performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea

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P Eleonora Fabião é atriz, performer e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sobr Sobr Sobr Sobr Sobre ela, a performance e ela, a performance e ela, a performance e ela, a performance e ela, a performance Começo por contar histórias. 17 histórias de performances 17 histórias de performances 17 histórias de performances 17 histórias de performances 17 histórias de performances ou 17 cenas verbais ou 17 cenas verbais ou 17 cenas verbais ou 17 cenas verbais ou 17 cenas verbais rimeira: a história do homem que em- purrou um bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México até seu derretimen- to completo. Segunda: A história do homem que intro- duziu uma boneca Barbie no ânus e, com con- trole de sua musculatura anal e abdominal, ex- peliu-a lentamente na frente de uma audiência. > Ou daquele que construiu uma cela de prisão em seu apartamento/studio, trancou-se nela por um ano (365 dias e noites) e não leu, não falou, não escutou música, não se comuni- cou com ninguém. Contratou alguém para le- var-lhe comida bem como um advogado para testemunhar o feito e guardar a chave. Permitiu visitação pública de três em três semanas, num total de 18 vezes ao longo do ano. > A história de outro homem que con- tratou por 10 dólares/hora um desempregado que concordou em permanecer 15 dias preso por trás de um muro de tijolos contruído numa sala de museu. Através de um buraco, na altura do chão, o contratado recebia comida. > Este mesmo homem pagou 4 prostitu- tas viciadas em heroína para tatuar uma linha horizontal em suas costas. Colocadas lado à lado, as 4 mulheres formavam uma linha reta contínua de 1,60 cm de comprimento. Cada uma recebeu pela participação no projeto 67 dólares, o valor correspondente a um shot de heroína. Vale saber que as mesmas cobram cer- ca de 17 dólares por felação. > E aquele outro que convidou amigos para mastigar páginas do célebre livro Art and Culture de Clement Greenberg, juntou à polpa mastigada ácido sulfúrico, açúcar e bicarbonato de sódio, depositou a mistura num pote que etiquetou com os dizeres “Art and Culture” e retornou o objeto à biblioteca da San Martin’s School of Art (perdendo, nesta ocasião, seu em- prego como professor nesta mesma instituição). 235 P erformance e teatr erformance e teatr erformance e teatr erformance e teatr erformance e teatro: o: o: o: o: poéticas e políticas da cena contemporânea poéticas e políticas da cena contemporânea poéticas e políticas da cena contemporânea poéticas e políticas da cena contemporânea poéticas e políticas da cena contemporânea E leonora Fabião R4-A4-EleonoraFabiao.PMD 15/04/2009, 08:26 235

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Page 1: Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea

P

Eleonora Fabião é atriz, performer e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal doRio de Janeiro.

SobrSobrSobrSobrSobre ela, a performancee ela, a performancee ela, a performancee ela, a performancee ela, a performance

Começo por contar histórias.

17 histórias de performances17 histórias de performances17 histórias de performances17 histórias de performances17 histórias de performancesou 17 cenas verbaisou 17 cenas verbaisou 17 cenas verbaisou 17 cenas verbaisou 17 cenas verbais

rimeira: a história do homem que em-purrou um bloco de gelo pelas ruas daCidade do México até seu derretimen-to completo.

Segunda: A história do homem que intro-duziu uma boneca Barbie no ânus e, com con-trole de sua musculatura anal e abdominal, ex-peliu-a lentamente na frente de uma audiência.

> Ou daquele que construiu uma cela deprisão em seu apartamento/studio, trancou-senela por um ano (365 dias e noites) e não leu,não falou, não escutou música, não se comuni-cou com ninguém. Contratou alguém para le-var-lhe comida bem como um advogado paratestemunhar o feito e guardar a chave. Permitiuvisitação pública de três em três semanas, numtotal de 18 vezes ao longo do ano.

> A história de outro homem que con-tratou por 10 dólares/hora um desempregadoque concordou em permanecer 15 dias presopor trás de um muro de tijolos contruído numasala de museu. Através de um buraco, na alturado chão, o contratado recebia comida.

> Este mesmo homem pagou 4 prostitu-tas viciadas em heroína para tatuar uma linhahorizontal em suas costas. Colocadas lado àlado, as 4 mulheres formavam uma linha retacontínua de 1,60 cm de comprimento. Cadauma recebeu pela participação no projeto 67dólares, o valor correspondente a um shot deheroína. Vale saber que as mesmas cobram cer-ca de 17 dólares por felação.

> E aquele outro que convidou amigospara mastigar páginas do célebre livro Art andCulture de Clement Greenberg, juntou à polpamastigada ácido sulfúrico, açúcar e bicarbonatode sódio, depositou a mistura num pote queetiquetou com os dizeres “Art and Culture” eretornou o objeto à biblioteca da San Martin’sSchool of Art (perdendo, nesta ocasião, seu em-prego como professor nesta mesma instituição).

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PPPPP er fo rmance e t ea t re r fo rmance e t ea t re r fo rmance e t ea t re r fo rmance e t ea t re r fo rmance e t ea t ro :o :o :o :o :poé t i c a s e po l í t i c a s da cena con temporâneapoé t i ca s e po l í t i c a s da cena con temporâneapoé t i ca s e po l í t i c a s da cena con temporâneapoé t i ca s e po l í t i c a s da cena con temporâneapoé t i ca s e po l í t i c a s da cena con temporânea

EEEEE leonora Fabião

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> A mulher que tomou o metrô num sá-bado à noite e foi a uma livraria movimentadavestida com roupas que havia deixado de mo-lho por uma semana num caldo de vinagre, lei-te, óleo de rícino de bacalhau e ovos.

> Uma mulher que construiu uma mini-atura de palco Italiano, tapou os seios nús coma maquete, e convidou os passantes na rua a to-car-lhe os peitos através das cortinas de veludovermelho do pequeno palco.

> A mulher que subiu com os pés descal-ços uma escada cujos degraus eram facões.

> O homem que armou sua festa de aniver-sário na rua, partilhou seu bolo, trocou abraços erecebeu votos de felicidade de desconhecidos.

> A mulher que, no Centro do Rio de Ja-neiro, colocou frente a frente duas cadeiras de suacozinha, descalçou os sapatos, sentou-se, escre-veu num cartaz a frase “converso sobre qualquerassunto” (ou “converso sobre saudade”, “conversosobre política”, “converso sobre amor”), exibiu-o. E, por sucessivas manhãs, conversou com di-versas pessoas sobre assuntos diversos.

> A mulher que convidou os espectado-res a usarem nela, enquanto se manteve passivapor seis horas, inúmeros objetos, dentre elesuma rosa, uma pistola, uma bala, tesoura, mel,correntes, caneta, baton, uma câmera polaroid,faca, chicote (os objetos puderam ser utilizadoslivremente e a performer, que se definiu comoobjeto, assumiu plena responsabilidade pelosatos dos “espectadores” que chegaram a brigarentre si já que alguns queriam feri-la mortal-mente e outros os impediram).

> O homem negro que se sentou numacalçada cinza, exibiu três vidros de maionesebranca, e tentou vendê-los por 100 dólares cada.

> O mesmo homem sentou-se numa ga-leria de arte por três dias consecutivos vestindo

o gorro vermelho do Papai Noel branco, parafazer levitar um vidro azul de leite de magnésia.Branco leite este que, como se sabe, ajuda a sol-tar fezes marrons seja de homens pretos, bran-cos, azuis ou amarelos.

> A mulher que, trajando camisolão bran-co, usou terços de plástico cor-de-rosa-bebê pararealizar desenhos de pênis no chão. (conformeveiculado em sites de notícia na internet: “Emabril de 2006, esta obra é retirada da exposiçãoErótica – Os sentidos da arte, promovida peloCentro Cultural Banco do Brasil, após denún-cia de um empresário que a interpreta comoofensa ao catolicismo. O grupo Opus Christipressiona o Banco para que mantenha a exclu-são da obra no próximo destino da exposição,Brasília. O então Ministro da Cultura, Gilber-to Gil, condena o ato de censura. Finalmente, adireção do Banco do Brasil decide que a exposi-ção não seguiria para Brasília por apresentarameaças à marca e aos negócios”.)

> A história da mulher que se submeteua nove cirurgias plásticas combinando em seurosto traços de cinco beldades da pintura oci-dental: o nariz de Diana (por ser insubordina-da aos Deuses e aos homens), a fronte de Mona-lisa (a mulher algo homem), o queixo de Vênus(a Deusa da Beleza), os olhos de Psyche (refe-rência de vulnerabilidade) e a boca de Europa(a aventureira).

> A mulher que perguntou a seus com-patriotas Palestinos exilados: “se eu pudesse fa-zer algo para vocês, em qualquer lugar na Pales-tina, o que seria?” E, graças a seu passaportenorte-americano, cruzou a fronteira inúmerasvezes e atendeu os pedidos que lhe foram feitos:regar uma planta, pagar uma conta atrasada,comer doce, florir um túmulo, tirar fotografia,jogar futebol com meninos, cheirar o mar.1

1 Estas ações foram respectivamente concebidas e realizadas pelos seguintes artistas: Francis Alÿs (2000),Denis O’Connor (1999), Theching Hsieh (1978/79), 2 ações de Santiago Sierra (2000), John Lathan(1966), Adrian Piper (1970), Valie Export (1968), Gina Pane (1971), Eduardo Flores (2002), EleonoraFabião (2008), Marina Abramovic (1974), 2 ações de William Pope. L (1991), Márcia X (2000-03),Orlan (anos 90) e Emily Jacir (2003).

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Estas e muitas outras histórias descrevemprogramas concebidos e performados por artis-tas interessados em relacionar corpo, estética epolítica através de ações. Gosto de passar essashistórias adiante, de lançá-las sem adjetivação.Penso que estas práticas alargam, que estes pro-gramas oxigenam e dinamizam nossas maneirasde agir e de pensar ação e arte contemporanea-mente. Esta é, a meu ver, a força da performan-ce: turbinar a relação do cidadão com a polis;do agente histórico com seu contexto; do viven-te com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, oconsigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo.Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidarcom o estabelecido, de experimentar estadospsicofísicos alterados, de criar situações que dis-seminam dissonâncias diversas: dissonâncias deordem econômica, emocional, biológica, ideo-lógica, psicológica, espiritual, identitária, sexu-al, política, estética, social, racial...

Em termos dramatúrgicos – “dramatur-gia” aqui compreendida como a define EugênioBarba, uma tessitura de ações podendo ou nãoincluir a palavra – as práticas desses performersexpandem a idéia do que seja ação artística e“artisticidade” da ação, bem como a idéia decorpo e “politicidade” do corpo. Fácil seria di-zer que se tratam de operações adolescentemen-te provocativas promovidas por um punhado desadomasoquistas e/ou idiossincráticos para cho-car o “senso-comum” (que aturdido pergunta-se “o que é isso?” “para quê isso?” “afinal, o queeles querem dizer com isso?” “isso é arte?”). Po-rém, não há nada de fácil em lidar com a po-tência cultural dessas presenças, verdadeirasfantasmagorias assombrando noções clássicas outradicionais de arte, comunicação, dramaturgia,corpo e cena. Performers são, antes de tudo,complicadores culturais. Educadores da percep-ção ativam e evidenciam a latência paradoxal dovivo – o que não pára de nascer e não cessa demorrer, simultânea e integradamente. Ser e nãoser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não sercotidiano; ser e não ser ritual.

P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em PrP como em PrP como em PrP como em PrP como em Programaogramaogramaogramaograma

Chamo as ações performativas programas, pois,neste momento, esta me parece a palavra maisapropriada para descrever um tipo de ação me-todicamente calculada, conceitualmente polida,que em geral exige extrema tenacidade para serlevada a cabo, e que se aproxima do improvisa-cional exclusivamente na medida em que nãoseja previamente ensaiada. Performar programasé fundamentalmente diferente de lançar-se emjogos improvisacionais. O performer não impro-visa uma idéia: ele cria um programa e progra-ma-se para realizá-lo (mesmo que seu programaseja pagar alguém para realizar ações concebidaspor ele ou convidar espectadores para ativaremsuas proposições). Ao agir seu programa, des-programa organismo e meio. A inspiração paraa inserção da palavra-conceito “programa” nateoria da performance vem do texto “ComoCriar Para Si Um Corpo Sem Órgãos” de GillesDeleuze e Félix Guattari, onde se propõe que oprograma é “motor de experimentação” (Deleu-ze & Guattari, 1999, p. 12). Um programa é umativador de experiência. Longe de um exercício,prática preparatória para uma futura ação, a ex-periência é a ação em si mesma. Em Do Ritualao Teatro, o antropólogo Victor Turner entrelaçadiferentes linhas etimológicas do vocábulo “ex-periência” e esclarece: etimologicamente a pala-vra inclui os sentidos e risco, perigo, prova,aprendizagem por tentativa, rito de passagem.Ou seja, uma experiência, por definição, deter-mina um antes e um depois, corpo pré e corpopós-experiência. Uma experiência é necessaria-mente transformadora, ou seja, um momento detrânsito da forma, literalmente, uma trans-for-ma. As escalas de transformação são evidente-mente variadas e relativas, oscilam entre umsôpro e um renascimento.

Programas criam corpos – naqueles que osperformam e naqueles que são afetados pela per-formance. Programas anunciam que “corpos”são sistemas relacionais abertos, altamente sus-

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cetíveis e cambiantes. A bio-política dos progra-mas performativos visa gerar corpos que ultra-passam em muito os limites da pele do artista.Se o performer investiga a potência dramatúr-gica do corpo é para disseminar reflexão e expe-rimentação sobre a corporeidade do mundo, dasrelações, do pensamento. Refraseando: se operformer evidencia corpo é para tornar eviden-te o corpo-mundo.

Se “corpo” é tema e é meio,Se “corpo” é tema e é meio,Se “corpo” é tema e é meio,Se “corpo” é tema e é meio,Se “corpo” é tema e é meio,faz-se necessário perguntar:faz-se necessário perguntar:faz-se necessário perguntar:faz-se necessário perguntar:faz-se necessário perguntar:

o que é corpo?o que é corpo?o que é corpo?o que é corpo?o que é corpo?

Uma resposta dentre muitas.De acordo com Gilles Deleuze (2002),

Baruch Espinosa define corpo de duas manei-ras simultâneas:

Primeira Proposição: o que é corpo?Um corpo é um grupo infinito de partí-

culas relacionando-se por paragem e movimen-to. São as diferentes velocidades relacionais en-tre as partículas, que definem as particularidadesde cada corpo. Portanto, o corpo não é defini-do por sua forma ou função. Forma e funçõesorgânicas dependem de arranjos de velocidadese ralentações e não vice-versa.

O corpo não está sendo compreendidoem termos de forma, mas de forças interativas,como uma complexa relação entre diversas ve-locidades, como uma elaborada interação entrepartículas infinitas.

Corpo é movimento e mobilidade.Segunda Proposição Espinosiana: o quê

move o corpo ou qual o princípio energéticodo corpo?

Um corpo tem o poder de afetar e ser afe-tado – esta capacidade determinante tambémdefine as particularidades do corpo: o quê eleafeta e como afeta, e pelo quê ele é afetado ecomo é afetado.

Então, Espinosa não define corpo por suaforma ou função, como dito anteriormente,nem como substância ou sujeito. Corpos sãovias, meios. Essas vias e meios são as maneiras

como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado.O corpo é definido pelos afetos que é capaz degerar, gerir, receber e trocar.

Espinosa propõe que um corpo não é se-parável de suas relações com o mundo posto queé exatamente uma entidade relacional. O corpoespinosiano não está, e nunca estará, completa-mente formado, pois que é permanentementeinformado pelo mundo, ou, parte de mundoque é. Inacabado, ou ainda, inacabável, provi-sório, parcial, participante – está, incessante-mente, não apenas se transformando, mas sen-do gerado. Tenho particular interesse na respostaespinosiana pelo grau de abstração e a amplitu-de daí decorrente. Se do entendimento de for-ma, função, substância e sujeito passamos àsnoções de infinitude, movimento, afeto e en-tre-meios, nos tornamos potência-corpo antesmesmo de corpos sermos, pois que “corpo” não“é”. O mundo se torna potência-corpo antesmesmo de corpo ser, pois que “corpo” não “é”.

Uma frase: uma frase solta:Uma frase: uma frase solta:Uma frase: uma frase solta:Uma frase: uma frase solta:Uma frase: uma frase solta:uma frase nem tão solta assim:uma frase nem tão solta assim:uma frase nem tão solta assim:uma frase nem tão solta assim:uma frase nem tão solta assim:

uma frase-pipauma frase-pipauma frase-pipauma frase-pipauma frase-pipa

Cada performance é uma resposta momentâ-nea para questões recorrentes: o quê é corpo?(pergunta ontológica); o quê move corpo? (per-gunta cinética, afetiva e energética); o quê ocorpo pode mover? (pergunta performativa);quê corpo pode mover? (pergunta bio-poéticae bio-política).

TTTTTendências dramatúrgicas geraisendências dramatúrgicas geraisendências dramatúrgicas geraisendências dramatúrgicas geraisendências dramatúrgicas geraisda performanceda performanceda performanceda performanceda performance

Sugiro que podemos encontrar em programasperformativos alguns elementos dramatúrgicosdiscerníveis. Porém, veja-se bem, restrinjo-me aapontar tendências gerais, pois considero vão,mesmo equivocado, qualquer esforço no senti-do de definir o que seja “performance”. Trata-sede um gênero multifacetado, de um movimen-to, de um sistema tão flexível e aberto que dribla

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qualquer definição rígida de “arte”, “artista”, “es-pectador” ou “cena”. Como a performance in-dica, desafiar princípios classificatórios é um dosaspectos mais interessantes da arte contempo-rânea. A suspensão de categorias classificatóriaspermite o desenvolvimento de “zonas de des-conforto”2 onde sentido se move, onde espéci-mes ontológicos híbridos, alternativos e sempreprovisórios podem se proliferar. Porém, é preci-so frisar: não se trata de um elogio à falta declareza, de fetichisar o misterioso, muito pelocontrário: trata-se simplesmente de reconhecere investigar a extrema vulnerabilidade dos ditos“sujeitos” e “objetos” e torná-la visível. Dito isto,consideremos algumas tendências dramatúrgi-cas na performance:

1) o deslocamento de referências e signosde seus habitats naturais (como quando a celada prisão ocupa o apartamento/studio do artis-ta); 2) a aproximação e fricção de elementos dedistintas naturezas ontológicas (como quando acirurgia plástica, o set cirúrgico e o corpo corta-do tornam-se públicos e cênicos); 3) acumula-ções, exageros e exuberâncias de todos os tipos(como quando um pote de maionese custa 100dólares); 4) aguda simplificação de materiais,formas e idéias num namoro evidente com ominimalismo (como quando uma barra de geloe o empurrar são suficientes); 5) a aceleração oudes-aceleração da experiência de sentido até seucolapso (como quando se mastiga e se engarra-fa um clássico da crítica de arte); 6) a aceleraçãoou des-aceleração da noção de identidade atéseu colapso (ou até que um espectador queirafazê-la puxar o gatilho); 7) o desinteresse emperformar personagens fictícios e o interesse emexplorar características próprias (etnia, naciona-lidade, gênero, especificidades corporais), em

exibir seu tipo ou estereótipo social (ou convi-dar transeuntes para que apalpem seus seiosatravés das cortininhas de uma maquete de pal-co italiano); 8) o investimento em dramaturgiaspessoais, por vezes biográficas, onde posicio-namentos e reivindicações próprias são publi-camente performados (como o sexo anal comum pênis-barbie); 9) o curto-circuito entre artee não-arte (sempre); 10) o estreitamento entreética e estética (sempre); 11) a agudez conceitual(muita); 12) o encurtamento ou a distensão daduração até limites extremos (como quandouma única ação dura um ano inteiro) e a irrepe-tibilidade (como quando uma ação única étudo); 13) a ritualização do cotidiano e a des-mistificação da arte (como quando alguémcome um doce, cheira o mar ou paga uma con-ta atrasada a pedido de um exilado e exibe fotosdessas ações numa galeria); 14) a ampliação doslimites psicofísicos do performer (seja se desfi-gurando ao feder abjetamente em espaços pú-blicos, ou subindo uma escada de laminososdegraus); 15) a ampliação da presença, da par-ticipação e da contribuição dramatúrgica do es-pectador (que por vezes se vê diretamente im-plicado na ação).

Estrategicamente, a performance escapa àqualquer formatação, tanto em termos dasmídias e materiais utilizados quanto das dura-ções ou espaços empregados. Como sugereEduardo Flores (o homem mexicano que come-morou seu aniversário com bolo e enfeites nacalçada) numa acertiva propositalmente genera-lizante, “a matéria da performance é a vida, sejado espectador, do artista, ou ambas”.3 A arte doperformer, eu arrisco, trata de evidenciar e po-tencializar a mutabilidade e a vulnerabilidade dovivo e da vivência.

2 ‘Expressão utilizada pelo crítico C. Carr em relação ao trabalho do performer norte-americano WilliamPope (Pope, 2002, p. 48).

3 Notas tomadas na visita do artista mexicano Eduardo Flores à uma aula do curso “Performance: teoria,historiografia e composição” que ministrei no primeiro semestre de 2005 para alunos do Curso deDireção Teatral da Escola de Comunicação-UFRJ.

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P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em Performance,P como em ParadoxoP como em ParadoxoP como em ParadoxoP como em ParadoxoP como em Paradoxo

A performance desafia definições, pois ativadinâmicas paradoxais: trata-se da fundação deuma cena-não-cena equiparável ao teatro-não-representacional vislumbrado por AntoninArtaud. Artaud preconiza um “teatro da cruel-dade” sendo que, como explica, “crueldade nãoé sinônimo de sangramento, carne martirizadae inimigos crucificados. Essa identificação decrueldade com vítimas torturadas é um aspectomenor da questão” (Artaud, 1958, p. 102). Eleesclarece: “Eu disse ‘crueldade’ como poderia terdito ‘vida’ ou ‘necessidade’” (idem, 114). Ouseja, um teatro-vida ou um teatro-necessidade.O projeto artaudiano, assim como a performan-ce, não visa, tampouco, à formação de um tea-tro inconsciente. “Quase o oposto” argumentaJacques Derrida em “O Teatro da Crueldadee o fechamento da representação”: “crueldadeé consciência, é lucidez exposta” (Derrida,1995, p. 165). Artaud: “a crueldade é acima detudo lúcida, um tipo de controle rígido e umasubmissão à necessidade. Não há crueldadesem consciência e sem o uso da consciência”(Artaud, 1958, p. 102).

A performance, assim como o teatroartaudiano, é cruel na medida em que ativa flu-xos para-doxais, ou seja, lógicas que escapam àregulamentação da doxa (senso comum e bomsenso); é cruel na medida em que ativa a cons-ciência crítica atrelada à consciência corporal,ou seja, ativa a consciência como “coisa cor-pórea”; é cruel na medida em que conduz o cê-nico a situações representacionais limite. Aidentificação da performance com vítimas tor-turadas seria, pois, um aspecto menor da ques-tão. A cena crua, paradoxal, mínima, aponta oteatro-vida.

No “Primeiro Manifesto do Teatro daCrueldade” uma teoria visionária da perfor-mance começa a ser elaborada (note-se que oprimeiro manifesto foi escrito em 1932!).Artaud busca “uma espécie de linguagem úni-ca, a meio caminho entre o gesto e o pensamen-

to” (Artaud, 1958, p. 89); quer “criar uma es-pécie de equação apaixonante entre o Homem,a Sociedade, a Natureza e os Objetos” (p. 90); eesclarece: “importa é que, através de meios se-guros, a sensibilidade seja colocada num estadode percepção mais aprofundada e mais apura-da” (p. 91); Artaud propõe: “a velha dualidadeentre ator e diretor deverá ser dissolvida, substi-tuida por um tipo de Criador único sobre quemrecairia a dupla responsabilidade pelo espetácu-lo e pela ação” (p. 94); “Suprimimos o palco ea sala, substituídos por uma espécie de lugarúnico, sem divisões nem barreiras de qualquertipo, e que se tomará o próprio teatro da ação”(p. 96); e conclui: “No estado de degenerescên-cia em que nos encontramos, é através da peleque faremos a metafísica entrar nos espíritos”(p. 99). Chama atenção a consonância entre opensamento artaudiano e as buscas de muitosperformers ao longo dos últimos 50 anos.

O teatro artaudiano, e com ele a perfor-mance, é cruel ao minar fundamentos determi-nantes da cultura ocidental, nomeadamente:logocentrismo e tirania teológica. Fundamen-tos estes que domesticam e minguam corpos;forças de subjetivação que descorporalizam nos-sas maneiras de nos relacionarmos e criarmosmundo. Como propõe Artaud, o julgamento deDeus precisa ser erradicado para o nascimentodo corpo; a fúria logocêntrica precisa ser acal-mada para o nascimento do corpo. Como pro-põem os performers com seus programas, o tipode conhecimento de que precisamos no presen-te momento se faz nos corpos, com corpos,como criação de corpos. Ou como convocaGilles Deleuze inspirado por Artaud: “É preci-so que estiquemos nossa pele como um tamborpara que uma nova política comece” (Deleuze,1990, p. 72).

SobrSobrSobrSobrSobre eles, Te eles, Te eles, Te eles, Te eles, Teatreatreatreatreatro e Performanceo e Performanceo e Performanceo e Performanceo e Performance

Fato é que entrecruzamentos entre teatro e per-formance são moeda corrente nos palcos con-temporâneos. Grupos de teatro experimental

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como o britânico Forced Entertainment, o nor-te-americano Wooster Group, ou os brasileirosTeatro da Vertigem, Orlando Furioso, ColetivoImproviso, Michel Melamed e sua cena-poesia,para citar alguns poucos casos, desenvolvem tra-balhos consonantes com o universo da perfor-mance (sejam eles direta e conscientemente in-fluenciados, ou não). Considero a inclusão daprática e da teoria da performance no circuitodo estudo, da pesquisa e da criação teatral esti-mulante por vários motivos: para a ampliaçãode pesquisas corporais e o investimento em pes-quisa específica sobre dramaturgia do corpo; am-pliação do repertório de métodos composicio-nais e o investimento em pesquisa específicasobre dramaturgia do ator; investigação sobrediálogo entre gêneros artísticos e sobre gêneroshíbridos; discussão de conceitos através de maisoutro viés além da teoria do drama e das histó-rias e poéticas espetaculares; aprofundamentode debates e práticas teatrais voltados para po-líticas de identidade e políticas de produção erecepção; valorização de uma investigação espe-cífica sobre dramaturgia do espectador. Conside-remos alguns destes pontos.

Para os artistas da cena em geral penso serde grande valia a experimentação de práticaspsicofísicas baseadas na tradição da performan-ce. Citar alguns exemplos de programas pro-postos pela performer Marina Abramovic emseus workshops elucida meu ponto; Abramovicpropõe: “durante um período de uma hora, es-creva seu nome apenas uma vez num papelbranco sem levantar a caneta” ou “andar paralonge da casa; parar; vendar-se; encontrar o ca-minho de volta” ou “da manhã até à noite, mo-vendo-se o mais lentamente possível, fazer as

ações cotidianas: levantar-se, lavar-se, vestir-se,comer, urinar…” Tratam-se de experiências quepossibilitam um confronto cru com a fisica-lidade, com a metafisicalidade; confronto esteque, penso, tonifica o atuante para além de gê-neros ou técnicas específicas. Grotowski clarifi-ca: “O Performer, com maiúscula, é o homemde ação. Não é o homem que faz o papel dooutro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro:está fora dos gêneros estéticos. […] Pode com-preender apenas se faz. Faz ou não faz. O co-nhecimento é um problema de fazer.”4 Maisuma vez Grotowski: “O Performer não deve de-senvolver um organismo-massa, organismo demúsculos, atlético, mas um organismo-canalatravés do qual as forças circulam.”5 Ainda ou-tra vez Grotowski: “O Performer deve trabalharem uma estrutura precisa. […] As coisas a se-rem feitas devem ser exatas. Não improvise, porfavor! Há que se encontrar ações simples; mastomando cuidado para que sejam dominadas eperdurem. De outra forma não se tratará dosimples, mas do banal.”6

VVVVVertigem: estado mórbidoertigem: estado mórbidoertigem: estado mórbidoertigem: estado mórbidoertigem: estado mórbidodurante o qual perdurante o qual perdurante o qual perdurante o qual perdurante o qual perde-se equil íbrio;de-se equil íbrio;de-se equil íbrio;de-se equil íbrio;de-se equil íbrio;delíquio; vágado; ato impetuoso edelíquio; vágado; ato impetuoso edelíquio; vágado; ato impetuoso edelíquio; vágado; ato impetuoso edelíquio; vágado; ato impetuoso e

irri r ri r ri r ri r refletido; tentação súbita; desvarioefletido; tentação súbita; desvarioefletido; tentação súbita; desvarioefletido; tentação súbita; desvarioefletido; tentação súbita; desvario

O Teatro daVertigem investe em mecanismosdramatúrgicos de alta voltagem performativapara a criação de seus espetáculos.7 O grupoprivilegia a dramaturgia do ator, ou seja, proces-sos criativos onde o ator não é exclusivamenteintérprete, mas co-autor do espetáculo assimcomo o diretor, o cenógrafo, o iluminador, o

4 Revista Máscara – número especial em homenagem à Jerzy Grotowski (Cidade do México: Fondo deCultura del México, p. 78).

5 Idem, p. 80.6 Idem.7 Me refiro à criação e encenação da Trilogia Bíblica composta pelas peças O Paraíso Perdido (1992),

O Livro de Jó (1995) e Apocalipse 1,11 (2000).

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figurinista e todos os demais membros da equi-pe que, geralmente coordenados por um dire-tor, colaboram para a criação da dramaturgia doespetáculo. Ou, como os atores do Vertigem de-finem sua função, o ator “é simultaneamenteautor e performer”.8 No artigo “O Que Faze-mos na Sala de Ensaio” esses artistas destacam aimportância do que chamam “depoimento pes-soal”: “depoimento pessoal é sua colocaçãocomo ser humano, como cidadão e artista. […]É deixar que sua experiência vire arte, seja ma-nipulada”9, esclarece Mariana Lima. Como di-zem, não estão interessados em “camuflar carac-terísticas, mas ampliá-las”.10

Quanto aos métodos de ensaio, compo-sição de cena e personagens, o grupo destacaquatro modalidades de práticas: a vivência (mé-todo que se aproxima do laboratório teatral,sempre pontuado com atividade de escrita au-tomática), a improvisação (improvisações sempreparo prévio a partir do tema pesquisado), osworkshops (cena-resposta à uma questão lançada,composição a ser preparada de um dia para ou-tro utilizando qualquer tipo de mídia) e as visi-tas (pesquisa de campo, sempre em espaçospúblicos, a partir da qual o ator elabora cenase/ou personagens).

Atrelada à pesquisa dramatúrgica em sala-de-ensaio há outro elemento determinante: ointeresse em ocupar espaços não convencio-nais.11 “A apresentação em lugares imprópriospara o aconchego do público ou para o confor-to dos atores abre outras possibilidades, quereinventam o teatro não apenas como entrete-nimento, mas como experiência”.12 Refletindosobre a relevância destes espaços ativos para o

desenvolvimento de suas práticas teatro-perfor-mativas afirmam: “A relação com o público éconsequência de uma situação híbrida em querepresentação e realidade se confundem”.13 Sãoelementos marcadamente performativos explo-rados pelo Teatro da Vertigem: a criação de umacena híbrida onde elementos fictícios e não-fic-tícios são justapostos e um curto-circuito repre-sentacional é ativado; a força política deslan-chada por tal operação; a ocupação de espaços“extracênicos” (para que possam circular outrasdinâmicas relacionais); a ampliação de caracte-rísticas particulares (em busca de uma drama-turgia pessoal); a valorização da experiência e daexperimentação psicofísica através dos métodoscriativos utilizados; a valorização do ator-drama-turgo e do artista-etnógrafo. Trata-se de umapesquisa que, como o próprio nome diz, nãopretende um teatro de estabilidade ou uma re-lação confortável com o espectador e a cidade.

Da mesma forma a inclusão da perfor-mance nos quadros de ensino de teatro. Talvezhaja um estranhamento inicial, porém, penso,tal inclusão proporcionará fricções interdisci-plinares de enorme valia. Justamente por seruma prática não-teatral – ou seja, desinteressa-da dos espaços teatrais, métodos criativos, fun-ções especializadas, possíveis hierarquias nasequipes, poéticas e economias de ensaio e tem-porada – a performance representa um referen-cial dialógico fascinante (no mínimo uma pe-dra no sapato que nos faz parar, descalçar,sacudir, e voltar a caminhar com novas percep-ções do pé, do terreno em que se pisa, do calça-do que se escolhe usar ou que se pode comprar,ou seja, das relações entre corpo, objeto e meio).

8 “O Que Fazemos na Sala de Ensaio”. In: Trilogia Bíblica (São Paulo: Publifolha, 2002, p. 45).9 Idem, p. 46.10 Idem.11 No caso da Trilogia Bíblica, respectivamente, igreja, hospital e presídio.12 Idem. p. 48; grifos meus.13 Idem.

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Um performer não apenas coloca proposital-mente pedras em seu sapato, mas usa sapatosde pedra para que outros fluxos e outras manei-ras de percepção e relação possam circular.

Penso ainda que o aluno ou o profissio-nal de teatro se beneficia não apenas no contatoprático, mas no estudo da teoria da performan-ce. Interesssa por exemplo, à luz da performan-ce, abordar temas centrais do teatro do séculoXX como o ilusionismo (construção e demo-lição) e a narrativa ficcional (adesão e descons-trução). A performance, em sua aguda mate-rialidade, des-narrativização, anti-ficcionalidadee instantaneidade, ou seja, por operar em opo-sição ao ilusionismo e ao narrativismo, torna-seum referência importante para um teatro inte-ressado em discutir poéticas e políticas de pro-dução e recepção.

O decréscimo ficcional, ilusionista e nar-rativo implica num acréscimo de presença eparticipação do espectador (daí o interesse empensar especificamente sobre a dramaturgia doespectador, sobre sua participação por vezes atéco-autoral no fato performativo). Quanto maiso performer desacelera ficção e narrativa, maisespaço sobra para que o espectador se engagenuma experiência criativa; trata-se de propor aoespectador não uma experiência de decifração ecompreensão de algo previamente concebidopelo artista, mas, sim, uma experiência perfor-mativa de criação de significação. Em outraspalavras, o performer não pretende comunicarum conteúdo determinado ao espectador, mas,acima de tudo, promover uma experiênciaatravés da qual conteúdos serão elaborados.A cena-não-cena lança o espectador em um“drama” cru, o da relação com o performer, aperformance, o consigo, os outros, o espaço e ocontexto histórico.

O espectador é um elemento fundamen-tal na trama performativa porque é estimulado

a posicionar-se. Firmar o olhar ou desviá-lo aoassistir uma pessoa sendo operada, transforman-do/deformando seu próprio rosto, fazendo doset cirúrgico um circo macabro? Revoltar-se ereagir ou rir com outra que esculpe caralhoscom terços? Optar por tocar ou não nos seiosde uma mulher através das cortininhas de umteatro à italiana? Esperar que o leite de magnésialevite ou ir-se embora cuidar da vida e fazer algoútil? Perceber como denúncia ou sadismo a ex-posição brutal de desempregados, drogados,prostitutas e imigrantes (mas tudo dentro da lei,com o auxílio de agências de emprego, contra-tos assinados e preços de mercado obedecidos)?Sobre quê “qualquer assunto” conversar comuma desconhecida em praça pública e afinal porquê fazê-lo? Comer do tal bolo de aniversárioou desconfiar da oferta? Admirar ou irritar-secom a mulher passiva e seus objetos de prazer edor? São chamados que implicam não num en-saio psicológico de posicionamento, mas emtomadas de posição imediatas. A convocação daperformance é justamente esta: posicione-se já:aqui e agora.

EntrEntrEntrEntrEntretenimento Forçadoetenimento Forçadoetenimento Forçadoetenimento Forçadoetenimento Forçado,,,,,ououououou da obrigação do artistada obrigação do artistada obrigação do artistada obrigação do artistada obrigação do artista

de divertir seu públicode divertir seu públicode divertir seu públicode divertir seu públicode divertir seu público,,,,,ou da desobrigação de divertirou da desobrigação de divertirou da desobrigação de divertirou da desobrigação de divertirou da desobrigação de divertir,,,,,

ououououou divirtam-me pelo amor de Deus:divirtam-me pelo amor de Deus:divirtam-me pelo amor de Deus:divirtam-me pelo amor de Deus:divirtam-me pelo amor de Deus:a arte deve ser bela,a arte deve ser bela,a arte deve ser bela,a arte deve ser bela,a arte deve ser bela,

o artista deve ser belo!o artista deve ser belo!o artista deve ser belo!o artista deve ser belo!o artista deve ser belo!14

Outro caso de grupo teatral fortemente relacio-nado com a performance a citar é o Forced En-tertainment, especialmente em suas peças delonga duração.

O grupo expõe o projeto: “Depois deanos fazendo teatro, em que uma parte do tra-balho consistia em ensaiar e fixar coisas – fazer

14 “Art must be beautiful, artist must be beautiful” é o título de uma das performances de MarinaAbramovic.

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a mesma peça funcionar da mesma maneira re-petidas vezes – nós resolvemos fazer algo dife-rente, algo mais extremado. As peças longas fo-ram um passo nessa direção: trabalhos entre seise vinte e quatro horas de duração nos quais osatores improvisam dentro de um sistema pré-definido de regras. […] Considere cada peçacomo uma tarefa ou um jogo […] e considereque cada jogo tem regras, estratégias, movimen-tos conhecidos e também limites.”15 Um destestrabalhos – Quizoola!, um jogo de perguntas erespostas para dois participantes – tem a dura-ção de seis horas. O público está livre para en-trar e sair da sala quando e quanto quiser. Trêsatores da companhia, explorando as três com-binações de duplas possíveis, revesam-se porperíodos de duas horas. Os atores interrogam-se mutuamente baseados num questionário com2.000 perguntas sobre os mais variados temas –esporte, amor, filosofia, fatos… Como expli-cam, as respostas podem ser verdadeiras, falsas,longas, curtas, confessionais, abstratas, de acor-do com decisões imediatas. O desenho da cenaé extremamente simples. Lâmpadas elétricas li-gadas em série definem uma área no chão quedelimita o espaço do jogo. Os atores estão ves-tidos com roupas cotidianas e levemente ma-quiados como palhaços. Duas cadeiras, as folhasde papel com as perguntas, algumas garrafasd’água e só. Em Quizoola! não há vestígio denarrativa ficcional. O “fechamento” da cena cir-cunscrito pelas lâmpadas no chão é meramentealegórico: a cena chega aos espectadores de for-ma direta através de interpretações abertas (ouseja, através de atores não apenas cientes da pre-sença dos espectadores, mas capazes de trans-formá-la em elemento da ação se assim deseja-do). A dramaturgia da peça é outro elementode abertura: cada vez que uma pergunta élançada abre-se um vácuo. (Porque o medo deescuro?; você possui escravos?; você é um escra-vo?; você sabe fabricar um veneno?; descreva o

primeiro beijo da sua vida; o que é fogo?; por-que você conta tantas mentiras?) À cada inter-rogação suspensa, um impulso reflexivo e umsalto mental do espectador. A longa duração dapeça tanto exaure como exalta atores e audiên-cia. Por vezes, a arguição é cômica e amigável;em outros momentos, transforma-se numa for-ma de tortura; noutros, adentra-se um espaçode demência, disléxico, mole. A caracterizaçãode palhaço oscila a significação de acordo comas atmosferas. Quizoola! é um jogo de pergun-tas a partir de uma interrogação básica: quais oslimites da cena teatral contemporânea?

Proponho que levemos a questão umpouco adiante e consideremos brevemente al-guns experimentos que visam testar limites e/ou criar novos parâmetros para o teatro. Afinal,já abdicamos de muitos (senão de todos) os ele-mentos ditos “constitutivos da cena dramática”e continuamos a fazer TEATRO com o duplointuito, suponho, de dialogar com a tradição ede descobrir novos sentidos.

Vejamos.A narrativa: O Forced Entertainment

(como tantos outros) abriu mão da narrativa emmuitos de seus espetáculos;

O palco: o Vertigem (como tantos outrosinteressados em arte de lugar-específico) deso-brigou-se do palco e do edifício teatral em bus-ca de outras relações com o espectador-cidadãoe a cidade;

A ficção: o “teatro-documentário” com-plicou ainda mais as dinâmicas ficção/não-fic-ção/tudo-ficção/nada-ficção anunciadas peloteatro cubista de um Pirandello por exemplo,ao focar temas como versão, testemunho, do-cumento e história oral;

O texto dramático: o chamado “teatropós-dramático” teorizado por Hans-ThiesLehmann destaca experimentações cujo foconão está no texto dramático, mas na corpora-lidade e na imagem, fato que o autor associa a

15 “Notas Sobre as Peças de Longa Duração”. In: Live Art. London: Tate Publishing, 2004, p. 101.

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uma transição histórica (de uma cultura do tex-to a uma era de novas mídias e tecnologias);

A personagem: as tantas cenas em que onexo personagem se espatifa, não apenas pelaquebra do eixo de subjetivação operado porBeckett e tantos mais, mas para abrir uma zonaconceitual outra, um espaço entre o ator auto-biográfico e o não-ator: refiro-me às tantas ce-nas contemporâneas em que a biografia do atoré elemento dramatúrgico crucial ou, num outroextremo, as cenas que prescindem proposi-talmente do ator em favor de outras qualidadesde presença e de corpos que não os treinadospara o palco; e, é preciso lembrar ainda, de umprojeto como o Teatro Invisível de Augusto Boal,onde abdica-se até mesmo da consciência do pú-blico que ignora estar diante de uma cena teatral.

Em resumo: dependendo do caso, abre-se mão de um ou mais elementos tidos comoconstitutivos do teatro tradicional – o texto, aconsciência de espectador, a personagem, o ator,o palco, a narrativa, a dimensão representacional– para desconstruir limites, aumentar atritos e,com isso, criar novas zonas de significação.Diante de tal quadro sugiro que passamos deum problema ontológico – o que é teatro – parauma interrogação performativa: o que queremosque “teatro” seja? Como formas não são fôrmas,como formas são momentos da experiência-mundo, cada espetáculo encena uma resposta –resposta provisória, parcial, participante: res-posta-corpo.

Aqui e agoraAqui e agoraAqui e agoraAqui e agoraAqui e agora

Até aqui e agora tratei de discutir a per-formance, e casos de grupos teatrais cujas expe-riências permitem associá-los à performance.Entretanto, gostaria de finalizar apontando paraa pesquisa que me ocupa no momento. Andointeressada nas performances de grupos, per-formances realizadas por mais de duas pessoas.

Talvez devido à estreita relação com as artes plás-ticas, a performance foi e continua sendo umaprática marcada pela figura do artista solo.A carga solipsista é relativizada quando consi-deramos a alta voltagem relacional de muitosprojetos, mas o gesto individual é emblemático.Ando interessada nas performances que, de al-guma maneira, encontram no grupo o corpo ea energia necessários para outros vôos drama-túrgicos. Algo belo e poderoso disseminado tan-to por trabalhos de grupos teatrais como porperformers é a indissociabilidade entre ética eestética, entre política e estética. Contudo, aoevocar este veio político, não me refiro necessa-riamente à “teatro-político” ou “ativismo artís-tico”. Ao refletir sobre caminhos da arte con-temporânea Lucy Lippard comenta:

“Está claro que hoje em dia, até a arte, existecomo parte de uma situação política. O quenão quer dizer que a arte tem de ser vista emtermos políticos ou ser explicitamente en-gajada, mas a maneira como os artistas tra-tam sua arte, onde eles a fazem, as chancesque se tem de fazê-la, como ela será veiculadae para quem – é tudo parte de um estilo devida e de uma situação política” (Lippard,1973, p. 8-9).

Ou seja, tratar-se ou não de militância,não é o ponto nevrálgico da questão. O chama-do é por uma ativação do corpo como potênciarelacional, uma tomada de consciência ativa deque nossas dramaturgias não apenas participamde um determinado contexto, mas criam “esti-lo de vida” e “situação política”. Sobretudo aquie agora, neste nosso país, a um só tempoenrijecido e flácido por conta de tantas e tama-nhas truculências políticas e descalabros sociais,sobretudo aqui e agora, neste nosso país tão pro-fundamente marcado pela herança colonial, aperformance interessa por ser a arte da negocia-ção e da criação de corpo – aqui e agora.

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RESUMO: O artigo circunscreve a prática da performance a partir de exemplos concretos, discuteas bases de uma teoria contemporânea da performance, aproxima os exemplos e as reflexões sobre ocampo de experiências no teatro do século 20 e projeta essa familiariadade em vários grupos eartistas brasileiros e estrangeiros. Por fim, defende a aplicação das práticas e do conceito da per-formance no ensino de teatro nas universidades brasileiras, bem como na dinamização das práti-cas teatrais.PALAVRAS CHAVE: performance, corpo, atuação, programa, dramaturgias das performances.

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