penumbra livro primeiro capitulo 1

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Capitulo Primeiro DESCONHECIDOS Estava calor, um calor abafado e insuportável, quando me pus à espera da minha mãe, que me viria buscar no seu Mercedes negro e novo. Chegara a hora da minha mudança, uma mudança completa na minha vida, e só agora dava conta dos factores positivos, como os verões passados na praia quente e solarenga com amigos de infância, ou aquelas voltas a Katerown de bicicleta. Uma mala e uma pasta seriam as únicas coisas a levar para casa dos meus padrinhos, em Sutterfrin. Aquele lugar vira-me nascer, crescer, e ser quem sou agora, mas com as complicações financeiras também as discussões surgiram por tudo e por nada e o clima estava tão pesado, que parecia cair-me uma pedra na cabeça quando permanecia em casa, parecendo estar tudo contra o que eu mais desejava, um pouco de sossego. - Ainda estás a tempo de não ir! - Avisou-me a minha avó "Camila", como era conhecida lá na rua, estando quase a chorar com a minha partida. » 1

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Jorge Nunes é o autor deste primeiro capitulo do livro intulado de penumbra, um romance entre um rapaz que muda de cidade por causa de problemas pessoais.Jorge pensou num romance entre ele, chamado Daniel e dela, chamada Sally.Ele não sabe que ela é uma gargula, um ser mítico e o antepassado dos vampiros.Jorge tem 19 anos e está a dar os primeiros passos na escrita. Mora no Porto, e gosta de ler e desenhar.E caso para dizer... Temos escritor!Se alguém quiser escrever algo ao autor está disponível um mail para opiniões e comentários:[email protected]

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Page 1: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Capitulo Primeiro

DESCONHECIDOS

Estava calor, um calor abafado e insuportável, quando

me pus à espera da minha mãe, que me viria buscar no seu

Mercedes negro e novo.

Chegara a hora da minha mudança, uma mudança

completa na minha vida, e só agora dava conta dos

factores positivos, como os verões passados na praia

quente e solarenga com amigos de infância, ou aquelas

voltas a Katerown de bicicleta. Uma mala e uma pasta

seriam as únicas coisas a levar para casa dos meus

padrinhos, em Sutterfrin.

Aquele lugar vira-me nascer, crescer, e ser quem sou

agora, mas com as complicações financeiras também as

discussões surgiram por tudo e por nada e o clima estava

tão pesado, que parecia cair-me uma pedra na cabeça

quando permanecia em casa, parecendo estar tudo contra

o que eu mais desejava, um pouco de sossego.

- Ainda estás a tempo de não ir! - Avisou-me a minha

avó "Camila", como era conhecida lá na rua, estando quase

a chorar com a minha partida.

A viagem seria penosa, demorada e muito quente, já

que o interior do carro, bastante bonito, com pele de

camelo num tom amarelado, tudo aquecia mais do que

deveria, e, por mais de uma vez quase que assistira à sua

total destruição por causa de pequenos incêndios. No

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entanto, via esta mudança como uma oportunidade de

poder tornar-me melhor e principalmente por sair do

inferno a que a minha casa se assemelhava. Os dias

pareciam não ter fim, em que eu, era o alvo para todos os

assuntos e conversas e assuntos, sem o mínimo interesse.

Mantinha-me distante. No fundo já tinha a decisão

mais que tomada, ao ponto de ser matriculado na escola

mais popular da nova cidade, o Liceu de Awferid e

pretendia fazer por lá algumas novas amizades.

Ups! Bem, quando voltei a mim a minha avó estava a

esbracejar e a gritar comigo, não levando eu duas

palmadas por sorte, mas eu já estava habituado a este

comportamento por parte da minha avó, até porque ela

tinha razão.

Finalmente uma buzina rouca e bastante prolongada

tinha-me chamado a atenção, continuando a minha avó a

murmurar qualquer coisa entre dentes.

- Vê se não ficas sem comer e se não apanhas frio

Dani. – Acrescentou preocupadamente.

Detestava aquele apelido, mas sabia que não me

podia pronunciar em relação a isso. Ao menos agora iria

ficar a ser chamado de Daniel ou Foller, mas não de Dani.

De facto esse nome fora-me chamado uma única vez

por um tio, agora a viver no estrangeiro, e ainda por cima

numa desta do quarto ano, quando interpretei o papel de

uma rapariga chamada Dani.

Absolutamente repugnante. Maldita professora.

Coitada!

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Lá ao longe uma luz cintilava no asfalto quente e a

exalar fumo precipitado para o ar. Alguém me acenava.

Decerto reconhecera a pessoa e a Harley Davinson que

percorria ruidosamente a estrada em direcção a mim,

parecendo uma gelatina depois de atacada por uma colher,

tremendo por causa do calor, coisas da física que não

percebia muito, e não gostava.

O meu pai chamou o meu nome e logo reconhecia a

sua voz grave e robusta, o seu tronco atlético e desportivo.

Trazia um casaco de cabedal apertado até ao peito, umas

calças verde alface que comprara no Havai, nas primeiras

férias com a minha mãe, e tudo isso me fazia vacilar agora

na escolha.

Cheirava a gasolina num tom carregado naquela linda

peça. Era uma das preferidas pelos rapazes da região e eu

tinha sorte em me passear nela.

Olá rapaz! - Exclamou com um sorriso entre dentes. -

Estás grande. E a tua mãe como está?

Parecia uma pergunta de provocação, pois ele sabia

perfeitamente como ela estava, mas eu não me importei

muito com a pergunta e então respondi de forma rápida e

fechada.

- Bem... – Pronto para bazarmos? - Questionou ele de

modo bastante aberto e parecendo empolgado com a ideia.

Momentaneamente um arrepio me atravessou as

costas, que suscitou em mim um medo de morte.

- Tu…. Sabes conduzir essa mota?

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Engasguei-me quando a pergunta saiu bastante baixa,

de modo a que ele não ficasse tão zangado como eu sabia

que ficaria, mas no fim, apenas um riso abafado saiu e ele

sorriu.

- Bem... Acho que sim. Achas que podemos ir?

Fiquei fascinado da maneira como a mota que movia

com graciosidade ao passar por entre as faixas brancas da

estrada algo velha. O vento passava por entre os meus

cabelos meio espetados, de forma vulgar, e prontamente

parecia que as minhas preocupações desapareciam como

que fossem apenas lembranças de um momento mau e,

que daí em diante ficariam fechadas numa gaveta do meu

antigo quarto.

Era livre como uma ave no céu, bem, não totalmente

mas, por agora era, enquanto via as grandes montanhas

que atravessavam o céu agora desprovido de quaisquer

nuvens e os verdes campos com erva fresca faziam os

cavalos que se viam parecessem maiores que o habitual,

que se calhar ao tempo que ali estariam não parecia assim

tão absurdo pensar daquela maneira. A sensação de estar a

país das preocupações da minha antiga vida, era uma

alegria, e eu estava disposto a esquecer o passado.

Durante a viagem, que demoraria cerca de meia hora

até ao largo onde viviam os meus padrinhos, eu e o meu

pai não nos falamos e eu sabia que em princípio, tímido

como ele era, não passaria muito dali. Senti-o diferente por

causa da idade, é certo, mas não era só isso que me estava

a deixar um pouco intimidado de estar ali.

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O distanciamento que permanecíamos embora eu

estivesse a poucos centímetros dele, pareciam quilómetros

que nos separavam, como se uma rede não me deixasse

tocar-lhe e um vidro que não me deixava ouvi-lo caso ele

falasse. Isso fez-me lembrar dos meus amigos e fiquei

angustiado só de pensar, tentando não pensar que

cometera um grande erro. Não era muito difícil pensar

assim, pois eu era bastante pessimista.

Passara então uns trinta e cinco minutos destes

pensamentos e eu nem notara que o descanço da Harley

estava no solo arenoso que sujava a pequena entrada da

casa.

A casa não era propriamente de ricos como eu estava

habituado à minha, e as suas dimensões também não me

esclareceram a tal conclusão. Tinha uma cozinha estreita

que acabava numa janela com a persiana descida.

Os quartos pareciam-se com os da minha antiga casa,

com a pintura ainda fresca, cheirava-se perfeitamente. O

mais pequeno, certamente onde eu ficaria também estava

pintado, num tom meio avermelhado que não me seduziu

muito, mas felizmente tive a notícia de que havia um outro

bastante maior, e o meu pai levara para lá as coisas. Este

figurava bastante o meu tipo, com a cor azulada a

predominar por completo, alguns móveis, poucos e

pequenos, e o mais interessante, uma televisão e uma data

de cd's pendurados a pregos na parede por baixo de uma

prateleira com uma aparelhagem de alto som, com duas

colunas do lado e a mostrarem a marca da Sony. Perguntei-

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Page 6: Penumbra livro primeiro capitulo 1

me que estaria no quarto errado mas depressa percebia

que seria mesmo onde eu ficaria nos próximos tempos, ou

anos.

Estava a viver um sonho antigo, não que não tivesse

isto em Katerown mas aqui, isto era diferente, mais novo

sem dúvida, e o melhor era que seria um quarto só para

mim, não tendo eu de compartilhá-lo com nenhum irmão

mais velho que se armava em mandão. Estou a falar do

James. Era o meu único irmão e desde que atingiu os 18,

atingira também a parvalheira, digo sem dúvidas. Enfim.

A casa parecia abandonada, sem que alguém

aparecesse para me dar as boas vindas, com tudo

perfeitamente organizado. A meu ver tinha um aspecto de

abandono na sala, algo perdida entre fotografias velhas e

armários de loiças dos anos 50, e o tecto tinha buracos

feitos pelos bichos da madeira. Tomara que não me caísse

na cabeça. Suspirei.

- Não está cá ninguém, pai.

A minha afirmação mostrava arrependimento e eu

senti-me vulnerável às expectativas que teria tentado

pensar serem mais favoráveis que "o normal". Tinha a

certeza que estava errado mas mesmo assim, as saudades

apertavam.

O meu coração contraiu-se dentro do peito e eu não

conseguia respirar da forma correcta, soltando alguns

soluços enquanto olhava em meu redor, vazio e sem vida.

- Talvez estejam a chegar. Talvez...

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Page 7: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Aquele momento de pura hesitação por parte de

Johan, deveria proceder-se devido a algo que ele sabia e

não me contara.

Sentia-se a eminência de uma derrocada na minha

cabeça com aquele suspense e, por momentos, pareceu

que eu ouvi uma voz feminina a rir-se.

Tinha gente em casa mas eu não via clima vivo. A

mudança estava a dar comigo em doido. Os risos voltaram

a ouvir-se e desta vez nitidamente claros. Isto, porque

depois disso um mar de gente saiu de trás das cortinas da

janela da sala e começou-me a cantar os parabéns. Senti

uma confusão de sentimentos a invadirem-me os sentidos

e, num sentido de carácter união e tristonho, tornei aquilo

num aconchego no meu coração. Contorci as mãos vezes

sem conta e os meus ossos salientes obrigaram os dedos a

fecharem-se contra o meu corpo, abrindo os meus olhos

para deslumbrar toda a beleza genuína que me rodeava.

Até aí, já nem me lembrava de algum dia ter participado

numa festa, seja pelo que fosse, e quando havia o meu

aniversário, apenas assistia a prendas de palavras amargas

entre os meus país. Tanto só para mim, de gente que nem

me conhecia.

- Lamuriei-me estupidamente.

- Não dizes nada? Não gostaste? - Gritavam os

presentes, sentindo-me eu completamente baralhado. Era

tudo tão estranho, abstracto e deformado.

Chegara até a pensar se estariam a gozar comigo para

depois me porem a trabalhar.

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Page 8: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Nem tive tempo de pedir desculpas e fui a correr para

o meu quarto depois de subir as escadas ainda que

irregulares, que emitiam um ruído estranho, e percorrer um

longo corredor cheio de imagens e fotografias de família.

Tranquei a porta com violência e a paisagem tinha

mudado radicalmente. Via parcialmente que iria chover em

breve e por ali nada me agradava, com casas cinzentas e

um cheiro a fumo vinha dos carros.

- Mais valia não ter vindo para aqui! - Interroguei-me a

mim mesmo, batendo com a mão na secretaria, ainda meia

húmida do verniz que o meu pai passara, pois era

carpinteiro.

Uma profissão era certo, mas em relação às que

haviam na minha antiga cidade, nada era.

Eu estava habituado a médicos e engenheiros, numa

cidade grande.

Não sabia desvendar o verdadeiro motivo pelo qual

tinha fugido da sala, mas naquele momento, o que eu mais

desejava era que o amanhã chegasse.

Ainda era de dia e pelo estado do sol, não deveria

passar muito das cinco e pouco. Suspirei em sinal de

cansaço. Só agora me dava de conta que tinha a pele

eriçada.

A temperatura descera bastante, pelo menos uns dois

graus, e a temperatura não passaria dos onze graus antes.

Decerto que a minha roupa era quente, usando eu uma

camisola de malha que a minha mãe fizera antes de me

mudar para cá. Um casaco desportivo da marca Adidas, fino

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Page 9: Penumbra livro primeiro capitulo 1

mas com a intenção não de me aquecer mas de combinar

com a camisola faziam o conjunto no meu tronco algo

magro, mas que toda a gente dizia ser atlético, apesar de

eu não achar.

Por outro lado pensava que não seria mesmo verdade,

até porque eu fazia musculação todas as sextas de manhã

num ginásio ali à beira. As calças que usava eram de

ganga, acabando com uma beira fina virada para cima. Não

era a minha roupa favorita mas em breve as minhas

melhores peças seriam, trazidas pela minha mãe. Não

estava preocupado em relação a nada disso. Também não

era pessoa que preocupasse com muitas coisas. Reparei

quase sem crer na janela do quarto, virada para a restante

cidade.

A vista era autêntica e bastante original, nada do que

vira até então em Katerown. Ao menos nem tudo me

aborrecia ali, tomei eu atenção ao que pensava, com um

pingo de ironia nas palavras que vagueavam na minha

cabeça, algo aturdida pelo cinzento do céu.

As portas não abriam com facilidade, e vi que teria de

recorrer à minha força para as abrir. Tinham um aspecto

velho, com uma pintura branca pintada de fresco por cima

de um cinzento-escuro e gasto, visto em algumas partes

com falhas. Tinha buracos provocados pelos bichos da

madeira e por fim ganhei coragem para abrir a tal janela,

mas detive-me quando ela soltou um barulho de

arrastamento encravado que me levou a encostar-me de

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Page 10: Penumbra livro primeiro capitulo 1

imediato aos pés da minha cama, baixa e com cobertores

extremamente coloridos.

Um barulho semelhante a pequenas pedras começou a

ouvir-se a bater nos vidros já embaciados, e eu soube que

começara a chover. Não era mau aquele murmurar mas

mesmo assim sentia-me incomodado. No meu interior, o

meu coração palpitava de tal forma, que pensava ir

desmaiar, pois não tinha comido.

- Daniel? Está tudo bem? - Perguntou Moli, a minha

madrinha, do lado de fora do meu quarto. Eu conseguia

notar a preocupação na voz dela, mas nada disse.

- O que se passou? Tivemos de mandar as pessoas

embora! O que se passa? - Insistiu ela, desta vez sendo o

meu padrinho também falava, mas eu continuei calado,

ouvindo bater a porta várias vezes.

Era óbvio que estariam preocupados, e continuava

assim, estando a noite a precipitar no céu aveludado de

nuvens aglomeradas e pesadas. Ainda estavam a cair gotas

do telhado.

Não me levantei por um instante e o silêncio instalou-

se pesadamente. Eu não sabia, mas tinha adormecido.

Durante essa mesma noite, alguns sonhos ligeiros, não

deixaram marca no meu consciente, mas que ainda assim

me deixavam agitado, fazendo-me acordar por breves

segundos, não dando noção de onde estava. Não havia

necessidade de eu sonhar muito, pois nem era meu hábito

realizar proezas semelhantes, e assim, as horas passaram

sem que as minhas memórias me abalassem

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Page 11: Penumbra livro primeiro capitulo 1

verdadeiramente. Saberia porém, que na manhã seguinte

acordaria meio atordoado e com a sensação de extrema

amargura, com algumas dores de barriga, que talvez, o que

fariam, era acordar-me agora e pôr-me a assaltar o

frigorifico. Tal não sucedeu e eu voltei-me para o outro

lado, não me recordando de mais nada, até à manhã

seguinte.

Quando amanheceu, eu não ouvira nenhum dos meus

dois despertadores que trouxera de Katerown.

- Daniel? Oh meu deus, ainda não abriste a porta?

Reconheci a voz melodiosa da minha madrinha, mas,

por agora, mostrava ser uma voz aflita e totalmente

exagerada de preocupação. Afinal eu não estava tão…

- Que horas são? – Quis saber eu, esperando alguma

resposta do lado de fora da porta, que entretanto veio, mas

em total sentido de reprovação.

- Não interessa que horas são. Apenas sei é que estás

meia hora atrasado. É o teu primeiro dia de aulas. Por favor

levanta-te!

Dei um salto da cama para o chão, tentando ficar de

pé nem que fosse por cinco minutos, mas o corpo estava de

tal forma adormecido que eu ainda cambaleei até à casa de

banho, apenas para ver a minha figura triste. O meu cabelo,

que já estava um pouco grande demais, meio avermelhado,

com madeixas cor de amêndoa, que agora descobrira que

tinha, estava completamente emaranhado sobre si mesmo

e muito despenteado. Seria um dilema penteá-lo, pois era

forte o suficiente para não querer recompor-se com água, e

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Page 12: Penumbra livro primeiro capitulo 1

se fosse com gel então….ufa nem quero pensar! Duro como

ficava, era a sentença de morte para o meu tempo livre,

quando me dedicasse e torná-lo obediente para ele ficar

direito e apresentável.

Decidi que ficaria assim. Parecia uma estrela de Rock

misturada com um mendigo que não tem com que se

pentear, mas com certeza haveriam lá outros iguais a mim.

Pensei eu para tentar não dramatizar.

Seria um milagre eu conseguir chegar ao liceu em

menos de vinte minutos e eu podia escolher entre ir de

autocarro, ou ir a pé, mas ao sair da porta de casa, por

onde saíra aos tropeções, reparei numa bicicleta

estacionada mesmo junto ao portão. Não interessava de

quem era e eu peguei nela, esperando que ninguém me

visse a cometer aquele furto tão singelo, e depois de

observar que o caminho estava livre, pus-me a dirigir em

direcção ao liceu a grande velocidade quase encravando a

corrente e mal me importava em ver a paisagem cheia de

árvores e casas, algumas antigas que me circundavam a

cada pedalada que dava.

Pouco tempo depois, observei um grande edifício

avermelhado e, apenas soube que aquilo seria uma escola

pela grande tableta acima da porta principal, bastante

arranjada com motivos vegetais. Espreitei a tableta e fiquei

profundamente aliviado ao ver as palavras «Liceu» e

«Awferid».

Demasiado depressa para ter tempo de raciocinar,

levantei a dianteira da bicicleta, de modo a virar-me o mais

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Page 13: Penumbra livro primeiro capitulo 1

possível para o portão principal, e, ganhando velocidade,

esgotei as minhas forças mortais para chegar a tempo da

porta não fechar, estacionando a bicicleta junto a uma

arvore a que a prendi, e logo depois ajeitei a minha roupa e

o cabelo, de forma a não dar nas vistas para não pensarem

que estava demasiado desesperado.

Estás com pressa rapaz! – Exclamou suavemente,

quase em tom de troça, o porteiro, e eu fiz-lhe um ar de

aborrecimento que ele entendeu logo. Afinal o meu

“disfarce” não tina resultado.

O interior da escola era frio e calmo, mas ainda assim

conseguia ouvir os murmúrios de colegas meus a entrarem

para as salas, ou não. Mesmo assim teria de encontrar a

sala de físico-química, para não levar um aviso logo no

primeiro dia.

- És o Daniel Foller?

Mostrava ser o tipo de rapariga que andaria sozinha na

escola, tendo um elegante aparelho metálico nos dentes,

que lhe dava uma aparência bastante razoável, exibindo

com ele um sorriso bastante simpático e tímido, com olhos

profundos de constrangimento.

- Apenas Daniel se não te importares. – Pedi eu

afavelmente, ajeitando a minha camisola larga, que me

fugia das mãos e me fazia parecer um “baldas”. Não tirei

no entanto, os olhos do chão, pois não estava habituado a

falar com raparigas, aliás, desde que me lembro de existir,

não falara com nenhuma até então.

- És desta turma?

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Page 14: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Não havia por onde fugir à questão, mesmo que eu

não pretendesse revelar-me já.

- Com certeza. – Respondi em forma de murmúrio

ainda que bastante audível, que percebi com o sorriso

aberto dela.

Aquela rapariga mostrava grande graciosidade,

fazendo ao mesmo tempo um esforço notável para não

mostrar vezes demais o seu “acessório”.

- Queres ir comigo no próximo intervalo para ficares a

conhecer a escola? Já sei todos os recantos! – Afirmou ela

de maneira fulminante, parecendo bastante contente com a

última a parte da frase, e, ao pensar em tais palavras senti-

me a corar. Devia parecer um tomate no tempo ideal para

se poder apanhar.

Um convite. Não me apetecia, de todo, conhecer nada

ali, para já. Mas teria de lho dizer de maneira a que não

ferisse os seus sentimentos tão elevados, de poder ter

alguém com quem falar e estar. Notava-se isso bastante

bem, e eu tinha de sair dali ou morreria de timidez.

- Obrigada, mas…pode ficar parta outra altura?

Amanhã?

De certo que não fora a melhor frase a ser empregue

ali, mas não estava disposto a colaborar com aquela nova

desconhecida.

- Não faz mal. – Amuou ela. – O meu nome é Anna. –

Depois desceu o tom de voz, olhando para os pés. - Vemo-

nos por aí.

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Page 15: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Agradeci novamente, mas já a rapariga de cabelo loiro,

com uma saia aos quadrados verdes sobre fundo preto, se

tinha afastado, indo na direcção das casas de banho, logo

ali ao virar de uma esquina em que estavam afixados

alguns papeis com avisos. Ela tinha ficado triste, mas eu

não podia mesmo sair dali para lado nenhum.

A sala não tinha ninguém, e algumas cadeiras estavam

desocupadas, com a maioria em vista de terem pertences

de alguém. Como era novo ali, decidi esgueirar-me para as

cadeiras do fundo, as três únicas que pareciam não ter

dono, mas dei conta de que todas já tinham coisas em cima

delas, duas mochilas e uma capa, aparentemente velha e já

rasgada que pus com cuidado em cima do parapeito da

janela mais próxima, larga e fechada por um vidro que

estava nitidamente sujo com pó.

Tocara e eu estava super nervoso. Os meus colegas

começaram a entrar, primeiro, um rapaz com sardas, meio

aloirado e de óculos. Tinha uma pose intelectual com os

livros de geologia e matemática debaixo do braço direito.

Trazia uma tshirt às riscas verdes de dois tons, um mais cor

da relva, muito vivo, e outro escuro, quase da cor do

musgo. Era simples, e por isso, talvez fosse gozado como

agora sucedia, quando um bruta montes com estilo

skinhead e a esmagar uma lata de Coca-Cola o empurrou,

deixando-o fazer cair os livros e folhas que trazia. Corri para

ajudá-lo, e comecei a dar-lhe os livros espalhados pelo chão

à minha volta.

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Page 16: Penumbra livro primeiro capitulo 1

- Sou o Daniel! - Disse eu ao tentar que ele perdesse a

timidez e o medo.

- Ke...Kelvin..! - A sua expressão era tão inocente que

até senti pena dele. Depois afastei-me e sentei-me de novo

no meu lugar, prestando atenção ao resto da turma,

notando que a maioria era tudo raparigas, para meu

espanto.

Uma expressão interessada chamou-me a atenção.

Mostrava sinais de grande ansiedade e muito medo. Sim,

era a rapariga do aparelho, e não tirava os olhos de mim.

Baixei a cabeça e olhou fixamente para a minha

secretária, com riscos e cortes editor por x-actos. Sabia que

me observava ainda e senti-me a corar, sentindo as minhas

orelhas a arder. Ela riu-se baixinho. Era engraçada, não

podia negá-lo.

A entrada do professor saltou-me, ao mesmo tempo

que me deixou com receio. Estava estático e recto como

uma estátua ao sol. O meu peito doía-me e comecei a suar

em pingos longos.

- Tem calma, ele não te morde!

O sussurro da rapariga que me observava com um ar

incisivo não me deixou mais descansado, mas abstraiu-me

uns minutos da compostura rígida a que me propus reger, e

agora conseguia sentir de novo os dedos.

A aula seguiu com a apresentação do professor, de

nome Kockin qualquer coisa, e começamos logo o trabalho

a sério, com o estudo de um caso que desconhecia, não me

interessando minimamente por aquilo. Tinha a ver com

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Page 17: Penumbra livro primeiro capitulo 1

raízes, e não achava nada daquilo um pouco que fosse, de

interesse, claro, era físico-química.

- Agora... – Aquele compasso de espera fez-me ficar

ainda mais nervoso quando o homem de cabelo quase

branco e de óculos no nariz, começou a observar os

presentes durante longos minutos, que na verdade foram

breves segundos, mas que para mim, pareceram um tempo

interminável, até que, a sua voz quebrou o silêncio cortante

que invadia a sala.

- Mr. Foller... – Estremeci de um salto na cadeira. Ele

continuou com um ar entusiasmado.

- Conte-nos por favor como é viver em Katerown.

Eu nem sabia como reagir. Dei por mim a pensar em

mil e uma formas de começar a explicação, que fosse breve

e que cativasse a atenção de todos.

Uma história de terror ou uma grande aventura em

que eu seria o herói...Não, de certeza que não eram as mais

distinguidas formas de poder ser aclamado o "maior da

turma", por isso, cingi-me a explicar um pouco da minha

experiência.

- Katerown... – Comecei para que parecesse

minimamente respeitável. - Tem sol, a maior parte do

tempo não chove, há praias enormes para se poder passear

ou apenas estar ao sol, grandes edifícios de empresas na

parte mais central da ostentosa cidade...

Olhava em volta e verifiquei que todos me

observavam com olhares de admiração e especulação.

Limitei-me a continuar, com um pouco mais de entusiasmo,

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Page 18: Penumbra livro primeiro capitulo 1

não exagerando para não pensarem que fosse doido, ou

coisa do género.

- Vivi lá até este ano... - Hesitei em revelar as razões

de me ter mudado, e contornei a situação de uma forma

mais inteligente. - Mudei-me por causa do curso que quero

tirar por aqui, para poder ser arqueólogo.

- Mas Mr. Foller...

O que o meu professor acabara de fazer fora quase

um crime. Tornou a minha confiança num autêntico fiasco.

Perdera a vontade de continuar, suscitando em mim novo

medo, com toda a sala a franzir o sobrolho na minha

direcção em sinal de impaciência.

Todos menos uma pessoa. A mesma que ainda me

olhava com um sorriso aberto e inocente, deixando-me

mais à vontade, mas mesmo assim, tensamente rígido.

- Na sua antiga cidade haveriam árvores, certamente...

Ouvi dizer que é um espaço muito verde!

Ele tinha razão. Parecia conhecer muito bem o lugar

de onde eu provinha, mas mais nada disse, para me dar

nova oportunidade de falar, ao que não respondi, mas olhei-

o em busca de poder interpelá-lo.

- Sim, claro...

A afirmação saiu baixa e penosa, dando-me a

sensação de estar com uma expressão ridícula.

A aula parecia um interrogatório para ambientalistas.

Ainda faltavam quase quarenta minutos para o milagroso

toque estridente, mas salvador, que me faria sair da

"cadeira eléctrica".

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Page 19: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Mas de repente o clima foi cortado por uma batida

seca e forte na porta, que virou todas as atenções na

direcção do som, inclusive com a apreensão do professor

que agora que mostrava muito direito, depois de arranjar o

casaco, bastante brilhante e de cor cinzenta. Parecia um

"smoking".

A porta abriu-se e uns sonoros e pesados passos

ecoaram na sala e nos corredores do exterior desta.

De fato muito formal e com uma gravata azul

turquesa, de porto severo e olhar furtivo, apresentou-se

ainda que olhando para nós, um homem com os seus

cinquenta anos. Certamente que seria o director ou alguém

com muito prestígio ali, pela maneira como todos os

presentes o olhavam com precaução, quase não levantando

a cabeça para o fitarem nas faces pálidas.

- Muito boa tarde meus senhores...

Olhei de relance para o meu professor e notei que ele

tremia a cada palavra proferida a nós.

- Na próxima semana terão uma visita de estudo a um

museu local. Verão uma exposição de várias catedrais

românicas em fotografias emolduradas, que vos servirá

como introdução à disciplina de História e Cultura das

Artes, o qual eu serei o vosso professor e director de turma.

Esfregava as mãos ao dizer tal coisa e eu tive grande

noção que ele estaria ali para nos preparar para um ano de

pesadelo. - Obrigado pela atenção. Bom dia.

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Page 20: Penumbra livro primeiro capitulo 1

E saiu porta fora em passo largo, quase não

pestanejando, sempre com aquele ar rígido e de grande

altivez.

Decerto que seria um bom motivo para eu nem

aparecer na visita, tendo inventado uma doença ou uma

indisposição qualquer, que fosse bastante convincente.

Além disso já tinha tido uma disciplina semelhante no ano

transacto, mas não me desagradando de todo a ideia de ver

catedrais.

Teria de reflectir no assunto e preparar-me no caso do

meu plano de falta falsa, desse para o torto.

- Olá! - Chamou uma voz atrás do meu ombro.

Logo atrás de mim, distanciada por trinta centímetros

estava uma rapariga. Tinha uns olhos brilhantes e muito

vivos, cor de amêndoa. Mostrava um rosto bastante

perfeito com curvas bem delineadas nas faces algo rosadas.

Tinha um sorriso fechado mas muito humilde e simpático, e

reparei que a sua expressão mostrava um pouco de aflição

e nervosismo, pois olhava sistematicamente. Parecia estar

preocupada com algo ou com alguém.

- Olá. – Repetiu antes de se apresentar. – O meu nome

é Bella. Ouvi dizer que és o Daniel Foller. É verdade?

Notei que ela quase me segredava tal pergunta, mas

também reparei em todos os olhares de novo, pousados em

mim, e agora nela, de forma quase mortífera.

- Quando vieste para cá?

Aquela pergunta era tão directa como a que Anna me

pusera ao perguntar o meu nome. Não percebia a razão

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Page 21: Penumbra livro primeiro capitulo 1

mas, toda a gente parecia querer-me ali. No entanto, os

olhos que controlavam aquela rapariga, tão frágil e curiosa,

pareciam queimar-me o olhar e o corpo cada vez que o

confrontava com algum receio.

- Desculpa, não posso falar mais. O Edward está a

olhar para aqui. Finge apenas que me foste chegar uma

caneta do chão, porque ele parece zangado.

Fiz-lhe um sorriso tímido e debrucei-me na cadeira

para fazer o que me pedira. Não queria certamente ser

odiado por ninguém.

Era um rapaz, branco da cor de mármore mais branco

que existe, o que arrepiava-me. Quase não parecia ser

humano e o seu rosto mostrava em grande parte, ódio

serenamente controlado. Não gostava de mim, sabia-o, mas

não pretendia que ele me fizesse mal, até porque ele

deveria ter chegado ali primeiro que eu, pela sua estatura

bastante corpórea e altiva, mesmo sem mostrar sinais da

idade como rugas ou barba. Não teria tido barba em

nenhuma altura, sabia-o pela face completamente lisa, que

seria impossível poder ter por melhor que a tivesse cortado.

Arriscava-me a dizer que teria uns vinte e poucos anos.

- Obrigado. – Agradeceu Bella com um sussurro breve.

O seu murmurar era tão suave como uma criança de dez

anos, apesar de ela já ser uma rapariga bem desenvolvida.

Era simpática, mas seria melhor afastar-me, pelo menos

por agora. Ouvi-o quase rugir. Era estranho estar ali no

meio dos dois.

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Page 22: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Finalmente a aula parecia estar a terminar aquando

reparamos nos restantes que arrumavam as suas coisas à

pressa, arrastando as cadeiras e soltando um barulhinho de

fundo que me incomodava os ouvidos, assemelhando-se

aquilo a um enxame de abelhas em ponto de caça

eminente. Senti-me tonto e deixei-me ficar quieto na

cadeira à espera de me acalmar. As minhas mãos tremiam

e reparei que Edward passara mesmo atrás de mim,

raspando o seu longo casaco de pele cinzenta nas minhas

costas. Limitei-me a ignorar que ele estava ali e tentei não

pensar que ele me viria pedir explicações pela conversa

com a amiga dele.

Depois a campainha tocou de forma prolongada, e até

que todos saíssem, não mexi um dedo sequer. Só depois

me levantei e arrumei o caderno na pasta de uma alça que

trouxera. Teria agora que enfrentar o espaço interminável

da escola, e eu precisava urgentemente de comer.

Soltei um suspiro de alívio quando atravessei a porta

da sala e não observei ninguém por ali perto para me

interpelar. Senti de novo a minha cabeça no lugar, assim

como todo o corpo e bocejei. Anna riu-se baixinho, estando

mesmo atrás de mim.

- És muito engraçado sabias?

A voz era suave e eu conhecia-a, mas quando a

conheci, vi que não teria proferido uma frase para que

respondesse. Eu sabia que ela teria encontrado sim, o meu

eu, que eu procurava manter na penumbra.

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Page 23: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Virei o rosto e olhei por instantes, a face divertida que

conseguia observar, estando esta fixada em mim. Mostrava

ter o semblante um tanto ou nada carregado de receio,

como se ainda não estivesse à vontade para se dirigir

verbalmente a mim, deixando o seu olhar pregado na

tijoleira do chão.

- Estás bem?

Percebi que tal questão fora posta pela expressão

estúpida com que me deveria encontrar, ou por algum

cabelo fora do seu devido lugar, dando-me a ideia de que

faria figura de idiota ali. Mas porque é que eu estaria

assim?

- Como já disse, sou a Anna, Anna Lindsley.

O nome era giro, mas nada irrelevante para mim.

- Tens medo do Edward?

Boa! O Edward. A conversa já não me estava a suar

bem, pelo que comecei por parecer menos nervoso. Ele

seria perigoso para mim, mesmo que isso à partida fosse

mentira. Sabia-o perfeitamente.

A rapariga de estatura média, tal como eu, remexeu

num dos bolsos grandes da sua mala, vermelha e brilhante.

Prestei atenção à situação. O seu cabelo longo cobria-

lhe a face, e depois, olhou para mim com um olhar muito

aflito. Com uma mão tentou uma vez mais alcançar algo e

depois desistiu. Suspirei ao pensar que fosse buscar o

telemóvel para depois me pedir o número, o que me

deixaria extremamente aborrecido e irritado. Pelos vistos

seria apenas um caderno esquecido na aula anterior, o que

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Page 24: Penumbra livro primeiro capitulo 1

não constituiria tanto motivo de preocupação, e ela

descansou depois de mo informar.

O meu estado de espírito estava gelado e aborrecido,

tendo a consciência de que nada estava ali a fazer com

aquela rapariga que não via como tal. De facto, não passará

muito tempo desde que começara a falar com Anna, e senti

o meu cérebro a divagar e a agitar-me, quando uns dedos

me irromperam os pensamentos sobre o almoço, como

flechas.

- Entrámos? - Perguntou uma voz aguda bem junto de

mim e dos meus ouvidos, ainda meio tapados pela

sensação de querer ter uma fuga rápida. Depois detive-me

por instantes, para pensar no meu horário. Senti-me mais

confiante, face à certeza de que a hora de sair para almoçar

se aproximava, depois desta aula. Porém, esta aula teria de

se realizar, o que era péssimo.

De certo modo, a ideia de que sequentemente iria

para casa, parecia deixar-me com um novo ânimo.

O professor Gregory já estava sentado na sua

secretaria de madeira americana. Tinha barba robusta,

olhar erguido e uma expressão forte e vincada de

impaciência nas rugas que apresentava sob a boca e na

testa. A aula começou sem percalços, ainda que tivesse de

falar novamente em Katerown, onde me limitei a imitar as

palavras proferidas anteriormente.

Estava agora em ciências.

Os olhares mostravam cansaço, quando alguns

reviravam os olhos e ninguém prestava atenção. No fundo

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Page 25: Penumbra livro primeiro capitulo 1

da sala, à frente, o rapaz que ajudara do ataque de um

brutamontes, que felizmente agora tinha faltado, ainda se

mostrava interessado, e para meu espanto, escrevia muito

quando eu pronunciava algo da antiga cidade. Depois

acenava com a mão e erguia o polegar em sinal de

provação. Ao menos tinha um ouvinte, já não era mau.

Quando a hora de saída chegou, ergui-me da cadeira e

peguei na mochila, depois de dar um jeito ao cabelo, pois

parecia-me estar a cair para a frente dos olhos. Na verdade,

teria de o cortar o mais depressa possível, pois já me

chateava ter de aplicar gel todas as manhãs, e ele estava a

começar a ganhar caspa, o que me atrapalhava, já que a

minha roupa preferida tinha sempre preto, um inimigo

altamente perfeito para o meu problema capilar.

Quando encontrei a saída para o portão principal, fui

directo para o exterior, cansado e com vontade de

descansar um pouco.

A bicicleta estava exactamente no mesmo lugar onde

a deixara, e eu corri um pouco até chegar perto. Havia

gente por todo o lado, muitos alunos, o que me iria

dificultar a saída, mas a sorte estava comigo, e consegui

colocar-me no passeio principal, a caminho de casa, num

ápice.

Como tinha tempo, pedalei devagar e olhei em redor,

para observar toda a paisagem, cheia de casas bastante

arranjadas e de cores vivas, árvores enormes e cheias de

folhas, em cada um dos lados, sem muito trânsito na rua.

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Page 26: Penumbra livro primeiro capitulo 1

O ar era fresco e fez-me apertar o casaco azul-marinho

que eu trazia, ainda aberto. Parecia que a chuva estava

para chegar, com nuvens negras a aglomerarem-se no céu

e a fazerem formas estranhas no amplo espaço vazio e

soturno.

A porta de casa dos meus padrinhos rangeu quando

lhe dei um jeito com a perna, para que abrisse, pois estava

meia empenada por ferrugem nas dobradiças velhas. A

casa precisava urgentemente de ter obras, mas, parecia

que isso não aconteceria nos próximos tempos.

Suspirei e entrei, em direcção à cozinha que

permanecia silenciosa e escura, dando-me logo a razão

pela qual a casa emanava a mofo.

Agora percebia o porquê de quando chegara àquela

casa, no dia em que supostamente, deveria ser o do meu

aniversário, a casa parecia velha e assustadora.

Os meus padrinhos trabalhavam todo o dia, até altas

horas da noite, e deixavam sempre a casa fechada e

desarrumada, como podia comprovar pela pilha de loiça

suja em cima da banca e da mesa encostada a uma coluna,

que dava também encosto para o sofá que se via

imediatamente ao abrir-se a porta, com um pequeno

espaço a separar a porta deste. O sofá era grande e tinha a

forma de L, todo branco, agora meio sujo por causa do pó,

apesar de ter um plástico a protegê-lo quase na totalidade.

Havia restos de piza pelo chão e os tapetes, à entrada e

junto à copa estavam gastos, muito decorados, é certo,

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Page 27: Penumbra livro primeiro capitulo 1

com flores e formas geométricas, de um bordeau

carregado, mas inacreditavelmente, cobertos de pó.

Não gostava nada daquilo, e nunca fizera limpeza até

agora, mas aquilo fizera-me tanta impressão, que decidi

pegar numa vassoura. Teria de a encontrar primeiro, nos

cinco armários à beira do balcão de granito, o maior que

havia, junto ao forno de cor negra. No entanto isso não

constituía problema para mim, até porque era bastante

bom a encontrar coisas, e lá o encontrei, facilmente e no

meio de alguns produtos de limpeza e aventais.

Levantei mais pó do que o que limpei, mas a cozinha

ficara bem melhor assim, achei eu para comigo próprio.

Passara-se meia hora desde que comecei as limpezas,

e agora apenas dispunha de meia hora para almoçar.

Também não sabia cozinhar, por isso decidi comer a

caminho do liceu, num dos cafés que havia até lá, ao todo

três. Uma sanduíche e um sumo chegavam-me para

aguentar toda a tarde e não cair a meio de uma aula

qualquer. Eu era forte e na verdade, também não gostava

muito de comer, pois queria-me manter em forma. Nunca

fora gordo e não era agora que o iria começar a ser,

certamente.

Peguei nas chaves e dei um ligeiro jeito ao cabelo em

frente ao único espelho de corpo inteiro que havia no hall

de entrada. Depois peguei de novo na bicicleta, desta vez

meio descuidado (apenas me apercebi disso a caminho da

escola), e saí à procura do meu almoço de fast-food.

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Page 28: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Permaneci atento a todos os nomes de ruas por onde

passava, para futuramente, se gostasse do café, saber

onde era e qual o seu nome.

As montanhas que viam muito ao longe, e, por breves

segundos fascinaram-me. Ali não era tudo tão mau como

previra de manhã, com todas as perguntas sobre o meu

"passado".

Senti-me bastante confortável em cima da bicicleta

cinzenta e alta, podendo passar por sítios estreitos quando

aparecessem carros.

Finalmente apareceu um café, de nome "Food &

Friends", e gostei do aspecto da montra, cheia de bolos e

bebidas em lata, dispostos lado a lado. Não estava cheio e

foi fácil ser atendido rapidamente, dirigindo-me de imediato

à esquina que me levaria directa ao liceu. Desta vez não

estava atrasado.

Tudo correra como planeara. Fui digerindo pequenas

quantidades de fanta enquanto me aproximava do portão,

agora visível. Estava bem mais bem-disposto e quase me

desaparecera a ideia do martírio matinal.

Havia uma leve brisa no ar, que me passava na face e

me fazia levantar os pêlos dos braços em sinal de pequenos

arrepios, já que a minha temperatura corporal era mais

quente do que a aragem no ar, que fazia folhas nas árvores,

grandes e robustas, agitarem-se de um lado para o outro

como forma de uma dança perfeitamente ensaiada. Com

grande surpresa vi, parada e encostado ao muro que

figurava uma das alas para o portão, o rapaz que tinha sido

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Page 29: Penumbra livro primeiro capitulo 1

envergonhado de manhã, com este perfeitamente à

vontade num grupo de cinco raparigas em seu redor, com

cadernos e a fazerem grande alarido.

- Génio da matemática! - Pensei com alegria e ao

mesmo tempo com tristeza, simultaneamente a soltar um

suspiro. Afinal a única fama que tinha era para uma

rapariga, que não fazia propriamente o "meu estilo".

- Daniel Foller certo? - Interrogou uma voz algo

familiar, mas muito distante para que a reconhecesse. Virei

a cabeça na direcção da voz e vi uma cara muito delicada,

com uns grandes olhos azuis da cor do mar, cabelo aloirado

com madeixas, e um capacete negro de motoqueiro. Trazia

uma mochila, que, pela expressão de dor no seu rosto

suado em forma de coração, a deveria estar a cansar muito.

Estendi-lhe a mão para oferecer ajuda de imediato.

- Importas-te? - A minha voz era fraca e rouca. Eu não

estava a fingir. As palavras que tinha dito apenas me

escapavam, como se de uma anel largo se tratasse, a fugir

de um dedo demasiado fino para ele. Senti-me atónito

perante tal conclusão, tão negativa.

A brisa leve e suave invadiu-me os sentidos. Os meus

olhos abriram-se repentinamente. Notei nas folhas de uma

árvore que se agitava, o mesmo nervosismo que tinha

dentro de mim, quando um frio miudinho me trespassou.

Dei um passo e ela afastou-se. Então sorri para a deixar

mais à vontade.

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Page 30: Penumbra livro primeiro capitulo 1

- Não te preocupes. Sim, acertas-te no nome. Não que

seja algo de muito extraordinário. - Estremeci antes de

fazer a questão que tinha em mente. - Como te chamas?

Ela deu outro passo para trás, afastando-se ainda mais

de mim, e começou a andar para trás sem que a que o seu

lindo rosto se desviasse do meu. E depois desapareceu ao

entrar na porta principal. Parecia um dejá-vu da primeira

vez em que nos encontramos, quando ela quase me

atropelara e desaparecia rua abaixo.

Visto que a minha ajuda tinha sido dispensada e que

permanecia sozinho à entrada do liceu, decidi-me por

também entrar, tentando a todo o custo visualizá-la

novamente por ali perto. Havia algo de fascinante naquela

rapariga, algo que não sentira por nenhuma até então, e

que me punha sem palavras, com as pernas a tremer.

Sobrevivera. Um penoso sentimento de abandono

percorria todo o meu corpo, originando os maus

pensamentos de ter abandonado os meus país, o que me

era ainda tolerável e suportável, mas pouco. Não sentia os

braços há algum tempo e comecei a perguntar-me se seria

resultado da brisa que me deixará os membros

adormecidos, ou, por outro lado, bem mais grave e

incompreensível, se aquela rapariga me tinha deixado

assim, em tão mau estado. O que quer que fosse aquilo,

deixava-me mais ciente de que agora estava na hora de

entrada.

Ao chegar à sala do primeiro piso vi que os meus

colegas estavam muito contentes e a fazerem grande festa.

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Page 31: Penumbra livro primeiro capitulo 1

- O que se passa?

- Vamos mudar de horário! - Gritou Anna, com um tom

totalmente eufórico.

- Isso... é bom? - A minha pergunta parecia um clone

de ironia e sarcasmo, o que quase ofendeu aquela rapariga

que novamente baixou o olhar e se afastou. Senti-me vazio,

o dia não podia estar-me a correr pior.

- Sr. Foller, Sr. Foller!

Alguém me chamava. Não seria com certeza um

colega meu, e arrepiei-me só de pensar que tivesse feito

algo de errado. Propus duas opções para, agora, o director

do liceu se estar a dirigir a mim; a primeira seria, por ter

chegado bastante atrasado à aula de química de manhã, já

depois do toque e depois de o porteiro se preparar para

fechar a porta, e por não me ter apresentado a ele quando

o deveria ter feito. Ou a segunda, menos grave, a bicicleta

que estaria estacionada num sítio proibido ou fora do lugar,

ou até pior, não poderiam entrar veículos desses no liceu.

Endireitei-me para escutar o sermão que

supostamente iria dar.

- Estou muito contente por o ter por cá! - A sua ovação

era tão sincera como as lágrimas de uma criança quando

tem fome.

Era ainda jovem, com um fato azul-marinho e uma

gravata vermelha, com o nó mal feito, o cabelo muito liso e

penteado classicamente, com pala e risca ao lado.

Não passaria seguramente dos quarenta e cinco. Até o

meu padrinho seria mais velho, com cinquenta e tais.

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Page 32: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Depois segurou-me o ombro com firmeza e aproximou-se

de mim, ao que eu correspondi com curiosidade.

- Então o seu pai encontra-se bem de saúde? Como

está o Sr. Foller, seu pai?

Apanhara-me de surpresa, pois não fazia ideia de que

este pudesse conhecer o Sr. Evans.

- Bem... Penso eu! - Ainda hesitei antes de lhe pôr uma

pergunta. - Conhece-o?

Ele soltou um riso abafado e dirigiu-se às escadas. -

Venha comigo!

- Mas... - Murmurei, preocupado com as aulas, ao que

ele acenou a cabeça em sinal de reprovação, deixando-me

aliviado. Depois segui-o até uma sala cheia de retratos e

fotografias antigas, situada no piso inferior, mesmo à beira

do bar.

- Aquele ali era o seu pai!

Não me aproximei para observar pela janela, enquanto

o senhor Andrew falava. Tentava interiorizar uma decisão

para futuramente poder suportar. Caso visse o meu pai, nas

férias de verão, seguramente que ele viria com a mãe,

mesmo que se tivessem separado, ou a ida até Katerown

para lhe fazer as questões que inundavam o meu espírito

de curiosidade.

Ele falou muito. Muito mesmo, que quando entrei

deveriam ser umas três horas e meia, e quando finalmente

me mandou sair, o ponteiro das horas e dos minutos

apontavam para as cinco horas. Hora de voltar a casa.

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Page 33: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Voltei as costas à sala, com o director a agradecer

ainda e desloquei-me a grande velocidade para a saída.

Estava cheio de vontade por regressar a casa. Estava tão

entusiasmado, mas assustado com todas as informações,

que desconhecia, do meu pai. Talvez pudesse satisfazer

uma ou outra coisa que ainda me perguntava se seria

possível.

- Olá Daniel. - Exclamou Sally mesmo junto da minha

bicicleta.

Sorri de espanto.

- Olá... Sally, não é? - E acenei, enquanto ela me

fixava o rosto com aqueles olhos azuis profundos e vivos.

- Posso fazer-te companhia? Penso que tenha sido um

pouco inconveniente a desaparecer como faço sempre.

Ela devia estar a tentar arranjar maneira de pedir

desculpas, contornando a situação.

- De facto.

- Mais uma vez peço desculpa.

Ao aproximar-se de mim vi os seus cabelos lisos e

brilhantes a ondularem, enquanto ela se movia

graciosamente. Era formidável falar com ela. E tremi desde

a ponta dos pés à cabeça. Ela baixou o olhar, havendo

silêncio até sairmos das imediações do liceu, e perguntei-

me se lhe deveria falar ou deixar que o silêncio imperasse,

o que me estava a incomodar. Optei por falar.

- Porquê?

Não consegui dizer algo melhor, com o receio que ela

não entendesse aquela pergunta tão sem sentido.

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Page 34: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Sorriu e encolheu os ombros. A seguir sentamo-nos

num degrau do passeio ali à beira e Sally abriu o casaco

roxo que lhe chegava aos pés.

- Então ainda continuas a achar que sou maluca... Era

a isso que te referias?

- Parece que lês mentes! Lamento - E baixei o olhar

em sinal de vergonha.

O olhar dela mostrava serenidade e nenhum rasto de

ódio, o que me fez sentir muito à vontade. Sabia que já não

me sentia assim à muito tempo.

Depois soltou uma gargalhada.

- Bem... Fico aqui! - Respondeu suavemente ao tirar as

chaves de casa.

Com aquilo tudo nem me dera conta que tínhamos

voltado a andar, com as bicicletas na mão. Olhei para a

estrada meia reduzida a reflexos do sol, ainda fraco, que

lhe batia. Em seguida reparei que a "minha" casa estava ali

mesmo, a duas casas de distância.

- É aqui que moras? - Quis saber com uma expressão

demasiado ansiosa para não disfarçar o entusiasmo de ter

Sally com vizinha. Como se não sentisse que aquilo não

passaria de um desejo forte de estar perto dela.

Mas o que estava eu a pensar? Não conhecia aquele

Daniel. Eu estava estranho, e isso deixava-me assustado,

mais assustado que as perguntas da manhã daquele dia

interminável. Depois ela virou-se para mim e olhou com

curiosidade nos meus olhos.

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Page 35: Penumbra livro primeiro capitulo 1

Senti-me pequeno à sua beira, e não olhei

directamente para aquela desconhecida que queria tanto

conhecer. Peguei na bicicleta e mexi no plástico que cobria

o guiador.

- Essa é uma bela pergunta! - Afirmou num tom quase

inaudível, que me interroguei se estaria a dirigir-se a mim.

O silêncio instalou-se e só foi quebrado com a resposta

segura que ela deu. Entretanto, ainda suspirei

profundamente para ouvir, tendo o olhar posto nos seus

lábios, que agora se moviam.

- É a casa da minha amiga Charlotte. Veio para cá

passar férias e vou-lhe entregar as chaves que o meu pai

lhe mandou entregar por causa de um carro dado como

presente. Eles são grandes amigos!

- Aborreci-te! - Afirmei ao tapar a cara com as mãos,

estando com um ar enervado. Olhei-a muito rapidamente

quase à toa, para depois fazer parecer o parvo que era.

- Sou mesmo estúpido... Todos pensam que sou uma

coisa e depois, faço perguntas festas - Continuei de mãos

na cara, não conseguindo enfrentá-la, naquele ar quase

angélico dela.

- Não considerei um insulto, por isso não me sinto mal

pela tua pergunta. Apenas penso que sejas um pouco

tímido? Será a palavra certa?

Apesar do que eu dissera, ela parecia estar bastante

alegre, o que já não me surpreendia. Depois ela mostrou o

seu sorriso aberto e perfeito, e abriu o pequeno portão

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Page 36: Penumbra livro primeiro capitulo 1

verde, para percorrer ainda um pequeno caminho até à

porta branca com desenhos em alto-relevo de anjos.

Cerrei os punhos para me despedir, mas o som do

"adeus" não saiu, e em vez disso, uma tosse rouca ecoou

pela rua, deixando-me embaraçado.

Ela despediu-se acenando.

- Até amanhã... - Disse, deixando o meu coração a

bater como uma metralhadora que não parava de disparar.

Quase desmaiei ao sentir tudo a andar à volta.

Pus um pé fora do passeio, e preparava-me para cair,

quando... algo duro me abraçou e segurou. Sally segurava-

me com as duas mãos à volta da cintura, quase colada a

mim.

- Tens de ter mais cuidado Daniel... - Advertiu

enquanto eu me sentava no passeio, quase não

raciocinando com o que sucedera. Sabia perfeitamente que

ela não teria tempo de me agarrar de tão longe que estava.

- Como é que tu... O meu sussurro pareceu nem se

ouvir. Sentia que uma coluna de pedra me amparara, e isso

era quase impossível.

Espantosamente a voz dela parecia tão brincalhona

que se preparava para rir. Tentei encontrar uma solução

para tal momento e deparei-me a pensar que tudo não

passava de uma mistura de emoções.

Uma vontade de sentir as suas mãos tão frágeis. Sabia

que algo era impossível, e despedi-me com pressa,

dirigindo-me a casa, já em cima da bicicleta. Éramos

desconhecidos ainda. Havia tanta coisa a perguntar, e

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ficava nervoso só de pensar que no dia seguinte nos

voltássemos a ver, para lhe questionar tudo que quisesse.

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