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PLATAtildeO
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C o o r d e n a ccedil atilde o d e
G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s
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PLATAtildeO
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EDICcedilAtildeO
Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt
REVISAtildeO
Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva
ISBN
978-989-26-1595-0
eISBN
978-989-26-1596-7
DOI
httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7
OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM
copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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417
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Zurich Weidmann 1992
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C o o r d e n a ccedil atilde o d e
G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s
PLATAtildeO
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EDICcedilAtildeO
Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt
REVISAtildeO
Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva
ISBN
978-989-26-1595-0
eISBN
978-989-26-1596-7
DOI
httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7
OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM
copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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C o o r d e n a ccedil atilde o d e
G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s
PLATAtildeO
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EDICcedilAtildeO
Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt
REVISAtildeO
Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva
ISBN
978-989-26-1595-0
eISBN
978-989-26-1596-7
DOI
httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7
OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM
copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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85
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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417
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Zurich Weidmann 1992
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C o o r d e n a ccedil atilde o d e
G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s
PLATAtildeO
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EDICcedilAtildeO
Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt
REVISAtildeO
Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva
ISBN
978-989-26-1595-0
eISBN
978-989-26-1596-7
DOI
httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7
OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM
copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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EDICcedilAtildeO
Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt
REVISAtildeO
Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva
ISBN
978-989-26-1595-0
eISBN
978-989-26-1596-7
DOI
httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7
OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM
copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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Zurich Weidmann 1992
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Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes
Capiacutetulo I ndash Vida 19
Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike
Capiacutetulo II ndash Academia 33
Gabriele Cornelli
Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57
Antoacutenio Pedro Mesquita
Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79
Rodolfo Lopes
Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103
Francesc Casadesuacutes Bordoy
Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119
Richard McKirahan
Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137
Hector Benoit
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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87
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
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POEacuteTICA
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Zurich Weidmann 1992
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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153
Joseacute Gabriel Trindade Santos
Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169
Giovanni Casertano
Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189
Francesco Fronterotta
Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213
Franco Ferrari
Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231
Luc Brisson
Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259
Fernando Rey Puente
Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279
Marcelo Perine
Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295
Tom Robinson
Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313
Mario Vegetti
Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331
Olivier Renaut
Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349
Silvio Marino
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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85
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Xiii
matemaacutetiCa
Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361
Alberto Bernabeacute
Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383
Daniel Rossi Nunes Lopes
Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403
Fernando Santoro
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Apresentaccedilatildeo
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APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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87
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Xiii
matemaacutetiCa
Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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Apresentaccedilatildeo
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APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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87
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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Apresentaccedilatildeo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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85
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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87
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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85
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
BiBliografia
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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11
APRESENTACcedilAtildeO
O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os
favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo
desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto
semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua
filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha
compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta
com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada
sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)
Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente
antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o
primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua
portuguesa
Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e
pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia
que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade
dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute
certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de
Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos
em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente
a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o
XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar
pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia
no ano de 2016
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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87
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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84
CAPIacuteTULO IV
da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar
a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem
de leitura
No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios
dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma
delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples
facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A
circularidade eacute evidente
Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave
demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos
tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso
a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs
fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo
metodoloacutegico
No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem
abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que
parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada
diaacutelogo
6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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85
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo
Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos
decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o
tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo
por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas
pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo
tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos
particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse
periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo
utilizou para os compor
21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca
Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo
que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca
coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz
cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente
ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp
Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes
continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o
documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os
Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas
(orais)
Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo
testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas
ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista
de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50
anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola
em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de
papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos
tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito
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86
CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Xiii
matemaacutetiCa
Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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CAPIacuteTULO IV
(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de
Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)
a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel
que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo
βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela
eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve
referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca
Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda
apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de
Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de
navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ
βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere
que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis
quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a
propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante
adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido
ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo
de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas
de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos
(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ
Ὁμήρου πάντα)
Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos
escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus
destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a
7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores
8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada
9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial
Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou
a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees
diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada
a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava
a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do
cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos
circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84
Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva
ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado
em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave
possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha
jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que
tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute
que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia
mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem
que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970
307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca
de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja
como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas
dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor
Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos
que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na
sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo
eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o
conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor
que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira
vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da
trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)
10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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88
CAPIacuteTULO IV
sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo
acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre
a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo
ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em
conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos
22 anistoricidade dos Diaacutelogos
O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso
modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade
do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as
circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos
globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos
possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo
seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que
constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a
vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto
o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre
esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com
atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das
personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e
ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores
Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide
Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas
explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento
historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos
A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos
explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico
remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente
incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica
11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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89
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds
(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel
(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos
de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem
inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido
haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas
foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)
era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422
ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo
Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu
primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na
Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida
a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre
411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas
possibilidades
Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus
nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada
em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para
esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar
as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito
sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes
dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e
Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do
seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto
participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a
409
3 cronologia relativa
As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do
final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder
1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-
se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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90
CAPIacuteTULO IV
percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores
esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da
qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao
cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados
considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa
de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos
poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem
referecircncia
Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos
suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados
no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades
tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas
paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo
a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo
da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a
ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12
31 a estilometria
Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os
meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no
uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos
cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de
processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados
Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de
estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise
estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo
anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do
qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os
12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)
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91
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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matemaacutetiCa
Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise
depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas
implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados
pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente
dita
No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a
um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar
entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste
em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que
permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar
as vaacuterias fases do seu desenvolvimento
O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma
ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto
acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de
escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos
Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a
elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico
Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)
O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia
esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a
Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de
partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo
apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas
do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo
O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava
de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores
alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual
(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o
mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo
estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos
Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski
(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo
de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um
ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho
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CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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92
CAPIacuteTULO IV
viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em
primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja
anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma
conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13
Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo
grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas
linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente
utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores
Chegou a um total de 500 criteacuterios14
As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias
na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico
praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo
confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como
validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos
produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes
trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois
limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico
De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo
Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto
eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute
pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo
eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra
com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades
estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais
particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes
diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha
implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta
um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar
quando aplicado a Platatildeo
13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)
14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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93
ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS
32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo
321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta
O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas
isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas
Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de
anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se
calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees
A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo
vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o
estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum
diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data
de composiccedilatildeo
A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos
histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da
notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que
invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes
para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam
que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada
data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo
caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios
na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis
como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo
Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer
proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)
eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente
considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico
aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo
A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute
uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de
15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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iX
dialeacutetiCa
Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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170
CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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171
DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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169
i
Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees
que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que
penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem
explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui
A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute
amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates
teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma
personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e
a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda
na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo
das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do
seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a
considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo
incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto
pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em
alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou
por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as
teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras
personagens
B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que
a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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CAPIacuteTULO IX
pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro
a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica
dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo
pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade
de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua
relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro
que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente
presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em
toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte
deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos
a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica
ii
Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em
Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas
teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar
simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo
platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto
natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do
pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer
uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e
por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um
enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da
dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um
nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas
diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico
da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do
eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos
podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos
A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da
discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo
metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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DIALEacuteTICA
interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber
interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e
metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do
discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo
o Feacutedon
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um
processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como
uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir
o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de
todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute
o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica
C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias
estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades
(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento
mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias
essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge
de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu
iii
A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio
de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo
que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o
consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser
encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon
o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes
muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma
lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a
admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no
ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas
umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita
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CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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172
CAPIacuteTULO IX
formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de
governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta
definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os
elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de
dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se
refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com
o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a
mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo
que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo
figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον
τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta
de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o
que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta
A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de
procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados
sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de
sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este
aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma
caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto
eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve
De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute
verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)
ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar
em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha
definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-
te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ
ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa
a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade
mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute
dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse
num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente
entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e
mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica
no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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173
DIALEacuteTICA
quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute
certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo
reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel
nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de
seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na
realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado
eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e
sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado
declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)
Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados
precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo
E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de
dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados
lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do
Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as
paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por
meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a
centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo
do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar
a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο
πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem
natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)
Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra
caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias
Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota
que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a
presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram
caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos
cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de
caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos
(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)
Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em
controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes
que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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174
CAPIacuteTULO IX
Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma
οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento
com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e
distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome
com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a
teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao
dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha
para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome
olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira
estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro
seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras
teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga
a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos
significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4
πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1
φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes
agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν
ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico
(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem
dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar
se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)
B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta
das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite
atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros
VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia
do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a
distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha
cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma
relaccedilatildeo
Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9
σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)
que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos
e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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POEacuteTICA
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175
DIALEacuteTICA
os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel
se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ
δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que
eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo
de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas
para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem
as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ
ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por
meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)
Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se
a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata
de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma
natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por
outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se
fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente
contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos
de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me
oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto
mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem
e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em
Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou
se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo
o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento
inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento
inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo
do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de
um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento
eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso
(510b8-9) que utiliza ideias
Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias
na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon
interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da
segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos
deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo
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176
CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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CAPIacuteTULO IX
e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as
figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como
se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6
ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta
disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros
como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas
pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm
em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando
ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo
discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)
mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para
o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses
mas servindo-se destas como antes se servira das imagens
A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da
dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo
das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)
lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim
(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo
tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ
τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao
que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de
sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias
(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto
se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε
καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ
διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)
Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo
as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata
e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das
quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os
seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que
natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o
sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na
geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas
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CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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250
CAPIacuteTULO XII
O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele
faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti
41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado
levar em duas direccedilotildees
41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18
Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo
com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando
principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)
Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave
medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo
sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do
deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz
no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός
produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim
a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma
atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco
como no caso dos dois lados da mesma moeda
Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em
particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)
algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)
e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama
particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)
A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)
que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam
(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e
portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz
(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo
desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status
18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)
19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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251
COSMOLOGIA
ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz
aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui
a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a
uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da
realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem
Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute
facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser
rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que
modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo
age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela
produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo
passa de uma imitaccedilatildeo
Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao
que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo
φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse
assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por
esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem
e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como
δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus
por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na
inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao
carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo
no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a
accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos
homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se
trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo
sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave
atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-
se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade
exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo
sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas
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252
CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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CAPIacuteTULO XII
42 A questatildeo da teleogia20
A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo
um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores
da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees
fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego
antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era
considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de
interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia
noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos
num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute
a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem
em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo
compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por
um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu
crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover
em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de
si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama
encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a
certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado
chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a
saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo
que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome
(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da
aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas
cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza
que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de
movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente
por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12
Cael 301b17-sqq)
20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)
21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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253
COSMOLOGIA
O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito
fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees
que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre
as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que
postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute
geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa
cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a
transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de
Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas
ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo
o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente
e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao
perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns
nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre
dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o
seco se transformar em uacutemido por exemplo
Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido
eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O
uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou
indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto
das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima
dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu
recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus
(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra
bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo
outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade
de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro
Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a
princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do
Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico
tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-
mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se
encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa
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254
CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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CAPIacuteTULO XII
agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo
fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)
Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta
mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo
Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo
aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo
neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra
e nos EUA
Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer
um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo
evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo
no meacutedio- e neoplatonismo
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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matemaacutetiCa
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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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417
POEacuteTICA
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Zurich Weidmann 1992
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Xiii
matemaacutetiCa
Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS
DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
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417
POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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410
CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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412
CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
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POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
259
i introduccedilatildeo e estado da questatildeo
A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu
importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na
Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia
(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento
disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando
por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva
(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado
Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo
XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum
secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde
podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico
publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que
continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo
havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas
ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao
conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese
1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes
dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi
denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray
2008)
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
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POEacuteTICA
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CAPIacuteTULO XXI
de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo
agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e
ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo
deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor
das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia
natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates
criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido
saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala
Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em
relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como
satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com
justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem
enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio
moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza
atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente
justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer
que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de
um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a
cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da
Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade
confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos
seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos
deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse
com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos
morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma
importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que
examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de
boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois
trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura
A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da
Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em
discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates
3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo
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POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
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417
POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
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Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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411
POEacuteTICA
vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que
assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente
as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as
partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela
semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila
real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto
moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo
do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta
de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal
pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua
excelecircncia
A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo
e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a
poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute
tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro
lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de
algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna
e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no
mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um
poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda
da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias
(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como
encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de
segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores
e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto
eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos
cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes
de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando
falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente
mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no
Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no
real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com
relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo
que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
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POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
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CAPIacuteTULO XXI
opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e
criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero
das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras
do filoacutesofo para Platatildeo
Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter
mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram
Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa
vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas
vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente
esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder
pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte
serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da
falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da
alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente
as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-
-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha
de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto
a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes
guardiotildees da cidade (R 606a-c)
O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de
o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo
que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para
cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que
dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a
formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo
dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este
natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude
de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute
mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade
Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude
socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que
sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel
que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o
comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
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414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
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415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
417
POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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413
POEacuteTICA
Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio
(R 607c-d trad Prado 2006)
Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse
apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar
numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque
temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes
Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo
poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso
sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade
e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos
Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo
proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O
proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo
as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles
vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)
sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na
representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse
desses mesmos sentimentos
Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo
educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo
sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa
se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o
λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica
as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo
como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo
para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma
justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia
e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela
parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo
do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis
ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na
Repuacuteblica
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
414
CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
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Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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CAPIacuteTULO XXI
Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante
a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora
dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se
lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da
Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos
guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos
em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical
ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg
809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter
no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio
do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas
sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se
mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais
se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica
que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se
possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo
(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo
do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado
ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da
poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia
transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens
Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas
pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves
normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense
que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo
tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como
um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados
hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em
determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem
sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as
atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei
(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho
de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as
leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
415
POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
416
CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
417
POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
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POEacuteTICA
ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem
selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas
mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa
forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os
melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo
o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo
tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que
natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas
antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico
a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela
verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia
mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor
natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia
de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo
decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse
novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da
cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e
com o bom governo da cidade justa
Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a
poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a
constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo
identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do
diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os
seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica
vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada
tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque
Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do
lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo
platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a
condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a
felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as
incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da
conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer
e a dor sobre o sentido da vida e da morte
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt
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POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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CAPIacuteTULO XXI
Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia
em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os
melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes
inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas
em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates
apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a
alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico
em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra
e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a
economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em
quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um
poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo
a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta
natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda
dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem
amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico
um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma
mais alta de muacutesicarsquo
BiBliografia
Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo
Editora Perspectiva
Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon
Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill
Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and
Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp
93-110
Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press
Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion
Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade
Rio de Janeiro 7 Letras
Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes
Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica
Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento
Vitoacuteria pp 102-135
Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres
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POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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POEacuteTICA
Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia
Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28
Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp
Zurich Weidmann 1992
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