pop-cult-descolado: a cultura pop como dispositivo e maquinário estético-semiótico

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Pensar música e cultura pop para além dos binarismos: pop x rock, autenticidade x cooptação, local x global. Encontrar rotas de fuga para o entendimento dos fenômenos midiáticos: o pop como um dispositivo que age sobre o sistema produtivo, uma máquina – como propõem Deleuze e Guattari – de ordens estética e semiótica, desvelando formas de desterritorialização e reterritorialização. A partir das ambiguidades de uma palavra-chave (o termo “pop-cult-descolado”) do uso coloquial entre os viventes do Recife (e certamente de outras cidades) a proposta aqui é construir um itinerário possível para refletir sobre as insurgências estéticas do pop, em diálogos com Lawrence Grossberg, Homi K. Bhabha, Motti Regev, entre outros.

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  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ 4 a 7/9/2015

    Pop-Cult-Descolado: A cultura pop como dispositivo e maquinrio esttico-semitico1,

    Jeder Silveira Janotti Junior2Thiago Soares3

    Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

    Resumo

    Pensar msica e cultura pop para alm dos binarismos: pop x rock, autenticidade x cooptao, local x global. Encontrar rotas de fuga para o entendimento dos fenmenos miditicos: o pop como um dispositivo que age sobre o sistema produtivo, uma mquina como propem Deleuze e Guattari de ordens esttica e semitica, desvelando formas de desterritorializao e reterritorializao. A partir das ambiguidades de uma palavra-chave (o termo pop-cult-descolado) do uso coloquial entre os viventes do Recife (e certamente de outras cidades) a proposta aqui construir um itinerrio possvel para refletir sobre as insurgncias estticas do pop, em dilogos com Lawrence Grossberg, Homi K. Bhabha, Motti Regev, entre outros.

    Palavras-chaveCultura Pop; Msica Pop; Rock; Popular

    Pop-cult-descolado: Substantivo ou adjetivo. Quando substantivo, descreve um certo

    tipo de indivduo que transita por diferentes esferas de uma cultura urbana, dos circuitos

    culturais de consumo mais mainstream, passando pelo underground, sem necessariamente

    se preocupar com rtulos como da moda ou da galera. O sujeito pop-cult-descolado, em

    geral, agrega amigos de todas as esferas sociais: dos colegas do ensino mdio, em colgios

    de classe mdia, branca, crist, passando pelos amigos da noite, construdos na

    efemeridade das passagens, dos teores alcolicos, das insurgncias das festas; chegando aos

    conhecidos de circunscritos e ambientes bastante especficos: amigos das artes, da

    festa, da praia, do posto de gasolina, e assim por diante. Por no se filiar to

    deliberadamente, digamos, a uma dimenso da vida cultural, mas almejar todas, ao mesmo

    1 Trabalho apresentado no GP Comunicao, Msica e Entretenimento do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicao, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.2 Melmano, Pesquisador CNPq com bolsa produtividade, professor dos cursos de graduao em Comunicao e do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFPE, entre suas publicaes destacam-se Aumenta que Isso A Rock and Roll (E- Papers, 2003), Cenas Musicias (Anadarco 2013, organizada junto com Simone Pereira de S) e Rock Me Like the Devil: Assinatura das Cenas Musicais e das Identidades Metlicas (Livrinho de Papel Finssimo, 2014). Email: [email protected] 3 Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), autor dos livros A Esttica do Videoclipe (Editora da UFPB, 2014) e Videoclipe O Elogio da Desarmonia (Livro Rpido, 2004). Email: [email protected]

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    tempo, o sujeto pop-cult-descolado frequentemente taxado de sem ideologia, maria-

    vai-com-as-outras, que circula nos lugares da moda. mais classificado como um

    enganador do que como um fruidor em diferentes escalas. Pelos mais ortodoxos, pode at

    ser chamado de fraude. E, s vezes, mesmo uma fraude. Mas no sempre.

    O sujeito pop-cult-descolado pode tambm se afeioar pela cultura hipster, aquela

    que acha a ltima tendncia, mapeia a novidade, sabe onde todos se encontram. Talvez

    o termo que mais defina este indivduo seja descolado, ou seja, aquilo que no est atado,

    no se prende, viaja e transita por ambientes, entrando e saindo deles sem a pretenso de se

    fixar, mas experienciando momentos possivelmente at o seu esgotamento. Sujeito que

    parece entender das efemeridades, das impermanncias e, por isso mesmo, se apropria delas

    em suas vivncias.

    Quando adjetivo, pop-cult-descolado se refere a uma forma ambgua de classificar

    prticas de consumo. Pode significar alguma lgica de no-pertencimento, evocando algo

    em torno de uma no-verdade, um baixo valor dentro de um regime de autenticidade. Mas

    tambm possvel evoc-lo diante do elogio para algo ou algum que tem a destreza das

    negociaes, das entradas e sadas, de saber lidar com todos os tipos de pblico, falar para

    todas as gentes, todas as classes, etnias, diferenas. Adjetivar algo de pop-cult-descolado

    pode ser sintoma de que o enunciador quer se fazer ambguo, sair pela tangente das formas

    adjetivais mais cannicas, se fazer insider, jovem. Na cidade do Recife, o termo pop-

    cult-descolado usado por falantes, em geral, da classe mdia, escolada, universitria, se

    referindo a seus pares, reconhecveis em bares, boates, inferninhos comuns, como uma

    forma, inclusive, de classificar o Outro a partir de uma leitura ligeiramente superficial de

    suas prticas discursivas, que envolvem circulao em ambientes reais ou virtuais, tambm

    atravs de opinies expressas em redes sociais.

    Num exerccio de partir de uma palavra-chave, neste caso, a expresso pop-cult-

    descolado, para pensar rotas de fuga para conceitos que envolvem msica e Cultura Pop,

    este artigo parte de um pressuposto de leitura: a fuga das anlises binrias e opositivas sobre

    fenmenos miditicos.

    O pop uma nebulosa afetiva

    Os rtulos msica e cultura pop parecem carregar uma mirade inesgotvel de

    referncias. Parte desses acionamentos so, muitas vezes, intercambiveis (como o binmio

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    pop-rock), outros excludentes (como as desqualificaes do pop como msica descartvel

    efetivada por alguns roqueiros). Apenas esses primeiros zumbidos j parecem tornar quase

    impossvel a tarefa de definir o que seria, mesmo em contornos mveis, a cultura pop. Mas,

    antes de abandonar o enfrentamento em torno das territorializaes do pop, desistindo do

    mapa pelo cansao de uma cartografia que exige-se contnua, o desafio nos instiga a pensar,

    pelo menos em parte, o que est sendo acionado quando o agenciamento cultura pop entra

    cena. Ou seja, que supostos modo de povoar, habitar e desabitar o mundo esto em jogo

    atravs das diversas linhas de fuga que perpassam os atravessamentos pop.

    Tal desafio nos ainda mais instigante quando percebemos que, antes de um

    conceito acadmico, que busca delinear um fenmeno anterior sua cartografia, pop uma

    nebulosa afetiva, acionada em contextos diversos e de diferentes formas - como modos de

    encontrar mapas para atravessar o turbilho cultural que parece marcar nossas vidas nestes

    primeiros anos do sculo XXI. Desde j cabe afirmar que, neste contexto, entendemos afeto

    como capacidades sensveis-sensoriais de afetarmos e sermos afetados pelos mundos em

    que vivemos e que nos constituem como seres culturais. Deste modo, afeto

    uma multiplicidade de modos em que as pessoas ancoram suas vidas, os modos de pertencimento a certos lugares e atravs de certas trajetrias. a produo, de fato, da identificao. Ele opera atravs de mltiplos regimes e formaes, produzindo mltiplas modalidades e organizaes diferentes, incluindo por exemplo, emoo, humores, desejos, pertencimentos, estruturas de sentimento, mapas de importncia, mapas de sentido (significao) e sistemas de representao (ou ideologia, como um investimento afetivo em significaes particulares que lhes concedem a representao do mundo) (GROSSBERG, 2010, p.195)4.

    Assim, pode-se traar, em termos histricos, as evidncias que nos permitem

    compreender de forma diferenciada as tonalidades afetivas do agenciamento pop. Em

    termos estritos, Cultura Pop um rtulo cunhado pela crtica cultural inglesa nos anos 1950

    para tentar dar conta, e em certa medida desqualificar como efmero, o surgimento de

    produtos musicais e audiovisuais voltados para o emergente pblico juvenil: como o rock

    and roll, os primeiros seriados televisivos e os filmes de adolescentes rebeldes

    (BARCINSKI, 2014)5.

    4 Todas as citaes de obras referenciadas em outras lnguas que no o portugus so de responsabilidade dos autores do artigo.

    5 Em recente conferncia na UFPE (06/07/2015) intitulada Pop/Art/Rock: Canned Music and History of Popular Authenticity, o professor Keir Keightly (Univesity of Western Ontario) fez uma srie de referncias a utilizao do termo no pop no incio do sculo XX, relacionando-as aos teatros de vaudeville e ao seu aparecimento na crtica musical para se referir msica produzida em Nova York na Tin Pan Alley. No caso da viso aqui apresentada, no se trata de deixar de

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    Neste sentido, os agenciamentos de fluxos e conjunes em torno de uma Cultura

    Pop esto conectados a afirmaes da cultura miditica a partir de atravessamentos que

    envolvem o popular e o massivo. Como escreveu Raymond Williams, o conceito de mdia

    como ns o usamos uma inveno do sculo XX, e realmente tornou-se parte do senso

    comum somente na segunda metade do sculo (apud GROSSBERG, 2010, p.204). Tal

    afirmao parece deixar ainda mais evidente as injunes entre a afirmao da cultura

    miditica como lugar privilegiado de materializao do popular a partir das ltimas dcadas

    do sculo XX e a emergncia da Cultura Pop como modo diverso de habitar o mundo

    atravs do popular-miditico ou popular massivo.

    Seguindo esta trilha, tomemos um primeiro cuidado em relao aos mapas possveis

    para guiar a viagem aqui proposta: no se deve dar por resolvidos os inmeros fluxos e

    contradies que os amplos denominadores cultura miditica e cultura pop englobam. Se

    hoje a mitologia pop carrega as tintas de sua gnese no sucesso de Elvis Presley, a partir da

    gravao de Thats All Right Mamma de 1954 na cidade de Memphis nos EUA (e seu

    posterior sucesso no s como msico mas como dolo pop audiovisual) no se deve deixar

    de lado a lembrana de que, na mesma poca, o guitarrista afro-americano Chuck Berry

    tambm alicerava as bases do rock and roll com a gravao da cano Maybellene pela

    gravadora Chess Records, especializada em msica negra. Longe de propor aqui um embate

    dual entre uma suposta formao autntica do rock, os exemplos acima pretendem mostrar

    que quando se trata de Cultura Pop, estamos diante de um emaranhado de multiplicidades.

    Altercar Elvis Presley e Chuck Berry, para ficarmos somente com dois casos, pressupe

    fazer funcionar um complexo processo de articulao de sentidos que envolve gneros

    musicais (blues, bluegrass, country, rockabilly), transtradues miditicas (o papel das

    gravadoras Sun e Chess Records), debates de ordem tnica (o embraquecimento da

    indstria musical) e performtica (matrizes de corporalidades hegemnicas) e

    agenciamentos circulares diversos na emergncia da Cultura Pop.

    Para no sair das facilidades dos valores atravs dos acionamentos binrios, que

    poderia reduzir a Cultura Pop aos jogos do isto/aquilo, cabe lembrar como um terceiro

    vetor, a importncia de Little Richard para a gnese mtica do rock and roll, e por

    amplificao, da msica e Cultura Pop, pois conjuntamente presena de Maybellene e

    Thats all Right Mamma nas listas das msicas mais tocadas em meados dos anos 1950

    nos EUA, tambm havia a cano Tutti Frutti, executada por um cantor/pianista

    reconhecer que historicamente o termo pop aparece antes da segunda metade do sculo XX e sim que, a cultura pop emerge a partir do aparecimento do rock e do mercado cultural apoiado inicialmente na cultura juvenil e que da advm.

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    excntrico, Little Richards, que alm de contribuir para os alicerces das sonoridades rock,

    misturava ao caldeiro inicial dos gneros musicais que serviram de base para o rock and

    roll, o boogie woogie e uma performance andrgina, que merece ser lembrada no s como

    contraponto emergncia do gal e do guitar hero (personificadas por Presley e Berry),

    bem como uma linha de fuga para que fosse incorporado essa mistura a figura da diva,

    personagem do imaginrio pop to bem materializada por Richards. Assim, para tentar dar

    conta em parte da nebulosa afetiva pop importante, pensar que nem todo valor

    construdo de maneira opositiva, como nos parece fazer crer o suposto embate pop-rock.

    Trata-se mais de uma valncia do que relao oposicional.

    Maquinrio e mastigao

    Assim, observando a importncia da tessitura mtica do pop star como personagem

    da cultura pop, voltemos a duas narrativas que cercam os afetos ao redor dos mitos de

    origem que cercam Elvis Presley:

    1) a frase atribuda a Sam Phillipes, dono da gravadora Sun Records, ao descobrir o talento

    de Presley: Se eu encontrar um branco que cante como um negro ganharei um milho de

    dlares

    2) as estrias ao redor de Coronel Parker, o empresrio que teria sido responsvel pelas

    estratgias que alaram Presley ao ttulo de Rei do Rock - e que supostamente aprendeu

    suas artimanhas ao gerenciar o circo Royal American Shows (alm das vendas de algodo

    doce e caramelos nos espetculos), circulando em um trem particular pelos EUA e Canad

    nos anos 1930.

    Antes de discutir esses enunciados como verdades ou mentiras, interessa-nos observar uma

    srie traos mltiplos que agenciam Elvis Presley como uma pop star: os aspectos

    mercadolgicos, miditicos, afetivos, tnicos, estticos e mercadolgicos da cultura pop,

    pois como afirmam Gilles Deleuze e Flix Guattari:

    No existe um enunciado individual, nunca h. Todo enunciado o produto de um agenciamento maqunico, quer dizer de agentes coletivos de enunciao (por agentes coletivos no se deve entender povos ou sociedades, mas multiplicidades). Ora, o nome prprio no designa um indivduo: ao contrrio, quando um indivduo se abre s multiplicidades

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    que o atravessam de lado a lado, ao fim do mais severo exerccio de despersonalizao, que ele adquire seu verdadeiro nome prprio. O nome prprio a apreenso instantnea de uma multiplicidade. O nome prprio o sujeito de um puro infinitivo compreendido como tal num campo de intensidade (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.51)

    Parece que uma das linhas de fuga que podemos reter momentaneamente para

    delinear a multiplicidade pop seu atravessamento pela amplo alcance e circularidade desta

    formao cultural. Da sua associao pipoca (popcorn) e s guloseimas que no se

    consegue parar de mastigar (bubblegum), alimentos que num certo senso comum no

    alimentam, mas devido ao seu prazer gustativo, no se consegue parar de mastigar -

    gerando seu espraiamento popular.

    Aliado a esses traos efmeros, nota-se que a Pop Art, movimento que inclua

    artistas como Andy Wharol e Richard Hamilton, tambm se valia dessa suposta

    mastigao do popular para tentar tirar as artes plsticas dos bunkers eruditos em que

    haviam se transformados as mostras e galerias em geral - uma das tticas da Pop Art foi

    popularizar o restrito universo das belas artes atravs da assimilao de imagens da

    iconologia pop como histrias em quadrinhos, dolos do cinema, embalagens de sopas

    prontas e sabo em p.

    Mas o agenciamento pelo valor esttico no segue somente trajetos unidirecionais que vo das artes tradicionais sensibilidade pop. Boa parte da intensidade artstica da cultura pop acionada a partir de formas e formatos oriundos de dentro da prpria indstria cultural, como as graphic novels, narrativas que procuram dar tons plsticos-literrios arte sequencial dos quadrinhos, ou o controverso rtulo cinema de arte que se valendo do dispositivo cinema, explora aspectos artsticos de uma das expresses culturais mais populares do sculo XX (JANOTTI JR, 2015, p. 46).

    Essa operacionalizao no se assenta sem engessamentos com linhas de oposio

    entre arte pop e pop convencional, intensidade e efmero, ou com a ideia de que a msica

    pop e o rock foram se diferenciando conforme as nfases e tonalidades que receberam,

    conforme os propsitos para os quais foram sendo adotados e convertidos (SILVEIRA,

    2013, p.17). Ao contrrio desta perspectiva, partimos de linhas de fuga que agenciam a

    ideia de pop em uma partilha comum, no necessariamente de um popularesco

    inconsequente, pois como debate Rancire, ao apontar a partilha do sensvel na poltica,

    trata-se de uma distribuio possvel, que tambm uma distribuio da capacidade que

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    uns e outros tm de participar nessa mesma distribuio do possvel (RANCIRE, 2111,

    p.19).

    Fronteiras mveis do pop

    Para ns, no interessante esvaziar os afetos que circulam pelas fronteiras mveis

    do pop. H diferentes modos de entrar e sair da cultura globalizada invocando o pop. Neste

    sentido, cabe pensar na proposta de Motti Regev (2013), de que atravs do imbricamento

    das histrias culturais do pop e do rock, postula-se uma forma cultural chamada pop-rock

    music, ou uma espcie de atravessadora esttica que viajaria das bandas de rock da

    cultura anglo-americana at a distante sia, passando pelo Oriente Mdio e pases

    africanos: dices sonoras ancoradas na guitarra e nos diferentes usos do teclado e

    instrumentais eletrnicos como acionadores de uma noo de modernidade, apoiada no

    senso de singularidade (uniqueness) das culturas nacionais, embora diante do horizonte

    transnacional e do capitalismo tardio e financeiro. Regev parece estar tratando de um

    certo idioma esttico do que chama de pop-rock music - da ordem de um acento

    cosmopolita que refuta um tipo de leitura sobre local e global, imperialismo,

    americanizao, Mcdonaldizao dos fenmenos, tentando entender os diferentes usos da

    msica e da Cultura Pop em contextos especficos que, inclusive, vo acentuar

    caractersticas locais.

    Ao fazer referncia, por exemplo, cantora italiana Laura Pausini e s inmeras

    comparaes feitas a outras cantoras pop, como Madonna, Mariah Carey ou Whitney

    Houston, o autor reconhece que neste contato com referncias externas, da cultura pop,

    que se constri um certo senso de italianidade para Laura Pausini. A anlise proposta no

    simplesmente pensar Pausini como uma espcie de cpia italiana de uma certa diva pop,

    mas sim, visualizar complexos processos de reterritorializao da ideia de cantora pop. No

    Brasil, se pensarmos no mito de origem da cantora Gaby Amarantos, sada do bairro de

    Jurunas, na periferia de Belm, no Par, para se transformar numa cantora de textura sonora

    nacional, usou-se tambm uma cantora pop como ancoragem discursiva: Beyonc. Sempre

    se apresentando sob a gipe performtica das equipes de Aparelhagem, Gaby Amarantos

    esteve fortemente conectada a uma gerao de msicos paraenses que integravam um

    circuito de apresentaes calcadas na sonoridade do tecnobrega. No entanto, foi quando

    passou a cantar em shows Hoje Eu t Solteira, verso tecnobrega para Single Ladies,

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    da norte-americana Beyonc, que a paraense pareceu adentrar a um certo idioma esttico

    cosmopolita. Logo em seguida, Gaby Amarantos foi prontamente chamada pela imprensa,

    blogueiros e formadores de opinio de Beyonc do Par - o que, deliberadamente, no

    ofuscava a singularidade de ser paraense (muito pelo contrrio), mas colocava este senso de

    pertencimento ao Par em dilogo com a cultura das divas pop, cosmopolita, transnacional.

    Voltando um pouco mais no tempo, quando, na dcada de oitenta do sculo XX, h

    o estouro do Brock materializado em bandas como Blitz, Baro Vermelho, Kid Abelha,

    Paralamas do Sucesso e Tits, afirmar-se roqueiro era reconhecer-se, pelo menos em parte,

    como corsrio da cultura pop que se desgarrava dos grilhes da MPB, afirmando-se como

    de lugar nenhum. Se pensarmos no contexto brasileiro de abertura poltica ps-ditadura

    militar, alta circulao de bens de consumo norte-americanos, ressaca do suposto

    nacionalismo dos militares, ser de lugar nenhum era talvez uma das mais potentes formas

    de se afirmar brasileiro e crtico, politizado.

    J no incio dos anos 1990, os atravessamentos pop que ocorreram quando a dupla

    Chitozinho e Xoror incorporou arranjos de teclados (instrumento pop) msica

    sertaneja na gravao de Fio de Cabelo6 no se tratava, possivelmente, de afirmar-se

    como um transeunte globalizado da cultura pop e sim de amplificar-se, projetando-se

    atravs de outras transterritorialidades. Antes de serem posies estanques, o global e o

    local nestes exemplos so associaes que possibilitam reterritorializar-se atravs da cultura

    pop. Se o espao essa rede mvel de coisas e humanos, de lugares em mutao, de

    comunicao entre objetos e humanos, no h nunca uma coisa meramente local ou global

    (LEMOS, 2013, p.194). Nesses casos, pode-se imaginar uma multiplicidade de cartografias,

    acarretando significados que vo desde vincular-se de maneira densa cultura pop at

    atravess-la, mesmo sendo indiferente aos carimbos afetivos que possam marcar nossos

    passaportes culturais.

    Atravessamentos da tradio (como atesta a prpria mudana de figurino de

    Chitozinho e Xoror que, poca, abandonaram as botas e chapus de vaqueiro em prol de

    blazers e camisas sociais) permitem notar como agenciamentos entre sensibilidades

    globais e locais articulam-se com modos de habitar mundos a partir e de dentro de certas

    tonalidades cosmopolitas. Esse tipo de circularidade estabelece relaes de proximidades e

    diferenas que so reunidas em torno do modo como os produtos culturais contemporneos

    projetam um comum: um espao miditico. Antes de ser a projeo de habitaes frvolas, a

    6 Sucesso do album Somo Apaixonados (Copacabana, 1982) que estourou poca nas radios e programas de televisivos de alcance nacional.

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    Cultura Pop tambm uma densa zona de conflito, da constantes rearticulaes (e s vezes

    negao) do prprio reconhecimento de seus traos populares.

    Popular-descolado

    O popular pode articular possibilidades de alta circulao miditica, envolvendo e

    sendo envolvido pelo povo, como aquilo que pop, consumido em escala ampla, o que

    pipoca; ao mesmo tempo carregar a desconfiana de supostas homogeneizaes de

    padres produtivos. A emergncia do pop perpassada por uma vivncia urbana

    cosmopolita. Assim, o popular nesse contexto carrega as marcas dos encontros, tenses e da

    violncia caractersticas da urbanizao, ou seja,

    o tecido urbano prolifera, estende-se, corri os resduos da vida agrria. Estas palavras, o tecido urbano no designam, de maneira restrita, o domnio edificado nas cidades, mas o conjunto de manifestaes do predomnio da cidade sobre o campo. Nessa acepo, uma segunda residncia, uma rodovia, um supermercado em pleno campo, fazem parte do tecido urbano (LEFEBVRE, 1999, p.15).

    A Cultura Pop aciona, ao mesmo tempo, modos de habitar a cidade bem como de

    desabit-la, nos projetando em espaos cosmopolitas em que as razes locais se tornam

    difusas. Deste modo,

    o popular consiste em formas culturais e prticas variando em contedo de um perodo histrico a outro que constitui o terreno em que valores e ideologias culturais dominantes, subordinadas e oposicionais encontram-se e unem-se, em diferentes misturas e permutaes, rivalizando umas com as outras em suas tentativas de assegurar os espaos em que se tornam influentes em enquadrar e organizar a experincia e a conscincia popular. Ele consiste no de duas formas separadamente compartimentadas uma pura e espontaneamente oposicional cultura do povo e uma totalmente administrada cultura para o povo mas localizada em pontos de conflitos entre as tendncias oposicionistas cujas orientaes contraditrias enformam toda organizao das formas culturais em que elas se encontram e interpretam umas s outras (GROSSBERG, 2010, p.209).

    O pensamento de Grossberg encontra reverberao na premissa de Motti Regev:

    ambos parecem estar tratando das inmeras formas de entradas e sadas do que se chama de

    fenmenos da ordem do cosmopolitismo esttico, ou seja, um processo contnuo de

    formao, na Modernidade Tardia, de uma cultura mundial como uma complexa entidade

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    interconectada, no qual agrupamentos de todas as ordens e tipos ao redor do mundo

    compartilham premissas comuns em suas percepes estticas, formas expressivas e

    prticas culturais, de tal maneira que se pense como isto ocorre, de que forma isso se

    legitima e quais as consequncias deste processo. Estaramos diantes de uma fora, uma

    espcie de modelo de produo de msica na contemporaneidade que reivindique no

    necessariamente a conquista de um outro mercado, mas antes se volte para o seu prprio

    mercado. Nesta direo, a perspectiva de reconhecer a preservao de um senso de

    singularidade local, ao mesmo tempo que se adentra ao jogo da Modernidade Tardia. Pensa-

    se, inclusive, o cosmopolitismo esttico como uma sada, aos olhares exotizantes,

    reivindicando a quebra de uma mirada ingnua sobre fenmenos culturais.

    Para alm de uma certa ingenuidade, reconhecer, por exemplo, que canes pop,

    rock, indie e MPB, apesar de toda singularidade que as separam, transitam em um mesmo

    ambiente de agenciamentos culturais, talvez permita refletir sobre problemas comuns aos

    diferentes fazeres e apropriaes culturais que circulam nas esferas miditicas, alm de

    reconhecer dissensos. Inspirados por Homi Bhabha (1998), podemos pensar que o pop o

    suplemento que corta o popular e o miditico. As travessias que circulam atravs das

    expresses da chamada Cultura Pop pressupem abertura para popularizao de partilhas

    sensveis que podem ser ao mesmo tempo inclusivas (quando conectam participantes

    dispersos), exclusivas (quando funcionam como formas de reivindicao de distines

    sensveis), bem como excludentes (quando o global pode servir como forma de

    desqualificao do local).

    O popular inclui no somente a cultura popular mas tambm as linguagens e lgicas que as pessoas usam para fazer sentido de, para se localizarem, calcular suas escolhas, em suas vidas cotidianas e seus mundos sociais O popular aponta no somente para o cotidiano, mas para um reino do senso comum (no sentido gramsciano) como um terreno de disputas (GROSSBERG, 2010, p. 208).

    A Cultura Pop no a produo de outras realidades para alm do local e sim uma

    espcie de mquina de reterritorializao, uma discursividade, ou seja: um ambiente de

    possibilidades ou, melhor, um espao virtual de possibilidades e imaginao se assim voc

    o desejar(GROSSBERG, 2010, p. 192), em que os atravessamentos culturais articulam

    mediaes no somente como um entre, mas como agenciamentos que perpassam a Cultura

    Pop e seus modos prprios de acionar o popular. Assim,

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    mediao, neste sentido, descreve uma casualidade no-linear; mapeia fluxos, interrupes e paradas que descrevem o devir ou autoproduo da realidade ou melhor, realidade-sempre-configurada. Mediao o movimento de eventos ou corpos de um conjunto de relaes para outras como se elas estivessem constantemente devindo em alguma coisa diferente do que so. o espao entre o virtual e o atual, o devir atual (GROSSBERG, 2010, p.191).

    Consideraes finais

    Propomos pensar a Cultura Pop atravs de sua multiplicidade de agenciamentos,

    uma constelao de conceitos, para alm das circulaes binrias acionadas por binmios

    como rock/pop, arte/entretenimento, erudito/popular. No que as denties no sejam

    importantes operadores polticos que configuram e aliceram partes do maquinrio pop,

    mas sim que no trajeto que aqui se prope essa apenas uma das entradas possveis neste

    universo. Abordar a Cultura Pop atravs de uma constelao de conceitos permite-nos a

    partir de entradas diversas, pens-la como maquinrio cultural, mquina distintiva,

    formao popular, territrio, regio discursiva, dispositivo esttico, mercadolgico e social,

    assumindo que todo conceito, tendo um nmero finito de componentes, bifurcar sobre

    outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem outras regies do

    mesmo plano, que respondem a problemas conectveis, participam de uma co-criao

    (DELEUZE; GUATARI, 1992, p. 30).

    Levando-se em conta um comum inscrito em suas diversas linhas de fuga e na

    multiplicidades de agenciamentos que fundam essa complexa formao esttico-semitica

    propomos abordar a Cultura Pop como um maquinrio que se espraia, ao mesmo tempo

    como potncia e poder, devir e engessamento, arquitetando-se como um dispositivo cultural

    que projeta mapas de valncias que no s nos fazem viver atravs de valoraes pop, como

    transformam essas vivncias em experincias que nos permitem habitar e desabitar o

    mundo. Pertencimentos nos colocam diante das partilhas possveis de um comum, mas

    tambm de dinmicas de alteridade (que podem ser inclusive da ordem da exclusividade e

    da excluso), espao vivido (lugar) em que o pop agenciado como um suplemento do

    popular miditico. Assim,

    dispositivos culturais produzem mapas atravs da produo de alteridade, eles so dispositivos de diferenciao. A produo da alteridade toma duas formas distintas: a produo da diferena e a produo da distncia (fronteiras). A primeira a produo de uma grade sistemtica, interligada, ou rede, de investimentos afetivos como relaes do mesmo e

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    do diferente, ou melhor, de identidade e de diferena entre eles. A segunda o efeito da produo de uma grade, um mapa, suas divises. Fronteiras dividem espaos, criam distncias entre aqui e l, o dentro e o fora, ns e eles. Entretanto, essencialmente, essas categorias de alteridade- diferenas e fronteiras- no descrevem possibilidades nicas, existem muitos mapas de diferenas e distncias. Eles podem unir bem como tambm dividir; de fato, eles podem fazer ambos, de diferentes modos e em diferentes graus, em todo e qualquer instante. (GROSSBERG, 2010, p. 200).

    Referncias Bibliogrficas

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    SILVEIRA, F. Rupturas Instveis: entrar e sair da msica pop. Porto Alegre, Libretos: 2013.

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    ResumoPensar msica e cultura pop para alm dos binarismos: pop x rock, autenticidade x cooptao, local x global. Encontrar rotas de fuga para o entendimento dos fenmenos miditicos: o pop como um dispositivo que age sobre o sistema produtivo, uma mquina como propem Deleuze e Guattari de ordens esttica e semitica, desvelando formas de desterritorializao e reterritorializao. A partir das ambiguidades de uma palavra-chave (o termo pop-cult-descolado) do uso coloquial entre os viventes do Recife (e certamente de outras cidades) a proposta aqui construir um itinerrio possvel para refletir sobre as insurgncias estticas do pop, em dilogos com Lawrence Grossberg, Homi K. Bhabha, Motti Regev, entre outros.GROSSBERG, L. Cultural Studies in The Future Tense. Durham/London: Duke University Press, 2010.JANOTTI JR., J. Cultura Pop: entre o popular e a distino In CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogrio; S, Simone Pereira de. Cultura Pop. Salvador: Edufba, 2015.