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1 Arte e Revolução na Rússia Bolchevique por Patrícia Danza Greco 1 Falar sobre o papel da arte nos períodos revolucionários exige um esforço que vai além do próprio período. Um esforço que necessita olhar para o momento anterior, percebendo quais as continuidades e as dissonâncias que se colocam entre a antiga ordem que se finda e a nova que se pretende construir. E, com certeza, o estudo da Rússia revolucionária não foge a essa regra, o que faz com que, necessariamente, essas palavras iniciais se voltem para os séculos XVIII e XIX. Desde a conversão da Rússia ao cristianismo no século X, a produção artística esteve sempre muito associada à religião, visível nas igrejas, nos ícones e nos utensílios eclesiásticos. Sem, em absoluto, desmerecer toda a atividade artística que também existia ligada à vida campestre – decorações de casas, ovos coloridos de Páscoa, tecidos, cestas –, foi no século XVIII que se intensificou o contato com o Ocidente, cujo desdobramento para as artes foi a importação de estilos artísticos considerados “eruditos”. Isso porque Pedro, O Grande (1682-1725), amante dos estudos técnicos e náuticos, foi o principal responsável por considerar que o Ocidente era um paradigma de modernização que deveria ser seguido pela Rússia. Dentre as inúmeras reformas empreendidas em vista de modernizar esse país segundo o padrão ocidental, um marco importante foi a construção de um modelo de cidade, que, à custa de milhares de vidas camponesas, se tornou a nova capital do Império, São Petersburgo. Para essa edificação, artistas os mais diversos foram trazidos da Europa, e acabaram conquistando um espaço significativo na formação de jovens artistas russos, sejam eles arquitetos, pintores e escultores, a partir da fundação da Academia de Belas Artes de São Petersburgo. Assim, palácios e mansões ao gosto europeu foram construídos, e a Rússia começava, então, a conhecer uma arte muito diferente da sobriedade dos ícones e da simplicidade – uma palavra utilizada aqui sem nenhuma conotação pejorativa – dos utensílios domésticos produzidos pelos próprios camponeses. Estilos como o Barroco, o Classicismo e o Romantismo invadiram a Rússia com o passar dos anos, devendo-se ressaltar que eles foram reverenciados com obras de verdadeira maestria pictórica. 1 Mestre em História pela UFF. Created with novaPDF Printer (www.novaPDF.com). Please register to remove this message.

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1

Arte e Revolução na Rússia Bolchevique

por Patrícia Danza Greco1

Falar sobre o papel da arte nos períodos revolucionários exige um esforço que vai

além do próprio período. Um esforço que necessita olhar para o momento anterior,

percebendo quais as continuidades e as dissonâncias que se colocam entre a antiga ordem

que se finda e a nova que se pretende construir. E, com certeza, o estudo da Rússia

revolucionária não foge a essa regra, o que faz com que, necessariamente, essas palavras

iniciais se voltem para os séculos XVIII e XIX.

Desde a conversão da Rússia ao cristianismo no século X, a produção artística

esteve sempre muito associada à religião, visível nas igrejas, nos ícones e nos utensílios

eclesiásticos. Sem, em absoluto, desmerecer toda a atividade artística que também existia

ligada à vida campestre – decorações de casas, ovos coloridos de Páscoa, tecidos, cestas –,

foi no século XVIII que se intensificou o contato com o Ocidente, cujo desdobramento

para as artes foi a importação de estilos artísticos considerados “eruditos”. Isso porque

Pedro, O Grande (1682-1725), amante dos estudos técnicos e náuticos, foi o principal

responsável por considerar que o Ocidente era um paradigma de modernização que deveria

ser seguido pela Rússia. Dentre as inúmeras reformas empreendidas em vista de

modernizar esse país segundo o padrão ocidental, um marco importante foi a construção de

um modelo de cidade, que, à custa de milhares de vidas camponesas, se tornou a nova

capital do Império, São Petersburgo. Para essa edificação, artistas os mais diversos foram

trazidos da Europa, e acabaram conquistando um espaço significativo na formação de

jovens artistas russos, sejam eles arquitetos, pintores e escultores, a partir da fundação da

Academia de Belas Artes de São Petersburgo. Assim, palácios e mansões ao gosto europeu

foram construídos, e a Rússia começava, então, a conhecer uma arte muito diferente da

sobriedade dos ícones e da simplicidade – uma palavra utilizada aqui sem nenhuma

conotação pejorativa – dos utensílios domésticos produzidos pelos próprios camponeses.

Estilos como o Barroco, o Classicismo e o Romantismo invadiram a Rússia com o passar

dos anos, devendo-se ressaltar que eles foram reverenciados com obras de verdadeira

maestria pictórica.

1 Mestre em História pela UFF.

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Dessa maneira, as cenas históricas, as paisagens e os retratos típicos dessa “Arte de

Salão” passaram a conviver com a tradicional arte cristã, bem como, a partir dos anos 60

do século XIX, com um novo movimento artístico que se opunha justamente aos

embelezamentos conferidos pela Academia. Ao contrário de maquiar o mundo ou de

traduzir os encantos nele já existentes, o Realismo optava por retratar a vida da maneira

como ela se mostrava e, por isso, buscava, por vezes, um retrato psicológico de suas

personagens. Mais do que isso, o Realismo acreditava na necessidade de uma função social

para a arte e, sem sombra de dúvida, isso não pode ser compreendido sem relembrar as

idéias que a intelligentsia russa fazia circular na época.

Esta, assentada em valores como a igualdade e a solidariedade ainda presentes na

estrutura social da Comuna Rural, defendia uma modernização da Rússia que não

abdicasse dessa tradição, pois só assim essa nação não sofreria o deletério

desenvolvimento industrial característico do Ocidente, que trouxera, para seus países,

miséria e proletarização. A intelligentsia, no geral, defendia uma autenticidade no processo

de modernização russo, dito alternativo, já que a Rússia ainda dispunha de redutos com

valores sociais e culturais que não haviam sido destruídos. A disseminação deles por entre

a sociedade garantiria uma passagem direta da etapa atual para a socialista, sem com isso

abdicar da modernização do país. Se esses valores fossem preservados, estaria consolidada

nessa nação a possibilidade de uma via alternativa de modernidade; se as Comunas fossem

desacreditadas, boicotadas e corroídas, como vinham sendo ao longo do tempo, era o fim

da chance de construção do socialismo naquela nação. Em suma, a crença era basicamente

a mesma no interior dos intelligenti, mas as táticas para alcançar o fim desejado variavam

muito, e o Realismo na Rússia se apresentou exatamente como uma interpretação pictórica

dessas idéias em circulação, sentindo que a arte tinha um papel social a cumprir,

denunciando as explorações, revelando os valores artístico-culturais dos russos e

auxiliando na educação e reeducação do povo.

É claro que não se pode esquecer que o Realismo também grassava na Europa

desde fins da primeira metade do século XIX e, na Rússia, existiam vários meios que

promoviam esse intercâmbio artístico, como revistas, colecionadores de arte russos e

artistas que viajavam interessados em descobrir o que o Ocidente desenvolvia de novo. É

preciso observar que, em momento nenhum, a Rússia foi uma extensão artística do

Ocidente. Muitas influências chegaram até ela, mas sempre trabalhadas de acordo com as

necessidades específicas daquela sociedade, principalmente após o nacionalismo

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apregoado pelos pintores realistas, por meio da valorização daquilo que eles consideravam

autêntico da cultura russa.

Nesse vaivém, a música, o teatro e as artes plásticas abrilhantaram o cenário

artístico russo e, em se tratando dessa última, nada menos do que o desenvolvimento da

arte abstrata se deve a um moscovita, Vassíli Kandínski, e a um ucraniano, Kazimir

Malievitch. O primeiro, estudando e trabalhando na Alemanha, seguiu a vertente da

abstração lírica, também conhecida como informal; o segundo, na Rússia, escolheu as

formas geométricas como meio de representação de um mundo novo.

O Suprematismo, nome dado à teoria desenvolvida que justificava a pintura

geométrica, era a libertação da pintura para ela ser ela mesma. Aparentemente uma simples

justificação da pintura enquanto pintura. Contudo, o Suprematismo propunha um novo

mundo, no qual as relações com o objeto se dariam intuitivamente. Isto é, a sua totalidade,

as imbricações pictóricas geradas pelos elementos constituintes do objeto só poderiam ser

inferidas de maneira intuitiva, e a concretização desse novo mundo se daria no plano

plástico da tela. É a supremacia de um mundo regido pela sensibilidade, pela capacidade

criativa e cognitiva do homem. Uma verdadeira arte moderna para um mundo moderno.

Em outras palavras, se o Realismo incorporara a realidade da segunda metade do século

XIX na Rússia, o Suprematismo representava bem o sonho de libertação por que lutaria o

povo russo mais incisivamente e coletivamente em 1917. O Suprematismo era a arte da

revolução porque consistia na própria revolução da arte. O sentido de libertação

condensado pelo quadrado, que dava uma solução para a busca interminável da arte

moderna de conferir autonomia ao espaço pictórico, era o mesmo que movera o povo em

fevereiro e em outubro do ano vermelho.

No filme, de Dziga Vertov, Réquiem a Lenin, uma camponesa depõe afirmando

saber agora o que os líderes dizem, palavras valiosas que ela então compreende e

memoriza, para contar aos outros quando da sua volta para casa. Ela diz ter havido um

tempo de miséria, mas que, agora, este já faz parte do passado. É preciso lembrar que,

àquela altura, o povo russo estava faminto e atormentado pelos desastres da Primeira

Guerra Mundial – se não morria no front de batalha, chorava pelos que lá perdia. A

revolução era um aceno de esperança de fim daqueles horrores.

Assim, o povo estava realmente comprometido com a revolução, aspirava novos

tempos, tempos de igualdade e liberdade, que pareciam se iniciar com os primeiros

decretos do Governo. Lenin, presidindo o Conselho dos Comissários do Povo e, portanto,

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maior representante daqueles desejos ardentes, bem poderia ter assumido o quadrado

vermelho de Malievitch como bandeira que anunciava essa nova era. O vermelho, símbolo

de poder e de revolução, tendo na sua palavra correlata russa krasni também o significado

de belo, feliz, constituía o sentido que movia aquela sociedade, sentido esse que estava

expresso na forma quadrangular que libertava a arte. No quadro Quadrado Vermelho.

Realismo Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões, estava estampado o

significado daquele novo tempo, traduzido por aquela forma geométrica vermelha

irregular, que rompia com toda a rigidez das imposições do passado e prenunciava a sua

libertação. Era a irregularidade da forma banhada pelo sangue da revolução. Revolução na

arte e na política que alimentavam aquela população.

O Suprematismo representa uma concepção para um novo mundo, como aquele que

se pretendia construir na Rússia a partir de 1917. Um mundo que não limita a relação entre

homem e objeto à sua necessidade material; um mundo que multiplica as relações e

identidades com o objeto, que o concebe apenas em estímulos, sensações e intuições; um

mundo que se torna realidade no plano pictórico, que através da pintura tem essas

sensações rítmicas traduzidas; um mundo em que a pintura se justifica enquanto pintura

porque é ela que transmuta a sensibilidade em formas dinâmicas, flutuantes e libertas.

O quadrado era para o artista a forma zero, isto é, a forma da qual todas as demais

derivam. Zero não de fim, mas de recomeço, assim como se concebia a Rússia

bolchevique. Além disso, é uma forma que não existe na natureza e que, portanto, não

pode ser associada a ela. Uma forma puramente mental, de criação do homem, um

verdadeiro ícone de uma arte do mundo das idéias, das sensações, das intuições. Com ela,

dentre tantas transformações que a acompanham, uma é particularmente democrático-

social: a arte, agora, era cosa mentale, como disse Leonardo da Vinci, era muito mais a

elaboração de um conceito do que a habilidade técnica do artista. Ser artista era ser um

pensador e não um especialista na capacidade de desenhar, na capacidade de representar a

realidade precisamente, e isso tinha total conexão com a construção de uma nova sociedade

que cria no trabalho e na necessidade de educação e de instrução do povo. E talvez resida

exatamente aí o motivo que fez com que tantos artistas apoiassem a Revolução: a

esperança de se construir uma sociedade distante dos moldes teocráticos e opressores que

caracterizavam o Tzarismo. Uma nova realidade mais justa e mais igualitária, distante dos

academismos e de suas regras e distinções artístico-sociais. É preciso ter em mente que ser

um vanguardista significava estar, muitas vezes, à margem dos salões expositivos oficiais,

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bem como ser foco da crítica artística mais ferrenha. Na revolução, eles viram a

possibilidade de construção de uma nova sociedade, menos autocrática. A revolução, por

sua vez, via nesses artistas sua principal base de apoio, artisticamente falando, como se o

novo sistema político, econômico e social que se almejava construir na Rússia exigisse

também novos alicerces artísticos.

Assim, desde que tomou o poder em outubro, o novo governo sabia bem que

precisava de artistas para construir e consolidar o sonho do socialismo. Além do interesse

da vinculação da arte à propaganda, já que muito da “instrução” do povo se daria pela

imagem, existia também, não se pode negar, uma idéia de que a revolução cultural era

condição premente para a sobrevivência da revolução político-econômica. Assim, logo de

início, o governo se preocupou com a questão do analfabetismo. Em 1918, foi assinado o

decreto Sobre a Mobilização, que instituía que todos os cidadãos deveriam aprender a ler e

a escrever. Em 1919, um outro, denominado A Liquidação do Analfabetismo, reforçou o

anterior, obrigando a alfabetização do povo, com faixa etária entre oito e cinqüenta anos,

em língua russa ou em língua materna, sendo que aos empregados seriam cedidas duas

horas do trabalho sem desconto de salário. Além de cuidar da educação num sentido

restrito da palavra, o Narkompros, Comissariado do Povo para a Instrução Pública,

responsabilizava-se também pelas artes, pelo seu estímulo e conservação. Como já dito, o

incentivo à produção artística era crucial, já que, com uma ampla população analfabeta, a

imagem constituía ferramenta necessária para a instrução e para aglutinação do povo em

torno da Revolução.

Sobre o sistema propagandista, sua presença sempre lembrava o russo do campo, da

cidade ou do front que a consolidação do processo revolucionário era a saída para todos os

males. Para essa propaganda revolucionária não existia superfície que não pudesse ser

trabalhada: barcas, trens, edifícios, utensílios domésticos, todos serviam de instrumento de

contínua reiteração dos valores da revolução, sendo o trabalho e o serviço militar temas

bastante difundidos nos cartazes durante os penosos anos de Guerra Civil. Em relação aos

affiches (cartazes), a arte gráfica foi sempre uma tônica na Rússia e, após a revolução,

encontrou ainda mais espaço, já que, através dela, o novo governo propagava e reavivava a

ideologia revolucionária em todos os russos. Vale lembrar que a utilização maciça dos

cartazes como veículos de propaganda durante o governo bolchevique supria a ausência de

outros meios de comunicação de massa.

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Nesse sentido, os artistas tiveram seu lugar assegurado nessa sociedade, não

importando, nesse primeiro momento, se eram figurativos ou abstratos, já que o

fundamental é que todos contribuíssem para sedimentar os alicerces da revolução, seja

colaborando nos trens e embarcações de propaganda, nos cartazes, nas decorações de rua

durante os festejos revolucionários ou nas exposições estatais.

Com Anatoli Lunatcharski à frente do Narkompros, a individualidade, a

criatividade e a coletividade eram encorajadas. Anatoli trabalhava no sentido de resguardar

o patrimônio já existente, mas também de estimular as novas tendências artísticas. E,

assim, esse Comissariado possibilitou a reformulação de todo o sistema oficial de ensino

das artes, visando atender todos os grupos de artistas, desde o incentivo a correntes mais

tradicionalistas até o apoio à arte vanguardista. Dessa nova concepção de ensino, esperava-

se criar meios de levar a arte a um maior número de pessoas (pela questão,

fundamentalmente, da necessidade de instrução do povo) e fomentar o trabalho artístico de

quem tivesse interesse em desenvolvê-lo, não havendo mais prova para ingresso nas

escolas de arte. Em outras palavras, promovia-se, por exemplo, novos tipos de propaganda

e de decorações de rua com base nas vanguardas, mas não se deixava de integrar a velha

intelectualidade russa à nova realidade vanguardista. Com isso, o Narkompros não tendia

nem para o radicalismo dos que almejavam a implantação de uma imediata cultura

proletária, nem para a simples aceitação de uma cultura burguesa. Seu intuito era o de

conciliar, ainda que temporariamente, ambas as correntes, sendo o mediador o Partido

Comunista no poder.

No interior da IZO, seção de artes plásticas do Narkompros, além das diferenças

estéticas, sejam elas figurativas ou abstratas, vanguardistas ou tradicionalistas, os artistas

se dividiam em duas tendências basicamente: uma que associava as artes ao Estado, seu

mais novo subsidiário depois da nacionalização das coleções particulares, e outra que

achava que as artes deveriam ser concentradas num órgão autônomo, que faria a ponte com

artistas de outros países. Muito embora houvesse espaço para o desenvolvimento de ambas

as correntes, o governo demonstrava uma certa predileção pela primeira, no sentido de que

toda aquela efervescência artística que se desenrolava no cenário russo desde 1910 seria

mais bem vista se atrelada à propaganda revolucionária – até porque, é preciso lembrar, a

Guerra Civil já começara e, em seu início, ela aparentava muito mais uma vitória dos

Brancos do que dos Vermelhos.

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No entanto, embora essa determinação fosse verdadeira, ainda havia espaço para a

segunda das correntes, que prezava a liberdade de criação em si mesma, principalmente

após a substituição, em 1918, da Academia de Belas Artes de São Petersburgo, da Escola

de Artes Aplicadas de Stroganov e da Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de

Moscou pelos Ateliês Artísticos Livres (Svomas), os quais não possuíam exame de

admissão, bem como promoviam suas exposições nas ruas.

Assim, a IZO conseguiu atender a todos os gostos, tanto no sentido de conservar o

que de valor o passado trazia e o que de novo o século XX apresentava quanto no sentido

de atrelar a arte à propaganda e de dar liberdade de criação aos que mais contundentemente

a desejavam. Cooptando e tentando equilibrar todas as tendências artísticas, Lunatcharski

estimulou sua produção imensamente, tornando a Rússia palco de inspiração não só no

terreno da revolução política como também da revolução artística. E uma das propostas

que comprovava a tentativa de conciliação de todas as tendências era a eliminação do júri

que julgava a entrada de obras de arte nas exposições, chamadas de Exibições Livres

Estatais, com o objetivo de tornar a arte livre para qualquer cidadão russo.

Com o passar do tempo, o Narkompros foi se estruturando a partir de um número

enorme de órgãos, departamentos, seções, instituições etc., que deveriam cuidar das artes e

da educação desde o nível mais básico até o superior e o técnico-profissionalizante.

Tamanha abrangência em suas funções acabou, de alguma forma, prejudicando seu

trabalho, até porque o orçamento que dispunha estava muito aquém das suas necessidades.

Como se não fosse suficiente, com a instituição da NEP, a verba repassada para esse

comissariado passou a ser muito inferior a dos anos anteriores: em 1918, o Narkompros

dispôs de 11,5% dos recursos totais do governo; em 1919, de 15,5%; em 1920, de 9,4%;

em 1921, de 2,2%; e nos dois anos seguintes, algo em torno de 2 a 4%. Mesmo assim, ele

continuou bastante ativo durante a primeira metade da década de 20, mas encontrou um

grande problema a ser enfrentado: uma insistência maior por parte do Partido de controlar

mais incisivamente todas aquelas seções que se multiplicaram no interior desse

Comissariado.

Mesmo não pertencendo ao Narkompros, o Proletkult, responsável por estimular a

criação de uma cultura proletária que fosse construída pelos próprios operários, foi um dos

primeiros organismos a sofrer com uma conduta mais repressora por parte do Partido.

Segundo Lunatcharski, um dos fundadores do Proletkult, Lenin nunca viu com bons olhos

a sua organização, já que antipatizava com esse afastamento dos operários do aprendizado

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das ciências e da cultura já existentes. Além disso, e talvez principalmente por isso, outro

fundador desse órgão foi Alexandre Bogdanov, cujas concepções políticas divergiam

bastante de Lenin, o que fazia com que este temesse o surgimento de um desvio político no

interior do Proletkult. Assim, em 1920, Lenin recomendou a Anatoli que ele deveria fazer

a vinculação dessa organização ao Narkompros e, conseqüentemente, ao Partido, já que,

agora, esse Comissariado se reorganizava sob considerável vigilância.

Assim, quando foi necessário uma contenção significativa das despesas do Estado

organizada em torno da NEP em 1921, obviamente não foram as vanguardas que pregavam

a autonomia da arte que receberam a verba disponível. A NEP, então, embora indicasse

tempos de maior liberdade para os camponeses e suas comercializações, com certeza não

trazia boas novas para o desenvolvimento cultural. Embora ele continuasse a ser uma

preocupação, as poucas somas eram direcionadas para tendências artísticas mais

condizentes com a velha idéia de representação naturalista, fazendo com que aquela

política conciliatória de todos os movimentos artísticos passasse a enfraquecer mais e mais

a cada ano.

Durante esse período, por exemplo, ganhou importância uma corrente produtivista

que associava arte e vida. Para Tátlin, maior expoente do Construtivismo russo, a

verdadeira importância da arte estava no cumprimento de um papel político-social no

mundo e, por esse pensamento, é fácil compreender o porque do movimento construtivista

ter se voltado para uma arte funcional, comprometida tanto com a propaganda política

quanto com uma nova estética, a qual permearia a vida cotidiana através da sua

aplicabilidade na indústria – característica essa que foi absorvida e propagada

fundamentalmente pela Bauhaus, escola alemã de design e de arquitetura, fundada por

Walter Gropius em Weimar em 1919, cujo slogan era “arte e tecnologia – uma nova

unidade”.

Em relação à pintura, por exemplo, a 47ª Exposição dos Ambulantes, aberta ao

público em 1922, transformou-se na menina dos olhos do governo, incitando os desejos

mais adormecidos nos membros do Partido, que desejavam voltar a ver na pintura os

politicamente engajados temas realistas. A partir dessa exposição, nasceu a Associação dos

Artistas da Rússia Revolucionária (Akhrr), que empreendeu inúmeros embates públicos

com a vanguarda soviética.

Não se pode nunca esquecer que a imposição do Realismo Socialista que se

consolidou nos anos 1930 não foi obra exclusiva de revolucionários que estavam no poder

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e que precisavam utilizar-se da arte como ferramenta de manipulação e de convencimento

do povo em meio àqueles tempos difíceis de coletivização dos campos. Sem dúvida, a

receptividade da sociedade era bastante amigável diante daquelas temáticas tão claramente

identificáveis. A própria Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária comprova

como não havia nenhum consenso também entre os artistas quanto ao papel que deveria

desempenhar a arte num período revolucionário. Além disso, o Estado, sem nenhuma

dúvida, queria o melhor para o povo, mas isolou-se naquilo que ele considerava melhor,

sem perceber que com isso condenava-o a muitas privações. Por vezes, ouvia os gritos

desesperados dos mujiks e concedia-lhes benefícios atenuantes daquela realidade.

Entretanto, no geral, estava embebido pelo Marxismo da II Internacional e tomava decisões

respaldado por ele, afinal, a história estava a favor da revolução. Por isso, ao utilizar as

artes como instrumento propagandista, o governo não pretendia puramente tornar a

sociedade uma massa facilmente manipulável; ele pretendia instruir, para que um dia todos

pudessem ver o mundo do mesmo modo que ele, pensamento que constitui o grande

equívoco de todo regime ditatorial.

Assim, entre 1917 e 1922, uma cultura modernista acabou se consolidando, em

geral vanguardista, coletivista e difundida. Dentre suas expressões mais notáveis estavam o

cinema revolucionário, o teatro político, os grandes projetos urbanísticos modernos, as

artes gráficas, o Construtivismo, com sua crença na utilização de formas artísticas para fins

utilitários, e o Suprematismo. Entretanto, tão-logo a governo viu-se forte e sozinho no

poder, a liberdade que fora a tônica que regera os últimos anos deu lugar à suspensão dos

subsídios à boa parte das escolas de arte, que haviam se multiplicado. Em primeiro lugar

porque os tempos de escassez urgiam pela contenção de despesas. Em segundo porque,

diante de uma obra realista e de uma abstrata, os pensamentos mais conservadores

prevaleceram – tanto do governo quanto da sociedade –, e os parcos recursos foram

direcionados para as produções realísticas. A partir da morte de Lenin, em 1924, a situação

agravou-se ainda mais e tornou-se insustentável depois da renúncia de Lunatcharski de seu

cargo como comissário do Narkompros. Com Litkens ocupando o lugar de Anatoli, as

antigas aspirações tornaram-se ilusões e tanto o movimento por uma cultura proletária

como por uma linguagem de vanguarda para as artes foram extirpados do cenário cultural

soviético.

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Karl Briullov, O último dia de Pompéia, 1830-33.

Iliá Riépin, Os rebocadores do Volga, 1870-73.

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Detalhe da obra anterior.

Kazimir Malievitch, Quadrado vermelho. Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões, 1915.

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Vassili Kandinski, A voz desconhecida, 1916.

Embarcação de propaganda chamada a estrela vermelha, 1920.

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UNOVIS, Decoração em Vítebski, 1920.

El Lissítski, Derrotem os brancos com a cunha vermelha, 1919.

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V. N. Deni, Camarada Lenin livra a Terra de todo lixo, 1920.

S. Tchekhonine, O reinado dos operários e dos camponeses é sem fim, 1920.

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Grígori Chegal, Líder, professor e amigo, 1937.

Referências bibliográficas

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