas e dos meses, emblemas que finalmente no foram aplicados ao calendrio republicano.

    O Nvel, smbolo da igualdade; o Bon frgio, dos escravos libertos, smbolo da liberdade; o Cocar (cocarde), ou as cores nacionais; o Pique, arma do homem livre; o Arado, instrumento da fora agrcola; o Compasso, instrumento das foras industriais; o Feixe, smbolo da fora que nasce da unio; o Canho, instrumento das vitrias; o Carvalho, emblema da procriao e smbolo das virtudes sociais. Os meses receberam tambm uma consagrao patritica e filosfica: a Regenerao, a Confederao, o Jeu de Paume, a Bastilha, o Povo, a Montanha (localizao dos jacobinos na Conveno), a Repblica, a Unidade, a Fraternidade, a Liberdade, a Justia, a Igualdade...2

    2 RENOUVIER, J., Histoire de lArt pendant la Rvolution, Paris, 1863, p. 392.

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    Fabre dglalltine,3 poeta e dramaturgo natural de Carcassone admirado por Stendhal, vai elaborar, a partir da proposta do matemtico Romme, o famoso Calendrio Republicano, sob uma perspectiva ruralista e buclica. Parece que Fabre, chegado Revoluo, como tantos de seus protagonistas, em torno dos quarenta anos, no escapou nem ao turbilho dos vcios da nova corte revolucionria, nem dos castigos que Robespierre lhe infligiu enquanto pde. Acusado de conivncia com as finanas e a corrupo, no deixa de chamar ironicamente a ateno o fato de a antiga casa em que nasceu ter-se transformado, hoje em dia, numa firma financeira.

    Fabre dglantine nos expe o novo calendrio com ingredientes que parecem proceder mais do ruralismo e da voluptuosidade climtica de um nativo do Languedoc, seduzido pela terra e pelo mundo, que do racionalismo e da exaltao parisienses, mais prximos da desconfiana e da pomposidade.

    Quando, em cada instante do ano, do ms, da dcada e do dia, o pensamento e o olhar do cidado pousarem numa imagem da agricultura, num dom da natureza, num objeto da economia rural, no h dvida de que isto resultar para a nao numa valorizao maior da agricultura, que cada cidado conceber um deleite maravilhoso pelos presentes reais e efetivos que a natureza nos oferece, os de uma natureza tangvel, que se pode saborear, ao contrrio do que aconteceu durante sculos, nos quais o povo se apegou aos objetos fantsticos, como ocorreu com os santos que no via nem conhecia. Mais ainda: os sacerdotes no eram capazes de dar consistncia aos seus dolos, a no ser atribuindo-lhes alguma influncia direta sobre os objetos que realmente interessavam ao povo. Assim, So Joo era o patrono das colheitas, So Marcos, o protetor da vinha... A primeira ideia, a bsica, era consagrar atravs do novo calendrio o sistema agrcola e confront-lo assim com a nao inteira, marcando as pocas e as fraes do ano com signos inteligveis ou visveis, tirados da agricultura e da economia rural.

    Quanto mais pontos de apoio forem oferecidos memria, maior ser a facilidade com que ela operar: por conseguinte, imaginamos dar a

    3 FABRE DGLANTINE, Ph., LEvangile des Rpublicains prcd du rapport sur le

    nouveau Calendrier, Paris, 1793.

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    cada um dos meses do ano um nome caracterstico, que expressasse a temperatura que lhe prpria, o gnero de produtos reais da terra, e ao mesmo tempo fizesse sentir a estao do ano em que transcorre.

    Este ltimo efeito obtido por meio de quatro desinncias acrescentadas a cada um dos trs meses consecutivos, produzindo quatro sons, cada um dos quais indicando ao ouvinte a estao qual se aplica.

    Procuramos tambm tirar partido da harmonia imitativa da lngua na composio e na prosdia dessas palavras e no mecanismo de suas desinncias; assim, os nomes dos meses que compem o outono tm um som grave e uma medida mdia, os do inverno, um som pesado e uma medida longa, os da primavera, um som alegre e uma medida breve e os do vero um som cheio de sonoridade e uma medida longa.

    Assim, vejamos a etimologia dos trs primeiros meses do ano, que compem o outono. A do primeiro tirada das vindimas, que ocorrem de setembro a outubro: este ms se chama Vendemirio. A do segundo, das nvoas e brumas baixas de outubro e novembro: este ms se chama Brumrio. O terceiro, do frio, s vezes seco, s vezes mido, que reina de novembro a dezembro: este ms se chama Frimrio.

    O primeiro dos trs meses do inverno tira sua etimologia da neve que embranquece a terra de dezembro a janeiro: este ms se chama Nivoso. O segundo, das chuvas que caem generosamente com mais abundncia de janeiro a fevereiro: este ms se chama Pluvioso. O terceiro, o das pancadas de chuva e do vento que vem secar a terra de fevereiro a maro, chama-se Ventoso.

    O primeiro dos trs meses da primavera tira sua etimologia da germinao e da subida da seiva de maro a abril: este ms se chama Germinal. O segundo, do desabrochar da floresta de abril a maio: este ms se chama Floreal. O terceiro, da fecundidade risonha e da colheita nos prados de maio a junho: este ms se chama Prairial. O primeiro ms do vero, por fim, tira sua etimologia das espigas ondulantes e das messes douradas que cobrem os campos de junho a julho: este ms se chama Messidor. O segundo, do calor solar e terrestre ao mesmo tempo, que abrasa o ar de julho at agosto: este ms se chama Termidor. O terceiro, dos frutos que o sol doura e amadurece de agosto a setembro: este ms se chama Frutidor.

    136

    Por outro lado, a transformao das semanas em dcadas e a sucesso dos dias j no recebem esse tipo de justificativa ruralista ou potica dos meses. Acrescentam-se aos decadis (dia final de cada dcada) cinco ou seis dias de festa chamados de sans-culottides e dedicados virtude, ao gnio, ao trabalho, opinio que julga e s recompensas.4

    Esse calendrio e especialmente a justificativa de Fabre pode ser encarado como uma das melhores conquistas do atesmo durante a Revoluo, se pensarmos no desafio que ele representava frente ao calendrio gregoriano. Mas em si mesmo apenas uma pea ruralista e naturalista que combinaria perfeitamente com vrias ideologias, inclusive as conservadoras. Parece, entretanto, que a primeira interpretao primou sobre a segunda, considerando-se a primazia do desafio poltico Igreja. Assim interpretava-o claramente o Papa quando pedia a Napoleo o retomo ao calendrio gregoriano.

    Durand de Maillane, um dos artfices da Constituio Civil do Clero, partidrio de sua submisso ao poder secular, e depois membro moderado e reacionrio da Conveno, foi dos que interpretaram o calendrio de Fabre dglantine como um gesto inequivocamente ateu (em suas observaes retrospectivas):

    A mudana de calendrio foi o preldio da abolio do cristianismo. A Comun veio propor esse ato de impiedade Conveno, que se tomou cmplice, e substituiu com um decreto o culto catlico pelo culto da razo. Esse escndalo deplorvel, os discursos em homenagem ao atesmo, as abjuraes indecentes, em sua maioria foradas, figuraram nos autos que foram enviados s autoridades e aos exrcitos. O poeta Chnier comps um hino no qual, como fiel discpulo de Voltaire, declarava guerra aberta religio de Jesus Cristo5

    4 Cf. Concordance des Calendriers Grgorien et Rpublicain, Paris, 1983.

    5 MAILLANE, Durand de, Histoire de la Convention Nationale, Paris, 1825, pp. 180-181.

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    A santa guilhotina

    Sem os exageros das interpretaes que de uma forma ou de outra se baseiam no fascnio anedtico e excessivamente simblico (o culto do imaginrio na historiografia recente), preciso considerar o suplcio institudo durante a Revoluo, a guilhotina, no contexto das questes de religiosidade da poca.

    A guilhotina introduziu a igualdade na pena de morte, aplicada at ento de acordo com a posio social dos acusados e a natureza dos crimes cometidos. Ao mesmo tempo, reduziu enormemente a maioria dos tormentos dos condenados morte. Tormentos que seriam glosados com brbara nostalgia por de Maistre. Foi um fabricante alemo, que se notabilizara pelo fabrico de harpas, o primeiro artfice da guilhotina, tambm inicialmente chamada de louison, em aluso a seu outro projetista, Antoine Louis.

    Critrios morais, polticos e biolgicos convergiram na implantao da guilhotina. Tratava-se de justiar com mais compaixo pelo sofrimento alheio, com menos arrogncia e crueldade. Mas o espetculo, o sangue e os excessos da guilhotina logo suscitaram complacncias, devoes e abysos indesejados por seus criadores revolucionrios. Assim, os redatores de Rvolutions de Paris1 se queixavam do longo trajeto que os condenados tinham de percorrer entre as prises e o cadafalso, do comportamento das pessoas para com os condenados, do procedimento pouco digno da guarda para com as vtimas...

    Os hebertistas e as correntes demaggicas logo arvoraram a guilhotina como arma cega e impiedosa da ofensiva revolucionria. Assim foi criada a viso grosseira do Terror. No como uma presso moral, como pretendia Robespierre, que no cessasse de dissuadir os irresponsveis e os corruptores da Revoluo, mas como um capricho horrendo em mos de uma populaa mais bria de sangue do que de justia. Foi assim que surgiu a idolatria do sans-culotte, que o comando da Revoluo j no conseguia controlar: Santa Guilhotina, protetora dos patriotas/ Rogai por ns/ Santa Guilhotina, horror dos aristocratas/ Protegei-nos.

    1 Rvolutions de Paris, n 218, p. 362, e outros.

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    Citemos um texto de Rvolutions de Paris2 no intuito de esclarecer melhor a justa apreciao desse instrumento de morte a servio da Revoluo:

    O sistema da guilhotina foi aperfeioado; no poderamos imaginar outro instrumento de morte que conciliasse melhor o que se deve humanidade com o que a lei exige; pelo menos enquanto a pena capital no for abolida. O cerimonial da execuo tambm deveria ser aperfeioado, eliminando-se tudo que evoca o antigo regime (a carreta, as mos atadas, a assistncia do sacerdote). Outra crtica que se deve fazer a esse suplcio que, embora poupe dor ao condenado, no evita a viso do sangue que o fio da guilhotina faz saltar e do que se derrama abundantemente no pavimento sob o patbulo; esse espetculo to repelente no deveria ser oferecido aos olh