problema e questões do estudo - instituto de educação · 2008. 5. 19. · assim, falar-se em...

23
A prática lectiva como actividade de resolução de problemas: Um estudo com três professoras do ensino secundário 1 Leonor Santos Projecto DIF – Didáctica e Formação Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências Universidade de Lisboa, Portugal Problema e questões do estudo A evolução da sociedade tem trazido nestas últimas décadas mudanças marcantes em diversos campos implicando nomeadamente necessidades prementes de ajustamentos na educação em geral e na escola, em particular. Mas mudar em educação não é tarefa fácil, nomeadamente quando pensamos na alteração por parte dos professores das suas práticas e concepções. Este processo identifica-se com um processo de aprendizagem (Fullan e Hargreaves, 1991) que inclui a alteração de valores, emoções e percepções que modelam a prática. Quando tal não acontece, a mudança corre o risco de ser temporária e meramente cosmética (Day, 1999). Passando toda e qualquer mudança curricular necessariamente pelo professor, este é a chave última da mudança educativa (Hargreaves, 1998). “A mudança em educação depende daquilo que os professores pensarem dela, dela fizerem e da maneira como eles a conseguirem construir activamente” (Thurler, 1994, p. 33). Ocupando assim o professor um papel central em todo o processo de reforma educativa, a compreensão da diversidade dos problemas profissionais com que este se confronta na sua prática diária e a forma como, pondo em uso o seu saber profissional, os procura solucionar, constitui um elemento importante para um conhecimento mais profundo da realidade educacional. 1 Este texto tem por base um estudo realizado por esta autora que deu lugar a uma tese apresentada na Universidade de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Educação. XIISIEM - Leonor Santos 1

Upload: others

Post on 06-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

A prática lectiva como actividade de resolução de problemas:

Um estudo com três professoras do ensino secundário1

Leonor Santos

Projecto DIF – Didáctica e Formação

Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências

Universidade de Lisboa, Portugal

Problema e questões do estudo

A evolução da sociedade tem trazido nestas últimas décadas mudanças marcantes em

diversos campos implicando nomeadamente necessidades prementes de ajustamentos na

educação em geral e na escola, em particular. Mas mudar em educação não é tarefa fácil,

nomeadamente quando pensamos na alteração por parte dos professores das suas práticas

e concepções. Este processo identifica-se com um processo de aprendizagem (Fullan e

Hargreaves, 1991) que inclui a alteração de valores, emoções e percepções que modelam

a prática. Quando tal não acontece, a mudança corre o risco de ser temporária e

meramente cosmética (Day, 1999).

Passando toda e qualquer mudança curricular necessariamente pelo professor, este é a

chave última da mudança educativa (Hargreaves, 1998). “A mudança em educação

depende daquilo que os professores pensarem dela, dela fizerem e da maneira como eles

a conseguirem construir activamente” (Thurler, 1994, p. 33). Ocupando assim o professor

um papel central em todo o processo de reforma educativa, a compreensão da diversidade

dos problemas profissionais com que este se confronta na sua prática diária e a forma

como, pondo em uso o seu saber profissional, os procura solucionar, constitui um

elemento importante para um conhecimento mais profundo da realidade educacional.

1 Este texto tem por base um estudo realizado por esta autora que deu lugar a uma tese apresentada na Universidade de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Educação.

XIISIEM - Leonor Santos 1

Page 2: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Num mundo em acelerada mudança, as sociedades aprendem para se adaptarem e

reajustarem. Nestas, as relações interpessoais assumem uma importância crucial

(Tavares, 1996). Hoje, no mundo do trabalho não faz mais sentido pensar a actividade

profissional como a realização de um conjunto de tarefas estritamente individual e

isolada. O trabalho em equipa é fortemente incentivado e novas competências são assim

exigidas. O mesmo se preconiza para os professores. Como afirma Hargreaves (1998):

Um dos paradigmas mais prometedores que surgiram na idade pós-moderna é o da colaboração, enquanto princípio articulador e integrador da acção, da planificação, da cultura, do desenvolvimento, da organização e da investigação. (p. 277)

Mas, ao introduzir-se um novo contexto de trabalho, novas questões se colocam. É,

assim, necessário conhecer quais as verdadeiras potencialidades e limitações deste tipo de

trabalho e o que o identifica e distingue das práticas desenvolvidas ao nível individual.

É neste quadro que nos propusemos investigar os problemas profissionais enfrentados

por professores de Matemática num processo de mudança curricular, em diferentes

contextos de prática profissional. Para isso, esta investigação procurou responder às

seguintes questões:

♦ Em que se distingue, em termos de problemas emergentes, o contexto de prática em

colaboração do de prática individual?

— Qual a natureza dos problemas?

— Quais os tipos de problemas identificados, quanto ao seu conteúdo, processos e

níveis de resolução?

— O que é remetido para a esfera do individual?

— O que é remetido para a esfera do colectivo?

♦ Que relações existem, em termos de problemas emergentes, entre o contexto de

prática em colaboração e o de prática individual?

— Em que medida os problemas do colectivo influenciam os problemas ao nível

individual?

XIISIEM - Leonor Santos 2

Page 3: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

— Em que medida os problemas individuais influenciam os problemas ao nível

colectivo?

— Qual o contributo do trabalho colectivo na resolução dos problemas individuais?

— Qual o contributo de cada elemento do grupo na resolução dos problemas do

colectivo?

Este estudo foca-se na prática lectiva. É, no entanto, de notar que, embora a prática

lectiva constitua uma componente determinante e fundamental da prática profissional do

professor, estes dois conceitos não são por nós vistos como equivalentes. Por outras

palavras, para além da prática lectiva há outros campos de intervenção do professor,

como seja a participação na vida da escola, na relação com o meio, em actividades

associativas, etc.

Fundamentação teórica

O professor como um resolutor de problemas profissionais

O conceito de problema. Existem diversas perspectivas para definir um problema.

Podemos, contudo, agrupá-las em dois grandes grupos: aqueles que tomam como

referência a relação do indivíduo com a situação e as que assentam nas características da

própria tarefa. No primeiro caso, o foco é o indivíduo. Assim, uma dada situação pode ser

um problema para uma pessoa e não o ser para outra. São exemplo desta abordagem

autores como Saviani (1985), que identificam a necessidade/intencionalidade como a

essência do problema, e ainda Schoenfeld (1985) e Kantowski (1980) que privilegiam o

facto de ser uma situação desconhecida para aquele que se confronta com a situação.

No segundo caso, uma dada situação é ou não um problema de acordo com a

existência ou não de certas características inerentes à tarefa. A situação é um problema

independentemente do indivíduo ou da sua experiência pessoal passada. Tem-se neste

grupo Smith (1991), que refere as actividades mentais que a tarefa implica no indivíduo

— a análise e o raciocínio — ou Shulman e Tamir (1973) e Borasi (1986), que partem de

critérios associados à própria tarefa.

XIISIEM - Leonor Santos 3

Page 4: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Ambas as abordagens poderão ser pertinentes, de acordo com o âmbito da situação e

com os objectivos que se queira valorizar. Assim, é natural pensar-se que se o fim é

estudar contextos de aprendizagem, pode ser mais eficaz procurar distinguir quanto às

suas características as tarefas a propor aos alunos. Mas se o que se pretende é desenvolver

um conceito amplo associado a situações com que se confrontam os seres humanos, fará

todo o sentido procurar uma noção que contemple o próprio indivíduo.

Seguindo o primeiro grupo de autores, neste estudo entende-se por problema

profissional toda a situação que, na sua prática lectiva, preocupa o professor (ou grupo de

professores) e sobre a qual este sente necessidade de encontrar uma resposta, muito

embora não se conheça à partida qual a estratégia adequada à sua resolução e/ou se não

prevê todos os seus contornos.

A prática lectiva encarada numa perspectiva de resolução de problemas. Muitas

têm sido as perspectivas com que tem sido encarada a profissão docente. O recurso a

metáforas, por exemplo, tem constituído uma via de clarificação de uma ou outra destas

formas de encarar a actividade do professor, como seja, o professor como um artersão

(Huberman, 1993; Perrenoud, 1983), como um técnico (Gómez, 1992) ou como um

detective (Schön, 1992). Neste estudo, contudo, propomo-nos olhar para o professor

como um profissional que no seu dia-a-dia se confronta com numerosos problemas

profissionais, isto é, propomos uma abordagem que encare a actividade docente como

uma actividade de resolução de problemas profissionais.

Encarar a prática lectiva como uma actividade de resolução de problemas assenta na

própria natureza dessa prática. Por um lado, a actividade de ensino contempla múltiplas e

diversas estratégias de intervenção, que cobrem diferentes campos. Cabe ao professor

desenvolver no aluno saberes, saberes fazer e saberes ser. Por outro lado, dado esta

actividade assentar nas relações e inter-relações sociais onde ocorre a acção, ela é por

elas influenciada. A natureza da prática lectiva é assim marcada pela complexidade e

singularidade. “As situações da prática não são problemas para serem resolvidos, mas sim

situações problemáticas caracterizadas pela incerteza, desordem e indeterminação”

(Schön, 1991, p. 16). Assim, são muito diversas as situações que se deparam ao professor

e uma situação do mesmo tipo pode, de acordo com o contexto e os actores envolvidos,

XIISIEM - Leonor Santos 4

Page 5: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

ter vias muito diferentes de resposta. Deste modo, mesmo para professores com largos

anos de serviço, as situações com que se defrontam no seu dia-a-dia têm sempre

contornos particulares e específicos, pelo que nem para estes existe uma solução já

definida, pronta a usar. Para além disso, as situações com que os professores se deparam

estão normalmente mal definidas. É necessário interpretá-las e entendê-las como

problemas. Esta tarefa passa por definir com mais precisão a área onde se inserem de

forma a procurar encontrar ideias e hipóteses de intervenção adequadas.

Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas,

ultrapassa a resolução de problemas bem estruturados, nela se incluindo de forma

significativa e marcante a formulação de problemas. Os problemas profissionais são,

geralmente, de natureza mal estruturada. Entenda-se por problema mal estruturado aquele

cujo enunciado não é claro e pode não fornecer toda a informação necessária à sua

resolução, em que se não dispõe de um processo para encontrar todas as possibilidades

em cada passo e nem sempre uma resposta simples nos permite ter a certeza de que está

resolvido (Simon, 1973 in Frederiksen, 1984). Muitas das vezes, não é clara à partida

sequer qual é exactamente a questão e onde queremos chegar. “A situação é complexa e

incerta e é um problema encontrar o problema” (Schön, 1991, p. 129). Assim, cabe ao

profissional, a partir de situações perturbadoras e incertas que lhe surgem na prática,

formular o problema, isto é, dar sentido a uma situação inicialmente sem sentido.

“Formular o problema (problem setting) é um processo no qual interactivamente damos

nome às coisas a que queremos dar atenção e limitamos o contexto onde estas serão

consideradas” (Schön, 1991, p. 40).

De acordo com D’ Ambrósio (1997), o professor não se limita a resolver problemas

num sentido estrito, mas tem igualmente que desenvolver um processo de

questionamento e de formulação de problemas muitas vezes envolvendo um plano de

acção. Também Bromme e Tillema (1995) debatendo a relação entre a teoria e prática no

conhecimento profissional, referem-se a este tipo de conhecimento como sendo um

conhecimento orientado para a actividade do profissional. Este conhecimento inclui não

só informação específica sobre factos e métodos de resolução de problemas, como

também informação necessária para o profissional ser capaz de formular e compreender

os problemas com que se confronta.

XIISIEM - Leonor Santos 5

Page 6: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

A perspectiva de encarar a prática profissional dos professores como um processo de

resolução de problemas é igualmente proposta por Azcárate (1999). Esta autora alerta

para as implicações que esta opção determina na forma como se organiza o conhecimento

profissional. É através de um processo contínuo de resolução de problemas que o

conhecimento profissional se constrói em interacção directa com os diferentes problemas

profissionais quotidianos. Assim, o conhecimento profissional é um conhecimento gerado

num dado contexto e através de diversas actividades, que tem por objectivo primeiro dar

resposta aos problemas educativos que se colocam no ensino da Matemática. Deste

modo, a organização do conhecimento desenvolve-se em torno dos interesses e

preocupações imediatas do professor. É, portanto, um conhecimento que toma significado

face a um dado problema.

A cultura profissional e o trabalho dos professores

Reconhecendo-se que as práticas na sala de aula e as concepções sobre o ensino não

são predeterminadas ou invariáveis, tem sido dada uma elevada importância ao tipo de

trabalho desenvolvido entre os professores e às características da comunidade

profissional:

As características da comunidade profissional que existe na escola joga um papel decisivo na forma como os professores encaram o seu trabalho e os seus alunos e está na base da qual alguns professores desistem e outros persistem. (McLauglin, 1993, p. 98)

Face à necessidade premente de mudança, muitos autores têm defendido o

desenvolvimento de uma cultura de colaboração como via privilegiada para a mudança.

“Mesmo em escolas onde a reforma é encorajada, o isolamento dos professores é um

obstáculo enorme à mudança” (Cooney e Krainer, 1996, p. 1160).

Mas ao falar-se em colaboração podemos contudo estar a atribuir diferentes

significados. Hargreaves (1998) identifica mesmo duas situações bem distintas, tendo em

conta o tipo de controlo e de intervenção administrativa exercidos: a cultura de

colaboração e a colegialidade artificial. As características que este autor aponta para a

cultura de colaboração são (i) ser espontânea, parte da vontade dos professores, enquanto

XIISIEM - Leonor Santos 6

Page 7: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

grupo social; (ii) voluntária, resultante do reconhecimento pelos próprios do seu valor;

(iii) orientada para o desenvolvimento, onde são definidas as tarefas e as finalidades do

trabalho a desenvolver; (iv) difundida no espaço e no tempo, desenvolvendo-se de acordo

com a vida profissional dos professores na escola; e (v) imprevisível, dada a incerteza e

dificuldade de prever os seus resultados. No que se refere à colegialidade artificial esta é

fortemente marcada por ser (i) regulada administrativamente, imposição superior que

exige que os professores se encontrem e trabalhem em conjunto; (ii) compulsiva; (iii)

orientada para a implementação, como seja a aplicação de um currículo nacional; (iv) fixa

no tempo e no espaço, tomando lugar em locais e tempo particulares; e (v) previsível,

porque embora não garanta certos resultados, ela é concebida para os produzir.

Se é certo que as culturas de colaboração podem ter uma natureza limitada e restrita,

não garantindo à partida que a sua existência leve à reflexão dos professores sobre o

valor, propósito e consequências daquilo que fazem, nem tão pouco ao desafio das suas

práticas, a colegialidade artificial tem como principais implicações a inflexibilidade e a

ineficiência. Sanches (2000) alerta para algumas das características da colegialidade

imposta por determinação administrativa, destacando o facto das interacções serem

criadas de forma artificial e a interdependência ser mal fundada, aparente e precária.

Como afirma esta autora, “nestas condições, a colegialidade funciona como mais outro

instrumento de controle dos professores” (p. 7).

Também Little (1990) alerta para o facto de nem todas as concepções de

colegialidade, que se podem encontrar na literatura, são impulsionadoras de mudança.

Por outras palavras, a colegialidade pode tomar diferentes significados, assumindo esta

autora uma posição crítica face a alguns deles: “A colegialidade tem estado embebida de

um sentido de virtude (…) Grupos bem delimitados tanto podem constituir instrumentos

para promover a mudança, como para conservar o existente” (p. 509). Para clarificar a

sua posição, esta autora, seguindo um contínuo crescente de exigências de forma a

atingir-se uma autonomia colaborativa, identifica quatro tipos de colaboração que vão da

independência à interdependência. São eles: relato de histórias, ajuda e assistência,

partilha e trabalho conjunto.

XIISIEM - Leonor Santos 7

Page 8: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Poder-se-á assim afirmar que o problema mais marcante não é a existência de tipos

variados de colaboração e colegialidade, mas sim as características e virtudes de alguns

deles, muitas vezes, serem atribuídas indevidamente a outros.

É ainda de fazer notar a importância da existência de micro-comunidades na escola,

nomeadamente os grupos disciplinares nas escolas secundárias. Segundo Huberman

(1993) o grupo disciplinar é identificado como comunidade profissional por excelência.

Este é o local onde as pessoas têm coisas concretas a dizer e a dar apoio umas às outras

no que respeita a questões do ensino, isto é, este é o local onde os contextos de instrução

se sobrepõem. “Eu olharia para os grupos disciplinares [em vez das escolas] como a

unidade de planificação colaborativa e executiva das escolas secundárias” (p. 149). É de

ressaltar que quando o grupo disciplinar é numeroso, dificilmente é constituído por

culturas de ensino homogéneas, pelo que não são os entendimentos pessoais que estão na

base desta colegialidade, mas sim as questões e as actividades concretas de ensino a que

o professor tem de responder no seu dia-a-dia, bem como questões mais amplas,

decorrentes, por exemplo, de reformas oficiais impostas superiormente (Sanches, 2000).

Metodologia

De acordo com o objectivo enunciado, optou-se por seguir uma abordagem de

investigação interpretativa, tomando por design da investigação o estudo de caso. Dentro

de um paradigma de tipo interpretativo, o estudo de caso visa conhecer o “como” e os

“porquês” (Yin, 1989) de um fenómeno ou identidade bem definida — o caso — quando

o investigador não tem controlo sobre os acontecimentos, nem tão pouco é possível ou

desejável manipular as causas potenciais do comportamento dos participantes (Merrian,

1988; Yin, 1989). Segundo Patton (1990), “os estudos de caso são particularmente úteis

quando se pretende compreender determinados indivíduos, determinado problema ou

uma situação particular, em grande profundidade” (p. 54).

Uma vez que o objectivo primeiro desta investigação era estudar os problemas

profissionais que os professores de Matemática enfrentam na sua prática lectiva, ficou

desde logo definido que um dos critérios de selecção dos professores deveria recair na

XIISIEM - Leonor Santos 8

Page 9: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

competência profissional. Tendo ainda presente que outra área de estudo era procurar

compreender os diferentes contextos de prática, o colectivo e o individual, optou-se, à

partida, por estudar uma escola que desse alguma garantia de existência de um trabalho

em colaboração entre os respectivos professores.

Foi seleccionada uma escola secundária — a escola da Ribeira — onde se contava

com a existência de um trabalho conjunto entre as professoras de Matemática que iriam

leccionar o 11º ano de escolaridade: Maria, Rosa e Carmo. Após as três professoras terem

aceite participar no estudo, tendo-lhes na altura sido apresentados os objectivos da

investigação e clarificados os papéis que se propunham para cada um dos intervenientes e

o conselho directivo da escola ter formalmente autorizado a sua realização, iniciou-se a

recolha de dados (Setembro de 1998), que durou até Abril de 2000.

A investigadora observou de forma informal diferentes espaços da escola, assistiu a

duas reuniões gerais de professores, entrevistou o presidente do conselho directivo

(audio-gravação e transcrição na totalidade) e analisou diversos documentos oficiais.

A partir do início do 2º período, a investigadora participou em todas as reuniões do

grupo disciplinar, perfazendo um total de nove reuniões, onde se inclui duas de

departamento. A observação destas reuniões foi acompanhada do registo de notas de

campo. Foi realizada ainda uma entrevista semi-estruturada (Patton, 1982) à delegada de

grupo (audio-gravada e transcrita na sua totalidade). A análise documental recaiu sobre o

dossier do grupo.

Foram observadas todas as reuniões de planificação conjunta realizadas pelas três

professoras ao longo de todo o ano lectivo, perfazendo um total de quinze reuniões. A

partir da terceira reunião, para além das notas de campo, as reuniões foram audio-

gravadas e posteriormente totalmente transcritas e elaborado o respectivo relatório. A

análise documental incidiu sobre documentos realizados pelo grupo das três professoras.

O procedimento seguido na recolha de dados a partir das quatro aulas assistidas de

cada professora contemplou sequencialmente as seguintes etapas:

1º — Antes de cada aula, houve sempre uma conversa informal respeitante aos

objectivos da aula e aquilo que a professora pensava fazer;

2º — Cada aula foi registada em áudio e em vídeo, tendo a professora utilizado um

microfone portátil. Mais tarde, procedeu-se à transcrição integral da aula;

XIISIEM - Leonor Santos 9

Page 10: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

3º — Após cada aula observada, a investigadora visionou o vídeo e elaborou o

respectivo relatório, identificando questões a serem abordadas na reunião de reflexão

conjunta;

4º — Foi cedido à professora o vídeo da aula para que pudesse visionar a aula e

reflectir sobre ela;

5º — A professora e a investigadora reuniram-se para discutir em conjunto os

problemas emergentes. Partes de aula foram, em diversos momentos, visionadas. Estas

reuniões foram audio-gravadas e integralmente transcritas.

Já no ano lectivo de 1999/2000, foi realizada uma entrevista semi-estruturada a cada

professora (audio-gravadas e transcritas na sua totalidade).

A análise de conteúdo foi o método preferencialmente utilizado. Iniciou-se a partir de

Outubro de 1998 e só terminou após a recolha de dados (Setembro de 2000). Teve como

primeira etapa a identificação dos problemas. As categorias de análise emergiram a

posteriori, muito embora fossem modeladas pelo quadro teórico de referência donde se

partiu. O quadro que a seguir se apresenta, identifica quais os campos de análise e as

categorias consideradas em cada uma das unidades de análise. Note-se que enquanto os

problemas profissionais foram estudados em ambos os contextos de prática, a interacção

entre as professoras só foi considerada no contexto colectivo de prática.

Na análise de dados é ainda de referir o papel interventivo das professoras. Foram

pedidos comentários críticos e interpretativos às professoras sobre versões preliminares

de análise. Quando se tratou do grupo, as professoras reagiram também em grupo, através

de uma entrevista e, quando a análise se referiu a cada professora individualmente, a

discussão e partilha de interpretações foi feita apenas entre a investigadora e a professora.

Foi igualmente pedido ao presidente do conselho directivo e à delegada de grupo que

reagissem à análise relativa, respectivamente, à escola e ao grupo disciplinar.

XIISIEM - Leonor Santos 10

Page 11: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Quadro 1 — Estruturas de análise Unidades de

análise Campos de análise Categorias de análise

Área do problema

Saber sobre a Matemática Saber didáctico (currículo; alunos; avaliação) Saberes organizacionais (aspectos funcionais; construção de significados)

Processos desenvolvidos

Análise Consulta Viver com o problema

Decisões tomadas (não foram consideradas categorias, optou-se pela sua descrição)

Problemas

profissionais

Nível de resolução

Resolvido no primeiro momento Resolvido após ser retomado ou parcialmente resolvido Não resolvido

Nível de discussão

Focagem nos aspectos de trabalho Diversidade dos campos discutidos Profundidade da discussão

Nível de participação

Presença nas reuniões Apresentação de propostas Capacidade de análise e crítica

Ambiente Confiança mútua Respeito pelo outro

Interacção

entre as

professoras

Contributo do individual no colectivo

Atitude sistemática de reflexão Capacidade de organização Experiência profissional

O contexto individual de prática

As professoras

Poder-se-á afirmar que as três professoras que participaram neste estudo apresentam

características diferentes. Maria é uma jovem professora, com apenas seis anos de

serviço, mas o seu percurso profissional tem sido até à data muito rico, tendo-se

envolvido em diversos projectos, fora e dentro da escola, todos eles marcados por

orientações de cariz inovador do ensino da Matemática. Maria privilegia em todos os

momentos marcantes do seu percurso profissional o gosto e o prazer pela descoberta. A

forma como fala, o entusiasmo e a alegria que transmite, traduzem uma atitude positiva e

interessada pela vida. A sua turma do 11º ano resulta da junção em Matemática de outras

duas turmas e os alunos são vistos como tendo poucos hábitos de trabalho. É o segundo

ano que lecciona esta turma.

XIISIEM - Leonor Santos 11

Page 12: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Rosa tem 20 anos de serviço. Com um percurso profissional muito rico e variado, é

hoje uma pessoa muito identificada com a profissão de professora de Matemática,

assumindo uma postura marcadamente reflexiva. É uma adepta e conhecedora das novas

tecnologias no ensino da Matemática. É o primeiro ano que tem a turma do 11º ano. Esta

turma é considerada pela generalidade dos professores de aproveitamento muito fraco.

Carmo tem 27 anos de serviço. Com um percurso profissional sem momentos dignos

de nota, vive a sua carreira sem grande entusiasmo ou satisfação profissional, muito

embora tal não a leve a descurar as suas responsabilidades. A sua turma do 11º ano é

considerada como sendo uma boa turma. É o segundo ano que acompanha estes alunos.

Do exposto ressalta que as professoras, embora todas elas professoras competentes e

responsáveis, são pessoas bastante distintas e com percursos profissionais diferentes. No

entanto, existe um aspecto comum a ressaltar: a valorização que atribuem ao trabalho

conjunto entre pares, que as levou a desenvolver uma actividade continuada ao longo de

todo um ano lectivo, como resposta a uma dificuldade partilhada, a de aplicar pela

primeira vez um novo programa de Matemática. As três professoras perspectivam o seu

desenvolvimento profissional como um processo que as acompanha ao longo da vida,

constituindo o trabalho em colaboração um contexto favorecedor e impulsionador da sua

aprendizagem.

Análise interpessoal no contexto de trabalho individual

Os problemas identificados em cada professora distribuem-se pelas três áreas

consideradas: a área do saber sobre a Matemática, a área do saber didáctico e a área dos

saberes organizacionais, havendo, no entanto, uma grande concentração na segunda área,

em particular respeitante ao currículo e aos alunos. Pode afirmar-se que estes problemas

são muito específicos e dizem directamente respeito a situações da sala de aula. A título

de exemplo, refira-se “Controlar a tendência de intervir demais” (Maria); “Participação

dos alunos” (Rosa); e “Ritmo da aula” (Carmo).

Para uma compreensão mais profunda da natureza das situações que identificámos

como problemas e da forma como foram desenvolvidos por cada professora, passamos de

seguida a apresentar um exemplo: O problema da área do saber didáctico denominado

“Desenvolver a autonomia dos alunos”. Rosa, desde o início do ano, que se apercebe que

XIISIEM - Leonor Santos 12

Page 13: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

os seus alunos, que habitualmente trabalham em grupo na aula de Matemática, mal

recebiam uma tarefa, de imediato questionavam-na quanto ao que tinham que fazer,

tinham dificuldade em discutir entre eles qualquer que fosse a questão, por outras

palavras, estavam muito dependentes de si (problema emergente do saber sobre os

alunos e o currículo). Analisa então possíveis estratégias de intervenção da sua parte

(análise de estratégias). Dada a complexidade da situação, acaba por decidir pôr em

prática de forma continuada diversas medidas: insiste junto dos alunos para que as

dúvidas individuais sejam partilhadas com os seus pares, antes de serem postas ao

professor; procura fazer com que os alunos percebam a importância de trabalhar

autonomamente; evita ser ela própria a validar os resultados, remetendo essa actividade

para os alunos e incentiva a auto-correcção. Ao longo das reflexões que vai

desenvolvendo sobre a sua acção na aula, num ou noutro momento considera que a sua

intervenção não foi a mais adequada, levando-a a ajustar a sua prática (auto-análise).

Poder-se-ia pensar que, tendo em conta as diferentes estratégias que Rosa tem posto em

prática, o problema da falta de autonomia dos alunos estaria resolvido. Esta não é, no

entanto, a sua perspectiva. É certo que houve uma evolução ao longo do ano, observada

nas aulas assistidas. No entanto, embora tenha vindo a evoluir de forma positiva, para

Rosa este continua a ser um problema que sente ainda na turma em geral e nalguns

alunos, mais em particular (problema resolvido parcialmente).

Entre os problemas identificados entre as três professoras, muito embora muitos deles

se enquadrem no mesmo grupo, são destacadas muitas vezes problemáticas diversas

decorrentes não só da turma com que trabalham, como igualmente das características

pessoais e particulares de cada professora. No primeiro caso, por exemplo, refira-se que

entre os problemas identificados em Rosa pode encontrar-se um decorrente da pressão

que sente resultante da excessiva extensão do programa (problema “Condicionantes dos

NP”). Também em Maria, agora de forma indirecta, este mesmo problema se faz sentir

(problema “Controlo do tempo de aula”). Já em Carmo ele não emergiu de forma tão

clara. Não que esta professora não aponte como ponto mais crítico deste programa

exactamente a sua extensão, mas possivelmente porque no seu dia-a-dia não sente uma

pressão tão grande. Tal facto pode ser explicado quando se tem presente as diferenças

XIISIEM - Leonor Santos 13

Page 14: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

entre as turmas. É a de Carmo que tem alunos mais autónomos, capazes de estudar em

casa, tomando mesmo alguns deles essa iniciativa.

Como ilustração do segundo caso, face à questão como apresentar uma dada tarefa

(problema “Forma de apresentação das tarefas”), Rosa opta por apresentá-la na forma

escrita, apontando como vantagens entre outras o facto de isso favorecer um papel mais

activo do aluno na aula. Por seu lado, Carmo, face ao mesmo tipo de questão (problema

“Forma de apresentação de gráficos de sucessões”) opta por ir construindo no quadro os

diferentes gráficos justificando que tal procedimento poderá facilitar a identificação de

dificuldades por parte dos alunos. Assim, tendo presente que são professoras diferentes é

natural aceitar-se que problemas pertencentes ao mesmo grupo possam ter respostas

bastantes distintas.

As particularidades pessoais de cada professora e a diversidade das suas situações

profissionais podem igualmente explicar a diversidade dos problemas identificados da

subárea da construção de significados,. Por exemplo, Maria destaca a questão que tem

por base os critérios de distribuição do serviço docente, que determinam uma reduzida

probabilidade dos professores mais jovens virem a ter turmas do ensino secundário. Já

Rosa, insatisfeita por as reuniões do grupo disciplinar não corresponderem a momentos

ricos de partilha e reflexão conjunta de experiências profissionais, questiona de que modo

poderá contribuir para alterar esta situação.

A evidência deste estudo permite-nos ainda sustentar a hipótese de que a experiência

profissional está relacionada, primeiro, com a capacidade em identificar problemas da

mesma família, isto é, ver um novo problema como uma variante de um já conhecido

(Schön, 1991) e, segundo, com a forma estruturada como se organizam as possíveis

estratégias de resolução que lhe estão associadas. Isto é, face a um dado problema que

emerge, as professoras com mais anos de serviço têm mais facilidade em categorizar o

problema e em identificar possíveis estratégias de intervenção. O seu repertório de

estratégias de intervenção é mais vasto e mais rico, e está mais organizado. Maria retoma

frequentemente os problemas e, em cada momento, acrescenta-lhes novas estratégias. Em

Rosa e em Carmo, tal não se verifica. Os problemas são normalmente referidos uma só

vez e desde logo é apresentado um conjunto de possíveis vias de acção.

XIISIEM - Leonor Santos 14

Page 15: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Por último, é ainda de referir que o recurso mais ou menos frequente à reflexão se

relaciona com o maior ou menor número de problemas identificados. Isto é, uma atitude

de questionamento sistemático leva a uma maior consciencialização dos problemas

profissionais a que o professor tem de fazer face na sua prática. Rosa é a professora que

apresenta, a nível individual, o maior número de problemas identificados. Este facto é

verdadeiro, mesmo quando comparamos esse número com o de Carmo, professora

igualmente experiente, mas com uma prática reflexiva menos marcante. Foi também em

Rosa que se encontraram de forma mais clara problemas referentes aos três momentos

relativos a uma acção — pré-activa, interactiva e pós-activa. Nas outras duas professoras

foram os dois primeiros momentos os que tiveram maior expressão.

O contexto colectivo de prática

A escola da Ribeira e o grupo disciplinar

A escola da Ribeira tem actualmente cerca de 1400 alunos, distribuídos entre o ensino

diurno (3º ciclo e secundário) e nocturno e 140 professores. Fica a ideia que a escola vive

sem problemas de ordem material ou pedagógica dignos de nota. “É uma escola onde os

professores se podem desenvolver profissionalmente” (Rosa). “Na escola há muitos

projectos” (Presidente do CD).

No entanto, a escola confronta-se de há uns anos para cá com um problema de difícil

resolução, respeitante às relações internas entre o corpo docente. Existe uma divisão em

duas facções que toma uma expressão mais significativa em momentos eleitorais. Este

facto acarreta dificuldades notórias na constituição dos órgãos formais da escola.

Este problema não se faz contudo sentir a nível do grupo disciplinar, onde se vive um

excelente ambiente, mesmo sendo reconhecida a existência de perspectivas muitas vezes

diferentes no que respeita ao papel da escola e do que é ensinar Matemática: “Há pessoas

com opiniões diferentes. Sabe-se e respeita-se” (Rosa).

O subgrupo dos professores de Matemática que leccionam o ensino secundário (7 do

total de 16), destaca-se claramente, apresentando uma dinâmica muito própria dentro da

escola. O surgimento do programa reajustado do ensino secundário estimulou e reforçou

XIISIEM - Leonor Santos 15

Page 16: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

uma dinâmica de trabalho em colaboração já iniciado que se traduz numa forte e regular

actividade de planeamento por ano de escolaridade. Nos anos mais recentes, este trabalho

tem vindo a consolidar-se, levando o próprio grupo disciplinar a conceber um programa

próprio de formação no qual os professores participam de modo voluntário, o que mostra

que o grupo tem capacidade de iniciativa própria e não está na dependência do que lhe

chegue do exterior.

Este trabalho em colaboração resulta do facto dos professores sentirem necessidades

comuns, de considerarem vantajoso partilhar as suas dificuldades e saberes, e da

existência de condições, nomeadamente de bons espaços de trabalho e de horários com

tempos comuns para reunião.

O trabalho em colaboração: reuniões de planificação

A evidência recolhida permite-nos atribuir ao trabalho colectivo realizado por Maria,

Rosa e Carmo, as seguintes características:

— voluntário, pois é resultante do reconhecimento pelos próprios do seu valor;

— intencional, uma vez que surge da vontade expressa pelos seus membros;

— partilhado, pois parte de uma mesma necessidade sentida pelos próprios

(aplicação pela primeira vez de um novo programa);

— orientado para o desenvolvimento do trabalho, dado serem definidas as suas

finalidades e tarefas a realizar;

— prolongado no tempo, dado acontecer ao longo de todo um ano lectivo, sempre de

forma regular.

De acordo com o exposto, podemos sintetizar dizendo que o trabalho colectivo

estudado se enquadra numa cultura de colaboração e de colegialidade (Hargeaves, 1998).

No que respeita aos problemas identificados, encontrou-se uma grande diversidade de

questões, abrangendo todas as áreas e subáreas consideradas. São problemas de âmbito

mais geral, quando comparados com os encontrados no contexto individual. A título de

exemplo, refira-se os problemas: “As primeiras aulas”; “Significado das Aulas de

Laboratório” e “Formas de recuperação da matéria não leccionada”.

Para uma melhor compreensão da natureza destes problemas, vejamos, a título de

exemplo, o terceiro referido. Este problema foi abordado, pela primeira, vez em Março.

XIISIEM - Leonor Santos 16

Page 17: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Dado as professoras sentirem que não iriam conseguir trabalhar todos os temas

matemáticos previstos no programa para esse ano, havia que pensar o próximo ano

lectivo (subárea dos saberes organizacionais, funcionais). Identificaram e discutiram

diferentes tipos de medidas (análise de estratégias), acabando por optar pela existência

de um grupo de aulas a realizar na semana anterior ao início do ano lectivo. No mês

seguinte, este problema volta a ser discutido, focando-se agora na forma como seria

levada esta proposta ao Conselho Pedagógico. Ficou então decidido que iriam elaborar

um documento para este fim. A elaboração deste documento acaba por ter lugar em duas

reuniões de Junho. Para a sua consecução, as professoras foram levadas a fazer um

balanço retrospectivo sobre o trabalho realizado, que assentou em aspectos relativos ao

currículo e aos seus alunos (subárea do currículo e dos alunos; auto-análise). O

documento foi levado a Conselho Pedagógico e foi aprovado (resolvido após ser

retomado).

Foram os problemas do campo da didáctica, nomeadamente relativos à planificação,

aqueles que surgiram em maior número e que ocuparam mais tempo de discussão. O

sentido que mais tradicionalmente se associa à palavra planificação tem a ver com a

actividade de preparar a acção de ensinar do professor junto dos seus alunos (Tyler,

1950). No entanto, a evidência recolhida permite-nos encarar as coisas de outro modo. Os

problemas identificados não foram apenas discutidos numa perspectiva de preparar a

acção, mas englobaram também momentos de reflexão sobre a acção desenvolvida,

permitindo desenvolver uma análise crítica conjunta que contribuiu para um maior

aprofundamento das questões já discutidas. A reflexão sobre a acção parece ter estado

sempre associada ao objectivo claro de compreender melhor a acção desenvolvida e as

suas implicações de forma a encontrarem-se modos de intervenção ajustados para futuro.

Deste modo, a evidência apontada vai no sentido afirmado por Pacheco (1996) de que “a

planificação tem por função a orientação da acção do professor, abarcando as decisões

didácticas tomadas pelo professor antes, durante e depois da aula” (p. 115).

Para além deste aspecto, em termos globais, foi seguido ao longo das planificações

um modelo cíclico e não linear, através de fases sucessivas de elaboração, confirmando o

defendido por outros autores (Yinger, 1977, in Pacheco, 1996). A exploração de tarefas a

XIISIEM - Leonor Santos 17

Page 18: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

propor aos alunos tomou um lugar de destaque entre outros temas igualmente discutidos,

como sejam, os conteúdos, as abordagens metodológicas e a avaliação.

Mas a realização de uma planificação conjunta é uma tarefa complexa e exigente. A

título de exemplo refira-se a reflexão desenvolvida pelas professoras sobre o primeiro

teste de avaliação. Note-se que estas professoras já tinham ocupado grande parte de uma

reunião anterior a elaborar o teste, o nível de discussão não tinha sido superficial, tiveram

a preocupação em definir um conjunto de aspectos relativos ao instrumento de avaliação

e, no entanto, muitas questões não foram abordadas, como sejam, as implicações da

forma como se questiona e da ordem pela qual as perguntas são apresentadas, aspectos

estes que foram apenas identificados pelas professoras na fase de reflexão. Deste modo,

embora tenha havido cuidado e profissionalismo na elaboração do teste, esta ficou aquém

da qualidade que as próprias professoras desejariam, tendo em conta as críticas que elas

mesmo mais tarde formularam.

Um segundo exemplo ilustrativo diz respeito ao facto de, embora se tenha procurado

manter a realização destas reuniões ao longo de todo o ano, tendo a taxa de presença de

cada professora sido elevadíssima (cada professora apenas não participou numa reunião),

nem tudo foi conjuntamente planificado. Esta conclusão decorre do facto de, em diversas

reuniões, se ter pedido a uma ou outra professora para dar conta daquilo que tinha feito

nas suas aulas.

A dificuldade em planificar decorre também de um outro aspecto directamente

relacionado com o facto do trabalho ter sido desenvolvido em conjunto. Este contexto

leva à necessidade de uma maior explicitação de aspectos, não sentida quando se trabalha

individualmente. Mas maior explicitação leva à emergência de novas questões que

implicam nova discussão e assim sucessivamente.

Em todas as reuniões ocorreu aprendizagem, alguma dela explicitada mesmo pelas

professoras. No entanto, o facto destas se reunirem durante largo período de tempo e

trabalharem seriamente não é condição necessária e suficiente para a realização de um

trabalho de planificação acabado e para elas totalmente satisfatório.

XIISIEM - Leonor Santos 18

Page 19: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

A concluir

Os contextos individual e colectivo de prática: semelhanças e diferenças

Este estudo veio reafirmar que a prática lectiva é fortemente marcada por uma

actividade de resolução de problemas. Existe uma multiplicidade de factores que pode

contribuir para o surgimento de problemas profissionais. Em particular, apontam-se, (i)

no âmbito externo, a existência de uma reforma curricular; (ii) no âmbito intermédio, as

particularidades próprias do grupo-turma e (iii), ao nível interno, os gostos e as

características pessoais de cada professor. No que se refere a este terceiro campo, é de

destacar a capacidade de reflexão do professor.

A evidência deste estudo aponta para a natureza mal estruturada da maioria dos

problemas identificados em ambos os contextos. É esta particularidade que explica

porque, por vezes, foram categorizados em diversas áreas. É a sua formulação pouco

clara que nos permite perceber porque os diferentes passos, que foram sendo percorridos

pelas três professoras ao longo da discussão de um dado problema, não estavam

inicialmente previstos. A tomada de consciência das diversas vertentes que compõem um

dado problema é algo que não se mostra claro à partida, mas que vai surgindo à medida

que este é desenvolvido.

Quanto ao conteúdo, no contexto colectivo os problemas identificados distribuem-se

por uma grande diversidade, estando cobertas todas as áreas e subáreas consideradas. Por

seu lado, no contexto individual verifica-se grande concentração nos problemas do saber

didáctico. Assim, o conteúdo dos problemas identificados num e noutro contexto é

diverso em termos da sua distribuição pelas áreas consideradas.

Outra diferença que é possível identificar entre os problemas recolhidos nos dois

contextos em análise respeita aos papéis desempenhados pelo currículo e pela prática. Em

grande parte dos problemas identificados no trabalho colectivo, as professoras procuram

interpretar o currículo de forma a levá-lo à prática, respeitando o que consideram ser as

suas orientações mais marcantes. Podemos assim dizer que o ponto de partida é o

currículo e o ponto de chegada a prática lectiva.

Nos problemas identificados no contexto individual, a situação é distinta. Emergem

da prática e têm como objectivo uma nova intervenção na prática. Mas o que orienta e

XIISIEM - Leonor Santos 19

Page 20: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

está subjacente às tomadas de decisão das professoras é o currículo que têm presente e

lhes serve de referencial. Deste modo, a prática constitui o ponto de partida e de chegada,

constituindo o currículo o referencial orientador intermédio.

Outro aspecto relacionado com o que acabámos de apresentar diz respeito ao nível de

generalidade dos problemas. Enquanto os problemas identificados no contexto colectivo

são, em geral, mais amplos e consideram os alunos do grupo etário médio, que tiveram

um percurso escolar normalizado, os identificados no individual são específicos e

dirigidos aos alunos concretos, com quem as professoras estão a trabalhar. Os primeiros

valorizam a normalização, os segundos destacam as diferenças, valorizam a

diferenciação.

Os três processos distintos encontrados na resolução dos problemas são usados em

ambos os contextos de prática. O nível de resolução dos problemas identificados no

contexto colectivo de trabalho é muito superior ao encontrado no contexto individual,

pelo que é possível afirmar-se que um contexto de prática colegial favorece a resolução

de problemas profissionais.

Relações entre os contextos individual e colectivo de prática

No que respeita às inter-relações entre os dois contextos de prática estudados, como

conclusões de âmbito geral, é possível afirmar a partir da evidência recolhida neste

estudo que:

— o trabalho desenvolvido nos contextos colectivo e individual complementam-se e

reforçam-se mutuamente;

— o trabalho individual não se submete ao colectivo, mas este simplifica-o e permite

torná-lo mais centrado nos seus problemas específicos;

— o trabalho colectivo não se submete ao individual, mas é por este influenciado,

nomeadamente, no número de problemas, no nível de profundidade da discussão e nas

decisões tomadas;

— a interacção entre as decisões tomadas num e noutro contexto faz-se de forma não

unidireccional, mas sim em ciclo, podendo apresentar diversos percursos.

Para uma melhor compreensão do processo cíclico a que nos referimos, centremo-nos

no caso particular do processo de planificação. A fase pré-activa pode iniciar-se em

XIISIEM - Leonor Santos 20

Page 21: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

qualquer dos dois contextos: colectivo ou individual. Passando sempre pelo contexto

colectivo, onde são tomadas opções que procuram responder aos problemas sentidos

pelas professoras, a sua fase final acaba sempre no individual, onde cada professora

ajusta e completa as opções anteriormente tomadas. A fase interactiva ocorre sempre no

contexto individual, isto é, na sala de aula. Cada professora enfrenta novos problemas e

procura dar-lhes resposta. A fase pós-activa pode novamente ocorrer em qualquer dos

contextos e parte da necessidade individual ou do grupo em analisar e reflectir sobre a

acção desenvolvida. Os problemas equacionados nesta fase trazem implicações para o

recomeço da fase pré-activa, fechando-se assim o ciclo. Em síntese, em vez de sugerir a

existência de um processo cíclico linear (Edwards e Bruton, 1995), a evidência aponta

para um processo cíclico complexo, isto é, que pode ser percorrido por diversas vias.

Referências

Azcárate, P. (1999). El conocimiento profesional. Natureza, fuentes, organización y desarrollo. Quadrante, vol. 8, pp. 111-138.

Borasi, R. (1986). On the Nature of Problems. Educational Studies in Mathematics, 17(2), pp. 125-141.

Bromme, R. e Tillema, H. (1995). Fusing experience and theory: The structure of professional knowledge. Learning and Instruction, 5(4), pp. 261-267.

Cooney, T. e Krainer, K. (1996). Inservice mathematics teacher education: The importance of listening. In Alan Bishop; Ken Clements; Christine Keitel; Jeremy Kilpatrick e Colette Laborde (Eds.), International Handbook of Mathematics Education. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.

D’ Ambrósio, B. (1997). Learning about teaching by enganging in inquiry. In Domingos Fernandes, Frank Lester, António Borralho e Isabel Vale (Eds.), Resolução de problemas na formação inicial de professores de Matemática. Aveiro: Grupo de Investigação em Resolução de Problemas.

Day, C. (1999). Developing teachers. The challenges of lifelong learning. London: The Falmer Press.

Edwards, A. e Brunton, D. (1995). Supporting reflection in teachers’ learning. In James Calderhead & Peter Gates (Eds.), Conceptualizing reflection in teacher development. London: Palmer Press.

Frederiksen, N. (1984). Implications of cognitive theory for instruction in problem solving. Review of Educational Research, vol. 54(3), pp. 363-407.

Fullan, M. e Hargreaves, A. (Ed.), (1991). Teacher development and educational change. London: The Falmer Press.

XIISIEM - Leonor Santos 21

Page 22: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Gómez, A. P. (1992). O pensamento prático do professor: A formação do professor como profissional reflexivo. In A. Nóvoa (Ed.), Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote.

Hargreaves, A. (1998). Os professores em tempos de mudança. O trabalho e a cultura dos professores na idade pós-moderna. Alfragide: Editora McGraw-Hill de Portugal. (Trabalho original em inglês, publicado em 1994).

Huberman, M. (1993). The Model of the independent artisan in teacher’ s professional relations. In Judith Warren Little e Milbrey W. McLaughlin (Eds.), Teachers’ work. Individuals, colleagues and contexts. New York: Teachers College, Columbia University.

Kantowski, M. G. (1980). Some thoughts on teaching for problem solving. In Robert E. Reys (Ed.), Problem Solving in School Mathematics. Open University: England.

Little, J. W. (1990). The persistence of privacy: Autonomy and initiative in teachers’ professional relations. Teachers College Record, 92(4).

McLaughlin, M. (1993). What matters most in teachers’ workplace context? In Judith Warren Little e Milbrey W. McLaughlin (Eds.), Teachers’ work. Individuals, colleagues and contexts. New York: Teachers College, Columbia University.

Merrian, S. B. (1988). Case Study Research in Education. San Francisco: Jossey-Bass. Pacheco, J. A. (1996). Currículo: Teoria e práxis. Porto: Porto Editora. Patton, M. (1982). Practical evaluation. London: Sage Publications. Patton, M. (1990). Qualitative evaluation methods. London: Sage Publications. Perrenoud, P. (1983). La pratique pedagogique entre l’ improvisation reglée et le

bricolage, Education et recherches, 5, pp. 198-222. Sanches, M. F. C. (2000). Da natureza e possibilidade da liderança colegial das escolas.

Texto a publicar. Saviani, D. (1985). Educação: Do senso comum à consciência filosófica. São Paulo:

Cortez Editora. Schoenfeld, A. (1985). Mathematical problem solving. London: Academic Press. Schön, D. (1991). The reflective practioner. How professionals think in action. Great

Britain: Maurice Temple Smith Ltd. (edição original de 1983) Schön, D. (1992). Formar professores como profissionais reflexivos. In A. Nóvoa (Ed.),

Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote. Shulman, L. & Tamir, P. (1973). Research on teaching in the natural sciences. In R. M.

W. Travers (Ed.), Second Handbook of Research on Teaching. Chicago: Rand-McNally.

Simon, H. A. (1973). The structure of ill structured problems. Artificial Intelligence, 4, pp. 181-201.

Smith, M. U. (1991). A view from biology. In Mike U. Smith (Ed.), Toward a unified theory of problem solving. Views from the content domains. Hillsdale, N J: Erlbaum.

Tavares, J. (1996). Uma sociedade que aprende e se desenvolve. Relações interpessoais. Porto: Porto Editora.

Thurler, M. G. (1994). Levar os professores a uma construção activa da mudança. Para uma nova concepção da gestão da inovação. In Monica Gather Thurler e Philippe Perrenoud (Eds.), A escola e a mudança. Lisboa: Escolar Editora.

Tyler, R. W. (1950). Basic principles of curriculum and instruction. Chicago: University of Chicago Press.

XIISIEM - Leonor Santos 22

Page 23: Problema e questões do estudo - Instituto de Educação · 2008. 5. 19. · Assim, falar-se em prática profissional como prática de resolução de problemas, ultrapassa a resolução

Yin, R. (1989). Case Study Research: Design and Methods. London: Sage Publications. Yinger, R. (1977). A study of teacher planning: Description and theory development

using ethnographic and information processing methods. Unpublished doctoral dissertation. Michigan: State University, East Lansing.

XIISIEM - Leonor Santos 23