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PENSANDO A FORMAÇÃO PROFISSIONAL A PARTIR DO OLHAR DE JOVENS
AUTORES DE ATO INFRACIONAL
ROBSON VASCONCELOS GARCIA1
Este trabalho é fruto de parte da monografia do curso de Serviço Social, bem como fruto da
prática profissional durante os anos de 2009 a 2013 com base nas intervenções realizadas
junto a jovens submetidos ao cumprimento da medida socioeducativa de Liberdade Assistida,
por determinação judicial em razão do cometimento de ato infracional. Naquela ocasião
encontravam-se sob a responsabilidade de uma instituição social denominada - Serviço de
Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Surge assim, a necessidade de compreender como
estes jovens se percebem e se reconhecem dentro desta sociedade na perspectiva da formação
profissional. Desta forma, o trabalho contém informações que possibilitou refletir sobre a
categoria juventude enquanto tema complexo na nossa sociedade. Foram entrevistados jovens
do gênero masculino que se encontravam na faixa etária de 15 a 21 anos de idade em
cumprimento de medida socioeducativa. Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa, com
orientação filosófica adotada pelo materialismo dialético, utilizando a metodologia da história
oral e a técnica do gravador. A coleta dos dados constituiu-se de um roteiro previamente
elaborado com questões semi-estruturadas aplicadas aos jovens, cujos relatos foram gravados
e posteriormente transcritos e digitados realizando por fim a análise critica dos dados
coletados.
Juventude(s): algumas definições
Partindo dessa realidade é que surge a necessidade deste projeto, pois, muito se fala e
se produz academicamente sobre a juventude e nos parece até obvio um novo trabalho que
deseje abordar esta temática. No entanto, o óbvio precisa ser dito quantas vezes forem
necessárias. Não sendo esta uma pesquisa que apenas lança o olhar deste autor, mas que possa
ouvir e que seja o meio por onde a juventude possa falar. Neste sentido, tomarei como base
neste artigo a realidade juvenil pautando-me no Art. 1º do Estatuto da Juventude, Lei
1Assistente Social pela Universidade de Santo Amaro Unisa-SP. Especialista em Psicossociologia da Juventude e
Políticas Públicas pela FESP-SP. Atuando como Assistente Social no Hospital Geral de Itapecerica da Serra/SP.
2
12.852/2013 onde em seu parágrafo 1º define que para os efeitos da lei, são considerados
jovens as pessoas entre 15 e 29 anos de idade.
Ao buscar na literatura existente sobre a discussão voltada quanto ao termo juventude,
foi possível observar que ele é comumente utilizado pelo campo da Sociologia e da História,
pois tais áreas buscam uma leitura mais próxima do coletivo, ou seja, um sujeito em um
contexto social determinado e que é resultado de uma história que o precede. Assim, entendo
que esta pesquisa se aproximara das discussões onde há a prevalência do coletivo, entendendo
o termo juventude(s) como um conceito e o ser jovem como um ser com uma construção
social e histórica e não meramente uma condição etária.
É comum nos diversos estudos e pesquisas encontrar o termo juventudes no plural,
pois parte-se da afirmação de que não há apenas um modelo de juventude, mas pode-se
caracterizar como “tribos”2 juvenis. Afinal, torna-se fundamental entender que a juventude é
uma fase de construções e desconstruções a partir de um contexto histórico e cultural, com
necessidades sociais, econômicas e também políticas especificas.
A juventude por definição é uma construção social, uma produção de uma
determinada sociedade, relacionada com formas de ver os jovens, inclusive por
estereótipos, momentos históricos, referências diversificadas e situações de classe,
gênero, raça, grupo, contexto histórico entre outras. Ressalta-se que o emprego do
termo juventudes no plural, antes de patrocinar uma perspectiva fracionada, na
qual aparecem modelos de jovens separados, sinaliza a existência de elementos
comuns ao conjunto dos jovens. (ABRAMOVAY; CASTRO, 2015, p. 14)
Para melhor compreensão desta população vale destacar alguns dados obtidos através
de um levantamento realizado pela Secretaria Nacional de Juventude3 no ano de 2013, que
apontou a juventude brasileira como sendo 51,3 milhões de jovens no país. Deste número a
divisão de gênero ficou em 50% para cada lado. Já a totalidade de 85% destes jovens vivem
em áreas urbanas e 47% estão entre a faixa etária de 18 a 24 anos. A pesquisa classificou o
predomino de pardos (45%) sobre brancos (34%). Quanto às questões ligadas a religião 56%
se declarou católicos, 27% evangélicos e 15% descrentes de figuras e representações divinas.
2É o nome que se dá a cada uma das divisões dos povos antigos. Por extensão, aplicou-se, na antropologia, para
designar certos tipos de agrupamentos humanos.
3Órgão oficial do Governo Federal Brasileiro.
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No que se refere aos espaços de lazer 61% afirmaram frequentar parques e praças,
55% relatam ser as festas em casas de amigos como seu espaço de lazer, 54% utilizam-se de
cerimônias religiosas, já 41% dizem frequentar bares com amigos e 40% tem nos shoppings
seus espaços de lazer.
Sobre a violência 51% dos jovens disseram ter perdido parentes, sendo quase metade
destes assassinados. 18% dos jovens disseram ter perdido amigos, sendo as causas externas a
mesma porcentagem. Desta população 61% residem com os pais (ou com um deles) e 38%
têm ensino médio completo. Entretanto, um terço estava sem estudar no momento em que a
pesquisa foi realizada. Sobre o mercado de trabalho 53% estavam inseridos, mas 80% destes
exercendo funções com mais de 24 horas por semana4.
A pesquisa apresenta dados socioeconômicos onde colocam a juventude como em
situação vulnerável, ou seja, pobre ou extremamente pobre. Tais dados tornam-se relevantes
se analisarmos que a juventude é um período de conflitos, da disposição em brigar por seus
objetivos, do senso questionador que torna este público alvo de vários estudos e pesquisas.
A juventude torna-se relevante para este trabalho a partir do momento em que é um
assunto debatido cotidianamente na sociedade, fazendo parte das mais diversas agendas sobre
as várias dimensões que se evidenciam na vida dos jovens, destacando-se entre estes a questão
da formação profissional aqui proposta.
Metodologia e instrumento de pesquisa
Este trabalho situa-se no âmbito do Serviço Social. Sendo assim, o caminho percorrido
contou com instrumentos e técnicas que possibilitaram a efetivação da pesquisa e para que
nenhum detalhe seja desconsiderado a pesquisa qualitativa apontou como a que mais se
aproxima com os objetivos propostos.
Entendemos por metodologia o caminho do pensamento e a prática exercida na
abordagem da realidade. Ou seja, a metodologia inclui simultaneamente a teoria da
abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as
4Dados obtidos e disponibilizados no site:
http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/participacao/pesquisa%20perfil%20da%20juventude%20snj.pd
f. Acesso em: 16/11/2015.
4
técnicas) e a criatividade do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal
e sua sensibilidade). (MINAYO, 2010, p. 14)
Segundo Martinelli (1999), este método de pesquisa nos possibilita a conhecer de
maneira plena os sujeitos com os quais dialogamos, ou seja, nos permite nos aproximar das
histórias destes sujeitos levando em consideração suas singularidades, proporcionando que as
informações fornecidas pelos sujeitos ganhem vida. “Na verdade, essa pesquisa tem por
objetivo trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que está sendo pesquisado,
não é só a minha visão de pesquisador em relação ao problema, mas é também o que o sujeito
tem a me dizer a respeito”. (MARTINELLI, 1999, p. 21)
Sabendo da natureza da pesquisa qualitativa é que surge a opção pela metodologia por
via da história oral. Esta escolha não se dá apenas pelas qualidades e virtudes que a mesma
apresenta, mas por manter o caráter ético-político que cabe aos profissionais, além de ressaltar
a experiência do sujeito e seu papel na sociedade.
Cabe aqui ressaltar que a história oral não é exclusivamente de uso para profissionais
do Serviço Social, mas é apropriada por inúmeras áreas do saber, não possuindo estatuto ou
exclusividade de uma área, mas presta-se a diversas abordagens em campo.
A História Oral, como metodologia de pesquisa, se ocupa em conhecer e
aprofundar conhecimentos sobre determinada realidade – os padrões culturais –
estruturas sociais e processos históricos, obtidos através de conversas com pessoas,
relatos orais, que, ao focalizarem suas lembranças pessoais, constroem também
uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas da
trajetória do grupo social ao qual pertencem, ponderando esses fatos pela sua
importância em suas vidas. (CASSAB, 2003, p. 1)
Assim, esta metodologia surgiu como a possibilidade para pessoas geralmente de
segmentos sociais, considerados como excluídos, possam ser ouvidos e terem então registrado
sua visão de mundo que em partes também representa ao grupo social a que pertence.
Ao pesquisador esta metodologia da história oral possibilita, romper com as estruturas
acadêmicas que caracterizam e transformam a entrevista em simples suporte documental,
sendo que na pesquisa histórica e social, nos faz desvelar,
(...) a riqueza inesgotável do depoimento oral em si mesmo, como fonte não apenas
informativa, mas, sobretudo, como instrumento de compreensão mais ampla e
globalizante do significado da ação humana; de suas relações com a sociedade
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organizada, com as redes de sociabilidade, com o poder e o contrapoder existentes,
e com os processos macroculturais que constituem o ambiente dentro do qual se
movem os atores e os personagens deste grande drama ininterrupto – sempre mal
decifrado – que é a História Humana.” (Albertini, 1990 apud, CASSAB, 2003, p. 1)
Por fim, cabe ao profissional durante sua intervenção no trabalho de campo, atitudes
de respeito e importância para com o individuo, adotando cuidados no trato com o sujeito e
com os materiais coletados. Essa postura está diretamente relacionada à ética que o
profissional confere em seu proceder. “Tudo que escrever ou disser não apenas lançará luz
sobre pessoas e personagem históricos, mas trará conseqüências imediatas para as existências
dos informantes e seus círculos familiares, sociais e profissionais”. (AMADO, 1997 apud,
CASSAB, 2003, p. 1)
Ato infracional e medidas socioeducativas: do que estamos falando?
Quando nos propomos a falar sobre medidas socioeducativas, logo nos remetemos ao
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou seja, é ele o instrumento que marca a vida
dos adolescentes e jovens, bem como é um desdobramento que marca este segmento a partir
da Constituição de 1988. O ECA em seu Artigo 103 define o ato infracional como “a conduta
descrita como crime ou contravenção penal”. Sendo ainda definida a responsabilidade pela
conduta inicialmente aos 12 anos.
Segundo Ataíde (2008), deve-se compreender que a infração juvenil e o
desenvolvimento do jovem que infracionou não ocorre de maneira isolada, e sim, de maneira
integrada, tendo em vista que ele vivencia as “ações sociais, políticas e econômicas” do
momento vivido. Ou seja, o envolvimento infracional está relacionado com a possibilidade do
reconhecimento e do status que o mesmo obterá em seu grupo de amigos e em suas relações
sociais. Mesmo tendo ciência de que vários são os fatores de risco que podem levar
adolescentes e jovens a essa prática é importante buscar um conceito do significado do ato
infracional levando-o à aplicação das medidas socioeducativas que são destinadas àqueles a
quem tais conceitos lhe são atribuídos.
Segundo Oliveira (2001), podemos considerar então a noção de infrator, como sendo
uma categoria jurídica na perspectiva da justiça penal centralizada na infração, ou seja, o que
está estabelecido pelo ECA como um comportamento considerado infracional estará sempre
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sobre o regimento de um contrato social vigente e que o jovem infrator está condicionado a
avaliação de um legislador, conforme as descrições das leis penais.
Volpi (2006) sugere que a temática adolescente/jovem infrator deve ser considerado
nesta relação com o sistema de justiça de maneira especifica, ou seja, a limitação e a atuação
da justiça será dada pela transgressão da lei e que as demais problemáticas que afetam os
jovens devem e são objeto de atuação do Estado, a partir de seu conjunto de políticas
públicas.
Quanto à visão dos adolescentes e jovens no que se refere o que detinham como
significado quanto a ato infracional, os mesmos apontaram o seguinte:
Ah! Várias coisas né: roubar, traficar, fazer o que você não pode na sua idade né!
Várias coisas. (D)
Pra mim era o seguinte: eu achava o bagulho bonito ai eu comecei a me envolver,
na primeira oportunidade também que eu tive de começar a vender o bagulho na
minha quebrada mesmo, eu tava precisando (...) Eu tinha o meu dinheiro, pegava o
meu dinheiro mano, juntava dinheiro pra caralho, tinha hora assim que no meio da
rapaziada eu gastava dinheiro, com as minas também. (W)
Compreende-se então, que na visão dos adolescentes e jovens os mesmos consideram
que as ações caracterizadas como infracional, são práticas indevidas, mas não apresentam as
conseqüências advindas dos mesmos como os efeitos legais. Deve-se ainda levar em
consideração que não obstante o cometimento do ato infracional procuram preservar certa
capacidade crítica para discernir sobre suas atitudes delituosas.
O ECA estabelece que “menores de 18 anos” são inimputáveis (perante o Código
Penal), porém sujeitos as medidas prevista pelo Estatuto, sendo estas caracterizadas em duas
categorias: as medidas socioeducativas em meio aberto e as medidas em meio fechado.
Assim, as medidas socioeducativas são aplicadas a adolescentes e jovens que cometeram
autoria ou em co-autoria ato infracional e que estão na faixa etária entre 12 a 18 anos de idade
incompletos e foram apreendidos mediante flagrante do delito. No entanto, tendo em vista o
período em que foi realizado o ato infracional o jovem poderá excepcionalmente cumprir a
medida imposta até 21 anos de idade.
Entende-se que somente a este público haverá a aplicação de uma medida
socioeducativa, pois as transgressões de normas e regras serão assim consideradas infração e
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não crime. Os jovens nesta situação estarão sujeitos a todas as conseqüências que advieram da
prática do ato infracional, no entanto, não poderão em hipótese alguma ser responsabilizado
penalmente.
Conforme o artigo 118 do ECA, durante o cumprimento desta medida o jovem deverá
ser acompanhado por pessoa capacitada, e esta poderá ser designada pelo Juiz da Vara
Especial da Infância e Juventude (VEIJ), mas poderá também ser recomendada por entidade
ou programa de atendimento especifico. Cabe então ao profissional técnico que realiza o
acompanhamento da medida promover ao jovem e sua família o zelo pela sua escolarização,
profissionalização e sua inserção no mercado de trabalho.
Craidy e Gonçalves (2005) ressaltam que as aplicações das medidas socioeducativas
não devem ser vistas como penas aplicadas aos jovens que cometeram ações consideradas
ilegais, mas, que tais medidas possuem um caráter educativo, ou seja, educar é possível: afinal
ter praticado um ato infracional não significa que o jovem seja um criminoso e que seu
destino está voltado para a vida do crime. Consideram ainda que a educação é o ato que parte
do adulto através das intervenções na contribuição do desenvolvimento destes jovens e é neste
sentido que o ECA estabelece que toda atitude repressiva descaracteriza o processo educativo.
Embora as medidas socioeducativas no seu bojo tenham um caráter punitivo e/ou
controle, não significa que no cumprimento destas, os jovens devam ser punidos e sim
reeducados, tratados como sujeitos de direitos. As instituições responsáveis pela
operacionalização da medida devem se empenhar para resgatar a auto-estima, dos jovens para
que se reconheçam como alguém capaz de desempenhar papéis significativos nos espaços
onde ocupam.
Quanto à aplicação das medidas socioeducativas, cabe lembrar que as mesmas são
determinadas pela autoridade judicial, ou seja, o jovem não as escolhe, sendo obrigado a
cumpri-las. No caso de haver resistência quanto a esse cumprimento estará sujeito as
“penalidades” previstas no ECA.
Durante o período de acompanhamento é importante o estabelecimento de vínculos
por parte do técnico e do adolescente, pois o período de duração da determinação judicial é
relativamente duradouro, o que permite esta construção de vínculos. Para Baptista (2001),
vale enfatizar que a construção dos vínculos se dá devido à importância de relações
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interpessoais construídas no processo de formação do adolescente. Nesta relação entre técnico
e adolescente é estabelecida uma reciprocidade onde o técnico reflete sobre a conduta do
adolescente e também o adolescente analisa o modo de se relacionar com o técnico.
Nesta perspectiva é de fundamental importância compreender e identificar como os
adolescentes avaliam a execução da medida a qual estão inseridos e quando questionados
expuseram os seguintes pensamentos:
Aqui o bagulho é da hora ta ligado? Aqui o pessoal ta pra ajudar, não pra atrasar
as pessoas, pra tentar ajudar as pessoas a voltar pro rumo, pro mundão certo
mesmo. (J)
Normal né! Melhor do que ficar pedido ai pela justiça. (D)
Destaca-se aqui que durante a realização das entrevistas todos os adolescentes
entrevistados demonstraram respeito para com os técnicos de referencia de cada um, ou seja,
o que caracteriza que foram estabelecidos vínculos que possibilitam enxergar novas
possibilidades nas intervenções necessárias. Para o efetivo exercício do trabalho com este
público é de extrema importância que o profissional tenha clareza de que o trabalho é voltado
para o adolescente e não ao ato infracional cometido.
Dentre as infrações cometidas, destaca-se o envolvimento com o tráfico de drogas, ou
seja, esse quadro denota que não há expectativas quanto ao mercado formal de trabalho e a
formação profissional que devido às exigências não se aproximam ao perfil destes jovens e as
políticas sociais são falhas não atendendo as demandas deste grupo.
Iamamoto (2001), já apresentava que o momento vivenciado na contemporaneidade é
notoriamente um momento pleno de desafios. Como será para os jovens vivenciar situações
tão complexas neste período de suas vidas? Tendo em vista que este período também é
cercado de controvérsias, de rebeldias e conflitos.
A construção social do ato infracional
Culturalmente vincula-se a associação entre criminalidade e pobreza, sendo que essa
associação é amparada nos índices que demarcam os sujeitos inseridos em situações de
vulnerabilidade social. O trecho em destaque narra um dos momentos em que um jovem de
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classe média/alta já no seu auge da dependência química busca mais uma oportunidade do uso
de tal substância e ainda os atos que comete para adquirir o produto.
Os playboys iam buscar drogas na favela. Raul os tratava da mesma forma que eles
tratavam suas empregadas. Havia um tal de Cláudio. Era galego. Saía do Tatuapé
para ir buscar drogas em Itaquera, dizia que a droga de lá era a melhor que já
havia experimentado. Rolou um boato de que ele havia empenhado relógio, tênis e
até mesmo jóias da mãe para usar drogas. Raul fazia o que queria com aquele
pobre viciado. Era um cara totalmente dominado pelo pó e muitas vezes chegou
implorando um tapa. Era um cara boa-pinta, andava sempre com roupas de marca,
estudava na melhor faculdade. Com aquele carrão importado podia escolher a
mulher que quisesse. Vinha de boa família. Raul não entendia o motivo pelo qual ele
se acabava daquele jeito. Nunca havia experimentado cocaína. Ele achava que era
coisa de noia e não queria acabar como o alemão. (LOPES, 2009, p.132)
Este relato denota que não há nexo causal entre pobreza e criminalidade, porém, é
quase impossível negar que os jovens das regiões periféricas são incorporados
subalternamente nas redes complexas do poder paralelo, pois em geral residem em territórios
onde as drogas são armazenadas e distribuídas, ou seja, o envolvimento com o tráfico e a
possibilidade de obter ‘vantagens’ imediatas, acaba sendo para o jovem sua única opção.
Sá (2007) refere que a visão sobre o ato infracional é obtida a partir de uma concepção
do jovem como vítima do sistema social ou então como um produto do meio, ou seja: encara-
se a prática do ato infracional como estratégia de sobrevivência ou também uma resposta
espontânea e mecânica do jovem a uma sociedade violenta e infratora para com os seus
direitos mais fundamentais.
A sociedade é um monstro! Porque hoje em dia ninguém quer ajudar ninguém não,
é poucos que pensam assim, poucos mesmo. Tá um lixo esse Brasil, vai assistir
televisão passando uma pá de coisa, que nem lá do moleque Juan já faz tempo,
policial matou o moleque, oh! como ta, que nem dizem né, quem tem que proteger
nós ta matando. (D.O)
Sartório e Rosa (2010) destacam que ainda hoje nos sistemas socioeducativos os
jovens inseridos são os de maior vulnerabilidade social, acentuando a associação entre
pobreza e criminalidade. Ressaltam ainda as transformações e novas configurações sociais
nos ambientes familiares, bem como nas estratégias de sobrevivência, juntamente com os
filhos.
Quando tratamos de jovem e ato infracional numa perspectiva social, encontraremos
diversos estudos que apontam para jovens que estatisticamente estão em situação de maior
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vulnerabilidade, entretanto, casos mais recentes apontam que jovens de classes
economicamente estáveis têm cometido atos infracionais por sua vez considerados mais
gravosos. Em geral o jovem que comete ato infracional, tem o perfil de pessoa que busca
autonomia, busca ser vista, ter identidade, pertencer, ou seja, os jovens são possuidores de um
grande potencial. Considera-se ainda que a privação de bens materiais e a pobreza material
são alguns dos pontos que levam um jovem a infracionar.
Cada um apresenta também os motivos pelos quais se envolveram em atividades
consideradas delituosas conforme as narrativas que seguem:
Ah! Porque eu tava querendo ajudar mais em casa, ajudar minha mãe só ela
trabalhava, não dava pra sustentar, eu querendo minhas roupas, tudo cara as
coisas, nós que vivia mesmo no mundão queria comprar algo mais, ai não tinha
como ela sustentar nós, a casa. (R)
Por dinheiro, nesse mundo você tendo o dinheiro você tem tudo né! (D.O)
Analisando os motivos pelos quais se deram a realização dos delitos, deve-se resgatar
a lógica do capitalismo a qual faz culto a individualização, onde para “ser” é necessário “ter”,
então se as políticas públicas em seus diversos ambientes não comportam as demandas
existentes, principalmente quando se trata de um grupo caracterizado em desenvolvimento,
então partem para ações e segregam-se na formação de um novo grupo e uma nova expressão
da questão social.
A formação profissional e o jovem infrator
Na perspectiva de refletir a formação profissional, identificamos em diversos estudos e
estatísticas que, historicamente, a formação profissional de jovens é comumente utilizada
como alavanca para o desenvolvimento não só econômico, ma também social e político no
Brasil.
Entretanto, a crescente transformação no modo de produção capitalista, tem exigido da
população juvenil níveis de escolaridade cada vez maiores, bem como qualificação
profissional. Por outro lado há uma precarização dos espaços de trabalho e uma crescente taxa
de desemprego.
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Ao analisarmos a situação particular de jovens das classes populares, estes padecem
ainda por uma dupla situação de marginalização, ou seja, por serem jovens e pobres.
Somando-se a eles o fator da repetência ou evasão escolar, dificultando sua inserção no
mercado formal de trabalho. Tendo em vista estas questões, surge então um questionamento,
onde se encaixa o jovem em cumprimento de medida socioeducativa? Levando-se em
consideração sua baixa escolaridade.
Diante de Semelhante panorama, a capacitação para o trabalho aparece como
alternativa de formação tendente a garantir-lhes maiores possibilidades de inserção
laboral. Se bem que por si só não possa se considerar uma condição suficiente para
melhorar a margem de emprego de um jovem, a capacitação pode resultar numa
experiência que modifique sua posição em relação aos mecanismos de seleção do
mercado de trabalho. (JACINTO; SUAREZ, 1995, p. 153)
É possível identificar, nos diversos governos ações voltadas para ampliar a formação
profissional de jovens, focando nos filhos das classes trabalhadoras. Tais ações são baseadas
em diversos motivos, entre eles o crescente número da população e a falta de oportunidades
nos espaços de trabalho. No entanto, para que jovens das classes populares possam acessar
tais programas e projetos necessitam passar por uma série de condicionalidades, tornado-se
nova barreira para os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.
Nesta perspectiva, foi questionado aos jovens em cumprimento de medida
socioeducativa se estavam inseridos ou não em atividades de formação profissional, ao que
obtivemos as seguintes respostas:
Não. Ainda não tive vontade de me inscrever. (C)
Não. Não estou trabalhando e não tenho interesse. (B)
Não. Porque não tem nenhum disponível do meu interesse. (G)
Sim. Curso de produção musical. Porque é uma profissão que eu gosto! (I)
Para Cassab (2004), espaços de emprego e, portanto, o trabalho surge como espaços de
visibilidade social para jovens das classes populares, os identificando como confiáveis e não-
perigosos.
Para além da independência financeira, através do trabalho, o jovem visualiza a
possibilidade de se auto-realizar e afirma sua dignidade; de adentrar na vida
adulta, tornar-se parte da sociedade. Portanto, além de um direito básico inscrito
na legislação brasileira (que permite o acesso aos meios de subsistência, aos bens
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culturais, simbólicos e aos recursos tecnológicos da sociedade), o trabalho pode ser
para o jovem o meio de realização de práticas sociais potencialmente libertadoras.
(MARTINS, 2010, p. 22)
É possível compreender melhor tal colocação, ao analisarmos trechos de narrativas dos
jovens em cumprimento de medida socioeducativa, ao citarem qual o significado de
emprego/trabalho em suas vidas, como segue:
Emprego é começo de fonte de renda para se manter. (I)
Significa que é muito importante para o meu futuro (G)
A ser honesto, lutar para conquistar o que desejo (B)
É importante, ver que não fez nada de ruim, ilícito, ajuda financeiramente (C)
No sentido de considerar o trabalho como um espaço importante de liberdade e de
oportunidades de acesso e, levando em consideração que jovens em cumprimento de medidas
socioeducativas, buscam na via delitiva tal reconhecimento e assim permanecem na base da
pirâmide na questão da formação profissional, ou da não formação profissional. Criar
programas e projetos que exijam condicionalidades para acesso, sem mediar conflitos e gerar
oportunidades, não seria uma forma de violência praticada pelo governo contras estes jovens?
Quanto as suas perspectivas em relação a um futuro profissional, os jovens buscam por
espaços que lhes proporcione segurança e a possibilidade de realizar seus projetos de vida,
sendo que espaços de trabalho são apontados como uma categoria central, como é possível
notar nas seguintes narrativas:
Espero na realidade, encontrar um bom emprego (C)
Vencer, trabalhar e viver. Cursar engenharia. (B)
Penso apenas em me dar bem como profissional. (G)
Eu gostaria que acontecesse muitas coisas boas. E me tornar um produtor musical.
(I)
Ao partirmos da perspectiva de Destarte, que aponta que jovens “conscientes da
ordem, sonham seu futuro dentro das fronteiras que estão desenhadas para eles”. Quais
seriam as fronteiras dos jovens em cumprimento de medida socioeducativa? Não estariam
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estes jovens negociando seu lugar na ordem social vigente? Não caberia ao governo criar
espaços de formação profissional que auxiliem estes jovens quanto ao verdadeiro significado
do “ser cidadão”, bem como empoderá-los para o efetivo exercício de sua cidadania?
Considerações Finais
É a partir da visão do controle sobre a vida dos jovens que emergem as medidas
socioeducativas, pois as mesmas possuem caráter punitivo, e que no ECA é definido como
uma categoria jurídica. Este trabalho não teve como objetivo analisar os modos de
pensamento do legislador, mas avaliar que o cometimento de infração por parte do jovem não
ocorre de maneira isolada e sim, a partir de um contexto social, político e econômico ao qual
está inserido.
Quanto as suas práticas e ações infracionais, é perceptível a questão do consumo de
bens supérfluos para a obtenção de status/reconhecimento, contando como aliada a mídia
propulsora do individualismo que alimenta o capitalismo e o consumo. Por outro lado à
ausência de políticas públicas para atender as reais necessidades destes jovens como, por
exemplo, a formação profissional dentre outras demandas sociais se faz ainda inoperante ou
atuando de costas para esse segmento.
É possível notar neste grupo de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas,
uma baixa expectativa de futuro, é perceptível sua permanência em um ciclo e a reprodução
do vivido por sua família e da falta de oportunidades da qual é permanente nas periferias.
Neste sentido, buscar e aprofundar estudos no que tange a formação profissional de
jovens é lançar olhar sobre um segmento penalizado com o desemprego e a precarização do
trabalho.
Nota-se que o restrito acesso a uma educação de qualidade, as inúmeras e frágeis
condições para permanência no ambiente escolar, a inadequada e muitas vezes inexistentes
atividades para formação profissional e a dificuldade para inserção no mercado de trabalho,
podem ser considerados os principais problemas para que um jovem em cumprimento de
medida socioeducativa se deparam neste processo de socioeducação.
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Faz-se necessário que seja lançado olhar pelo poder público para este grupo de jovens,
para que proporcione a eles experiência profissional e participação social. Afinal, é necessário
dar respostas aos “problemas sociais” nos quais estão inseridos este segmento juvenil
pesquisado neste trabalho.
As políticas públicas devem deixar de difundir entre os jovens, a máxima de que o
desemprego está estritamente relacionado à sua desqualificação, ou seja, colocando essa
situação no campo individual e não social.
Por fim, apontamos a necessidade de que os jovens sejam olhados em sua autonomia,
que participem e construam políticas que visam à construção de sua subjetividade,
promovendo a proteção a ele garantida em lei e o seu real desenvolvimento integral.
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