penafria 1999 a identidade do documentarismo

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  • 5/10/2018 Penafria 1999 a Identidade Do Documentarismo

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    Manuela Penafria

    o FILME DOCUMENT ARlOHistoria, identidade, tecnologia

    Preiacio d e] odo Ma rio G r ilo

    Edi~ i5esCosmosLisboa, 1999

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    34 o conceito de documentario

    ,~(t".6'~'? Dada a proliferaao .~.diversidade das definicoes de documentario querey'el~~prod;;s5;;;-n~o"men(Js di~ersas;""em~ndo-que0 q~e individuaii;~o d~cumentari~~~s~rpode~ser'"encontrado~na'"sua~l:llst6ria~"na~uiTo~kf01 a te h o je . E necess~~TQ~~!: l igufrgrJ l i J : i f f i J i l l1Q~!n~ntol lG. :2i}i ; .- -" -""~

    Q_g!lero g2s:umegtario ~!!L.!!.!!!._Qassado,xiste uma pratica cons-trufda po.aq~elesque s~de~amsua a producao, As ra.fzes~~~ssa~pratIcaencontram-se, obviamente,. no set;"nas"cTmento"-eonsequente desenvol-virn:ento;'nO"senHaocle;:;m~~firma~~OC0rrt".idenddade.pr6pda':'Assim; irate a'"sua'-ofige'm:'"p"ara"a~'eriiuarotIlomento em que se afirmou, em queganhou contomos de uma identidade propria, em que se institucionalizou,e inquestionavelmente 0 caminho que devemos descobrir e seguir. 0 queindividualiza 0 documentario face a outras formas de expressao s6 pOder~serenCo~~nagullO"guf~~"-~"-~~~"'-"~~"~M~"~~"~

    Neste ambito, odocumelltarioencontra~se associado ao~inema. A de-monstrafa;aeSSa assoda~~oe'i"propo~i:~,s~"~ f f o ' d e utIla'definl~ao; de umademarcacao que individualize a producao documental, sera 0que a seguirse apresenta.

    IIA identidade do documentarismo

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    1. 0 nasc imen to do c inem a ou a ra iz do document i irio .Em 2 8 de Dezembro de 1895 no Grand Cafe du Boulevard des Capu-

    cines, em Paris, apresentava-se, com enorme exito, 0 Cinemat6grafo Lu-miere. A projeccao apresentada intitulava-se La sort ie des a t el i er s Lum i e re .Nela viam-se operarias de saias largas e chapeus de plumas a sair do ate l ier,operarios a pedalar nas bicicletas, seguidos dos patroes numa carruagem pu-xada por dois cavalos. Finalmente, 0porteiro fechava a porta.Ap6s esta exibicao muitos foram os fi lmes apresentados: 0 ]ardine iro,A C he ga da d e, u m C om bo io , P ri me ir o P a ss eio de um b e b e , B a r co s S a in d o doPor t o , etc,23, A estes filmes eram dadas designacoes diversas: documen ta i -re s J a c t ua l it e s, t o pi c a ls , i n te r e st f ilm s , e d u c at io n a l s J e xp e di ti on f il m s, t ra v el f il m se, ap6s 1907 , t rave logues (Barnouw, 1983 , p. 19).

    Os pioneiros das imagens em movimento deslocavam-se aos locaisonde decorriam os acontecimentos que queriam registar e documenta-vam esses mesmos acontecimentos que eram, essencialmente, manifests-, Este procedimento tornou-se importante na-quele que era 0primeiro impulso dos pioneiros das imagens ern movimento:registar asactividades e a accao do mundo, e, em especial, aquilo que escapaao olho humano (tornar lentos os acontecimentos que ocorrem rapida-mente e, posteriorrnente, 0 seu contrario: tomar rapidos os movimentosque ocorrem lentamente, como 0 desabrochar de uma flor),

    Por volta de 1903 os primeiros autores de ficcao comecaram a desen-volver tecnicas de montagem que permitiram complexificar a historia quese contava. 0 filme de ficcao conhece aqui 0seu definitive impulso em es-pecial com os trabalhos desenvolvidos por Georges MeW$ ( 1 86 1 -1 9 38 )2 6 ,

    As possibilidades t f e criar tensao tornam-se efectivas e a popularidadecad a vez maior, sendo osfilmes chamados documen ta i re s colocados de lado.

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    38 A identidade do documentarismo

    Era diftcil perceber 0proposito de filmes (que gradualmente passaram deurn para cinco ou mats minutes) cujo iinico interesse residia em.serem urnespelho ou reproducao do que, sem a ajuda ou intervencao da camara, 0publico poderia presenciar . Oepressa o publico deles se aborreceu, passan-do a destacar-se 0 gosto pelo desenvolvimento das historias romanceadas(ficcao). 0 declmio do documen ta ires foi, tambem, conternporaneo dodesenvolvimento do chamado filrne de actualidades s? (Almeida, 1982,p.23).Os charnados documen ta ires e as filmes de actualidade terao sido, naopiniao de alguns autotes28 , os primeiros documentaries realizados, sendoo primeiro deles La s o rt ie d e s a te l ie r s L um ie r e. A coincidencia entre 0 nas-cimento do cinema e 0 nascirnento do documentario e adoptada comocerta pois, enquanto registo de varias actividades humanas as filmes do-cumentarios sao retalhos da realidade em que os actores sao actores na-turais, os seus gestos sao gestos espontaneos e o pano de fundo e a paisagemnatural que os rodeia ..Aparentemente, tudo esta de acordo com essa coin-cidencia, que e , no entanto, errada. 0 documentario nao nasceu com acinema. 0que nasceu com 0 cinema foi 0 princfpio de toda a nao-ficcao:filmar as actores naturais, a espontaneidade do seu gestoe 0meio ambienteque os ou nos rodeia, A nao-ficcao coincide, pais, com a invencao da ima-gem em movimento.oobjectivo inieial da filmagern era apenas 0de registar diversas activi-dades, quer humanas, quer animais. 0encanto e fasdnio par essa capacida-de mimetica condicionou 0olhar dos seus autores para a mera reproducao.Nessa altura, questionar essa reproducao e definir uma pratica de documen-tarismo era ainda prematuro. Nao existe a definicao de uma pratica; 0queexiste e um contribute para a mesma.o eontributo dos pioneiros das imagens em movirnento para a unida-de do filme documentario foi mostrar a capacidade do aparelho cinemato-grafico de dar aver 0mundo,seja aquele a que temos acesso pelos nossossentidos, seja aquele que de nos e distante, seja aquele que esta ao n08SOlado e que, por qualquer dificuldade, nao vernos. Assim, e 0registo i n l oc oque encontramos nos inicios do cinema que se constitui como 0 primeiroprincfpio identificador do documentario. E, se esta e a sua raiz, so maistarde o seu flarescimento assumira contomos proprios.

    A partir do registo in l oc o passou-se para urn estadio de definicao deuma identidade que, no caso do documentano, se iniciou par uma faseque entendi apelidar de construcao, seguindo-se uma fase de afirrnacaoem que se assume a existencia de lima producao propria respeitante aofilme que da pelo nome de documentario,

    2 . A c on st ru fa o d a i de nt id ad e d o d oc um e nt dr io .Para Jose Manuel Costa 0 documentario, quando nasceu, foi 0 con-

    trario da inocencia (ja entao irnpossfvel), foi 0 vefculo de urn olhar, oude urn poder, que dirigiram a camara sob regras proprias (Costa, 1989,p.98).

    Essas regras proprias, identificadoras de uma producao, foram, nomeu entender, implementadas pelo efectivo impulso da pratica docurnen-tarista, que surgiu nos anos 2 0 com 0 americana Robert Flaherty (1884~-1951) e com Dziga Vertov (1895-1954)29, na Uniao Sovietica. Nenhumdeles se apelidava de doeumentarista nem dizia produzir documentarios; aspa:ravras viriam mais tarde ..

    J :: laherty e Vertov sao os dois grandes pilares em que assenta 0 posicio-namento do documentario e do documentarista no panorama da producaode imagens em movirnento, os seus filmes Nanuk , 0 Esqu im6 (1922) eo H om em c la C a m ar a (1929), respectivamente, marcam 0 infcio dahisto-ria do cinema documental e abrern carninho para a atirma~ao da identi-dade do filme documentario e do documentarista. No deeurso dos anos 20 ,contribuem para a construcao dessa identidade ao definirem-lhes urn posi-cionamento.

    Com eles, filmes e autares, ficou definido que, no documentario, e/.absolutamente essencial que as imagens do filme digarn respeito ao que teme"xistencia fora dele. Eta e a principal e prime ira caracteristica do do-curnentario. A segunda, ja em estudio, e a organiZ(1fclOdas imagens obtidasi n l oc o (este material podera eventualrnente ser trabalhado com outr~, parexemplo, legendas, sons, etc.) -se undo uma determinada forma; 0 resulta-do ina essa erma e urn filme. A organizacao forca 0 i m e a nao se pau-tar por uma mera descriyao, apresentacao descaracterizada ou sucessao semproposito aparenre, das imagens obtidas i n l oc o. 0documentarista, por seulado, e cumplice das caracteristicas enunciadas.o impulso de registar 0mundo e essencial para a documentario e, rnaiseoncretamente, para 0documentarista30. A camara de {ilmar sal do estudio,vai de encontro ao rnundo ..As imagens, 0 principal material do filme, saot;ecolhidas in lo co : os aetares sao asproprias pessoas, sendo, portanto, actoresnaturals, e 0 cem'irio e 0 proprio meio ambiente em que vivem.

    Flaherty e Vertov sao dois expoentes deste impulso.[Flaherty'\:ieslocou--se para as terras geladas junto a Bafa de Hudson, a Norte do Canada, parafilmar a vida quotidians dos esquimos que ai viviam - 0povo inuit. 0filme,intitulado Nanuk, 0 Esqu imo , centra-se a volta do esquimo Nanuk, da suamulher Nyla, dos SyUS dais filhos e do seu cao Comock.tcertov,J par seulado, no filme 0H6mem c ia Cama ra , revel a a sua reeusa em filmar actares

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    Nanuk, 0 Esquim6 de Robert Flaherty, 1922,

    A construcao da identidade do documentaric 41

    Mas, ao registo i n lo co a que 0 documentario obriga, 0documentaristapode responder de modos variados, Dois desses modos sao ilustrados pelosautore ui se mencionam,, iflahertv ncitou 0 povo inuit a r~;elar, pa~a a camara, as_~uas tra~dH,::oes:como pescavam, como construiam urn zgloo, como comiam, emsuma, como viviam. A vida dos Inuit que Flaherty registou nao fbi a doentao tempo presente, mas sim a vida dos seE ant~assados, a qual aindaestava presente na memoria dos rnais velhos. etto", par seu lado, preten-de ocupar 0 ecd com imagens da vida das pessoas, dos seus gestos espon~taneos, das suas ac

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    o Homem c i a . Camara de Dziga Vertov, 1922.

    A construcao da identidade do documentario 43

    os seus colaboradores autodenominavam-se assim ara se diferenciaremdos restantes cineastas e por partilharern os mesmos ideals esta e eci os1 s ' esse cinema) p~c6nizava um abandono da Hcyao (que seria umaillencia eorruptora do proletariado) coloeando em seu lugar um cinemateito de imagens do dia~a-dia do avo sovetico.

    Os filrnes edita os sob 0 titulo de Kino-pravda (

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    que se recolhem i n lo co nao constituem, s6 or si, a verdade. Esta encon-tra~se nelas, pDr isso e necessario confraota- las, manipula- as, para que ser~elem em tada a sua plenitude, 0mesmo e aizer, para querevele a ver-dade que Ihese iflerente. .

    A intervencao de Vertov coostitui a renuncia a teorias passivas econtemplativas que defendiam a gravac;ao e re roduc;ao da tealidaCfetT~ ela e. Para e l e , 0 cinema-n . 0 nao e apenas uma parte vi tal da nossaVTaa;oterece-nos, tarnbem, a possibilidade de transcender a nossa visaoda~a. Com este autor, os filmes resultam de uma accao do cineasta sobreo material de que dispoe para a sua execucao, nao se limitam a ser uma merasoma de imagens filmadas i n l oc o, sao 0prodUtO de urn trabalho e elabo~rac;ao aprofundadas40 . Assim, urn filme cinema~olho}>e, acreseento , todoe qualquer documemario, esta habiluado a.. !:velar urn nrvel mais profundodo nosso mundoe da nossa reIac;ao com esse mundo. -

    Embora, tal como ja se afirmou, nenhum dosdois antares aqui trata-dos reclamasse a nome de documentarista nern afirmasse que os seus filmesfossem documenrarin, sao, ambos, no panorama documental, uma influen-cia de grande riqueza . .Nao reclamar nem proclamar tais palavras nao cons-tituiu impedimento para mostrarem que existe espaco para a afirmacao deurn f i l r : n e que, baseando-se em imagens I 'ecolhidas i n lo co , se destaca porser mats que essas mesmas imagens. Quer a montagem., quer as motivac;6esdos proprios autores condicionaram,. e poderao sempre condicionar, a pro-dw;:ao fflmica para 0trilhar de caminhos insuspeitados.

    Notoria e inegave1e, tarnbem, a imporrancia destes dois genies daimagem em movimenro, pelo facto de terem chamado a atenc;ao para aimportancia de ca tar 0 homem no seu melo soci~ll e na sua vida e . orcontribufrem para que se tomasse possivel que 0 autor do flime se reve~asse. autor 0 i me e, no caso, a -ocumentansta nao eve a ster-se deccrnbtnar, recombinar, sobrepor ou interligar as imagens obtidas i n lo co .E~lhe, n~ais que perrnitido, imposto manifestar-se ecr ia r urn ftime que seja"!!gomats do que a soma das suas partes. .

    Se corn Flaherty e Vertov 0 docurnentario encontra a sua linha iden-tificadora, definem-se, tambem, as bases, com 0 primeiro, para a descober-ta de urn mundo disponivel para sel' explorado e, com 0 segundo, para a~escoberta de um mundo que a camara nos oferece.A influencia destes dois autores esta patente no desenvolvimento dodccumentano. De entre os dois, Vertov e 0 caso mais surpreendente, poisa sua influencia e tardia, vindo apenas a ser reabtlitado, cerca de 30' anosmai~ tarde, pelo frances Jean Rouch, que mais adiante se aborda e que aparnr do terrno Kino -pravda , designou os seus fiImes por cinema~verda~de),41. A influencia de Flaherty e mais imediara, podemos enconrra-la no

    o documentarismo btitanico dos anos 30 45a esta questao, centrando-se, essencialmente, na efectiva identidade dofilme docurnentano.

    3. 0 d oc um e nt ar is m o b ri td ni co d os a no s 30 a u a a f i rma~ao deu r na i de n -tidade: 0 registo in loco; a ponto de vista e a criatividade do documen-taris ta .

    Ainda que se possa encontrar, nos autores acima citados, marcasidentificadoras do documentario, a afirmacao deste fllme passa, necessa-riamente, pelo seu reconhecimento enquanto tal. Isso aconte.ceu, nosanos 30 com 0 movirnento documentarista britanico. 0aparecimento eutilizacao dos termos documen ta r io e documen ta r is ta e a efectiva ~ir~ac;a.oe desenvolvimento de uma producao de documentaries por prof issionaisdo genero, liga-se, inegavelmente, a esse movimento e a sua.figura maisemblematica: 0 escoces John Grierson (I898~1972). Com Gnerson e suaescola, 0 documentario ganhou autonomia e assumiu uma identidadepropria. .o desenvolvimento do documentario esteve, entao, dependente daefectiva producao de documentaries que Grierson implernenrou ..Esta suaactividade foi legitirnada pela criacao e funcionamento de instituicoes sub"sidiadas pelo governo: as denominadas Fi lm Units4 2 fora~ de~isivas,. naoso para a afirmacao, como para a definitiva institucionalizacao do. filmedocurnentario e, consequentemente, para 0 seu autor, 0 documentansta ..

    John Grierson era a figura mais activa, em especial como pro?~tor eorganizador, do documentarismo dos anos 3043 , 0termo documen tano queGrierson utilizou, em 192644 , quando se referiu a Mo a n a de Robert Flaher-ty, teve como referenda a palavra frances a documen ta ire . Apes~r de a pa-lavra documen t i i r io se encontrar suje ita a uma utilizacao demasiado vasta,decidiu mante-la; afigurou-se-lhe adequada para designar os filmes q~eclassificava de categoria superior. Oriunda do frances, a palavra possuta J aurn percurso proprio, demonstrando grande flexibilidade, p~is aplicava-~ea varies filmes, desde os que nos mostravam apenas 0 exotismo de locaisdis tantes ate aos que contavam uma historia dramatica+t, Talvez par essarazao acrescida da necessidade imediata de nomear urn tipo de filme cujoscontomos estava a definir, a palavra foi adoptada paradesignar a producaofflmica da escola de Grierson.

    Inicialmente, Grierson ter-se-a referido ao valor documental de Mos-na , em virtude de reconhecer a forca da imagem enquanto evidencia,enquanto pedaco da realidade. Mais tarde, desenvolveu 0 s~u pensa-

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    4 6 A idcntidade do documentarismo

    e producao proprias. As ideias que sustentararn 0 documentario enquantogenero foram por ele desenvolvidas em varies textos. Dentre eles, 0 desta-que vai para First principles ofdocumentary (Grierson, 1979; orig. 1932~~34), em que esses ptincipios que se constituem como os seus pressupostos,sao considerados urn manifesto of beliefs. Grierson acredita entao que acapacidade de 0cinema se movimentar e fazer seleccoes a partir da propriavida pode ser explorada numa nova forma de arte, possibilidade essa quetem sido ignorada pelos esnidios: no actor original ou nativo assenta umamelhor interpretacao do mundo moderno atraves do ecra e, finalmente, ashistorias retiradas do proprio mundo sao mais reais, em sentido filosofico,que as representadas, e 0 gesto espontaneo das primeiras assume, no ecra,u rn valor especial (ibid. pp. 36-37). No ambito deste estudo, 0pensamentode Grierson e destacado com 0 intuito de nele se encontrar a unidade dof i lme documentario, uma vez que foi com Grierson que 0 documentarismomereceu lugar de destaque. No seu conjunto, os pressupostos enunciadosforam 0 ponto de part ida para 0 desenvolvimento do pensamento de Grier-son no sentido de mostrar que 0documentario, no todo da producao fil-mica, era urn filme distinto e alternativo.

    Perante a vasta e abusiva urilizacao da palavra documentar io , par seraplicada a todo 0 t ipo de filme que usasse material registado in l oco , Grier-son tern por primeiro objectivo clarificar esta questao, diferenciando osfilmes. Assim, compara 0 autentico documentario, que surge como umaforma nova, a qual reconhece grandes potencialidades, com os f i l rn e s deficcao, nomeadamente os de Hollywood e com os entao actuais filrnes defactos46, actualidade ou licao ilustrada. 0 documentario nao e so uma al-ternativa, mas um genera superior a e s sa s f o rm a s.E superior aos primeiros pela estrei ta l i g a c a o com a r ea l id a d e . .Aocontrario dos filmes feitos em esnidio que incentivarn a fantasia e a imagi-nacao, 0documentario regista a vida das pessoas e as suas proprias histo-rias47..Grierson detern-se um pouco mais na superioridade do documentarioface a filmes que lhe sao proximos pelo facto de usarem material recolhidoin l oco , mas que se afastam dele no tratamento desse material . Assim, Grier-son propoe uma hierarquia de categorias: a categoria superior e a categoriainferior. 0 documentario e exclusivo da primeira. Aos restantes fi lmes queclassifica de categoria inferior especifica as limitacoes: a sua explicacao e ,todavia, breve: trata-se de filmes que nao dramatizam, limitando-se a meradescricao ou exposicao de factos. As imagens, arbitrariamente editadas, re-latam os factos tendo como unico fim a ilustracao do que e dito pelo textoem of f e a grande preocupacao de serem objectivas,

    Em contrapartida, 0 documentario vai para alem desses limites; aqui,

    o docurnentarismo britanico dos anos 30 47

    recombinacoes e formas criat ivas de trabalhar esse material. 0 documen-tario elabara os seus temas de modo criativo e dramatico, revelando algosobre os fenomenos que, no caso, sao essencialmente os problemas sociaise economicos dos anos 30 . Apesar de outros f i lmes poderern tratar os mes-mos temas fazern-no com superficialidade, nao lhes acrescentam nada,nao os mterpretam. Isto torna 0 documentario superior a esses filmes.

    Antes de mais, acentue-se que 0 material de que 0 documentario econstituido e obrigatoriamente, recolhido i n l oc o . Este princfpio absolutodo documentario e uma heranca de Flaherty. 0 documentarista deve, talcomo Flaherty, sair do esnidio, ainda que por tempo prolongado, paraviver com as pessoas ate ao momento em que houver material suficientede modo a contar-nos a historia dessas pessoas, Por essa razao Robert Fla-herty foi 0 expoente maximo da producao afastada do esnidio: de facto,para realizar Nanuk , 0 Esqu imo fixou-se temporariamente no Norte doCanada onde f i lmou 0 povo inuit, 0 mesmo fazendo para realizar Moan ano Pacifico, onde filmou os habitantes da i l ha Samoa. Com Flaherty tor-na-se absolutamente imprescindivel que a historia tenha de ser extraidado locaLMas, se em Flaherty nao ha uma apresentacao pura e simples de urnpovo, tambern Grierson nao pretende que os seus filmes sejarn apenas umarnera reproducao ou registo do que acontece frente a camara; a serassim, 0 filme seria urn espelho da realidade. De igual modo, nao pre-tende que 0 autor do filme seja um mero vefculo desse registo ou reprodu-< ; 8 : 0 , antes reclamando urn papel activo para 0 autor dos filmes. A merareproducao da realidade tern de ser posta de lado, devendo desenvolver--se a intervencao do autor do filme, que trabalha 0 material filmado48.Com efeito, a definicao de documentario como tratamento criativo darealidade que Grierson reivindicou para si49 e para os seus seguidoresafasta-se dessa reproducao da realidade. Grierson fala-nos em revelar arealidade do objecto tratado, em criar uma interpretacao sobre 0temado filme.Esta revelacao ou interpretacao, que designo por ponto de vista, eaplicada sobre 0registo i n l oc o . Com Grierson esse ponto de vista liga-se aurn papel social que 0 documentario tem a seu cargo. E e nisso que sebaseia, no essencial, a superiotidade atribufda ao documentario.

    As implicacoes sociais resultam do facto de 0 documentario nos per-suadir a determinada [eitura do mundo que nos rodeia, sustentando-se emargumentos a que temos aces so pelo texto em of f e pelas imagens que 0filme nos mostra.o tema e enfoca,

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    48 A identidade do documenrarismo

    quotidianas. Conta-nos uma historia, a historia essencial desse povo, ouseja, a hist6ria que diz respeito a sua sobrevivencia face a urn ambiente hos-til. Esta e, no entender de Grierson, uma das muitas abordagens possfveis eque, no caso, reflecte as preocupacoes de Flaherty. Um docurnentario naose sente de modo algum obrigado a percorrer esse mesmo caminho. Em vezde enobrecer a luta pela sobrevivencia em locais onde impera a adversidadeda natureza podemos estabelecer como prioritaria a ternatica da luta pelasobrevivencia em sociedades onde coabitam a abundancia e a desigualdadesociaL

    Grierson afasta-se de Flaherty na medida em que 0 seu drama e 0 domundo que imediatamente 0 rodeia50, nao 0 mundo distante de povosex6ticos e a sua luta pela sobrevivencia. 0que 0 interessa sao os proble-mas socia is e econ6micos concretos, dos anos 30: pobreza, desemprego,casas degradadas, etc. Esta e , pois, uma abordagem que se afasta do valordocumental dos filmes de Flaherty. Se uma das principais caracteristicasdos filmes deste ultimo e a individualizacao de urn ou mais intervenientesna accao, para Grierson a atencao deve ser colocada num determinadoproblema de ordem social e econ6mica e na solucao para 0mesmo.E usual encontrar-se referencia ao facto de Grierson questionar 0 tra-balho de Flaherty nao compreendendo como era possfvel alguern estar emcontacto com populacoes de situacao economicamente diftcil e l imitar-sea filma-las e mostra-las ao mundo, sem apresentar solucoes para essa situa-',

    Grierson nunca chamou a si 0 dever de contribuir para a construcaode uma sociedade mais justa. Ainda que ambicioso, 0 seu projecto passavaao lado de uma assumida intervencao polttica e a sua preocupacao socialpassava pelos programas governamentais que subsidiavam a sua produ-c;:aode documentarios. Os seus HImes eram concebidos e desenvolvidoscomo urn instrumento de utilidade publica (Rosenthal, 1988, p. 270).Durante os anos da Grande Depressao a necessidade de uma tomada demedidas pelo Estado era aceite. Grierson contribufa para a divulgacao dasmesmas. A urn determinado problema apresenta-se a correspondente so-lucao governamental.

    Embora nunca 0 tenha assumido, 0 documentario de Grierson e poli-ticamente empenhado, mas e-o tanto quanta aqueles que se produzem aoservice de outros pontos de vista. E, no documentario, 0 ponto de vista eparte integrante da sua especificidade e unidade.

    As acusacoes de divulgacao de propaganda politica, no caso as poll-ticas conservadoras, eram rebatidas pela enfase colocada na intervencaoindividual do documentarista que, para fazer urn documentario, se apoia-ria no seu proprio ponto de vista sobre os acontecimentos do mundo. Seesse ponto de vista coincidia com 0 do governo, isso seria uma outraquestao,

    A enfase colocada na intervencao do documentarista e a grandenovidade da escola de Grierson. Pelo facto de a sua escola valorizar aintervencao do documentarista, este aceita com agrado 0nome de art istae entende que 0 documentario, ou seja, a sua obra, e arte55. Manifestar a

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    sua visao do mundo, a sua experiencia de vida, a sua visao da realidadepermite que a sua escola se afaste das crfticas acusadoras de propagandapolitica. Mas, e claro que a liberdade do documentarista era a liberdadepermitida. Grierson enquanto produtor das Film Units certificava-se deque os f ilmes estavam de acordo com a restante producao, ou alias , garan-tia 0 funcionamento das mesmas de acordo com as suas ideias e de modoa preservar 0 seu financiamento.

    A importancia essencial do documentarista reside no facto de ser eleo responsavel pela diferenca entre 0 documentario e as outras formas defilmes suas conternporaneas. Para cada filme que faca, 0 tratamento cria-tivo da realidade e . da sua autoria,

    Ao contrario dos restantes filmes que usam material recolhido i n l oc o,o documentaris ta faz urn tratamento criativo dessas imagens e nao se li -mita a rnera reproducao das coisas que e atributo das outras formas denao-ficcao categorizadas como inferiores.

    Grierson separa a producao de ficcao da de documentaries referindoque urn autor nao podia dedicar-se, simultaneamente, a f i c cao e ao seu con-trario. Embora reconhecendo no trabalho em esnidio grande qualidadeartistica, 0documentarista tern a particularidade e a exclusividade de exer-cer a sua cria tividade sobre 0material recolhido i n lo co . No imediato, talponto de partida condiciona 0 documentarista para a meta reproducao, Noentanto, esse mesmo materia l da-lhe a oportunidade de desempenhar urntrabalho criativo e revela-se urn desafio a sua selectividade. Quando 0do-cumentarista e selectivo, e criativo. E , portanto, urn artista . A arte mede--se pela selectividade des meios ao seu dispor, Sem essa selectividade 0do-cumentario estaria diminuido a mera reproducao da realidade.

    A criatividade dos autores de ficcao encontra-se na manipulacao dacamara, na iluminacao, nos cenarios, na direccao de actores, etc. 0 do-curnentarista, por seu lado, e , tambern, urn artista , pois organiza 0 seumaterial segundo uma determinada forma, seja ela encontrada a partir doproprio conteudo, tal como em Flaherty, ou introduzida no mesmo, demodo mais ou menos forcado, mais ou menos original.

    Ult rapassar a limitacao da reproducao foi uma grande preocupacao deGrierson. Na sua escola, 0 doeumentarista, tal como 0 auror de ficcao,tern ao seu dispor meios que pode explorar. E tanto os meios tecnicoscomo 0 tratarnento- que se espera do documentarista 0 aproximam daficcao. A importancia que Grierson conferiu ao doeumentarista permite--Ihe uma margem para a dramatizacao. Tratamento era 0 termo usadoem substi tuicao de dramatizacao-". Ainda que nao este ja definido ate queponto a criatividade do documentarista pode operar antes de se confundircom a ficcao, estes termos expressam a vontade de criar uma narrativa

    o documentarismo britanlco dos anos 30 51

    de ser esta a grande diferenca entre as documentaries e a res tante produ-9ao de nao-ficcao que se limitava a relatar os acontecimentos, sem a preo-cupacao de eriar uma estrutura dramatics para os eventos que filmara . Porseu lado, a ficcao dramatiza, mas nao ha nela 0 essencial do documen-tario: 0material recolhido i n l oc o . E, ao contrario da ficcao, aqui, a drama-tizacao nao implica seguir a ordem cronologica dos acontecimentos masrespeitar 0 ponto de vista do documentarista , sobre 0 tema ou assunto dof i lme .As ideias de Grierson e a producao de documentaries das Film Unitsreveste-se de alguma polemica e criticas, uma vez que e contradit6rio de-fender urn cinema feita de imagens da vida e, simultaneamente defendero usa da reconstrucao.o cumprimento do princfpio absoluto do documentario que era 0material recolhido i n lo co constitufa uma das caracterfsticas do documen-tario que Grierson mais defendeu. Por repetidas vezes referiu que 0docu-mentario era superior a outros filmes por colocar no ecra a his toria e vidavividas-V. No entanto, ha que referir que, nos HImes da escola griersonia-na, abundam as reconstrucoes, ou seja , ha muitas situacoes reconstitufdasem estudio.A encenacao era aceite e a contradicao com 0 princfpio absoluto deque 0 documentarista se deve afastar do esnidio e apenas aparente , poisnenhum documentario era totalmente constitufdo por reconstrucoes.

    Para 0documentarista, a reconstrucao era sincera e perfeitamente jus-tificavel. Era sincera porque os acontecimentos reconstitutdos aconteceramou aconteciam habitualmente. No filme N ig ht M a il (1935) de Basil Wrighte Harry Watt recorreu-se a reconstrucao em esnidio do interior de umacarruagem de correio. No entanto, as pessoas filmadas trabalhavam efec-tivamente na distr ibuicao de correio (Rosenthal, 1988, p. 22). Podemos es-tabelecer urn paralelo com 0filme de ficcao e compreender que, neste, a re-consrrucao de acontecimentos que nunca aconteceram e urn seu atributo.A reconstrucao era, tambem, justificavel pois recorria-se a ela por razoeseconomicas (falta de recursos para pagar deslocacoes) e tecnicas (falta demeios tecnicos como, por exemplo, camaras e som sfncrono portateis].o principio absoluto do documentario, ou seja, a recolha de materialin l oc o tern de estar sempre presente num documentario. No entanto, esteprincipio obriga desde logo a definicao de uma ternatica especffica. Porexemplo, se em Flaherty eneontramos urn mundo distante, Grierson focaa sua atencao nos problemas sociais e economicos dos anos 30. Griersonreconhece, no texto ja citado, que em todas e para cada uma das tematicasque possam ser abordadas e possivel organizar 0material a ela respeitantede diversasfotmas. Cada uma dessas formas corresponde a abordagens, ou

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    Este reconhecimento inicial e imediatamente esquecido pela forcacom que defende, para 0 documentario, uma funcao social e consequenteutilizacao da voz off Esta caracterfstica, que nao e de todo inerente nemexdusiva do documentarjo, rnarcou-o especialmente.

    De tal modo defendeu esta posicao que 0 documenrano ficou conhe-cido como urn filme de interven

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    cinema. E, e com a escola de Grierson ue 0 ter d ' 'uma significa~ao que ate entao Ih q mo ocumentano ganhaDdef~lme com caracter(sticas muito

    e e~~ae~f~fc:~~;a~~~::~d~ferir~se.daurn, t~po.e igual modo, e tambem com a escol . 10e anti escncao,cumentanos se pode afirmar como doc a de Gr~erson que quem faz do-fiIme de acordo com urn deter inad umentar~sta, ~or construir 0 seuo termo crit icavel deve aplica~;~~ eponto de vls~a, amda que crit icavel.de vista e nao ao filme em si. ,p nas, ao questlOnamento desse pontoA heranca que Grierson deixou ao d. '" "ter institucionalizado a sua tdennd d ocumentano e conslderavel, por

    incerte~a do~ termos que empreg~~. e e, ao mesmo tempo, vulnerav-], pelaA Identldade propria e encontrada n dif ,lou, nao so entre 0 documen tar'1'0 f'las Ideref~c;:asue Gnerson assina-e os 1 mes e ICC'a - f -entre os documentaristas e aos a t d f _' 0 e nao- iccao, comoAinda que se critique que a sua a~ or:s e iccao ~ restante nao-ficc;ao.necessidade de J' ustificara-o e c. n~aodPor essas dlferenc;:as derivasse da

    L ' anrmac;:ao 0 seu pro' b lh10Sseuma estrategia para evitar a eltdos de pn,o tra a 0, OU seja,conhecido 0 rnerito da criaca dP . . ld p~~pagandlsta, deve ser-Ihe re-tario. Tambem 0documentar? t e unhma1 entII ade para 0mme documen,O .' . IS a ga ou urn ugar de destaques conceitos de

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    que esta a tratar, mas esse e , ainda, um modo de 0descobrir, e um exerci-cio de olhar, de experimentacao e de criacao.o documentarista recorre a uma determinada estrategia ou estilo jaexis tentes ou, em al temativa, propoe uma nova abordagem.

    Os modos de organizacao da informacao que podemos designar parestrategias e est ilos usados em documentaries mudam: tern uma historia,Mudam par varias razoes. Questoes econ6micas , sociais, polfticas, meiostecnicos disponfveis, etc. afectam e condicionam a producao documental.o que permanece e a preocupacao do documentarista de encontrar aforma adequada para apresentar determinado conteiido, respondendo asformas ja existentes a uma questao essencial: como arganizar/dispor a in-formacao ( imagens e sons) num filme?

    Essas estrategias correspondem a forma dos HImes de que falava, e aevolucao hist6rica do docurnentario, em traces largos, e abrangida pelasmesmas. A designacao dada a essas farm as e feita tendo em conta 0produ-to final, ou seja, 0 documentario, e sao elas: documenrario de exposicao:documentano de observacao; documentario mteractivof-; docurnentarioreflexivo.

    IIIo documentario enquanto pratica filmica