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Prefácio do Autor
Tudo que é escrito é história, ainda que não seja ficção, ou
possua bases factuais reconhecíveis. Sob o olhar literário,
a vida é representada sob o crivo das palavras, e estas não
são mais profundas do que uma ligeira impressão em uma
superfície, ela mesmo nada mais sendo além de base
anódina sobre a qual gravamos qualquer ponto de vista,
seja sobre fatos históricos seja sobre pessoas vivas ou
mortas.
Este livro tem bases factuais imprecisas; alguns
dos fatos narrados aconteceram; apesar disso, sob a mirada
exclusiva do autor, esses fatos ganharam valores e
consequências que são reconhecidos somente no regime
da ficção.
Muito do que se atesta é puramente ficcional;
coisas ditas e pensadas não foram objetivamente
transcritas, mas reprocessadas sob determinada visão,
exclusiva e particular.
Tudo que ganhou o corpo da página está aquém
dos fatos. Várias memórias foram descartadas; vários
personagens desaparecerem; sequer a cronologia está
perfeitamente correta.
Pode o autor dizer que a narrativa em questão é
uma colagem de caráter impressionista sobre disparos
neuronais que ganharam fraca nitidez fotográfica,
transfigurada em texto, sob andamento musical.
Não se trata de uma homenagem, nem mesmo de
um registro. É como está no título: uma sobrevida.
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OVERTURE: No fosso da orquestra, ou da história
O primeiro erro a apontar é o de fazer o próprio pai
protagonista de um romance. Homem que é homem, como
Kafka, não põe o pai, reconhecidamente, um passo à
frente. Oculta-o sob nomes ficcionais, usa suas
características, as piores, para por a zero toda a cultura
ocidental e suas obrigações existenciais sobre o pobre
indivíduo e narrador, o filho. Ou expõe como testamento
uma carta repleta de azedas lamúrias que passam a fazer
parte do repertório de todo filho que não é uma puta para
dizer que ele, o pai, é que era, senão filho de uma puta
porta-voz de outra, a puta da sociedade e seus valores que
condenam de antemão qualquer um à mediocridade, daí a
ligação entre o Pecado Original e o Juízo Final, isso para
quem crê que profundo é dar a seus textos e
entendimentos subliminares carradas de religião e avisos
do grande mal da desmazelada transcendência humana.
E nem começamos a falar da mãe. Pobre mãe,
posta como personagem secundário. A vingança do
escritor é a menos nobre que existe.
Damos de lambuja esse primeiro erro; os demais,
que apontem os leitores. Serão muitos, se não os leitores,
os erros.
Somos lineares; no fundo, todos contamos nossa
história do começo até o fim, e nossos fluxos de
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consciência, a misturar tudo, repõe a ordem quando lhes
interessa, o que se dá quase sempre, senão a conta do
analista não termina nunca, e há pelo menos essa linha a
seguir: minha primeira consulta foi, veremos, em 8 de
janeiro de 1999, e desde então foram 245 consultas, daí
que foram gastos... por mil caralhos, já passou há muito a
hora de encerrar essa conta, esse vínculo, e cuidar de seus
próprios dramas como qualquer um: ignorando-os ao
ponto de conseguir que, pertinho da morte, tudo mais
esteja apagado da consciência, menos eles...
E já que falamos em 8 de janeiro, foi precisamente
nesta data, no ano de 1933, que nasceu nosso protagonista,
o pai. Não o primitivo, o deus hebraico ou sua criatura
primordial, Adão, mas o meu pobre pai, em meio a outros
nascimentos, mortes, fatos históricos, contextos diversos.
Onde se insere esse pai? Qual sua importância? Ele, um
anônimo, um invisível, descartável, obsoleto, desprezado?
Entre pontas de icebergs, um fiapo, uma sombra, uma
existência sem glória.
Hoje temos essa coisa fantástica chamada Internet,
que nos disponibiliza uma infinidade de dados, imagens e
fulgurantes inutilidades. Foi só digitar uma data no Google
para colher links variados contendo informações sobre
efemérides, entre fatos históricos e pseudo ou sub ou ainda
celebridades relacionadas ao dia natalício do meu pai, não
do outro filho duma tal divindade (nomear pra quê?).
Temos assim Elvis Aaron Presley, que todos
conhecem: ele nasceu em 8 de janeiro de 1935, em
Tupelo, e morreu em 16 de agosto de 1977. Mas, para
alguns, Elvis não morreu, e teria nascido em 8 de janeiro
de 1933, de ascendência escocesa. Seu pai foi preso
quando ele ainda era criança, por roubo, e o que restou da
família, Elvis e sua mãe, foram despejados da residência.
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No mesmo dia e ano, ou dois anos depois, não importa:
Elvis em nada se pareceu com meu pai.
Como também Paulo Goulart, o ator, cujo nome
civil era Paulo Afonso Miessa. O Goulart veio de um tio
que, ao entrar na vida artística o escolheu como
sobrenome. Ele nasceu em Ribeirão Preto, estado de São
Paulo, em 8 de Janeiro de 1933, na Fazenda Santa Tereza.
“Tocaram sinos, quando eu nasci”, diz Paulo brincando.
Para ele e para meu pai também, deve ter sido porque, à
maneira dele, também foi um ator.
Outro artista nascido na mesma data foi Jean-Marie
Straub. Realizador, argumentista, produtor e ator nascido a
8 de janeiro de 1933, em Metz, França. Como diretor e
roteirista fez cerca de 20 filmes, mas nunca vi nenhum
deles.
Ao menos um escritor: Juan Faneca Roca
conhecido como Juan Marsé, também nascido em 8 de
Janeiro de 1933, em Barcelona, na Espanha. Foi filiado ao
Partido Comunista Espanhol. Ganhou o Prémio Biblioteca
Breve com o romance Últimas tardes com Teresa. Nunca
li nada dele!
É legal citar um morto na data: este é um tal de
Augusto Brandão, ou melhor, Augusto César Brandão,
que nasceu em 28 de outubro de 1863. Filho e neto de
militares, pobre infeliz, quis também seguir carreira nos
quartéis, mas abdicou, vejam só, por preferir as letras.
Escreveu para jornais e, além de jornalista, Brandão se
bandeou para a área do direito, embora não fosse
diplomado. Foi juiz distrital e promotor de justiça durante
muitos anos e militante do Partido Republicano, tendo
ocupado cadeira de conselheiro municipal de 1916 a 1920.
Brandão foi casado com a professora Cândida Fortes
Brandão e não teve filhos. Faleceu aos 70 anos, em 8 de
janeiro de 1933.
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Em Santos, A 8 de janeiro de 1933 fundava-se O
Estudante, órgão da classe, bem orientado e dirigido por
alguns estudantes de escolas superiores.
O monumento da Guerra Peninsular de Lisboa foi
erigido como evocação do centenário da vitória das tropas
de Portugal sobre as tropas francesas de Napoleão
Bonaparte. O objetivo foi o de “homenagear o papel
preponderante e a heroicidade do povo português na
guerra peninsular, principalmente por parte daqueles que
morreram durante o curso das Invasões Francesas,
ocorridas entre o ano de 1807 e o ano de 1814”, conforme
uma enciclopédia. Foi inaugurado em 8 de janeiro de
1933.
"O Teatro Dom Pedro foi inaugurado no dia 2 de
janeiro de 1933. Compareceu o Dr. Yeddo Fiúza, Prefeito
Municipal, presenças gradas, o Sr. Roldão Barbosa,
empresário dos Theatros Petrópolis e Capitólio e do
Cinema Glória, que enviou cesta de rosas à nova
empresa". Conforme registro da revista Pequena
Ilustração, nº. 71, ano II, Petrópolis, de 8 de janeiro de
1933.
Pateta! O bom e velho (e pateta) amigo do Mickey
nunca foi muito, digamos, "esperto", mas ele é de suma
importância no mundo dos quadrinhos (cuja importância é
bem residual em um universo de demasiadas
importâncias). Surgiu para o mundo mundo nas primeiras
tiras Disney dos jornais americanos do ano de 1933, mais
precisamente no dia 8 de janeiro.
O Brasil Esporte Clube, de Blumenau, decidiu,
contra o Figueirense, no estádio Adolfo Konder, o título
do campeonato catarinense de 1933, obviamente no dia 8
de janeiro de 1933. Conta-se uma excelente atuação do
Brasil empate de 1 a 1 no tempo normal. Na prorrogação,
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o jogador Mário fez o gol que deu o título aos
blumenauenses.
Já pelo Campeonato Paulista do Interior
APEA/1932, primeira fase, segundo turno, 5ª Região da
Liga Rio-Clarense, houve, em 8 de janeiro de 1933, a
sensacional partida Lemense e Comercial de Araras; o
último venceu por dois a um. Acho que esse jogo tem
mais em comum conosco (eu e meu pai) do que todos os
fatos anteriores, pela conexão que tínhamos com um clube
local, cuja equipe futebolística viveu lá seus melhores
dias, e hoje soçobrou aos abusos de sucessivos dirigentes
ladrões. Nossa medida é pequena, nosso ocaso é flagrante,
seu processo é lento e já levou um de nós, faltando mais
alguns, eu inclusive, que já passei de meio século de vida
e tenho a declarar somente umas poucas e porcas linhas
gravadas em um livro de areia.
Não há ser humano que não busque algum tipo de
protagonismo; pode ser alguém que toque umas poucas
(mas importantes) notas, que impressionem uma audiência
desde o fosso da orquestra. Uma marca própria ante a
angústia da degradação física, do apagamento das
memórias, do fim de uma história humana, quer dizer,
essas ilusões todas essenciais à superação de uma
condição trágica essencial que não gostamos de olhar de
frente.
Quis então escrever essa ficção sobre uma história
pouco conhecida, vivida por um protagonista real de fatos
que não gerou, que mais o carregaram como coadjuvante
de um mundo no qual se agarrou como alguém que
despenca de uma construção e tenta se agarrar às nuvens
para interromper uma queda inevitável. Uma ficção que
espelha uma vida que, de variadas maneiras, se conecta
com a minha e dela se distancia como aquele que, por
acasos e indeterminismos históricos, teve um papel que
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desempenhou com certa leniência: o de pai, a merecer essa
tosca e torta reverência. Com o perdão da rima.
I - Allegro
1ª parte: Presto
Ahnrram. Sobre o que penso é muito fácil falar, ou pelo
menos é muito fácil pensar: em boceta, coxas, pernas,
cinturas, barrigas, umbigos, costelas, seios, ombros,
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braços, mãos, pescoços, rostos, cabelos, bundas, cus, tudo
o mais numa palavra só, mulheres, e sobra pouco para
qualquer outra coisa, muito menos para mulher, filhos,
casa, trabalho, saúde, um pouco mais para dinheiro, mas
nem tanto, quanto mais acesso tiver a dinheiro mais tenho
a mulheres, quanto mais trabalho mais dinheiro, ahnrram,
nem sempre, aliás, quanto mais trabalhador vejo um
sujeito menos dinheiro ele tem, então o que tenho a fazer,
o que tive a fazer, foi o que? o que? tentar ganhar o
máximo de dinheiro com o mínimo de esforço, o que é um
problema porque quase não há quem pense diferente disso,
mas há muitas subdivisões e eu estou naquela de um grupo
que quer isso mas não se dedica a aprender demais, pois
aprender dá trabalho, há sempre maneiras de ganhar
dinheiro, ahnrram, sem ter que batalhar para aprender
muito, você está me entendendo? é isso aí, garotinho, é
isso aí.
A gente aprende desde cedo e não é preciso correr
tanto atrás assim, porque o mundo e as coisas se colocam
na sua frente o tempo todo, ahnrram, é um incômodo
danado, você está na sua, olhando as mulheres que passam
mas o que acontece é que tudo nelas dizem coisas a
respeito de onde você está, como está, até onde pode ir, se
pode ou se até não pode. Mas isso, ahnrram, aprendi muito
tempo depois, sem manejar muito a coisa, você está me
entendendo? isso de classe, poder, todos esses códigos
sociais que nós temos que aprender a lidar e vem com o
pacote completo, palavras tais como classe, poder e
códigos sociais.
A cabeça é veloz mas o que eu quero e preciso
pode ser conseguido mais devagar, e depois o ritmo é esse,
devagar, depois mais rápido, depois mais lento, por fim
um estouro, pode ser em cinco minutos ou em mais, não
muito mais, ahnrram, você entende? eu mesmo mal
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entendo e das coisas que me lembro só restam algumas
imagens que explodem em contínuo, sem qualquer
precisão, a luz do mundo como a vi pela primeira vez,
como um bicho inconsciente, maleável, adaptável aos
outros e às suas, deles, circunstâncias, ahnrram, um lugar
que aprendi a ver como meu lugar sendo, desde sempre,
lugar de outros, de ninguém, de alguém que no momento
diz esse lugar é meu, então eu bem poderia dizer, meu
lugar, minha terra, meu torrão natal, Bahia, Ilhéus,
fazenda, pai, mãe, irmãos, todos meus, menos aqueles
outros, trabalhadores, de outras pessoas, gente escura,
menos escura, quase escura, mais clara, por fim claros,
quanto mais claros mais sérios, as vozes mais altas, são as
ordens, eles dizem, são as ordens, então, sabe como é,
ahnrram, os mais escuros obedecem, olham para o chão,
depois de soslaio, depois com risinhos de escárnio, muito
tempo depois aprendi o que é o escárnio e sua expressão
na forma de um riso que demole qualquer crença, daquele
que manda e daquele que obedece, embora, ahnrram,
dessa demolição na sobre nada, quer dizer, tudo que estava
de um jeito ficou do mesmo jeito, é tudo igual, uns
mandando outros obedecendo, aí aprendi também com
meu pai, minha mãe e irmãos mais velhos, manda quem
pode obedece quem tem juízo, eu sem juízo aprendendo a
tê-lo, ahnrram, levando palmadas, depois surras, por fim
quase espancamentos, eu chorava chorava e chorava até
que aprendi e chorar menos para apanhar um pouco
menos, me distraindo olhando as plantas, cinzas no chão,
sujeira no canto do quarto, urina por cima da cama, a mãe
a gritar para mim me chamando de moleque sem
educação, imprestável, que não aprende nunca, toma pau,
seu menino, toma pau, e meu pai só de olho, pronto para,
ahnrram, intervir quando julgasse que assim não dá, assim
você mata esse menino.
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Mais tarde meus filhos me perguntavam, e sua vida
na Bahia como foi, e eu dizia coisas inventadas, porque
pouco me lembro da Bahia, que se dane a Bahia, lá ficou
uma fazenda de cacau, os bichos, as cobras e tatus, os
mosquitos e as febres, a malária e a diarreia, as poucas
roupas nós trouxemos, enquanto lá andava descalço pelas
plantações, roendo pedaço de pau, comendo folha,
vomitando de enjoo, ahnrram, era uma vida dura, quem
viveu uma vida tão dura dá ao trabalho o valor que ele
tem, nenhum, porque tanto meu pai trabalhava menos meu
pai tinha, pelo menos eu não via nada do que ele ganhava,
e minha mãe sempre reclamando da vida dura, da falta de
diversões e roupas, ahnrram, eu contava para meus filhos
de um lugar bonito, de uma fazenda grande e produtiva,
meu pai patrão português rústico, duro mais justo, a exigir
produtividade, sempre mais, para a negrada indolente, as
negras indolentes, tão belamente indolentes que eu ficava
nos colos delas, agarrados às pernas delas, fascinado pelos
sorrisos delas, a sentir os cheiros das coisas delas, nada
disso contei para os meus filhos, ahnrram, das melhores
lembranças da Bahia, as mães de leite com seus peitos
enormes e leito abundante, as negrinhas com suas
bocetinhas em flor, cheirosas, recendendo a urina e capim,
a flor e maracujá, a terra e a fruto novo, semente de cacau,
leite de boceta, ahnrram.
Se tinha seis anos quando vim da Bahia? Não,
sinhá, mais, tinha sete, tinha oito, tinha nove, vai ver tinha
dez anos, era um menino com jeito de recém-nascido, mal
parido por mãe severa, mandona, capaz de tudo minha
mãe, ahnrram, é claro que sempre tive adoração por ela,
ninguém jamais chegou perto do que ela foi para mim,
minha mãe, mais forte ainda que meu pai, mais perto de
mim que meus irmãos, muitos irmãos, para lá de dezena
de irmãos, todos arranhando a pele um dos outros,
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arrastando a cara do outro pelo chão, arrancando os
cabelos, jogando bosta na cara, forçando a engolir bichos
da terra, caramujos, gongolos, baratas, correndo atrás de
ratos e os ratos correndo atrás de nós, cada um tal que
parecia mais um tatu, ahnrram, bichos nojentos, eu
mirando de soslaio, adorava a olhar de soslaio como os
negros faziam, e eu olhava de soslaio para as negrinhas,
que bem se apercebiam e riam de mim mas eu pensava,
riem para mim, gostam de mim, um filhote mirrado de
patrãozinho, uma coisa miúda e sem jeito, uma miséria
que não é a nossa, não é da gente, não deixa de ser bom
consolo, a desgraça atinge também o mais rico, embora eu
não tenha certeza disso quanto a nós, se éramos de fato
mais ricos que os outros, ahnrram, ou se eles é que eram
mais pobres e nós só menos pobres, para tudo tem
remédio, dizia minha mãe, ou não dizia, não sei se dizia
ou se inventei que ela dizia só para dizer para meus filhos,
para remediado tem remédio, mas para pobre, nunca, e me
lembro bem que ela dizia, isso com certeza, ahnrram, não
tem rico feio, não tem pobre bonito.
Já me perguntaram tantas vezes, e aí, como foi vir
para o Rio de Janeiro, vieram como, em lombo de burro,
em pau-de-arara? Quase sem acreditar, eu sem sotaque
nenhum de baiano, graças a deus não ficou sotaque
nenhum, só a pretensão de ser baiano como Rui Barbosa, a
Águia de Haia, um orgulho mesmo que não soubesse
porque ele era a tal águia e onde mesmo ficava Haia,
ahnrram, a gente aprende muito cedo que para se ter
orgulho não se precisa ter verdade, é até o contrário,
quanto menos verdade mais cabe sustentar o orgulho, e se
te perguntam algo mais, ahnrram, basta não dizer, basta
falar, você não está me entendendo?, é claro que não, logo
se vê que você não veio da Bahia.
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Com tão pouco que ficou da memória de tantos
anos, ou tão poucos anos mas enfim anos, a infância
inteira, ou a maior parte da infância, deve ter sido, que
nada custa preencher lacunas com algumas invenções
inocentes, nada custa esconder as coisas nada inocentes
sob outras aparentemente inocentes, nada custa idealizar o
passado como o tempo fascinante que nunca mais
esqueceremos, principalmente depois do alívio de tê-lo
esquecido em boa parte, ou as partes boas, ficando tanto as
lembranças das ruins, da quase morte muitas vezes pelas
doenças do mato, pelas febres e pelos vermes, e a correria
dos bichos grandes, cavalos, bois, onças até, e a pior
espécie que é a humana, muito mais perigosa com seus
facões e revólveres ou bastando a força de seus braços
para te forçar, de bater, te mandar fazer coisas que você
não pode fazer, teme fazer, ahnrram, tudo que nos
horroriza mas também encanta, seja no campo ou na
cidade, no centro ou no subúrbio, com ou sem dinheiro,
vindo de homem ou mulher, tem coisas, ahnrram, que o
garotinho deve saber, mas a maior parte delas não
contamos para ninguém, você está me entendendo, tem
coisas que aprendemos à distância da família, nos grandes
terrenos do mundo, longe das pequenas reentrâncias da
própria casa, onde nós escondemos a vergonha debaixo de
cobertas, debaixo da cama, trancados no banheiro.
Vocês querem saber da Bahia, da infância do pai
da terra sagrada da Bahia? Aquilo era uma maravilha,
coisa que não dá nem para contar, essa é toda a verdade,
contar o que?, se pouco me lembro, e toda maravilha do
mundo que conheço está numa racha estreita, isso não falo
então digo coisas do cacau, daquele fruto duro de que
nunca gostei, e todos os anos que passei no Rio de Janeiro
os passei sem chocolate, nunca gostei de chocolate, isso
até porque na fazenda a gente não via chocolate nenhum, o