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CEDIS Working Papers | Direito, Segurança e Democracia | ISSN 2184-0776 | Nº 2 | julho de 2015 1 DIREITO, SEGURANÇA E DEMOCRACIA JULHO 2015 2 PORTUGAL NO ATLÂNTICO: A ROTA MARÍTIMA DA COCAÍNA PARA A EUROPA Portugal in the Atlantic: The Maritime Route of Cocaine to Europe PEDRO NUNES Mestrando em Direito e Segurança RESUMO Portugal tem uma posição geoestratégica nas rotas marítimas da cocaína da América do Sul para a Europa, constituindo um dos principais pontos de entrada. É abordado o estado da produção de cocaína, no contexto em que a Europa é o segundo maior mercado mundial em termos de consumo. São analisadas as rotas marítimas da cocaína para a Europa, focando-se a rota da África Ocidental e dentro desta o caso particular da Guiné-Bissau. Portugal tem um conjunto de entidades que constituem um sistema de repressão ao tráfico de estupefacientes, que atuam no âmbito dum enquadramento legal específico. PALAVRAS-CHAVE Droga, Cocaína, Estupefacientes, Atlântico

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DEMOCRACIA

JULHO

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PORTUGAL NO ATLÂNTICO: A ROTA MARÍTIMA DA COCAÍNA PARA A EUROPA Portugal in the Atlantic: The Maritime Route of Cocaine to Europe PEDRO NUNES Mestrando em Direito e Segurança RESUMO

Portugal tem uma posição geoestratégica nas rotas marítimas da cocaína da

América do Sul para a Europa, constituindo um dos principais pontos de entrada.

É abordado o estado da produção de cocaína, no contexto em que a Europa é o

segundo maior mercado mundial em termos de consumo.

São analisadas as rotas marítimas da cocaína para a Europa, focando-se a rota da

África Ocidental e dentro desta o caso particular da Guiné-Bissau.

Portugal tem um conjunto de entidades que constituem um sistema de repressão ao

tráfico de estupefacientes, que atuam no âmbito dum enquadramento legal específico.

PALAVRAS-CHAVE

Droga, Cocaína, Estupefacientes, Atlântico

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ABSTRACT Portugal has a geostrategic position on the maritime routes of cocaine from South

America to Europe, constituting a major entry point.

It is addressed the state of cocaine production in the context in which Europe is the

second largest market in terms of consumption.

The maritime routes of cocaine to Europe are analyzed, focusing on the route from

West Africa, and within this the particular case of Guinea-Bissau.

Portugal has a set of entities that constitute a system of repression against drug

trafficking, operating in the framework of a specific legal system.

KEYWORDS

Drugs, Cocaine, Drugs, Atlantic.

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1 – Introdução

A maior percentagem de lucro da atividade do crime organizado transnacional vem

do tráfico de estupefacientes, com cerca de 20% 1 . A cocaína constitui uma das

substâncias mais relevantes neste tipo de atividade.

Nas últimas décadas, o mercado criminal desta substância, originária da região do

Andes, ligou os dois lados do oceano atlântico, sendo a Europa o segundo maior

consumidor mundial de cocaína logo a seguir ao mercado norte-americano, que lidera o

consumo desta substância.

Portugal assume-se como a principal fronteira externa da União Europeia com o

Atlântico, veículo imprescindível ao transporte da Cocaína para o velho continente. De

resto Portugal constitui igualmente ponto estratégico idêntico no que concerne ao

transporte de haxixe de Marrocos para a Europa.

Ambos os movimentos, o de cocaína e o de haxixe, num abastecimento à escala

europeia, são essencialmente efetuados por via marítima.

O combate ao tráfico por via marítima é um desafio mundial, pois apesar de

representar apenas onze por cento das apreensões, cada apreensão por esta via é em

média trinta vezes superior a uma apreensão pela via aérea2.

Assim, optou-se no presente trabalho excluir a via aérea, a qual no caso da cocaína

tem uma relevância significativa em termos de número de transportes por correios3 em

voos regulares da aviação comercial.

Optou-se ainda por restringir o trabalho ao tráfico da cocaína, pela sua importância a

nível mundial.

1 UNODC, Estimating illicit flows resulting from drug trafficking and other organized crimes, 2011, p.7. 2 UNODC, World Drug Report 2013, United Nations publication, 2013, p. IX executive summary. 3 Designação que é dada aos indivíduos encarregues apenas do respetivo transporte.

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A importante temática dos percursores utilizados no processo que culmina com a

obtenção do produto final cocaína e do seu controlo ficou igualmente excluída, por razões

de dimensão do trabalho.

O espaço em que decorre o tráfico marítimo de cocaína para a Europa, o Atlântico,

foi, é e deverá continuar a ser no futuro, um espaço importante para Portugal. Foi desse

oceano que partimos para os descobrimentos, levando a língua portuguesa a Angola,

Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, também banhados pelo mesmo

oceano, que com Portugal, constituem a maior parte do países da CPLP, fazendo da

língua portuguesa uma das mais faladas no mundo.

Por outro lado, a importância geoestratégica do Atlântico, ultrapassa o universo

português, sendo hoje palco de importantes movimentações internacionais.

As apreensões de cocaína na Colômbia, podem indicar que a rota atlântica está a

ganhar terreno face à rota do pacífico a nível mundial.

O presente trabalho começará em primeiro lugar por situar o contexto da produção

da cocaína, explicando em que ponto se encontra no atual momento o respetivo mercado

mundial, fazendo também breves referências às apreensões a nível mundial, bem como a

indicadores sobre o consumo da substância.

De seguida e no contexto de que o mercado Europeu é o segundo maior mercado

mundial em termos do consumo de cocaína, será contextualizada a importância da

posição geoestratégica de Portugal nesse tráfico.

De facto, após concretizarmos as rotas marítimas da cocaína para a Europa,

constatar-se-á que Portugal, seja na sua vertente continental, seja na sua vertente insular,

está relacionado com todas essas rotas. Será dada especial atenção à rota da África

Ocidental e dentro desta ao particular da Guiné-Bissau, face à sua problemática e

especificidades.

Demonstradas as rotas, será feito um breve levantamento do tipo de embarcações

que fazem o transporte marítimo da cocaína, bem como formas como esse transporte é

efetuado.

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O enquadramento legal da repressão ao tráfico marítimo de estupefacientes, bem

como descrição do respetivo sistema nacional de combate e repressão, com as suas

várias valências, serão alvo de capítulos autónomos.

De facto, as ligações em torno da língua portuguesa entre Portugal, Brasil e os

países lusófonos em África, parecem desempenhar um papel no tráfico de cocaína da

América do Sul para a Europa, via esses países4.

Esta ideia espelha bem a importância de Portugal e da sua língua no tráfico marítimo

de Cocaína através do Atlântico para a Europa.

2 – A produção de cocaína e o mercado mundial

A cocaína é um produto natural obtido a partir da planta da coca. A quase totalidade

da sua produção vem da região dos Andes, no território da Colômbia, Peru e Bolívia.

É possível fazer cocaína sintética, mas os custos seriam bastante superiores aos do

processo de extração do produto natural.

A transformação da planta da coca em cocaína é um processo químico que envolve

três fases. Na primeira fase as folhas são transformadas em pasta de coca, trata-se de

um processo simples, que muitas vezes são os próprios cultivadores a levar a cabo. A

segunda fase consiste em transformar a pasta de coca em cocaína base, apesar de ser

uma tarefa um pouco mais complexa ainda é possível ser efetuada pelos cultivadores. Na

última e terceira fase refina-se a cocaína base em cloridrato de cocaína, o que representa

um investimento mais substancial e maior complexidade, sendo por isso efetuada em

laboratórios na selva dirigidos pelos grupos organizados.

4 UNODC, World Drug Report 2013..., pp. IX, X executive summary.

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As folhas de coca são sagradas para algumas populações dos Andes e bacia do

Amazonas, sendo utilizadas por esses povos há milhares de anos, para uma variedade

de propósitos.

Mais tarde no século XIX e início do século XX, a cocaína foi produzida legalmente e

de forma industrial por empresas farmacêuticas holandesas, alemãs e japonesas. Ainda

no início do século XX, havia mais plantações de coca na Ásia do que na América do Sul.

Desde o final da segunda guerra mundial até ao fim dos anos noventa, as

plantações de planta da coca estavam situadas no Peru e na Bolívia. A transformação

para cocaína era feita em laboratórios clandestinos na Colômbia que começaram a

aparecer na década de setenta.

O sucesso do combate aos cartéis colombianos nos anos noventa teve dois

efeitos: por um lado a diminuição das plantações no Peru, mas por outro, o aumento do

cultivo na Colômbia. Assim por volta de 2000, três quartos da plantação mundial estavam

situados na Colômbia.

Uma nova ofensiva no combate, permitiu atacar o problema, diminuindo o cultivo da

planta da coca na Colômbia em 58% entre 2000 e 2009. Na sequência destes

acontecimentos, as plantações voltaram a aumentar no Peru e na Bolívia, mas o mais

relevante é que estes países passaram a conseguir transformar as plantações de planta

da coca no produto final cocaína.

O balanço destas variações na produção mundial foi uma redução de 28% entre

2000 e 2009, tendo contribuído para este saldo o forte decréscimo na Colômbia.

Atualmente o Peru é o maior produtor mundial, pois embora a sua produção esteja

também a diminuir, a diminuição na Colômbia tem sido bem mais significativa5.

A diminuição da produção parece não ter sido acompanhada por uma redução no

consumo mundial, essencialmente porque a quantidade de cocaína consumida na Europa

duplicou na última década.

5 The Economist, n.º 8855/2013/28 de Setembro a 4 Outubro, p. 8.

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No entanto, o mercado mundial da cocaína que valia cerca de 165 biliões de dólares

em 1995, em 2009 desceu para 85 biliões de dólares6.

No mesmo ano, o mercado norte-americano representava 47% do mercado mundial

da cocaína, enquanto que o da Europa ocidental e central, representavam 39%. Apesar

disto o mercado norte-americano tem vindo a encolher nas duas últimas décadas.

A cocaína produzida na Colômbia é sobretudo destinada aos mercados externos, e

a oriunda do Peru e Bolívia acaba por ser mais utilizada no continente sul-americano.

Apesar disto a cocaína produzida no Peru tem cada vez mais importância no mercado

europeu, sendo que os grupos organizados que controlam o negócio são ainda

principalmente colombianos.

A importância que se verifica nos E.U.A. dos cartéis mexicanos, não tem paralelo na

Europa.

Assim, a área global de cultivo da planta da coca era em 2011, cerca de 155,600

hectares, menos 14% desde 2007 e menos 30% desde 2000 7 , apresentando uma

produção estimada entre 776 a 1051 toneladas em 2011.

Aparentemente as organizações criminosas Colombianas dominam o tráfico de

cocaína para a Europa, estando os mercados nacionais controlados por traficantes de

outras nacionalidades.

Na Colômbia o tráfico de cocaína teve um grande impacto no financiamento de

grupos armados ilegais, nomeadamente nas Forças Armadas Revolucionárias da

Colômbia (FARC). Este facto fez com que este grupo tivesse capacidades armadas

significativas, nomeadamente nos anos noventa.

No Peru, a relação entre grupos armados e tráfico de droga sempre foi menor,

sobretudo devido ao facto do Peru ser mais uma fonte de matéria-prima do que uma base

para grupos criminais. Esta situação está a mudar com o aumento de produção neste

país.

6 UNODC, The Transatlantic Cocaine Market, 2011, p. 13. 7 Cfr UNODC, World Drug Report 2013...,p. X executive summary.

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O Peru sofreu bastante com grupos armados nas décadas de oitenta e noventa,

morrendo um número significativo de pessoas, que se estima em 70000. Estes grupos

viriam a ser desmantelados no fim dos anos noventa, mas o Sendero Luminoso, de

inspiração maoista, cresceu recentemente em áreas de produção da cocaína. Já na

Bolívia, o problema com grupos armados é bem menos significativo.

2.1 - Apreensões de cocaína à escala global

As maiores apreensões de cocaína continuam a ser reportadas na Colômbia, com

200 toneladas e nos E.U.A., com 94 toneladas, verificando-se todavia uma aumento

significativo do tráfico e do consumo na Ásia8.

As apreensões na Europa aumentaram entre 1998 e 2006, ano em que atingiram o

pico de 121 toneladas, a partir daí diminuíram até chegarem a 53 toneladas em 2009.

Com o consumo estabilizado na Europa e as apreensões a aumentar significativamente

na América do Sul, a verdade é que o preço na Europa não aumentou, o que leva a supor

que os traficantes estejam a ter algum sucesso na introdução de droga na Europa9.

Na última década, cerca de 60% da cocaína foi apreendia no mar ou em portos. A

Venezuela é o principal país de origem dos transportes marítimos diretos para o

continente europeu, sendo a cocaína originária principalmente da Colômbia.

A Espanha aparece como principal ponto de entrada no continente Europeu,

representado pelas apreensões das respetivas autoridades. Entre 1998 e 2008, 45% da

Cocaína apreendida na Europa foi intercetada em Espanha, dois terços foram em águas

internacionais e 11% em contentores.

8 Cfr. UNODC, World Drug Report 2013..., p. X executive summary. 9 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 12.

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As apreensões em Portugal refletem a tendência espanhola, com aumento entre

1998 e 2006, de 0,6 para 34,5 toneladas e a diminuição para 2.7 toneladas em 200910.

Esta variação acompanha a utilização da África Ocidental como zona de trânsito,

nomeadamente no que concerne aos países lusófonos Cabo-Verde e Guiné-Bissau.

A verdade é que Portugal que estava no segundo lugar das apreensões em 2006,

passou a ocupar o sétimo em 2009.

No que concerne às apreensões em outros países chave na Europa, existem

dados com especial relevância. Assim 21% da cocaína que entrou na França em 2009 foi

via península ibérica11. O tráfico de cocaína para o maior mercado europeu, o Reino

Unido, é também dominado por remessas a partir da península ibérica.

A percentagem de Cocaína apreendida na Europa ocidental e central no mar e

portos marítimos foi de 59%. Acima desta percentagem surgem a Grécia (83%), Bélgica

(80%), Espanha (77%), Portugal (75%) e Irlanda (70%) 12.

2.2 – O consumo da cocaína

O principal mercado em termos de consumo mundial é o mercado norte-americano,

surgindo a Europa como segundo mercado à escala global. Grande parte do consumo na

Europa, dois terços, diz respeito ao Reino Unido, Espanha e Itália13, se juntarmos a

Alemanha e a França temos 80% do consumo na Europa.

Na Europa Central e Ocidental o consumo da cocaína anda à volta de 1,2% da

população adulta, enquanto que em Portugal, o valor é de 0,6%14.

10 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 18. 11 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 22. 12 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 25. 13 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 10. 14 UNODC, World Drug Report 2011, United Nations publication, 2011, p. 215.

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Os dados recentes das Nações Unidas 15 indicam que o consumo parece ter

estabilizado na Europa e diminuído na América do Norte.

Existem indicadores que a percentagem de pureza da cocaína tem vindo a diminuir

em alguns mercados chave na Europa, como é o caso do Reino Unido.

Verifica-se que o consumo a nível mundial está estabilizado, existindo uma ligeira

variação ascendente que é resultante apenas do aumento da população mundial.

O uso de cocaína na Europa está menos associado à violência que nos Estados

Unidos da América. Uma razão que poderá explicar esta realidade é o facto da cocaína

em pó ser mais utilizada na Europa, sendo o crack16 mais utilizado no mercado norte-

americano. O crack estará mais ligado ao crime violento.

Parece existir uma ligação entre o consumo de cocaína e os crimes contra o

património nos países europeus. Em relação aos países produtores e de trânsito, as

organizações criminosas que neles operam, geram grandes níveis de violência.

3 – A importância geoestratégica de Portugal no tráfico de

cocaína no Atlântico

A localização de Portugal no continente Europeu, com a sua vasta fronteira marítima

para o Atlântico e com a entrada do mediterrâneo a sul, constituiu um elemento definidor

da nossa história e da nossa vocação marítima.

Esta localização, como ponto mais ocidental da Europa, tem hoje impacto em termos

da geoestratégia do Atlântico e deveria ser aproveitada como orientação estratégica para

15 Cfr. UNODC, World Drug Report 2013..., p. 37. 16 Cocaína solidificada em cristais.

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o nosso país. No conceito estratégico de defesa nacional de 2013 vem expressa a

importância estratégica do Atlântico17.

No entanto, tal posicionamento faz igualmente de Portugal, ponto de entrada na

Europa, quer de cocaína da América do Sul, quer de haxixe de Marrocos.

Não nos podemos esquecer dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Em relação

ao Açores, constituem um ponto central no Atlântico e local de escala em deslocações da

América do Sul. A Madeira devido à sua proximidade com a costa ocidental africana, tem

importância em deslocações vindas desse continente, embora esse papel acabe por

caber com mais relevância às ilhas canárias.

A Costa Atlântica Portuguesa apresenta características propícias ao desembarque

de produto estupefaciente, nomeadamente devido ao seu relevo, com inúmeras praias.

Por outro lado, a vastidão dessa costa e os recursos limitados, tornam difícil a vigilância

pelas autoridades competentes.

A importância da entrada quer da cocaína, quer do haxixe em Portugal para o

mercado europeu, resulta em grande medida do facto que após feita a entrada em

território nacional destas drogas, existindo livre circulação de pessoas e mercadorias na

Europa, é extremamente fácil o transporte para qualquer parte do continente europeu.

O crescente movimento nos portos comerciais portugueses, grande parte do mesmo

em contentores apresenta a oportunidade perfeita para as organizações criminosas

aproveitarem esses negócios legítimos e esconderem produto estupefaciente a

transportar. Quando essa mercadoria vem de países extracomunitários o risco aumenta,

sobretudo se forem situados na América do Sul. Não podemos excluir no entanto outros

países, situados em várias zonas do planeta, devido à constante mutação de rotas para

fugir às clássicas avaliações de risco efetuadas pelas autoridades aduaneiras.

17 O Conceito estratégico de defesa nacional, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, estabelece o Atlântico como um contexto específico de segurança regional, referindo que o território nacional se situa num triângulo estratégico, composto pela parte continental e pelos arquipélagos dos Açores e Madeira. O Conceito relembra ainda que a maioria dos países de língua portuguesa está concentrada no Atlântico.

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O setor das pescas em Portugal, em crise desde longa data e fortemente

desadequado, constitui uma importante fragilidade face à possibilidade de recrutamento

de embarcações e respetivos pescadores para operações ilícitas de transporte de droga.

Portugal possui ao longo da sua costa um conjunto significativo de portos, os quais

poderão ser utilizados para operações ilícitas de tráfico de estupefacientes, cuja

localização surge na figura que se segue18.

Figura 1. Principais Portos Portugueses no Continente.

Para além destes portos no continente, não podemos esquecer os existentes nos

arquipélagos dos Açores e da Madeira.

18 Fonte: Wikipedia 2014.

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Mas a importância de Portugal no Atlântico, passa também pela Lusofonia, cinco dos

oito países que falam português: Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé

estão ali localizados19. Pelo menos três deles: Brasil, Cabo Verde e Guiné Bissau são

estratégicos em termos do atual tráfico de cocaína.

Neste sentido a CPLP deverá ser um espaço importante também na definição de

formas de cooperação nesta área.

Com uma eventual extensão da plataforma continental portuguesa, a influência de

Portugal no Atlântico sairia por certo reforçada.

4 – Rotas marítimas da cocaína para a Europa

As alterações mundiais ao nível da procura da cocaína, constituem o elemento

definidor das alterações e evoluções ao nível das rotas do tráfico da substância.

Um dado é certo, atualmente existem transportes massivos a atravessar o Atlântico

por mar e por ar. É estimado que cerca de 220 toneladas de cocaína saíram dos Andes

para a Europa ocidental e central em 2009, quantidade que representa 26% da

exportação mundial de cocaína20.

A figura que se segue, evidencia os principais fluxos globais da cocaína21.

19 Para mais desenvolvimento: MARQUES GUEDES, Armando, “Da desregulação ao recentramento no Atlântico Sul e a construção da ‘lusofonia’”, Janus.net, vol. 3 no.1: pp. 1-36, Universidade Autónoma de Lisboa, 2012. 20 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 16. 21 Fonte: UNODC, World Drug Report 2010, United Nations publication, 2010.

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Figura 2. Principais fluxos globais da cocaína, 2008.

Segundo o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction e a Europol 22

existem três rotas principais da cocaína para a Europa:

- A rota do Norte, desde as Caraíbas, via Açores para Portugal e Espanha;

- A rota Central, desde a América do Sul, via Cabo Verde ou Madeira e as Ilhas

Canárias para a Europa; e

- A rota Africana, desde a América do Sul para a África Ocidental e daí para

Espanha e Portugal.

22 EMCDDA-Europol, Cocaine: A European Union perspective in the global context, EMCDDA-Europol joint publications n.º 2, Publications Office of the European Union, 2010, p. 20.

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De acordo com esta classificação, quer Portugal continental, quer os Açores e a

Madeira, constituem pontos centrais nas rotas, salientando-se também países lusófonos

como Cabo Verde e a Guiné-Bissau na África Ocidental. Um dado é certo, qualquer uma

das rotas mencionadas, tem relação com Portugal.

A rota do Norte, que tem como zona chave as Caraíbas, representa cerca de 40%

do transporte para a Europa. Nesta rota tem especial relevo as embarcações de recreio,

os navios de carga e de contentores e a sua importância resulta não só da posição

geográfica estratégica, mas também das ligações históricas à Europa.

As Antilhas Holandesas apresentam uma ligação natural à Holanda. A Jamaica ao

Reino Unido e a Martinica e Guadalupe a França. Por outro lado os Açores são utilizados

como ponto de transbordo para a Península Ibérica.

As Caraíbas constituíram sempre uma rota de eleição das redes colombianas no

tráfico para os E.U.A, mas o forte combate contra o tráfico na Colômbia veio a ter várias

consequências. Por um lado no transporte para os E.U.A., a rota do Pacífico via México

ganhou preponderância, bem como os respetivos grupos organizados mexicanos. Por

outro lado, países vizinhos da Colômbia ganharam importância no tráfico de cocaína. A

terceira consequência, foi os traficantes colombianos focarem o seu interesse no mercado

europeu.

A rota Central opera a partir da América do Sul essencialmente para a península

ibérica, com eventual trânsito em Cabo Verde, Açores, Madeira e ilhas Canárias. São

utilizados navios de carga de grandes dimensões, que nos referidos locais de trânsito,

efetuam o transbordo para navios mais pequenos, muitas vezes de pesca ou até

pequenas embarcações de alta velocidade.

Por fim, surge a rota da África Ocidental, nomeadamente pela zona do golfo da

Guiné e costa de Cabo Verde.

Refira-se que em todas as rotas mencionadas, assume especial importância, o

tráfico por via área, através de “correios” em voos comerciais. Embora transportem

quantidades pequenas em comparação com o tráfico por via marítima, representam uma

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importante fonte de fornecimento devido ao número extremamente elevado de situações

que ocorrem.

Uma análise das apreensões na Europa aponta para que sensivelmente 87% da

cocaína é traficada diretamente da América do Sul/Caraíbas, enquanto 13% é

transportada via África Ocidental.

A evolução do mercado mundial da cocaína de 1998 para 2008, conforme

apresentada na figura seguinte23, resulta de vários aspetos. O aumento do consumo na

Europa, acabou por ser uma compensação natural da redução da rota das Caraíbas para

os E.U.A. Da mesma forma surge a rota da África Ocidental como ponto intermédio para a

Europa.

Figura 3. Fluxos mundiais da cocaína 1998 e 2008.

23 Fonte: UNODC, The Transatlantic Cocaine Market, 2011.

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A Venezuela constitui um país chave de trânsito de cocaína para a Europa,

nomeadamente em grandes carregamentos marítimos, pois 51% dos transportes

intercetados no Atlântico entre 2006 e 2008, começaram a viagem marítima na Venezuela

e outros 11% desses transportes também começaram em países das Caraíbas.

Os veleiros oriundos das Caraíbas constituem os casos mais observados nas

apreensões, seguidos dos navios de carga.

Em 2012, a origem da Cocaína transportada em grandes quantidades por via

marítima para Portugal foi a procedente da Argentina e Brasil24.

No ano anterior essa mesma origem tinha como expressão mais significativa

novamente o Brasil e desta vez a Bolívia25.

O número de achamentos de fardos de cocaína e igualmente de haxixe, ao longo da

costa Portuguesa, permitem determinar a grande frequência de operações de transbordo

e de desembarque que ocorrem. Este fenómeno apresenta uma consistência ao longo do

ano, tendo uma localização a norte do Tejo no caso da cocaína e a sul do Tejo

relativamente ao haxixe.

As especificidades da rota da África Ocidental e as suas relações com a lusofonia,

justificam tratamento autónomo no presente capítulo.

24 Polícia Judiciária, Relatório Anual 2012 - Estatística TCD, Ed. UNCTE/SCIC, Lisboa 2012, p. 52. 25 Polícia Judiciária, Relatório Anual 2011 - Estatística TCD, Ed. UNCTE/SCIC, Lisboa 2011, p. 53.

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4.1 - A rota da África Ocidental

A África Ocidental é uma das zonas mais pobres e instáveis do planeta, com um

número bastante significativo de golpes de estado. Nove dos vinte cinco países mais

instáveis à escala global situam-se na África Ocidental.

Atualmente, entre 9% a 15% da Cocaína que chega à Europa faz trânsito pela África

Ocidental, sensivelmente 21 toneladas em 2009, enquanto que essa percentagem era de

25% em 200726.

Foi por volta de 2004, que a África Ocidental começou a ser utilizada como ponto

intermédio no transporte de cocaína para a Europa. Assim em 2004, as quantidades que

transitaram a zona eram cerca de 3 toneladas, passando para 47 em 200727.

Este problema começou a ser atacado rapidamente pela comunidade internacional,

com resultados visíveis. Assim a partir de 2008 começou a haver um decréscimo de

apreensões, que passaram a ser de 21 toneladas em 2009.

No entanto há indicações que esta via continua a ser utilizada, o que poderá ser

explicado, por uma utilização de novas técnicas pelos traficantes, conseguindo assim

iludir as autoridades.

O uso de aviões particulares, com a sua grande mobilidade é uma possibilidade de

explicação e com certeza uma tendência para o futuro.

Quase toda a cocaína em trânsito pela África Ocidental é destinada à Europa,

nomeadamente Reino Unido e Espanha, sendo que após chegar à África Ocidental, o

tráfico para a Europa é mais comum pela via aérea.

Em termos de rotas marítimas desta zona para a Europa, não têm a importância

das provenientes da América do Sul, mas são consistentes, permitindo por exemplo, para

além de deslocações de barcos de pesca ou carga, o transporte através de lanchas

rápidas a partir do norte de África.

26 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 15. 27 Cfr. UNODC, The Transatlantic..., p. 26.

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Existem duas zonas de transbordo, uma centrada na Guiné-Bissau e Guiné, mas

que vai até Cabo Verde, Gambia e Senegal, complementando assim a outra, na zona do

golfo do Benim, que vai desde o Gana à Nigéria.

A rota através da África Ocidental terá surgido com mais significado no decurso da

última década, estando com certeza relacionado com o seu surgimento, o nível de

corrupção em alguns dos estados africanos envolvidos, bem como o tipo de meios e

preparação das respetivas autoridades policiais. Reforçando estas fraquezas surgem as

quantias monetárias envolvidas que as organizações criminosas sul-americanas estão

dispostas a pagar para o envio da cocaína, as quais superaram em elevada escala, os

orçamentos para as forças policiais nos países africanos. Isto faz com que alguns estados

da África Ocidental tenham grandes níveis de instabilidade política e elevados níveis de

corrupção, como é o caso da Guiné-Bissau.

4.2 - O caso particular da Guiné-Bissau

Com cerca de 1,7 milhões de habitantes, a Guiné-Bissau é um dos países mais

pequenos e pobres da África ocidental.

Este país ocupa a posição 176 em 186 no índice de desenvolvimento humano de

201228. Para além dos problemas de pobreza gerais que esta zona enfrenta, a Guiné-

Bissau tem laços com o mundo lusófono, o que é extremamente importante na ligação

com o Brasil, Portugal e Cabo Verde, permitindo ligações linguísticas entre a América do

Sul, África e Europa, as quais acabam por ter um papel preponderante na hora de

escolher países de trânsito, tal como sucede com Espanha e vários países da América do

Sul.

28 PNUD, Relatório do Desenvolvimento Humano Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado, Nova Iorque, 2013, p. 149.

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Por outro lado existem condições geográficas e políticas que facilitam o tráfico de

estupefacientes. A Guiné-Bissau tem acesso direto ao mar, tendo a sua capital, Bissau

um porto. O país tem 87 ilhas, das quais 21 são inabitadas, veja-se de seguida o mapa

deste país29:

Figura 4. Mapa da Guiné-Bissau.

Desde a independência de Portugal em 1974 que a Guiné-Bissau tem tido uma

constante instabilidade política e militar. Em 1980, um golpe militar, colocou Nino Vieira no

poder, o qual foi alvo de várias tentativas de golpe de estado. Em 2000 o poder foi

entregue a Kumba Yala, que foi afastado em 2003 por outro golpe militar. Em 2005, Nino

29 Fonte: CIA world factbook 2013

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Vieira volta ao poder, acabando por ser assassinado em 2009, em acontecimentos que

poderão estar relacionados com relações com o narcotráfico. Em 2012, na campanha

para segunda ronda da eleição presidencial, surge novo golpe de estado.

Dados recentes indicam que as mesmas organizações criminosas poderosas que

organizam os transportes por via marítima para o mercado norte-americano, estão

também envolvidas nos transportes para a Europa via África Ocidental.

Grande parte do tráfico para a África Ocidental tem lugar em grandes navios mães,

que descarregam a droga para barcos mais pequenos junto à costa.

Os transportes de grandes quantidades de cocaína por via marítima não têm sido

detetados para esta zona, o que pode sugerir uma alteração de modus operandi. Tem

sido no entanto detetada a compra de aviões de grandes dimensões em segunda mão

por grupos criminosos, o que indicia transportes por esta via.

Outra hipótese é uma utilização mais frequente de contentores, que poderá ter

sucesso devido às fracas capacidades de fiscalização das respetivas autoridades locais.

Apenas dois países têm feito apreensões de cocaína em contentores vindos da

América do Sul para a África Ocidental, a Nigéria e o Gana.

Em termos de rotas terrestres, o Sahara tem sido utilizado como rota da cocaína da

África Ocidental para a Europa, a partir do Mali e Mauritânia, passando por Marrocos,

apesar de existirem ainda poucas apreensões. Para tal são utilizadas nomeadamente os

canais de tráfico de haxixe de Marrocos para Espanha.

Na região do Sahara existem grupos armados, os quais poderão estar envolvidos

no tráfico de droga. Os tuaregues são o povo dominante nas regiões do Mali, Burkina

Faso, Argélia, Líbia e Níger, controlando as trocas na zona, inclusive as relativas ao

mercado negro. Nesta zona verifica-se a presença do grupo armado da Al-Qaeda no

Magrebe Islâmico (AQIM), que surgiu na sequência da guerra civil argelina, mas que se

tornou conhecido pelos raptos a cidadãos europeus. O tráfico de droga torna-se forma de

financiamento do terrorismo islâmico.

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Devido à sua localização, Marrocos é frequentemente utilizado pelos traficantes,

como mostram apreensões recentes, de resto aproveitando a experiência e meios

utilizados no tráfico de haxixe. Surge assim uma colaboração entre grupos marroquinos e

colombianos, que muitas vezes se conhecem nas prisões espanholas.

5 – Tipos de embarcações e formas de transporte

São vários os tipos de embarcações que estão envolvidas no transporte de cocaína

para a Europa: embarcações de carga geral, mercantes, de recreio, porta-contentores,

pesqueiras, ou as chamadas embarcações de alta velocidade.

Com o crescente controlo que se verifica na fronteira externa marítima da União

Europeia, com o qual também se pretende conter os fenómenos de imigração ilegal com

origem no norte de África, é de supor uma substituição da utilização das embarcações de

alta velocidade ou lanchas rápidas por embarcações de recreio.

Desta forma as redes criminosas, procurando simular as rotas associadas às

viagens de recreio ganham uma óbvia capacidade de dissimulação. Estas embarcações

de resto podem ainda ser sujeitas a operações de “maquilhagem”, com alterações por

exemplo de nome, pavilhão, ou mesmo cor, conseguindo ocultar determinadas origens,

ou mesmo embarcações que já poderiam ser consideradas suspeitas. Estas modificações

dificultam em larga escala, o controlo e a fiscalização pelas autoridades competentes.

As embarcações de pesca, sobretudo as de maior dimensão, têm uma autonomia

que lhes permite deslocações que poderão ir até à proximidade da costa de países da

América do Sul ou região das Caraíbas, o que contempla todas as situações intermédias,

seja de deslocação a pontos intermédios no oceano Atlântico, ou mesmo à costa

Africana.

Quanto maior for a inserção da atuação ilícita no normal desenrolar da atividade

piscatória e das respetivas rotas, maior será a probabilidade de sucesso no transporte de

droga.

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As embarcações de menor dimensão poderão apenas receber o produto

estupefaciente perto da costa, não apenas das embarcações de pesca, mas também de

outro tipo de embarcações de carga, transportando-o posteriormente até à orla costeira

para o respetivo desembarque.

Uma forma muito importante de transporte é por intermédio de contentores,

aproveitando o massivo tráfego comercial que segue por esta via, resultado do aumento

da atividade comercial.

As formas de ocultar cocaína em contentores, passam por esconder a mesma como

parte de uma mercadoria normal, na estrutura do contentor, ou como “rip-off”, que

significa que as drogas são facilmente acessíveis no contentor no porto de destino,

nomeadamente em mochilas.

Os grandes transportes de cocaína por barco estão mais associados à Colômbia, via

Venezuela, e na cocaína enviada em contentores, surge o Peru e a Bolívia.

A legislação europeia de controlo aduaneiro reveste-se de grande importância, pois

o risco de introdução de quantidades significativas de produto estupefaciente está

associado a movimentos de proveniência extracomunitária30.

A utilização dos contentores para fins ilícitos de transporte de droga, resulta não só

da cada vez maior circulação, mas também da redução do custo de transporte e

simplificação dos procedimentos de desalfandegamento. Por outo lado, o contentor é sob

todas as perspetivas uma estrutura com boas condições para o transporte. O produto

estupefaciente pode ser ocultado não só na carga comercial do contentor, mas na sua

estrutura, o que permite retirar o mesmo em movimentações de regresso.

Por outro lado, surgem cada vez mais, rotas extremamente complexas, que em face

de movimentos múltiplos, permitem quase ocultar, ou pelo menos tornar mais difícil,

30 Regulamento (CE) N.º 450/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril de 2008, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário (Código Aduaneiro Modernizado) [Jornal Oficial L 145 de 04.06.2008].

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percecionar o local de origem do contentor. A atuação por parte das autoridades em sede

de fiscalização resulta de indicadores de risco, que poderão ser de vários tipos.

No que concerne aos intervenientes no processo de compra ou transporte da

mercadoria são os seguintes:

- Entidade comercial sem existência jurídica;

- Utilização de entidades comerciais recentemente formadas;

- Utilização de rotas estranhas ou invulgares em função da respetiva mercadoria e

custos;

- Pagamento em dinheiro de taxas e impostos alfandegários;

- Interveniente inicial ou final, considerado suspeito;

- Local de origem, ou trânsito considerado suspeito;

- Contentores completamente carregados apresentado movimentos de carga;

- Fornecimento de contatos de telemóveis com cartões pré-pagos para recebimento

de mercadorias.

Do tipo de mercadorias e bens em causa, resultam também diversos indicadores de

risco:

- Produtos envolvidos sem correspondência com a atividade ou negócio do

importador;

- Produtos importados que não sejam originários do país de origem;

- Lógica de rentabilidade económica da mercadoria transportada;

- Transporte conjunto de várias cargas de proveniências distintas;

- Existências de embalagens transportadas com diferentes marcas ou sinais;

- Transporte de produtos perecíveis, sem condições que permitam a sua

conservação;

- Importações pouco frequentes de determinado tipo de produtos;

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- Importação de determinado tipo de mercadorias fora de época.

Por outro lado, as características do próprio contentor, podem também apresentar

algumas características de risco:

- Historial de incidentes do armador;

- Rotas efetuadas;

- Reparações efetuadas;

- Modificações no contentor;

- Mercadorias habitualmente transportadas no contentor;

- Número do contentor alterado, ou não coincidente com a companhia proprietária;

- Indícios de modificações recentes;

- Existência de cheiros não habituais.

Com a constante evolução no tráfico de droga, que resulta não só da tentativa de

fugir ao controlo das entidades policiais, mas também dos vastos recursos que as

organizações criminosas ligadas ao tráfico de droga possuem, para além da utilização de

meios aéreos próprios, têm sido detetadas situações em que são utilizados submarinos

para transportar a cocaína através do atlântico. Em 2006 na Galiza, foi identificada uma

situação em que um submarino foi utilizado para passar cocaína de grandes navios para

pontos escondidos na costa.

No caso de Portugal, para o transporte de Cocaína, têm sido utilizadas e

identificadas embarcações comercias (cargueiros e porta-contentores) e embarcações de

recreio, que fazem a descarga da droga em marinas e portos comerciais 31.

31 Polícia Judiciária, A ameaça do tráfico internacional de droga – As vias aérea e marítima, Ed. UNCTE/SCIC, Lisboa, 2009, p. 169.

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6 – Enquadramento legal da repressão do tráfico de

estupefacientes por via marítima

A criminalização do tráfico de estupefaciente é efetuada por legislação penal

especial32 , aplicando-se com especial incidência ao tráfico por via marítima os seus

artigos 21.º, 22.º, 24.º, 27.º e 28.º.

Estando em sede de tráfico por estupefacientes por via marítima, a atuação pode

ser feita em espaços marítimos específicos, o que acarreta implicações legais distintas.

Assim, assume especial importância o artigo 4.º alínea b) do código penal

português, na medida que em relativamente a navios de pavilhão português,

independente da sua localização, determina a aplicação da lei portuguesa, exceto em

país terceiro e seja possível intervenção desse país.

Em sede de Direito internacional público, importam as convenções de Montego

Bay33 e de Viena34, as quais foram patrocinadas pela ONU e ratificadas por Portugal.

Existe ainda a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar – Convenção

Sobre o Alto-Mar35 , na qual é expresso o princípio da liberdade de navegação que

reconhece a todos os estados, o direito de navegar o alto-mar, em navios ou

embarcações, ostentando a bandeira desses Estados.

32 DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro. 33 A Convenção de Viena de 1988 foi ratificada, na ordem jurídica interna pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91, após aprovação, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91, ambas publicadas em 06 de Setembro. 34 Da mesma forma, a Convenção de Montego Bay de 1982, foi ratificada pelo Decreto Presidencial n.º 67-A/97, após aprovação, para ratificação, pela Resolução n.º 60-B/97, ambas publicadas em 14 de Outubro. 35 Realizada em Genebra de 24 de Fevereiro a 27 de Abril de 1958.

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Nesta convenção vêm consagrados, os direitos de visita em caso de infrações ao

estado costeiro, bem como do direito de perseguição, que se destina a impedir que um

navio alvo seja impedido de fugir para o alto mar.

Com base no costume internacional, surge o Direito de Perseguição, que consiste

na possibilidade conferida a um Estado de perseguir e capturar em alto-mar um navio

particular, com bandeira estrangeira, desde que tenha cometido uma infração que se

iniciou nas águas territoriais desse Estado e que seja intercetado antes de entrar noutro

mar territorial.

Em termos de cooperação bilateral, existe o Tratado entre Portugal e Espanha para

a repressão do tráfico ilícito de droga no mar36. Este tratado, em conformidade com o

direito internacional do mar, visa uma cooperação eficaz entre os dois países.

Com a Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho, é feita a determinação da extensão das

zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado

Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no Alto mar. Saliente-se que as

disposições dessa lei são interpretadas em conformidade com os princípios e normas do

direito internacional, designadamente os previstos na Convenção de Montego Bay de

1982, conforme é referido na própria lei.

O limite exterior do mar territorial é definido nas 12 milhas náuticas, o da zona

contígua nas 24 milhas náuticas e o da zona económica exclusiva nas 200 milhas

náuticas, conforme apresentado na figura apresentada em baixo37. É ainda definido o

limite exterior da plataforma continental e a delimitação das fronteiras marítimas.

36 Assinado em Lisboa em 2 de Março de 1998 (Resolução da Assembleia da República

n.º 9/2000 de 28 de Janeiro – ratificada pelo P.R. 2/2000 de 28 de Janeiro).

37 Fonte: Wikipedia 2014.

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Figura 5. Conceitos estabelecidos pela Convenção das Nações Unidas sobre o

Direito do Mar.

Estes conceitos têm implicações em termos da atuação na repressão ao tráfico de

estupefacientes por via marítima.

Assim, no mar territorial e na zona contígua, aplica-se a lei penal portuguesa,

independentemente da nacionalidade do agente, de acordo com a alínea a) do artigo 4º

do Código Penal Português.

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Já na zona económica exclusiva e em alto-mar, a atuação terá que ser baseada no

artigo 17.º das Convenções de Viena, desde que observados os requisitos nela exigidos,

e no previsto na alínea b) do artigo 49.º do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, ou no

âmbito do direito de visita.

Na Convenção de Montego Bay38 , é mencionada a necessidade dos Estados

cooperarem na repressão do tráfico de droga em alto-mar, na medida em que constitui

uma violação das normas internacionais. De acordo com o artigo 27.º desta convenção, o

tráfico ilícito de drogas constitui uma das exceções que permite o exercício de jurisdição

criminal na passagem de navios estrangeiros no mar territorial.

7 – Sistema nacional de repressão ao tráfico de

estupefacientes

O Sistema nacional de repressão ao tráfico de estupefacientes39 é desenhado a

partir do DL n.º 81/95, de 22 de Abril, no qual vêm elencadas as diversas entidades que

estão envolvidas no combate ao tráfico de droga: A Polícia Judiciária, a Guarda Nacional

Republicana a Polícia de Segurança Pública, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a

Direção-Geral das Alfândegas, atual Autoridade Tributária e Aduaneira.

Conforme referido no preâmbulo deste diploma, empenham-se outros órgãos de

polícia criminal no combate à oferta e consumo, continuando a atribuir à Polícia Judiciária

funções de centralização informativa e de coordenação operacional.

Saliente-se ainda as funções específicas da Guarda Nacional Republicana ao nível

da atual Unidade de Controlo Costeiro na vigilância da costa e possíveis pontos de

38 Art. 108º, n.º 1. 39 Esta designação não tem cobertura no plano legal, constitui apenas uma forma de designar o conjunto das entidades responsáveis pela repressão do fenómeno.

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desembarque e da Autoridade Tributária e Aduaneira na identificação e controlo de

mercadorias, no âmbito das suas funções.

O Decreto Regulamentar n.º 86/2007, de 12 de Dezembro, articula a ação das

autoridades de polícia e demais entidades nos espaços marítimos. De acordo com o

respetivo artigo 5.º, compete à Polícia Judiciária a coordenação das ações de vigilância e

fiscalização relativas ao tráfico de estupefacientes.

Por outro lado, o mesmo decreto relembra, que em cumprimento do

estabelecido no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março, as autoridades de

polícia e de polícia criminal envolvidas no combate ao tráfico de estupefacientes, como a

GNR e a Marinha/AMN através da Polícia Marítima (PM), estão sujeitas ao regime de

centralização de informação, bem como de coordenação e intervenção conjunta previsto

no Decreto-Lei n.º 81/95, de 22 de Abril, que centraliza essas competências na Polícia

Judiciária.

Enquanto fenómeno à escala global, o combate ao tráfico de estupefacientes com

dimensão internacional, só faz sentido em sede de cooperação internacional entre as

entidades policiais, através da Europol, Interpol, ou mesmo de natureza bilateral.

Em 2007, foi criado o Maritime Analysis & Operations Centre (Narcotics) –

MAOC(N), numa iniciativa de sete países da União Europeia, Espanha, França, Irlanda,

Itália, Holanda, Portugal e Reino Unido, com o objetivo de promover a cooperação para

combater o tráfico ilícito de drogas pela via marítima e aérea através do Oceano Atlântico

para a Europa e para a costa ocidental Africana.

Sedeada em Lisboa, esta unidade é composta por elementos policiais dos diversos

países, com suporte militar para facilitar a vigilância por meios navais e aéreos. Conta

ainda com observadores dos Estados Unidos da América, Comissão Europeia, Europol,

Nações Unidas, Canadá, Cabo Verde e Marrocos. Existem outros países e entidades que

entretanto pediram a adesão a esta iniciativa.

Ao nível da repressão são utilizados com frequência os mecanismos legais das

entregas controladas, bem como ações encobertas. De resto a investigação do tráfico de

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estupefacientes foi sempre a linha da frente na utilização de meios especiais de

investigação, não só a nível nacional, bem como a nível internacional.

A utilização de meios militares navais e aéreos é fundamental em operações de

combate ao tráfico de estupefacientes por via marítima, sendo estes meios colocados ao

dispor do órgão de polícia criminal competente para a investigação, a Polícia Judiciária.

Neste quadro surge em 2003 um protocolo de cooperação entre a Polícia Judiciária e a

Marinha Portuguesa.

8 – Conclusões

A geografia constitui um aspeto de capital importância na dinâmica do mercado e

tráfico mundial de cocaína, sendo o preço da substância num determinado país

essencialmente definido pela localização desse país.

O posicionamento de Portugal, não só a nível continental, mas também a nível

insular, coloca-nos no centro das rotas mundiais da cocaína, originária da América do Sul,

bem como do haxixe, oriundo do Norte de África.

O mercado europeu é o segundo maior mercado mundial em termos do consumo

cocaína, com o primeiro mercado mundial, o norte-americano, em contração.

Todas as rotas marítimas da cocaína para a Europa, estão de forma direta ou

indireta relacionadas com Portugal ou países lusófonos como Cabo Verde e Guiné-

Bissau. Do outro lado do Atlântico está também o Brasil que fala igualmente a nossa

língua.

Existe um conjunto vasto de embarcações a fazer este tipo de tráfico, sendo o

transporte nos contentores uma tendência incontornável face ao aumento das trocas

comerciais.

Portugal possui enquadramento legal que possibilita uma intervenção face ao tráfico

marítimo internacional, existindo um conjunto de entidades que formam um autêntico

sistema nacional de repressão do tráfico de estupefacientes por via marítima, que

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comtempla a vigilância e controlo da costa portuguesa, uma fiscalização de mercadorias e

pessoas e uma investigação criminal, assente na centralização e coordenação da

informação criminal e que utiliza como vetor estratégico a cooperação internacional.

Bibliografia

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