priscila frehse pereira robert - teses.usp.br · nadja pinheiro, pelas contribuições na banca de...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PRISCILA FREHSE PEREIRA ROBERT
Da transferncia negativa destrutividade: percursos da clnica
psicanaltica
SO PAULO
2015
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PRISCILA FREHSE PEREIRA ROBERT
Da transferncia negativa destrutividade: percursos da clnica psicanaltica
(Verso Corrigida)
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de So
Paulo, como parte dos requisitos para
obteno do grau de Doutora em
Psicologia.
rea de concentrao:
Psicologia Clnica
Orientador: Prof. Dr. Daniel
Kupermann
So Paulo
2015
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE
CITADA A FONTE.
Catalogao na publicao
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
Robert, Priscila Frehse Pereira.
Da transferncia negativa destrutividade: percursos da clnica
psicanaltica. / Priscila Frehse Pereira Robert; orientador Daniel
Kupermann. -- So Paulo, 2015.
201f.
Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Psicologia.
rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Instituto de Psicologia da
Universidade de So Paulo.
1. Psicanlise 2. Clnica psicanaltica 3. Transferncia negativa
4. Destrutividade 5. Resistncia I. Ttulo.
RC504
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Nome: Robert, Priscila Frehse Pereira
Ttulo: Da transferncia negativa destrutividade: percursos da clnica
psicanaltica
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de So Paulo para
obteno do ttulo de Doutora em
Psicologia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. Joel Birman
Instituio: UERJ, UFRJ e Paris 7________ Assinatura:_________________
Prof. Dr. Gilberto Safra
Instituio: IP-USP____________________ Assinatura:_________________
Profa. Dra. Nadja Pinheiro
Instituio: UFPR_____________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr. Fabio Th_______________________________________________
Instituio:___________________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr. Daniel Kupermann _______________________________________
Instituio: IP-USP____________________ Assinatura:_________________
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Para Marcio, companheiro de todas as horas, por
sua fora e doura, por sua paixo e aconchego,
por sua arte de reinventar o amor e abraar os
sonhos.
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Daniel Kupermann, pela aposta e confiana, pelas indicaes precisas, pela
liberdade e incentivo ao pensamento crtico e por sua leitura viva da psicanlise.
Ao Prof. Dr. Luiz Eduardo Prado de Oliveira, pelas orientaes, pela generosidade e ajuda na
realizao do Doutorado Sanduche.
Profa. Dra. Nadja Pinheiro, pelas contribuies na Banca de Qualificao, pela leitura atenta
e crtica do meu texto, por ter me apresentado com tanto entusiasmo o trabalho de Winnicott,
pelo incentivo para o ingresso no doutorado.
Ao Prof. Dr. Fbio Th, por sua generosidade e autenticidade, por sua crtica ao fechamento
dogmtico da psicanlise, por seu entusiasmo na leitura dos textos freudianos e pela amizade.
Aos psicanalistas que fazem ou fizeram parte da minha formao: Rosane Sade Miguel, por
acompanhar meus primeiros passos na clnica, Ronaldo Barra, com quem aprendi o respeito e
ganhei gosto pela docncia, Marion Minerbo, por sua delicadeza e sensibilidade clnica.
Aos funcionrios do Instituto de Psicologia, especialmente, Claudia Rocha, pelo
conhecimento tcnico, pela simpatia e pela disposio a ajudar.
Aos funcionrios da Biblioteca Dante Moreira Leite, pela competncia, simpatia, disposio e
prontido para auxiliar no trabalho de pesquisa.
A todos os colegas do Laboratrio PsiA, mas especialmente, Tatiana Cano, Daniel Vitorello,
Lvia Santiago, Lucas Bulamah e Nadeje Barbosa pelo apoio, pelos socorros, pelas infindveis
discusses e bate-papos e sobretudo pela parceria e amizade construda ao longo desses anos.
Sem o apoio de vocs, esse percurso teria sido muito mais rduo e muito menos divertido.
Manoel Madeira, pela ajuda e acolhimento em Paris, pela produo conjunta e pela amizade.
E aos queridos amigos Laura Penna Alves, Jlio Canhada e Carolina Garcia que tornaram o
perodo de Doutorado Sanduche mais especial.
Ao querido amigo Eduardo Vicenzi, pelo percurso que construmos desde os primeiros anos de
faculdade, pelas infindveis discusses clnicas e tericas, por seu entusiasmo com a
psicanlise, pela parceria e amizade; Lgia Durski, Gustavo Vieira, Jean Diogo e Renan
Brezolin, pelas discusses tericas, pela ajuda e pela amizade; e aos colegas dos Encontros
Clnicos, pelas trocas psicanalticas.
Karlla Wiezzer, Lus Fernando Farias, Ricardo Polucha, Luciano Lacerda, Sergio Madeira e
Patricia Lages pela amizade firme, pelo apoio, pelas tradues e leituras, e pelo
compartilhamento de ideias.
Larissa e Rodrigo, meus queridos irmos, pela amizade, pelo apoio incondicional, pelo
companheirismo, pela generosidade, e pela alegria que trazem minha vida, e a meus cunhados
Sabrina e Gabriel, pela amizade, pela parceria, pelo apoio.
A meus pais, Helosa e Tadeu, pelo apoio incondicional, pelo amor, pelo incentivo e por
compreenderem minhas ausncias.
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minha querida v Odilma, por ter me ensinado a poesia da vida e pelo amor.
Marcio Robert, pela parceria ao longo desses anos, pelo companheirismo, pelo amor, pela
amizade, pela pacincia, pelas inmeras conversas psicanalticas, pelas inmeras leituras e
revises de texto.
Capes, pela concesso da bolsa de doutorado e doutorado sanduche, pelo apoio financeiro
para a realizao desta pesquisa.
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Resistir como quem deseja
Meu versejar seja
Alice Ruiz / ItamarAssumpo
Todo principiante em psicanlise provavelmente se
sente alarmado, de incio, pelas dificuldades que lhe
esto reservadas quando vier a interpretar as
associaes do paciente e lidar com a reproduo do
reprimido. Quando chega a ocasio, contudo, logo
aprende a encarar estas dificuldades como
insignificantes e, ao invs, fica convencido de que as
nicas dificuldades realmente srias que tem de
enfrentar residem no manejo da transferncia.
Sigmund Freud
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RESUMO
ROBERT, P.F.P. Da transferncia negativa destrutividade: percursos da clnica
psicanaltica. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So
Paulo.
A presente tese consiste em percurso pelas concepes de manejo das transferncias negativas
nas produes de Freud, Ferenczi e Winnicott, explicitando os diferentes sentidos e enquadres
da resistncia e da destrutividade na teoria da clnica de cada um desses autores, e tambm
ensaiando pontos de contato entre eles. Como fio condutor, ou como visada tica, a valorizao
de uma dimenso de positividade da destruio na clnica psicanaltica na medida em que,
promotora de diferenas e limites, est implicada nos caminhos das transferncias em anlise.
Ao longo do percurso, o estudo de figuras de submisso na clnica masoquismo em Freud,
identificao ao agressor em Ferenczi e falso self em Winnicott nos permite mapear outras
vias para o manejo da agressividade, especialmente em situaes nas quais a resistncia e dio
no aparecem no trabalho analtico ou, se aparecem, no so sentidos como prprios. Em
comum entre Freud, Ferenczi e Winnicott, a crtica ao excesso interpretativo e s anlises que
ocorrem em nvel estritamente intelectual. Em Freud, alm da interpretao, princpio de
abstinncia, associao livre/ateno flutuante e luta para superao das resistncias, forjados
ao longo da primeira tpica, demonstramos que as noes de elaborao, construo, bem como
a meno lenta demolio do superego hostil, permitem o esboo de outras possibilidades de
manejo que se desdobram nas teorias de Ferenczi e Winnicott. Em Ferenczi, abordamos o
percurso clnico que culmina na elasticidade da tcnica analtica e em sua discusso sobre a
implicao e limites do analista no manejo do dio traumtico e clivado que reincide na clnica.
Em Winnicott, o holding, a regresso dependncia, o brincar, o uso das falhas do analista e a
destruio/sobrevivncia do analista permitem abordar as diferentes facetas de sua teoria da
agressividade no desenvolvimento emocional e diferentes posies do analista no manejo da
transferncia. Como recurso para explicitar os limites e possibilidades de manejo, a construo
do texto perpassada por extratos de casos clnicos. Em Freud, os casos Dora, Homem dos
Ratos, Homem dos Lobos, Jovem Homossexual e AB so abordados; em Ferenczi, algumas
consideraes sobre a anlise de Elisabeth Severn e S.I. so evocados; em Winnicott, so
analisados os casos B. e Margaret Little. Por fim, nosso percurso permite afirmar que a
possibilidade da destrutividade exercer sua funo diferencial depende da disponibilidade do
analista de se oferecer como suporte (o que inclui tambm oposio, resistncia e limite) e de
se permitir ser destrudo e sobreviver destruio ao longo do trabalho analtico.
Palavras-chave: Psicanlise. Clnica Psicanaltica. Transferncia negativa. Destrutividade.
Resistncia.
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ABSTRACT
ROBERT, P.F.P. From negative transference to destructiveness: paths of psychoanalytical
treatment. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So
Paulo.
The present thesis consists of path through the management of negative transfers in Freud's,
Ferenczi's and Winnicott's productions by making explicit different framing and meaning of
resistance and destructiveness in treatment's theory of each of these authors, but also essaying
points of contact among them. As a guidewire, or as ethic bias, the valorization of a dimension
of positiveness of the destruction in psychoanalytic treatment insofar as, promoter of
differences and limits, it is implied in the ways of the transfers in analysis. Along the course,
the study of figures of submission in treatment masochism in Freud, identification with the
aggressor in Ferenczi and false self in Winnicott allows one to map other ways for the
management of aggressiveness, especially in situations in which resistance and hate do not
appear in analytic work or, if they do, they are not felt as their own. Common to Freud, Ferenczi
and Winnicott, the criticism to the interpretative excess and to analysis that occur in the strictly
intellectual level. In Freud, besides interpretation, principle of abstinence, free association /
floating attention and fight to overcome the resistances, forged along the first topic, we
demonstrate that the notions of working through, construction, as well as the mention to the
slow demolition of the hostile super-ego, permit outline other possibilities of management that
unfold in Ferenczi's and Winnicott's theories. In Ferenczi, we approach the clinical course that
culminates in the elasticity of the analytical technique and in its discussion about the
implications and limits of the analyst in cleaved and traumatic hate management that relapses
in treatment. In Winnicott, the holding, the regression to dependence, the play, the use of the
analyst's fails and destruction/survival permit to approach the different facets of his theory of
aggressiveness in emotional development and different positions of the analyst in transfer
management. As a resource to make explicit the limits and possibilities of management, the
construction of the text is permeated by extracts of clinical cases. In Freud, Dora, Rat Man,
Wolf Man, Young Female Homosexual, and AB cases are addressed; in Ferenczi, some
considerations about the analysis of Elisabeth Severn and S.I. are evoked; in Winnicott, B. and
Margaret Little cases are analyzed. In conclusion, our course permits to affirm that the
possibility of destructiveness to exert its differential function depends on the availability of the
analyst to offer as a holding himself (which includes also opposition, resistance and limit) and
to permit himself to be destroyed and himself to be destroyed and to survive to the destruction
along the analytical work.
Keywords: Psychoanalysis. Psychoanalytic treatment. Negative Transference. Destructiveness.
Resistance.
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SUMRIO
1. INTRODUO ............................................................................................................... 13
1.1 Viso panormica das transferncia negativas no campo psicanaltico. ............................ 16
1.2 Sobre o retorno aos trabalhos de Freud, Ferenczi e Winnicott .......................................... 21
1.3 Cartografias das transferncias negativas .......................................................................... 23
2. O MANEJO DAS TRANSFERNCIAS NEGATIVAS EM FREUD ........................ 29
2.1 Resistncia e interpretao no manejo das transferncias ........................................... 29
2.1.1 Primeiros traados da transferncia em Psicoterapia da Histeria .................................... 29
2.1.2 Transferncia e interpretao no Caso Dora.................................................................... 37
2.1.3 Da insistncia interpretativa associao livre ............................................................... 41
2.1.4 Transferncias amorosas e princpio de abstinncia........................................................ 42
2.1.5 Transferncias negativas como resistncia ...................................................................... 46
2.1.6 O manejo das transferncias negativas no Homem dos Ratos ........................................ 48
2.2 Os limites na clnica freudiana. ....................................................................................... 58
2.2.1 Elaborao e esboos de construo em anlise. ............................................................ 58
2.2.2 O narcisismo e os limites do analisvel ........................................................................... 62
2.2.3 Casos difceis e situaes limites..................................................................................... 67
2.2.3.1 Adesividade transferencial e tcnica ativa: o caso do Homem dos Lobos ................... 69
2.2.3.2 Hostilidade latente e os limites da transferncia: o Caso da Jovem Homossexual ...... 72
2.2.3.3 Caso AB: Implicao do analista e hesitao no diagnstico ..................................... 76
2.2.3.4 Quando a transferncia negativa no aparece no espao analtico ............................... 78
2.3 O problema do masoquismo e o manejo das transferncias negativas. ....................... 80
2.3.1 Reao teraputica negativa e adesividade transferencial ............................................... 80
2.3.1 Sadismo e masoquismo em Freud ................................................................................... 82
2.3.2 Do masoquismo ergeno constitutivo ao masoquismo moral ......................................... 84
2.3.3 Pulso de destruio, ciso do eu e possibilidade de resistir ........................................... 89
2.3.4 O testamento de Freud: outras vias para o manejo das transferncias negativas. ........... 92
2.3.5 Transferncia negativa como resistncia submisso .................................................... 95
3. DAS TRANSFERNCIAS NEGATIVAS DESTRUTIVIDADE ............................ 100
3.1 Os territrios ferenczianos e winnicottiano se entrecruzam: os casos limites .................. 100
3.2 Ferenczi: Suportar o dio e o desprazer no manejo da transferncia .............................. 102
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3.2.1 Primeiros traados em Ferenczi: submisso e desconfiana na transferncia ............... 102
3.2.2 A tcnica ativa: transferncia negativa e narcisismo do analista................................... 106
3.2.3 Elasticidade na tcnica analtica e a traumatognese ferencziana ................................ 110
3.2.4 Identificao ao agressor: do dio submisso............................................................ 112
3.2.4.1 Caso S.I.: o terrorismo do sofrimento. ....................................................................... 116
3.2.5 O masoquismo em Ferenczi: o problema afirmao do desprazer. ............................... 116
3.2.6 Caso Severn: a precocidade do trauma e o amor impiedoso ......................................... 121
3.2.7 Suportar o dio, suportar o prprio dio: os limites na clnica ferencziana .................. 123
3.2.8 Do analista no lugar de superego anlise pelo jogo .................................................... 127
3.2 Winnicott: Os manejos da agressividade e da destrutividade na clnica. ................ 130
3.3.1 Formas clnicas da transferncia: entre necessidade e desejo ....................................... 131
3.3.3 Razes da agressividade: do amor impiedoso destrutividade...................................... 140
3.3.4 Sobre masoquismo em Winnicott: sentir-se real pela intruso...................................... 147
3.3.5 O falso self como submisso e adaptao ao ambiente ................................................. 150
3.3.2 O dio na contratransferncia e anterioridade do dio materno. ................................... 154
3.3.6 O manejo diante de um falso self: reencontrar a agressividade na clnica. .................. 157
3.3.7 Caso Margaret Little: Construes em anlise e suporte para o dio .......................... 160
3.3.7.1 Ella Sharpe e Margaret Little: uma anlise freudiana nada freudiana ........................ 165
3.3.8 Caso B: Brincar de luta, oposio e resistncia na transferncia ................................. 167
3.3.9 Do uso das falhas destruio/sobrevivncia do analista ............................................. 175
4. CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 181
5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 183
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INTRODUO
Nas bordas do analisvel e, ao mesmo tempo, no cerne da teoria da clnica, o manejo das
transferncias negativas configura importante desafio da clnica psicanaltica contempornea.
As modalidades de sofrimento que levam os pacientes anlise e a configurao do setting
psicanaltico nos dias de hoje possuem algumas peculiaridades em relao quelas dos
primeiros anos da psicanlise, o que traz ordem do dia discusses sobre o trabalho do analista
no manejo transferencial.
Desde os primeiros anos da clnica psicanaltica, o manejo das transferncias negativas
baliza a diferena entre a psicanlise e o carter sugestivo de outros mtodos teraputicos. Se
no h espao para manifestao e elaborao dos afetos hostis dirigidos ao analista, frequente
obter-se como resultado uma espcie de dependncia cega e de cativeiro permanente do
enfermo perante o mdico. (Freud, 1905a/1996, p. 112)
As implicaes dessa assertiva freudiana se ampliam na medida em que, na construo de
sua teoria da clnica, o trabalho de revelao do inconsciente vai sendo paulatinamente
deslocado para o trabalho de elaborao das resistncias. No se trata de revelar o inconsciente
ao analisando ou de buscar insistentemente a revelao de contedos, tampouco de insistncia
na interpretao.
De Freud aos psicanalistas contemporneos, o manejo da transferncia negativa passou a
levar em conta a implicao do analista na configurao do campo transferencial. No entanto,
esse movimento no poderia dispensar esse gesto clnico inaugural: voltar-se para o analisando
e notar que os afetos em jogo no trabalho analtico so expresso de singularidade, de um
modo especfico de conduzir-se na vida amorosa, que possui uma histria que se repete e se
atualiza (Freud, 1912/2010a). Entendemos que a clnica psicanaltica se legitima na medida em
que possibilita ao paciente uma experincia singular em transferncia. Singularidade que se
atrela esse ser o nosso percurso funo da destrutividade em anlise.
Na trilha deixada por Freud, pensar os problemas da dependncia e da submisso ao analista,
a partir das relaes entre transferncia negativa e resistncia, o campo clnico do qual
derivam nossas questes. Pretendemos abordar uma dimenso do manejo que, para alm da
interpretao, consiste na sustentao e sobrevivncia do analista destrutividade do
analisando, e trazer tona a discusso sobre o trauma e o manejo em situaes clnicas nas
quais o analista levado a se deparar com seus prprios limites e tambm com os limites de sua
teoria.
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Do amplo campo do manejo da agressividade em situaes limites da anlise, nosso recorte
privilegia formas clnicas da transferncia que tendem a se configurar pelo vis da dependncia
e da submisso. A figura clnica do masoquismo em Freud (1919/2010c,1924/2007,
1930/1996), em sua dimenso constitutiva e patolgica, a identificao ao agressor em Ferenczi
(1928/2011, 1930a/2011, 1931a/2011, 1932/1990, 1933/2011) e as personalidades falso self em
Winnicott (1950-1955/2000, 1960a/1983, 1971/1975) revelam as relaes de submisso e
dependncia no plano intrapsquico, mas tambm, esse o ponto principal, apontam para a
problemtica da submisso e dependncia no campo transferencial, atreladas impossibilidade
da destrutividade exercer seu potencial diferenciador e singularizante no tratamento analtico.
Dessa perspectiva, a destrutividade ganha uma medida de positividade e pode ser articulada
de ponta a ponta do trabalho analtico: desde a diferenciao primria entre eu e no eu e da
construo dos sentidos de realidade atravs da transferncia, passando pela destrutividade
implicada nos trabalhos de elaborao at a articulao sobre os destinos das transferncias em
anlise.
A partir da classificao proposta por Mezan (2002) para as pesquisas em psicanlise,
possvel situar a presente tese entre aquelas que discutem o processo teraputico stricto sensu,
o modus operandi do psicanalista. No se trata, no entanto, de cair no engodo ou na concepo
ingnua de que da clnica, por ela prpria, emergem todos os conceitos que a fundamentam.
Pelo contrrio, a histria da teoria da clnica perpassa a construo do trabalho, atravs de suas
dificuldades, suas aberturas, seus paradoxos. Trata-se, assim, de uma tese de questionamentos
sobre limites: do analista, do analisando, da clnica, da teoria.
Nesse sentido, a proposta da presente pesquisa no poderia ser extrair um conceito rgido de
transferncia negativa, mas abord-la a partir da pluralidade de sentidos e enquadres, atravs
de uma construo que explicite os pontos de continuidade e de ruptura na teoria da clnica
psicanaltica e que leve em conta a implicao do analista nas vicissitudes da destrutividade
em anlise. Para tanto, as posies ocupadas pelo analista na transferncia sero fios condutores
da articulao terica.
Se a proposta pensar na implicao do analista no manejo das transferncias negativas, os
trabalhos de Sndor Ferenczi e Donald Winnicott se mostram pertinentes. Os autores fornecem
vasto material clnico e terico que convocam o psicanalista ao questionamento de seus limites
e possibilidades. Seus percursos carregam um questionamento da tradio psicanaltica na qual
se inserem: Ferenczi em relao Freud, Winnicott em relao Klein e, por consequncia,
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suas produes tericas demonstram o sempre multifacetado interjogo [interplay]1 entre a
originalidade e a aceitao da tradio como a base para a inventividade (Winnicott,
1971/1975, p. 138).
A escolha por esses autores reflete a construo de um posicionamento tico e
epistemolgico na psicanlise: o percurso de uma anlise leva em conta a singularidade dos
encontros e desencontros entre analista e analisando, o que significa que esto em jogo no
somente a modalidade de sofrimento do paciente, mas tambm a subjetividade do analista e as
condies a partir da qual a situao analtica se configura, em determinado tempo e espao.
Dimenses que, muitas vezes, ultrapassam o que o conceito de transferncia consegue abarcar,
mas cuja configurao depende do olhar e estatuto dado pelo analista a essa mesma
transferncia e de como se v implicado ou no no campo transferencial. (Zygouris, 1999, 2003,
2006, 2011)
Nessa linha, o analista no se define como aquele que capaz de ouvir de um lugar de
neutralidade, porta-voz de uma Verdade, e tampouco aquele cuja funo se traduz em nome
de uma anlise pura ou de um desejo desencarnado. Pelo contrrio, a clnica se d tambm
atravs das resistncias no encontro afetivo entre analista e analisando. (Kupermann, 2008) A
resistncia, assim, no est nem apenas do lado do paciente, nem apenas do lado do analista,
mas sua articulao se d atravs de um campo de afetao mtua e compartilhamento afetivo.
desse campo de aimance2, como afirma Zygouris (1999, p. 28) da influncia mtua entre
os corpos e psiquismos (Katz, 1992, p.44), que Freud extrai o conceito de transferncia.3
Assim, tentando cartografar o campo das transferncias negativas em Freud, Ferenczi e
Winnicott, realizaremos um percurso que procura privilegiar a relao entre clnica, teoria da
clnica e metapsicologia, perpassada por casos clnicos de cada um dos autores. A ideia de
trabalhar a clnica nos coloca, de incio, em campo avesso sistematizao terica rigorosa,
trazendo tona momentos nos quais o manejo clnico e a teoria da clnica no necessariamente
coincidem. Nossa proposta se situa no entrecruzamento de relatos de casos clnicos, teoria da
clnica e metapsicologia, de onde emergem as relaes entre as figuras de submisso na clnica
e os destinos da destrutividade em anlise.
1 Na edio da editora imago, interplay aparece traduzido como integrao ou ao recproca, o que no nos
parece adequado. Em funo dessas discrepncias, utilizaremos, sempre que possvel a traduo proposta por
Gustavo Vieira (2014), que explicita ao lado de sua proposta de traduo, em colchetes, os termos sujeitos
ambiguidade em ingls. No entanto, indicamos tambm a paginao na traduo para o portugus. 2 No original aimance que, em francs, une as palavras aimer (amar) e aimant (im). 3 Discorremos sobre essa origem no primeiro captulo do presente trabalho.
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1.1 Viso panormica das transferncia negativas no campo psicanaltico.
Mas, afinal, do que voc est falando quando se refere transferncia negativa? Ao longo
da elaborao da tese, inmeras foram as situaes acadmicas nas quais essa pergunta me foi
dirigida. Tais questionamentos, alm de inerentes ao percurso de elaborao de uma pesquisa
acadmica, parecem revelar tambm uma dificuldade de delimitao da expresso
transferncia negativa no campo psicanaltico. Por exemplo, que o questionamento sobre a
transferncia legtimo e que a transferncia tem estatuto conceitual na teoria da clnica em
psicanlise assunto pouco discutvel. O conceito de transferncia comea a ser articulado
desde os primrdios da psicanlise e adquire estatuto cada vez mais relevante na obra freudiana.
Tem lugar garantido em dicionrios e manuais de psicanlise, com longos tpicos sobre sua
conceituao e percurso de construo. Quando se trata dos pilares da clnica psicanaltica,
lugar comum que a transferncia aparea entre os conceitos fundamentais da psicanlise. A
partir de Freud, o conceito de transferncia apresenta uma grande fora e rendimento terico e
persiste na elaborao dos ps-freudianos. No entanto, no evidente que o mesmo se aplique
especificamente transferncia negativa.
O texto de Pontalis Ce transfert quon appelle ngatif escancara o problema: a transferncia
negativa no um conceito analtico (1988, p. 130)4. O uso do termo comporta ambiguidades
e contradies e, se tomadas isoladamente, revelam pouco ou nada do que est em jogo no
trabalho clnico, uma vez que est restrita ao manifesto. Ora tomada como resistncia, ora
confundida com a reao teraputica negativa, parece haver uma confuso de lnguas que
perpassa a discusso sobre o tema. Em 2000, uma edio da Revue Franaise de Psychanalyse,
dedicada especificamente transferncia negativa, contempla uma grande variedade de
problemas clnicos: transferncias negativas clssicas, transferncias negativas paranoicas,
transferncias clivadas, transferncias paradoxais, transferncias negativas latentes,
transferncias negativas no contexto da formao do analista, transferncias negativas e o fim
da anlise, etc. O que h em comum em todas elas? Uma discusso sobre limites: limites da
tcnica clssica, limites do transfervel, limites do analisvel. No por acaso a clebre discusso
sobre a transferncia negativa no analisada de Ferenczi aparece justamente no texto Anlise
terminvel e interminvel (1937a/1996), onde Freud se dispe justamente a discutir os limites
do analisvel.
Cournut (2000, p. 361) reconhece o carter problemtico e por vezes, moralizante do
uso da expresso transferncia negativa no campo psicanaltico:
4 Ao longo da tese, trabalharemos com traduo livre dos artigos em francs.
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A transferncia negativa uma noo freqente na teoria da prtica psicanaltica. Refere-se a uma
experincia, uma expresso, um sentimento que colore a transferncia, e ao mesmo tempo a
contratransferncia, de uma reputao bastante pejorativa, sinalizando uma dificuldade por vezes
grave a ponto de interromper o processo analtico e a conduo de uma cura. (Cournut, 2000, p. 361)
A confuso tamanha que Laplanche e Pontalis (1998, p. 521) precisam esclarecer em seu
dicionrio que, em Freud, os sinais positivo e negativo da transferncia qualificam apenas a
natureza dos afetos sentidos ou, como aponta Daniel Lagache (1952): sabe-se que a
transferncia de sentimentos positivos pode ter efeitos negativos; ao contrrio, a expresso de
sentimentos negativos pode constituir um progresso decisivo. Assim, mais do que pela
preciso conceitual, o estudo da transferncia negativa se justifica justamente pelos quiproqus,
divergncias e impasses a ela relacionados.
No Brasil, so escassos os trabalhos que especificam o tema da transferncia negativa. No
mbito da pesquisa acadmica, so apenas onze os trabalhos encontrados na Bvs-Psi (www.bvs-
psi.org.br) com o descritor transferncia negativa: Katz (1993); Fetter, Knijnik, Caleffi e
Pacheco (1999); Kupermann (2000); Tabares Pujante (2000); Cantis (2001); Ros, Figueroa e
Bugua Seguel (2001); Laia (2003); Gerez Ambertn (2005); Alvarenga (2008) e, por fim,
Gastaud e Peres (2009). A aproximao teoria freudiana nesses artigos se d a partir do
trabalho de S. Ferenczi (Katz, 1993; Kupermann, 2000), Lacan (Alvarenga, 2008; Laia, 2003)
e Melanie Klein (Cantis, 2001). No h referncia explcita e articulaes entre as obras de
Freud e Winnicott.
Uma das justificativas para ausncia de referncias winnicottianas na busca pelo descritor
transferncia negativa, pode ser o fato de que as manifestaes relativas agressividade na
clnica no sejam abordadas a partir desse conceito freudiano, sobretudo nos trabalhos que
defendem ruptura paradigmtica entre Freud e Winnicott.5 No entanto, a ausncia de trabalhos
especficos sobre transferncia negativa pode tambm ser explicada pela tendncia das
pesquisas em psicanlise de priorizar o discurso terico sobre o clnico: das nove teses de
doutorado encontradas no Banco de Teses da Capes6 com os termos agressividade e
psicanlise, h uma nica, publicada em 2011, que se articula em torno dos problemas da
clnica7.
5 Um exemplo a tese de doutorado de Garcia, R. M. intitulada Agressividade na psicanlise winnicottiana (2009),
defendida na PUC-SP. 6 Acesso em 15/02/2015: http://bancodeteses.capes.gov.br/ 7 Silva, D. C. G. G. (2011) O caso piggle e as depresses infantis na psicanlise winnicottiana. Tese de Doutorado
em Psicologia, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.
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A pesquisa bibliogrfica apontou que a primeira meno transferncia negativa na histria
da psicanlise aparece em carta de Freud a Jung, de 21 de junho de 1908. A primeira meno
em publicao, por sua vez, ocorrer no ano seguinte, em Transferncia e Introjeo (1909),
de S. Ferenczi8. Mas ser apenas em Dinmica da Transferncia (1912), que receber
problematizao terica que lhe atribui estatuto peculiar em termos de teoria da tcnica. Depois
disso, Freud utilizar a expresso poucas vezes em sua produo terica, entre as quais, a
Conferncia XXVII Transferncia (1917), em Histria do Movimento Psicanaltico e em
Anlise terminvel e interminvel (1937) e Esboo de Psicanlise ([1938]1940).
Em linhas gerais, a qualificao dada por Freud transferncia negativa em Dinmica da
Transferncia (1912) a mais conhecida e refere-se a afetos hostis dirigidos ao analista. Mas
a agressividade em anlise no se encerra nos problemas por ele trabalhados nesse texto. Raiva,
dio, desprezo, indiferena, desconfiana, vingana, rebeldia, teimosia, arrogncia e apego ao
sofrimento contemplam uma ampla gama de afetos hostis em anlise e demandam diferentes
articulaes, tanto em termos de manejo quanto em termos metapsicolgicos.
Ainda segundo o levantamento bibliogrfico, verificamos que os dois primeiros artigos
dedicados exclusivamente aos problemas da transferncia negativa so Sur le transfert ngatif
latent, de Sterba, de 1927 (cujo resumo consta em Saussure, 1929), e Negative Transference in
Psychoanalysis, de M. Peck escrito em 1929. No possvel deixar de notar que o primeiro
texto que contempla a transferncia negativa no ttulo refere-se justamente a uma transferncia
negativa que no se manifesta na clnica, a transferncia negativa latente. Passado o perodo de
empolgao com as possibilidades teraputicas da psicanlise, caracterstica da dcada de
1910 (Gay, 2002), o campo psicanaltico, na dcada de 1920, comearia a problematizar os
limites do analisvel, os limites da clnica e os problemas da formao do analista.
Alm do mais, preciso registrar que Freud, Ferenczi e Winnicott no foram os nicos a
criar abordagens originais a respeito da transferncia negativa. A agressividade na clnica e na
metapsicologia foi consistentemente tematizada por dois dos psicanalistas mais influentes da
histria da psicanlise: Melanie Klein e Jacques Lacan.
Melanie Klein, em sua radicalizao do conceito de pulso de morte nas relaes objetais
precoces, traz a transferncia negativa para o centro do trabalho analtico, com exemplos
notveis de interpretao, que podem ser encontradas em A psicanlise de crianas (Klein,
1997).9 Jacques Lacan, por sua vez, no final da dcada de 1940, relaciona a agressividade
8 Reconhecer as transferncias positivas e negativas capital na anlise, afirma Ferenczi (1909, p. 91) 9 Uma leitura instigante sobre o manejo da transferncia na clnica kleiniana pode ser encontrada no texto de
Elizabeth Spillius (2006), intitulado Evoluo do pensamento kleiniano: reviso geral e viso pessoal.
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identificao narcsica e a situa na estrutura do eu.10 No campo lacaniano, o livro Transfert
Ngatif (2005), organizado por Jacques-Alain Miller, nos parece o que aborda de maneira mais
abrangente as consideraes de Lacan sobre transferncia negativa, do ponto de vista clnico e
terico, buscando resgatar sua fecundidade na clnica. Tal tema , no entanto, reconhecidamente
marginal no ensino de Lacan.
Assim, nossa discusso do manejo da transferncia negativa tambm permeada, ainda que
de maneira indireta, pelo trabalho desses dois importantes autores. Como so psicanalistas que
fizeram escola, seus conceitos, suas concepes de clnica e, sobretudo no caso de Lacan, seu
estilo, esto difundidos e incorporados nas produes psicanalticas da atualidade e, assim,
perpassam nossa leitura sobre o tema.
Como veremos ao longo da tese, o trabalho de Winnicott se constri em oposio ao excesso
interpretativo das transferncias negativas na clnica psicanaltica, especialmente, em relao
clnica kleiniana (Philips, 2013). Sua delimitao ser precisa: o psicanalista ingls diferencia
transferncias negativas neurticas e a raiva contra as falhas do analista, o que permitir
uma ampla discusso sobre o manejo.
Essa distino feita por Winnicott tambm se nota, pelos mais diversos caminhos, em uma
ampla distino, especialmente utilizada na pesquisa psicanaltica francesa (ou mais
especificamente, nas pesquisas ligadas Sociedade Psicanaltica de Paris, ligada IPA) entre
as chamadas para usar a distino proposta por Bokanowski (2005, 2009) transferncias
negativas em sentido clssico e transferncias negativantes destrutivas.
Essa ampla distino, ao que nos parece, bastante ancorada em uma diviso entre
concepo freudiana da transferncia na primeira tpica e a ampliao do campo clnico a partir
da segunda tpica e teoria da pulso de morte, a famosa virada dos anos 20. Os trabalhos de
Green (1998) e mais recentemente, os de Roussillon (1991/2013, 2001, 2008a, 2008b, 2009,
2012), so os mais que mais se destacam e dialogam de forma criativa com os trabalhos de
Winnicott, e tambm perpassam a construo de nosso problema de pesquisa.
Em linhas gerais, possvel afirmar, com Bokanowski (2005, 2009), que as transferncias
negativas clssicas referem-se aos movimentos agressivos, destrutivos e violentos em direo
ao objeto11 que se estruturam a partir de uma neurose de transferncia. So transferncias que
10 Importante ressaltar que, de acordo com Ferrari (2006), embora o tema da agressividade no seja relevante no
restante da obra de Lacan, o autor no abandonar a leitura da agressividade em sua dimenso imaginria, mesmo
em sua releitura de Freud a partir da referncia lingstica estrutural. 11 Em Dinmica da transferncia (1912), Freud as nomeia, de forma genrica, como afetos hostis dirigidos ao
analista. O conceito de neurose de transferncia bem como a articulao dos mltiplos sentidos da transferncia
negativa em Freud sero abordados no primeiro captulo do presente trabalho.
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operam como resistncia e necessitam ser interpretadas (analisadas), para que sejam elaboradas.
Nesses sujeitos, a capacidade de deslocamento dos investimentos est conservada e a
transferncia negativa, que se enderea de maneira ambivalente em relao ao objeto, inscrita
em termos de Eros. Nesse campo da relao analtica, os movimentos de transferncia negativa
so transformados em afetos e se tornam simbolizveis, a favor da interpretao. Trata-se de
uma raiva que aparece na transferncia. (Bokanowski, 2005, 2009)
As transferncias negativantes destrutivas, por sua vez, esto alm das transferncias
negativas erticas. O campo das atuaes, como transbordamento passional e erotizao da
transferncia, pode se manifestar como transferncia negativa hostil, violenta, raivosa e
insuportvel, tanto para o paciente quanto para o analista. Trata-se de transferncias que
imobilizam os processos e a vida psquica tanto do analista quanto do analisando. So essas
transferncias, ainda seguindo Bokanowski (2005, 2009), que provocam resistncias que
parecem com frequncia insuperveis e que podem levar reao teraputica negativa ou
tornar a anlise interminvel: elas so a origem de todo o questionamento e de todos os
avanos da anlise contempornea no que concerne tanto analisabilidade quanto gesto
da cura e o campo a partir do qual se estruturam as discusses sobre os estados limites em
anlise. A partir de ento, como prope Minerbo (2009) seria possvel estabelecer uma distino
entre a raiva neurtica e o dio no-neurtico na clnica em suas diferentes gradaes.
Assim, nosso percurso que vai das transferncias negativas destrutividade na clnica
psicanaltica se insere em uma discusso atual no campo psicanaltico. Em 2009, por exemplo,
a Revue Franaise de Psychanalyse dedicou um nmero a discutir o tema da destrutividade
Dtruire / Se dtruire com referncias explcitas aos trabalhos de Green, Ferenczi e Winnicott.
Alm desta, uma publicao recente Destructivit chez lenfant (Cohen de Lara e Danon-
Boileau, 2014) contempla questes terico-clnicas que vo desde os problemas do
masoquismo em Freud, passando pela identificao ao agressor em Ferenczi e chegando
questo da destruio-sobrevivncia do objeto em Winnicott, o que mostra a ressonncia da
discusso psicanaltica contempornea na construo da presente tese.12
12 Durante o Doutorado Sanduche, tive a possibilidade de participar do colquio La destructivit chez lenfant
promovido pela Universit Paris 13, em 22 de maro de 2014, do qual resultou a publicao a que nos referimos.
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1.2 Sobre o retorno aos trabalhos Freud, Ferenczi e Winnicott
Mas, se h tantos trabalhos sobre o tema, o que justificaria o retorno aos clssicos, em um
trabalho sobre a teoria da clnica em Freud, Ferenczi e Winnicott?
Em primeiro lugar, em nome de um rigor terico que a pesquisa acadmica demanda e pela
tradio de estudo da obra freudiana que marca meu percurso de formao.13 Alm disso, a
leitura dos clssicos me parecia indispensvel diante da multiplicidade de leituras e inter-
relaes entre os autores estudados.
A partir de minha experincia clnica e da leitura de autores contemporneos, surge o desejo
de enfatizar a potencialidade da associao livre, princpio fundamental em Freud, a partir do
qual o trabalho de interpretao se ancora. Alm disso, as histerias clssicas, freudianas, e
tambm as neuroses obsessivas no me parecem to distantes do cotidiano do analista, ainda
que seja notvel novos arranjos psquicos e novas formas de viver e narrar o sofrimento. A
experincia clnica especialmente se no ficar restrita anlise de candidatos a analista torna
evidente que as modalidades de sofrimento psquico que comparecem ao consultrio sofreram
modificaes. No entanto, no me parece que seja possvel, a partir da, colocar em pauta a
desconstruo do dispositivo analtico (Gondar, 2001), como se houvesse um abismo entre o
agir e o representar, como se neurose e no-neurose estivessem em dois polos absolutamente
distintos da experincia analtica.
Nesse sentido, recorremos a Deleuze (1968/2006, p. 42) que, nessa passagem, enfatiza
exatamente o que minha leitura pretende resgatar da experincia freudiana:
Freud assinalava desde o incio que, para deixar de repetir, no basta lembrar-se abstratamente
(sem afeto), nem formar um conceito em geral, nem mesmo representar, em toda sua
particularidade o acontecimento recalcado: preciso procurar a lembrana onde ela se
encontrava, instalar-se de pronto no passado para operar a juno viva entre o saber e a
resistncia, entre a representao e o bloqueio. No se cura, pois, por simples anamnese, como
tampouco se est doente por amnsia. Neste caso, como em outros, a tomada de conscincia
pouca coisa. A operao, bem mais teatral e dramtica, pela qual se cura e pela qual tambm se
deixa curar, tem um nome: transferncia.
Assim, o resgate da associao livre/ateno flutuante e o trabalho de elaborao das
resistncias na clnica freudiana como condio sine qua non da problematizao das
13Minha monografia de graduao, de especializao e tambm minha dissertao, todos realizados na
Universidade Federal do Paran, foram construdos em torno da produo terica de Freud. Desde a monografia
de graduao em Psicologia intitulada Sobre a prtica psicanaltica: articulaes terico-clnicas em Freud, h,
como o ttulo anuncia, interesse em pensar a articulao entre teoria e clnica psicanalticas.
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transferncias negativas, a partir da qual a interpretao tem valor na clnica, justifica nosso
retorno a Freud.
Mas h ainda outro aspecto que leva ao desejo de voltar aos clssicos. No que diz respeito
teoria winnicottiana, o intuito resgatar a dimenso diferencial da destrutividade e da
agressividade em sua clnica e em sua teoria, que pode se perder em leitura apressada de
maternagem suficientemente boa, que atenua a profcua discusso sobre os problemas da
submisso ao ambiente e sobre o interjogo entre separao e unio no desenvolvimento
emocional. (Winnicott, 1971/1975)
Em relao Ferenczi, consideramos que a discusso sobre o manejo proposta pelo autor
possibilita estabelecer relaes entre os problemas clnicos abordados por Freud e Winnicott.
Ao longo de sua produo, aborda, por vezes, problemas afins clnica winnicottiana mas se
servindo de conceitos freudianos, em sua empreitada original de propor uma teoria para o
trauma psquico, o que o leva, por fim, a criar tambm um linguajar prprio. Mas o principal
motivo de dar voz a Ferenczi qualidade de testemunho de seus escritos, especialmente os
ltimos, revelando o campo de dificuldades e limites a partir dos quais se constri sua clnica.
Por fim, havia o desejo de tentar dialogar a teoria da clnica especialmente no que diz
respeito ao manejo da agressividade e os casos clnicos de cada um dos autores, com o intuito
de evitar uma distncia excessiva entre teoria e clnica na transmisso da psicanlise. Eu
gostaria de saber o que os autores falaram sobre suas experincias singulares de manejo das
transferncias negativas na clnica.
Mesmo com a leitura de cada um dos autores, contemplados em captulos distintos, ainda
permanecia ainda uma questo. Como anunciamos, a ideia era evitar uma leitura rasa baseada
apenas em divergncias clnicas, como se fosse possvel equivaler manejo da transferncia
negativa em Freud = interpretao, Ferenczi e Winnicott = no interpretao, sustentao,
ou Freud = simbolizvel, Ferenczi e Winnicott = no simbolizvel o que desembocaria em
ruptura paradigmtica entre Freud, de um lado, Ferenczi e Winnicott, de outro. Mas tambm,
no nos parecia razovel, nem coerente com a proposta dos autores, apontar uma
continuidade entre Freud, Ferenczi e Winnicott, como se a psicanlise caminhasse para uma
teoria comum ou como se, no fim das contas, todos os autores estivessem falando dos mesmos
processos com linguagens diferentes.
O principal desafio era criar uma estratgia de abordagem do problema que contemplasse os
trs nveis de anlise: metapsicologia, teoria da clnica e clnica (relatos de casos clnicos).
Tentando contemplar as disparidades mas tambm as relaes entre esses trs nveis, surge a
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estratgia de recorrer a uma imagem cartogrfica, com leve inspirao em Deleuze e Guatarri
(1980/2000), para construir a narrativa de nossa pesquisa. Tratava-se de uma imagem
inicialmente acessria, que ajudava a nos situar entre os autores trabalhados, mas que foi
ganhando relevncia ao longo da construo do problema de pesquisa, na medida em que
permite contemplar a multiplicidade de temas, conceitos e casos clnicos apresentados ao longo
da tese.
1.2 Cartografias das transferncias negativas
Escrever nada tem a ver com significar, mas com
agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regies
ainda por vir. (Deleuze e Guatarri, 2000, p. 13)
Como recurso para preservar a relao complexa entre teoria e clnica e entre as teorias da
clnica de cada um dos autores e a metapsicologia e tentar contemplar tanto os pontos de
divergncia quanto os pontos de contato entre os autores, partimos da analogia entre mapa e
territrio e transferncia e vnculo, inspirada em G. Bateson e utilizada por Radmila
Zygouris em seu livro Vnculo Indito (2003):
Como que se faz um mapa? Com base nas diferenas de territrio. O territrio como tal no faz
parte de nenhum mapa.... A relao vivida entre analista e analisando existe, antes de tudo, fora de
qualquer mapa... na medida em que esta relao se d num enquadre determinado, que exige uma
leitura especfica em relao a um campo de saber, existe uma espcie de mapa para separar do
conjunto das manifestaes da relao aquilo que pode ou no fazer parte do mapa. (Zygouris, 2003,
p. 9)
O conceito de transferncia proposto por Freud (1912a/2010a) poderia ser considerado um
mapa inaugural, primeira delimitao terica daquilo que faz vnculo entre analista e
analisando. Com delimitao em ampla escala cartogrfica, seria espcie de ponto de partida
para explorao do territrio analtico. A imagem que criamos a de Ferenczi e Winnicott se
questionando sobre a relao entre esse mapeamento conceitual freudiano e o territrio clnico
explorado por cada um dos autores. Como se cada um dos autores, de posse dos mapeamentos
j realizados e a partir da explorao de diferentes dimenses do territrio, fossem esboando
outros traados, transformando esse mapa inaugural e criando seus prprios mapas. Como
resultado, a criao de uma cartografia prpria mas herdeira das articulaes freudianas.
Brincando com essa analogia, com a criao de mapas especficos sobre a teoria da clnica,
chegou um momento em que pensamos que poderia ser interessante fazer uma sobreposio
dos mapas, para ver quais seriam os pontos de contato entre eles. A surpresa foi perceber que
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justamente em situaes limites do manejo que as teorias se encontram. Mas no se trata de
sobreposies perfeitas. A imagem resultante se aproximaria mais de um rizoma (Deleuze e
Guatarri, 1980/2000) do que da sobreposio de diferentes mapas referidos explorao de um
mesmo territrio analtico.
Se, do ponto de vista epistemolgico, os diferentes paradigmas da psicanlise remetem a
diferentes formas de configurao do mal-estar, como apontou Birman (2013), isso no
significa que cada um dos autores, em seus percursos clnicos, no rs-do-cho de sua
experincia clnica, no se deparassem com os limites do que sua prpria teoria se props a
problematizar.
A metfora cartogrfica, assim, ajuda-nos a lembrar, ao mesmo tempo, dos limites da teoria
e dos limites e possibilidades de interlocuo entre os autores, mas tambm nos permite tentar
estabelecer alguns pontos de contato. Mas com a advertncia de que a leitura no deve ter a
pretenso totalizante. Um mapa deve necessariamente deixar coisas de fora sob o risco de
perder sua funo, como Jorge Luis Borges expe com mestria:
Naquele Imprio, a Arte da Cartografia logrou tal perfeio que o mapa de uma nica Provncia
ocupava toda uma Cidade, e o mapa do imprio, toda uma Provncia. Com o tempo, esses Mapas
Desmedidos no satisfizeram e os Colgios de Cartgrafos levantaram um Mapa do Imprio, que
tinha o tamanho do Imprio e coincidia pontualmente com ele. Menos Adictas ao Estudo da
Cartografia, as Geraes Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Intil e no sem
Impiedade o entregaram s Inclemncias do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram
despedaadas Runas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o Pas no h outra
relquia das Disciplinas Cartogrficas. Sures Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro,
cap. XLV, Lrida, 1658. (citado e traduzido por Jos Borges Neto, 2004)
Ou, como afirma David-Menard (2014), na medida em que a psicanlise no uma filosofia,
mas uma experincia clnica, o analista estar sempre deparando com um alm da teoria. A
peculiaridade da experincia analtica que ela se constri de sujeitos que buscam a ajuda de
outros porque algo no vai bem. Desse modo, em se tratando da clnica psicanaltica, a cada
nova anlise, um novo mapa precisa ser construdo, de modo que todo mapeamento conceitual
precisa ser suficientemente aberto e impreciso, para permitir que o analista o recrie a cada nova
experincia.
Assim, sempre arriscada a tarefa de articular clnica e metapsicologia. A metfora
cartogrfica a estratgia encontrada para pensar na teoria da clnica e a metapsicologia sem
cair, de um lado, na mera descrio histrica, ou de outro, na apresentao formal e petrificada
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dos conceitos em psicanlise. O grande desafio manter viva a clnica na articulao conceitual
sem cair na mera descrio dos fenmenos clnicos.
Em linhas gerais, a anlise de relatos e publicaes de casos clnicos decerto arriscada,
posto que seu relato implica na considerao histrica de seu contexto de publicao e no
recorte realizado, seja pelo psicanalista, seja pelo analisando. Mas, em nosso percurso,
justamente pela parcialidade que podemos extrair a relevncia dos casos trabalhados, na medida
em que permitem revelar as relaes entre manejo e a teoria da clnica. A percepo das
disparidades e congruncias entre os autores e entre os casos, se torna facilitada pelo nosso
recorte no manejo das transferncias negativas, porque apontam para os limites que
perpassam o trabalho analtico. H uma salutar distncia entre teoria e clnica que aponta os
limites prescritivos das orientaes tcnicas de cada um dos autores. A teoria da clnica no
pode ser considerada um decalque e no um intermedirio perfeito entre a clnica e a
metapsicologia. Seus princpios no so articulveis formando Um, mas permitem
entrelaamento de diferentes nveis da experincia clnica e da teoria que dela derivam.
Esperamos assim, fazer bom uso da profcua no equivalncia entre clnica, teoria da clnica
e metapsicologia em cada um dos autores. Em nossa excurso pelos territrios analticos de
Freud, Ferenczi e Winnicott, buscaremos apreender as leituras de cada um dos autores sobre os
limites e potencialidades que envolvem o manejo da transferncia.
A tese se divide em dois captulos. O primeiro sobre o manejo das transferncias negativas
em Freud e o segundo sobre o manejo das transferncias negativas e destrutividade em Ferenczi
e Winnicott. Em ambos os captulos, o contexto histrico do movimento psicanaltico e as
modalidades de sofrimento privilegiadas por cada um dos autores tangenciam a discusso. As
inmeras notas de rodap do texto apontam possveis interconexes entre os tpicos, na medida
de sua aproximao e tambm de sua disparidade, mas a maior parte dos tpicos possui uma
construo prpria e alguma autonomia em relao aos outros.
O primeiro captulo mais duro. Realizamos um mapeamento histrico da teoria da clnica
freudiana, a apresentao de casos clnicos e uma articulao metapsicolgica a partir da figura
clnica do masoquismo. Ao longo do percurso, pretendemos esboar uma positividade da
transferncia negativa como resistncia em anlise. Embora estejamos seguindo, na maior parte
do tempo, ao p da letra a escrita freudiana, isso no significa que no haja uma posio na
eleio das citaes, textos e casos clnicos: nosso objetivo enfatizar a dimenso de
flexibilidade da clnica e da teoria da clnica freudiana. Se quisssemos enfatizar seus
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aspectos mais dogmticos, o recorte certamente seria outro. Esse captulo se divide em trs
partes:
Na primeira, realizamos um percurso que parte das primeiras menes sobre a transferncia
em Freud, buscando resgatar os primrdios das transferncias negativas em sua teoria da
clnica. Um trabalho descritivo e ao leitor familiarizado possivelmente exaustivo dos
primeiros problemas clnicos que envolvem o surgimento do conceito de transferncia,
intimamente atrelada ao campo onrico, simblico e desejante da histeria. Pretendemos destacar
a transferncia negativa como resistncia compreendida em sua dimenso ambivalente e
relativa ao complexo de dipo, sendo associao livre do paciente, ateno flutuante do
analista, princpio de abstinncia e interpretao os fundamentos de seu manejo. Especialmente
na anlise do Homem dos Ratos, caso exemplar do manejo das transferncias negativas,
destacaremos que a articulao desses princpios luta para superao das resistncias se
evidencia especialmente no encontro com um campo transferencial predominantemente hostil.
Na segunda parte do primeiro captulo, pretendemos acentuar a abertura para outras
dimenses do manejo das transferncias negativas no percurso freudiano. Para tanto, esse tpico
dividido em trs partes. Na primeira, centrada na teoria da clnica, pretendemos esboar a
ideia de que a compulso repetio, atrelada s noes de elaborao e construo, indicam
uma abertura para a implicao do analista no manejo transferencial. Em seguida, passaremos
pela leitura freudiana da paranoia e da melancolia, relacionada introduo dos conceitos de
narcisismo e identificao e pela discusso sobre os limites do analisvel na clnica
psicanaltica. Para finalizar o tpico, recorreremos a casos clnicos de Freud o Homem dos
Lobos, a Jovem Homossexual e o caso AB , com o intuito de demonstrar que o territrio
clnico explorado por Freud permite entrever dimenses no manejo da agressividade no
contempladas em sua teoria da clnica, mas que abrem caminho para a interlocuo com os
mapeamentos da transferncia e da contratransferncia realizados por Ferenczi e Winnicott.
Na terceira e ltima parte sobre Freud, a articulao entre teoria da clnica e metapsicologia
cresce em densidade. A partir da segunda tpica e da teoria da pulso de morte, fazemos uma
leitura centrada na figura clnica do masoquismo. Comeamos pelas fantasias masoquistas e
passamos pela discusso freudiana sobre masoquismo ergeno e masoquismo moral
construda a partir da discusso sobre a reao teraputica negativa e a adesividade
transferencial, o que permite dar relevo a outras formas de resistir que no aquelas apresentadas
na primeira tpica. Para tanto, retomaremos as consideraes sobre a clnica em Esboo de
Psicanlise que ao mesmo tempo reafirmam os princpios da teoria da clnica e apontam novos
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horizontes de manejo. Diante da adesividade transferencial, pretendemos esboar uma leitura
da transferncia negativa que a compreende como a criao da possibilidade de resistir no
trabalho analtico. Nesse percurso, a relao entre pulso de destruio e o estabelecimento dos
limites do eu surge como elemento chave.
No captulo seguinte, de posse dos mapeamentos realizados por Freud e a partir do percurso
clnico de S. Ferenczi em dilogo com a produo de D. Winnicott, pretende-se mapear uma
dimenso do manejo das transferncias negativas que, para alm da interpretao, consiste na
sobrevivncia do analista aos movimentos destrutivos do paciente, como condio para
elaborao. Para tanto, trataremos da distino entre transferncia negativa neurtica e raiva
contra as falhas do analista, que consideramos herdeira da virada clnica que permitiu Ferenczi
levar em conta a elasticidade do analista na clnica. Os conceitos de identificao ao agressor,
em Ferenczi, e falso self em Winnicott so os operadores tericos que norteiam a articulao
sobre a problemtica da submisso na clnica psicanaltica. So pacientes que acarretam
pesada carga psquica para o analista (Winnicott, 1947/2000, p. 287), os que primeiro so
levados para superviso, os que nos fazem pensar sobre os limites do analisvel e que atualizam,
de alguma maneira, as discusses freudianas sobre o masoquismo.
Para tanto, na primeira parte do captulo, realizaremos um percurso sobre a teoria da clnica
ferencziana, mostrando sua discusso que relaciona transferncia negativa, resistncia e
narcisismo do analista, o que culmina na elasticidade da tcnica analtica. A partir de ento,
faremos uma apresentao de sua teoria do trauma, que resulta na sua teoria da clivagem e
identificao ao agressor, dando outros contornos para a leitura do masoquismo. A interpretao
da agressividade do paciente est, nesse momento, fora do horizonte clnico sendo a
disponibilidade do analista em suportar os movimentos destrutivos do analisando condio do
manejo, o que traz tona uma importante discusso sobre os limites do analista na clnica. Os
casos S.I. e R.N. (Elisabeth Severn) ilustram as dificuldades de manejo implicadas na clnica
ferencziana.
No percurso em Winnicott, encontraremos um manejo da agressividade mais matizado, o
que permite a interlocuo com a teoria da clnica de Freud e Ferenczi. Partiremos das formas
clnicas da transferncia e de sua leitura da contratransferncia, tentando demonstrar que a
destrutividade perpassa de ponta a ponta sua teoria do desenvolvimento emocional e tambm
sua problematizao sobre a clnica. As anlises de Margareth Little e o caso B. pretendem
demonstrar que a leitura do manejo em Winnicott ancorada no holding e regresso
dependncia na interpretao, no brincar como horizonte clnico, no uso das falhas do analista
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e da destruio/sobrevivncia do analista explicita a implicao do analista na clnica e
apresenta outras vias para pensar o problema da submisso na clnica. O analista precisa
oferecer o holding, mas tambm a resistncia necessria para que a destrutividade na clnica
possa encontrar espao de manifestao e exercer, a partir da criao de um espao
intermedirio entre analista e analisando, sua funo diferenciadora.
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O MANEJO DAS TRANSFERNCIAS NEGATIVAS EM FREUD
2.1 Resistncia e interpretao no manejo das transferncias
2.1.1 Primeiros traados da transferncia em Psicoterapia da Histeria
As clssicas imagens de pacientes histricas em cenas exuberantes, publicadas em
Iconographie photographique de La Salptrire (1878), renovam a lembrana do contexto no
qual emergiu a psicanlise e, tambm, o carter indito da inveno freudiana. Na clnica
psicanaltica nascente, a catalogao mdica de manifestaes sintomticas e a exibio pblica
e iconogrfica dos pacientes histricos foram substitudas pelo modelo clnico que deslocou a
cena da histeria para a construo de um teatro particular, singular e histrico, no qual a relao
analtica adquire rapidamente relevncia. Na tentativa de criar um modelo terico e uma teoria
da tcnica que permitisse sistematizar e apreender as inesperadas dificuldades da experincia
clnica oriundas da relao entre analista e paciente, Freud recorre noo de transferncia.
Mas antes da primeira apario no contexto da clnica, Freud havia falado da transferncia
para o verbete histeria que fez para a enciclopdia Villaret, em 1888. Freud nota uma
capacidade de deslocamento nos sintomas histricos e sua suscetibilidade influncia:
Pelo uso de mtodos estesiognicos podemos transferir uma anestesia, paralisia, contratura, um
tremor, etc. para rea simtrica da outra metade do corpo (transfert) atravs do que o lugar
originalmente afetado se normaliza... Assim, por exemplo, as contraturas se deixam curar, quando se
consegue levar as mesmas a uma transferncia por meio de um im. Pela repetio da transferncia,
a contratura enfraquece e, afinal desaparece. (Freud, 1888/1996, pp. 85 e 93)
A partir da influncia que um im pode exercer em um sujeito, Freud supe que pode haver
tambm uma influncia mtua entre dois sujeitos, o que seria uma chave importante para
compreender o que est em jogo na sugesto hipntica. (Katz, 1992, p. 43)
A descoberta desses sintomas e seus deslocamentos, que no seguem o funcionamento do
corpo orgnico e so passveis de transformao a partir da influncia externa, formam o solo
de onde nasce a teoria da clnica freudiana. Assim, do campo de aimance14, como afirma
Zygouris (1999, p. 28), e da possibilidade de associao e influncia mtua entre os corpos e
psiquismos (Katz, 1992, p.44), que Freud extrai o conceito de transferncia.
O conceito de transferncia emerge do trabalho com pacientes com grande capacidade
associativa, aptos a estabelecer relaes e fazer ligaes. No pouco relevante que Anna O.,
14 No original aimance que, em francs, une as palavras aimer (amar) e aimant (im).
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a inventora da talking cure, tivesse dom assombrosamente agudo para associaes, como
anotou Breuer em seu relatrio sobre o caso. Peter Gay (2002, p.75) ressalta o campo de
fantasias dessa paciente inaugural: um dos motivos que fizeram de Anna O. uma paciente to
exemplar que ela realizou sozinha grande parte do trabalho de imaginao. Em 1914, em
Histria do movimento psicanaltico, Freud destacar o forte rapport sugestivo da paciente de
Breuer e o simbolismo sexual de seus sintomas (Freud, 1914/1996). Neste campo profcuo para
o estabelecimento de ligaes campo de Eros, por excelncia (Freud, 1920/2006) que o
manejo da transferncia em Freud ganha seus contornos e no qual a dimenso paradoxal e
ambivalente do amor de transferncia operar como veculo para o tratamento.
Pretendemos demonstrar como a positividade desejante da histeria, colocada em cena pela
experincia analtica, fundamenta a problematizao freudiana do manejo transferencial. Nesse
contexto os afetos hostis dirigidos ao analista ponto de partida de nossa articulao terica
sero inscritos no registro do sintoma e da sexualidade. (Birman, 2009a)
2.1.1.1 Obstculos na relao analista-paciente em Psicoterapia da Histeria (1895)
Os relatos de caso e os textos tericos que integram Estudos sobre histeria (1895/1996), de
autoria de Freud e Breuer, demonstram o percurso que vai do abandono da hipnose associao
livre, e permitem a reconstruo do contexto clnico a partir do qual os conceitos de resistncia
e de transferncia comeam a ser mapeados. Estudos sobre histeria (1895/1996) conserva o
frescor da psicanlise em estado nascente: a ntima relao entre clnica e teoria se faz notar de
forma mpar. ltimo dos textos que integram a publicao, Psicoterapia da histeria (1895),
escrito somente por Freud, contm a primeira ocorrncia do termo transferncia no contexto da
clnica.
Quando escreve Psicoterapia da Histeria (1895), Freud est em vias de consolidar sua
etiologia sexual da neurose e conta, em seu corpo conceitual, com as noes de conflito e defesa
(Freud, 1894/1996), que acrescem sentido dinmico, s dimenses econmica (ab-reao) e
tpica (estados hipnides), contempladas em Comunicao Preliminar (Breuer e Freud,
1893/1996). Alm disso, no ano da publicao deste texto, Freud escreve o nunca publicado
Projeto para uma psicologia cientfica e tem o famoso sonho da injeo de Irma, sonho
programtico da obra inaugural da psicanlise (Freud, 1900/1996) e que receber, ao longo da
histria, dezenas de interpretaes acerca das possveis transferncias em jogo na sua
elaborao. (Roudinesco e Plon, 1998, p.398)
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Ao escrever Psicoterapia da histeria (1895), Freud objetiva fazer um relato coerente das
potencialidades do mtodo catrtico, dos aspectos em que ele consegue mais do que os outros
mtodos, da tcnica pela qual funciona e das dificuldades com que se defronta. (Freud,
1895/1996, p.271) Trata-se de uma primeira tentativa de mapeamento conceitual do que se
passa no territrio analtico. Freud destaca as perturbaes da relao entre mdico e paciente,
com papel indesejavelmente grande e inevitvel na conduo do tratamento.
So trs as principais formas de queixas do paciente relativas ao mdico destacadas por
Freud: a perda da confiana no mdico e no mtodo de tratamento; o medo da dependncia e,
por fim, a emergncia de afetos aflitivos relacionados ao mdico. O conceito de transferncia
ser utilizado para apreender apenas essa terceira forma de resistncia.
Freud se refere a essa resistncia relativa transferncia, em situaes nas quais o paciente
transfere para o analista representaes aflitivas que surgem durante a anlise. Normalmente,
so afetos dolorosos, frutos de repdio psquico que esto na base da formao do sintoma
histrico e que se transferem para a situao atual.
O fundamento para tal articulao se encontra, em grande parte, em sua teoria da ab-reao,
publicado dois anos antes, em Comunicao Preliminar (1893/1996). Escrito em parceria com
Breuer, esse texto consiste no mapeamento terico resultante do territrio explorado nos
primeiros anos da psicanlise. A teoria do trauma psquico contemplada nesse texto que ser
retomada de maneira original por Ferenczi (1930a/2011) mais de trinta anos depois em sua
teoria da neocatarse merece ser resumida por explicitar a relevncia do ponto de vista
econmico nos primeiros anos da psicanlise: o sintoma histrico se relaciona impossibilidade
de realizar uma descarga afetiva, em funo de um conflito psquico (desejo repudivel ou
impossibilidade de agir em funo de uma proibio) ou de uma impresso recebida em situao
na qual o sistema nervoso no estava em condies de efetuar descarga [abfuhr].15 (Freud,
1893/1996)
Essa descarga pode ser realizada por reao motora (por palavra ou ato) ou por atividade
associativa do pensamento. Para que a lembrana de uma experincia aflitiva se esmaea
necessria uma reao energtica ao fato capaz de descarregar o afeto, mas quando a reao
impedida de ocorrer, o afeto fica vinculado lembrana e se manifesta atravs do sintoma.
15 Segundo Hanns (1996, p.130-132), o verbo abfhren significa genericamente conduzir daqui (para alm),
levar embora. O substantivo abfuhr designa um movimento de retirada, escoamento . Ambos evocam imagens
ligadas aos desdobramentos do ato de retirada: a utilizao de um suporte que carrega o objeto, conduzindo-o,
atravs de uma via, para fora. Algo diverso de uma descarga ou disparo abrupto.
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Em carta a Breuer, escrita em 1892, Freud anuncia o princpio de constncia e sua relao
com o trauma psquico. Seu enunciado subjaz toda a formulao terica sobre a histeria descrita
no texto e contribui para a compreenso da concepo de psiquismo e da patognese da histeria
neste momento da obra de Freud e tambm para o resgate realizado, anos depois, por Ferenczi16:
O sistema nervoso procura manter constante nas suas relaes funcionais, algo que podemos
descrever como a soma da excitao. Ele executa essa precondio da sade eliminando
associativamente todo acmulo significativo de excitao ou ento descarregando-o mediante uma
reao motora apropriada. Se partirmos desse enunciado, o qual, alis, tem implicaes de amplo
alcance, verificaremos que as experincias psquicas que formam o contedo dos ataques histricos
tm uma caracterstica que lhes comum. Todas so impresses que no conseguiram encontrar uma
descarga apropriada, seja porque o paciente se recusa a enfrent-las por temor de conflitos mentais
angustiantes, seja porque (tal como ocorre no caso das impresses sexuais) o paciente se sente
proibido de agir, por timidez ou condio social, ou, finalmente, porque recebeu essas impresses
num estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado de executar a tarefa de elimin-las.
(Freud, 1940/1996, p. 196)
Os sintomas histricos, portanto, se relacionam impossibilidade de descarga que ocorre em
funo do medo de enfrentar conflitos mentais angustiantes, da impotncia de agir em funo
de proibies ou pela ausncia de condies do prprio sistema nervoso. Em As
Neuropsicoses de defesa (1894), o argumento inclui a dimenso dinmica, a partir da
considerao de um aparelho de memria. tenso/descarga acrescida a possibilidade
crescimento, diminuio e deslocamento no prprio interior do aparelho, que se espalha sobre
os traos de memria (Freud, 1894/1996, p. 73). Essa passagem feita por Freud, j anunciada
em Projeto para uma psicologia cientfica (1950[1895]/1996) fundamenta a elaborao de sua
teoria do aparelho psquico apresentada em Interpretao dos sonhos (1900/1996) e anuncia o
campo a partir do qual a teoria da clnica freudiana ir se inscrever. Quando Ferenczi resgata a
teoria da catarse freudiana, estar se referindo ao traumtico que incide de tal maneira que
impossibilita esse deslocamento no prprio interior do aparelho.17
Assim, no tratamento clnico, em vez da lembrana, o paciente transfere a cena traumtica
para a situao clnica, impedindo o trabalho de seguir. O desejo ligado ao analista, gerando
uma msalliance uma falsa ligao (Freud, 1895/1996, p. 315). Essas transferncias tem
um curioso carter ilusrio e tambm compulsivo: Desde que descobri isso, tenho podido,
todas as vezes que sou pessoalmente envolvido de modo semelhante, presumir que uma
transferncia e uma falsa ligao tornaram a ocorrer. Curiosamente, a paciente volta a ser
enganada todas as vezes que isso se repete. (Freud, 1895/1996, p. 315)
16 Cf. 3.2.3 Elasticidade na tcnica analtica e a traumatognese ferencziana. 17 Cf. 3.2.4 Identificao ao agressor: do dio submisso.
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Para contornar essas resistncias de transferncia, Freud afirma que a primeira tarefa tornar
o obstculo consciente para o paciente, demonstrando que o repdio psquico s ideias
referentes ao analista possui origem na histria do paciente. A partir de ento, seria preciso
induzir o paciente a produzir informaes que dissessem respeito a relaes aparentemente
pessoais e onde a terceira pessoa coincidisse com a figura do mdico. (Freud, 1895/1996,
p.315) Em outras palavras, tratava-se de remeter a transferncia a seu contexto de origem, como
forma de superar esse obstculo.
Inicialmente, alm do susto das pacientes ao se dar conta das transferncias, o prprio Freud
parecia se sentir incomodado com os afetos que lhe eram dirigidos:
A princpio, fiquei muito aborrecido com esse aumento de meu trabalho psicolgico, at que percebi
que o processo inteiro obedecia a uma lei; e ento notei tambm que esse tipo de transferncia no
trazia nenhum aumento significativo para o que eu tinha de fazer. Para a paciente, o trabalho
continuava a ser o mesmo: ela precisava superar o afeto aflitivo despertado por ter sido capaz de
alimentar aquele desejo sequer por um momento; e parecia no fazer diferena para o xito do
tratamento que ela fizesse desse repdio psquico o tema de seu trabalho no contexto histrico, ou na
recente situao relacionada comigo. (Freud, 1895/1996, p. 315).
Apontar a transferncia feita pelo paciente permite prosseguir na associao dos sentimentos
dolorosos, repudiveis e hostis e torna possvel, para terapeuta e paciente, a continuidade do
trabalho. Freud e os pacientes parecem ficar menos aborrecidos ao se dar conta da falsa ligao
realizada pela transferncia. No entanto, no que diz respeito direo do tratamento, Freud
percebe que no h diferena em tratar do repdio psquico no contexto histrico ou na relao
terapeuta-paciente. Ou seja, apesar de compreendida como falsa ligao, Freud no questiona
a autenticidade dos afetos dolorosos e da hostilidade trazidos situao analtica. Pelo
contrrio, d espao para sua manifestao, e atribui estatuto clnico bastante semelhante
verdade18 histrica e falsa ligao, considerando as transferncias em sua reversibilidade e
plasticidade, sentido presente em bertragung, mas que se perde na traduo transferncia
em portugus.19
18 Neste momento, Freud no parece estar muito seguro quanto verdade histrica das associaes das pacientes.
Questiona-se se o tratamento lida com pensamentos que realmente ocorreram na ocasio do trauma, ou com
pensamentos que nunca ocorreram, que meramente tiveram uma possibilidade de existir (Freud, 1895). verdade
que a teoria da ab-reao em Comunicao Preliminar aponta para um evento traumtico que realmente aconteceu.
Ou seja, Freud no duvida da ocorrncia do trauma, mas da ocorrncia dos pensamentos e associaes a ele
relacionados. 19 bertragung [transferncia] guarda, na lngua alem, essa plasticidade e reversibilidade, segundo Hans (1996,
p. 412): Conotativamente pode-se dizer que, em geral, no termo bertragen h um arco que mantm aceso o
processo de ida e vinda, seja temporalmente, entre o passado e a atualidade, seja geograficamente, entre o longe e
o perto, ou de uma pessoa a outra. bertragung tem portanto, sentido diferente do uso corriqueiro de transferncia
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Poder assumir na conscincia [Annahme] as transferncias, inseri-las em nexo associativo,
apontar sua dimenso ilusria e compulsiva parecem ser os principais elementos do manejo da
transferncia neste perodo nascente da psicanlise. Embora Freud estivesse cada vez mais
ciente do carter sobredeterminado do psiquismo, o manejo da transferncia ainda visava
encontrar, intencionalmente, o nexo associativo entre a transferncia e a origem do sintoma,
caracterstica que vai se modificar a partir da consolidao definitiva da associao livre. Trata-
se de trabalho ativo do analista, cujo exemplo mais significativo a presso na testa que Freud
utiliza no caso Elizabeth (Freud, 1895/1996).
No entanto, Freud j esboa algo alm da busca da origem histrica da transferncia. Com
sua costumeira idealizao de Freud, Ferenczi (1930a/2011, p. 62) destaca que Breuer, diante
das intensidades da paixo transferencial recua, desiste: ele s pde acompanhar sua paciente
na medida em que as declaraes e o comportamento dela evoluam no quadro do decoro.
Freud vai adiante. Percebe, paulatinamente, que a cooperao do paciente muitas vezes se torna
um sacrifcio pessoal que deve ser compensado com algum substituto de amor, mas que o
empenho do mdico e sua cordialidade tm que bastar na condio desse substituto. (Freud,
1895/1996, p. 313) [itlicos nossos]
Diante da resistncia, o terapeuta aparece implicado no manejo da transferncia, com uma
dimenso de reserva e limite (Figueiredo, 2008), mas tambm de cordialidade e empenho.
Lagache (1952/1990) afirma que essas consideraes de Freud nos textos iniciais so ainda
permeadas pelo bom senso. No entanto, mais que mero bom senso, parecem demonstrar que
Freud estava diante dos problemas clnicos centrais relativos ao manejo que o acompanhariam
ao longo de toda sua produo terica. Ao esboar uma dimenso de implicao do analista
trabalho do mdico, cordialidade, discrio, empenho e pacincia Freud
(1895/1996) aponta para uma dimenso do manejo na situao analtica. Ser a partir deste
cenrio que o princpio de abstinncia ser formulado, anos depois, como o que possibilita o
manejo dessa fora de atrao do campo transferencial. (Freud, 1915/2010a).
Schneider (1993), com notvel inspirao ferencziana, enfatiza a dimenso afetiva nas
anlises das pacientes atendidas por Breuer e Freud. A autora problematiza os sentidos da
palavra Annahme traduzida para o portugus, na Edio Standard (Freud, 1996) por tomada
de conscincia. Segundo a autora, o uso freudiano da annahme tem um sentido mais abrangente
e operativo na clnica do que a recordao, a representao consciente da cena traumtica, pois
em portugus, que carrega a ideia de mudar ou passar para outro lugar, data ou pessoa (Foi transferido de cargo,
de cidade, de data, por exemplo), com nfase no destino da ao.
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refere ideia de trazer para si. No mesmo sentido, Hanns destaca, em nota de traduo (Freud,
1925/2007, p. 152, n.8), que annahme implica em aceitao, isto , envolve uma incorporao
do contedo e das implicaes daquela ideia para alm da mera racionalizao.
Outra interessante questo trazida pela autora versa sobre a existncia de identidade de
essncia entre o afeto sentido na experincia traumtica e a experincia da catarse na clnica.
Aponta que o afeto no trauma no pde ser sentido como tal, sendo a experincia vivida mais
como um golpe na nuca do que como um afeto excedente. Assim, os afetos seriam despertados,
trazidos luz, atravs da anlise. Em outras palavras, Schneider (1993) responde
afirmativamente questo formulada por Freud, sobre a possibilidade da anlise produzir atos
psquicos que no se manifestaram na ocasio do trauma. H produo de diferena e criao
nas experincias inaugurais da clnica psicanaltica.
Se, ainda com Schneider (1993), em vez da nfase na rememorao, focarmos na circulao
afetiva que a clnica freudiana neste momento proporciona, torna-se compreensvel o contorno
que o conceito de transferncia proporciona relao analtica: ao nomear o que se passa em
termos de transferncia possvel criar a distncia necessria para que a circulao afetiva
produza sentidos. A ideia de Winnicott (1960b/1983) de pensar a transferncia como
simbolismo que torna a anlise em sentido clssico possvel parece ter a um de seus
antecedentes.20
Alm disso, o carter simblico da transferncia carrega tambm uma promessa de
dissipao da transferncia com a concluso da anlise. Vale notar, dissipar remete ideia
de espalhar, dispersar, o que coerente com a dimenso afetiva e com sentido ligeiramente
diferente da ideia de liquidao da transferncia, que encontraremos em escritos freudianos
posteriores no caso Dora (Freud, 1905a/1996), por exemplo. Assim, o problema do fim da
anlise, abordado em Anlise terminvel e interminvel (1937a/1996), aparece em Psicoterapia
da Histeria (1895/1996), menos como discusso terica e mais como condio do manejo. A
dimenso paradoxal da transferncia comea a se esboar: a garantia da presena, mas tambm
da ausncia do analista (Zygouris, 1999), do estabelecimento, mas tambm da dissipao da
transferncia o que torna o trabalho clnico possvel.
Mas como anunciamos anteriormente, h ainda, em Psicoterapia da histeria, outras duas
formas de obstculos ao tratamento que no so compreendidas em termos de resistncias de
transferncias. A primeira delas, Freud chama de queixas relacionadas desavena pessoal
entre mdico e paciente. Trata-se da crena de que a paciente foi negligenciada, muito pouco
20 Cf. 3.3.1 Formas clnicas da transferncia: entre necessidade e desejo.
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apreciada ou insultada e da reao a comentrios desfavorveis sobre o mdico ou sobre o
mtodo do tratamento. Lagache (1952/1990, p. 9) refere-se a essas queixas como reaes
persecutrias, quando o amor-prprio do paciente estaria posto em xeque. De fato, nossa
leitura retroativa permite apontar que esse campo de dificuldades clnicas pode remeter
problemtica do narcisismo (Freud, 1914/2010b) e a outros problemas clnicos a ele
relacionados. No entanto, a teoria psicanaltica aqui ainda est em estado nascente. Freud nota
manifestaes de excessiva desconfiana ou sensibilidade em suas pacientes histricas, ainda
que convivendo com momentos de confiana e cooperao. O psicanalista percebe como
obstculo as crticas hostis dirigidas ao analista e responde no sentido de restabelecer o clima
de cooperao mtua. Soluo bastante distinta do manejo das resistncias compreendidas
como transferncias, que entram em nexo associativo e permitem a circulao afetiva necessria
ao trabalho clnico.
O outro tipo de queixas tpicas apontadas por Freud estaria relacionado ao medo de se
acostumar demais com o mdico, tornar-se dependente. Freud no menciona as estratgias
utilizadas na superao dessas dificuldades, tampouco as relaciona resistncia de
transferncia.
Assim, embora destacadas como resistncias importantes ao trabalho clnico, no parece
haver necessidade clnica de mapear as crticas, acusaes e medos relatados pelo paciente do
ponto de vista de sua significao psquica. Talvez isso ocorra porque a matriz clnica da
histeria, primeira vista, no demanda articulaes sobre a questo da confiana/desconfiana,
dependncia/independncia, sendo o campo dos desejos e dos conflitos os predominantes no
vnculo mdico-paciente. Nos casos limites, como veremos, confiana e dependncia sero
elementos chave. Aqui, so as resistncias relativas transferncia o solo clnico a partir do
qual o conceito de transferncia ganhar seus contornos tericos, que pressupe a confiana e
possibilidade de influncia do mdico condio sine qua non para a soluo do problema.
(Freud, 1895/1996, p.280-281)
Mas Freud no encerra as consideraes no relato sobre os pacientes. Menciona tambm a
necessria confiana e investimento do clnico para que o trabalho possa acontecer: O trabalho
laborioso e exige muito tempo do mdico. Pressupe grande interesse pelos acontecimentos
psicolgicos, mas tambm um interesse pessoal pelos pacientes. (Freud, 1895/1996, pp. 280-
281).
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2.1.2 Transferncia e interpretao no Caso Dora
Fragmento da anlise de um caso de histeria (1905), texto paradigmtico para o estudo da
transferncia na histria da psicanlise, foi escrito com o intuito de demonstrar os processos
psquicos em jogo na histeria e a interpretao dos sonhos na anlise. Freud articula os
principais elementos de sua metapsicologia anlise dos sintomas histricos de Dora: o
inconsciente, desejos recalcados relativos ao dipo e sexualidade infantil. Nos trs primeiros
captulos, essencialmente tericos, Freud apresenta de maneira sistemtica e organizada a
interpretao de dois dos sonhos trazidos por Dora. Consideramos significativo que as
interpretaes dos sonhos sejam eleitas por Freud para abordar o caso, pois parece refletir o
modus operandi da