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Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais
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PARECER
Assunto: CONFLITOS TERRITORIAIS, AMBIENTAIS E CULTURAIS
CONSTATADOS NA COMUNIDADE FAXINAL DO SALSO, MUNICÍPIO DE QUITANDINHA
Tendo em vista o material enviado a este Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais com relação ao
conflito territorial constatado na Comunidade Faxinal do Salso, no município de
Quitandinha, verifica-se a necessidade de analisar o contexto ambiental e cultural em cotejo
com os direitos reais da referida comunidade para, ao final, serem apontadas algumas
sugestões de encaminhamento.
1 – A Comunidade Faxinal do Salso
O Faxinal do Salso, comunidade tradicional localizada no Município de
Quitandinha, possui uma área de criador comunitário estimada em 40 alqueires, onde
residem 40 famílias, que ali vivem e exploram de maneira sustentável a terra e os recursos
naturais há mais de 180 anos, construindo um modo próprio de criar, de fazer e de viver,
que sempre garantiu a reprodução física, social e cultural dos membros dessa comunidade.
A denúncia dos representantes do Faxinal do Salso refere-se ao ato de cultivo
agrícola extensivo dentro de área restrita ao criador comunitário, o que ocasionou a
destruição da vegetação nativa, além de contaminação de recursos hídricos, do
envenenamento de animais e de intoxicação de moradores próximos a esta lavoura.
Assim, está-se a promover a descaracterização de uma área de extrema importância
para a região, já centenária, causando sérios problemas para os faxinalenses que vivem
neste local, pois impede a circulação das pessoas desta comunidade e dos animais, bem
como promove o esgotamento da terra e dos recursos naturais que existem nesta região,
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comprometendo, além da reprodução, a própria continuidade da comunidade tradicional
situada no município de Quitandinha.
Daí a necessidade de se reconhecer que a proteção do direito à cultura da aludida
comunidade tradicional está atrelada à preservação de seus recursos naturais de modo
comunitário, conforme a seguir se expõe.
2 – Violação do direito à cultura faxinal
O termo germânico Kultur simbolizava todos os aspectos espirituais de uma
comunidade; o termo francês civilization referia-se principalmente às realizações materiais
de um povo. “Os dois termos foram sintetizados por Edward Tylor em culture (termo
inglês), que em sentido etnográfico é: todo complexo que inclui conhecimentos, crenças,
arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábito adquiridos pelo homem
como membro de uma sociedade”1.
No debate das teorias antropológicas em torno de um conceito de cultura, é de se
advertir que o aspecto evolucionista unilinear2 da teoria de Tylor foi vencido pelo
relativismo cultural, ligada à idéia de evolução multilinear3. “Franz Boas desenvolveu o
particularismo histórico (ou a chamada Escola Cultural Americana), segundo a qual cada
cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que
enfrentou” 4, o que abre para a possibilidade do relativismo cultural5.
1 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 25. 2 Tylor acreditava na igualdade da natureza humana, o que possibilitava a comparação de raças do mesmo grau de civilização. Entendia ainda que a desigualdade era resultante da desigualdade de estágios no processo de evolução, que estaria disposto numa “escala de civilização” (LARAIA, op. cit., p. 32). 3 Segundo Laraia, ao tempo do pensamento de Tylor o que imperava era o evolucionismo unilinear (todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução). Ademais, Tylor acreditava na unidade psíquica da humanidade e não reconheceu os múltiplos caminhos da cultura, se filiando a uma escala evolutiva que consistia em um “processo discriminatório, através do qual diferentes sociedades humanas eram classificadas hierarquicamente, com vantagem aos países europeus” (Ibidem, p. 34). 4 Ibidem, p. 36. 5 O relativismo defende a tese de que os contextos culturais só possuem validade relativa. Ao contrário, o universalismo reivindica uma validade supratemporal e invariável de cultura para cultura. (KERSTING, Wolfgang. Universalismo e Direitos Humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 82)
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O modo comum de garantir a sobrevivência de cada grupo humano, a formulação
das estruturas de parentesco, as maneiras de formar associações, de dar um sentido à vida
constituem a cultura, sendo esta a parte do ambiente construída pelo ser humano6. Os
elementos resultantes do processo transformador da natureza, que são transmitidos de
geração para geração denominam-se bens culturais; o conjunto de bens culturais forma uma
universalidade, que, juridicamente, intitula-se patrimônio cultural.
Sobre os bens culturais nasce um novo direito, fazendo com que sejam apropriados
por toda a coletividade, sobrepondo-os aos direitos individuais. São direitos que não são só
ambientais, porque são referenciados socialmente, a partir de uma ótica humanista. Podem
ser melhor denominados de direitos ou interesse socioambientais7.
Existem bens socioambientais tangíveis e intangíveis. São tangíveis8 as obras, os
objetos, os documentos, as edificações, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, paleontológico, ecológico, científico e arqueológico. A exemplo dos
intangíveis podem ser citadas as manifestações de arte, as formas e processos de
conhecimento, os hábitos, os usos, os ritmos, as danças, os processos de transformação e
aproveitamento de alimentos, sendo “difícil determinar o limite em que estes bens passam a
ser juridicamente relevantes e, a partir daí, serem tutelados” 9.
A Constituição de 1988 passa a tratar a cultura e os bens culturais de forma mais
aprofundada, destinando uma seção específica ao assunto10, reconhecendo e protegendo o
6 HERSKOVITS, Melville J. Antropologia Cultural. São Paulo: Mestre Jou, 1963. 7 “... O bem cultural – histórico ou artístico - faz parte de uma nova categoria de bens, junto com os demais ambientais, que não se coloca em oposição aos conceitos de privado e público, nem altera a dicotomia, porque ao bem material que suporta a referência cultural ou importância ambiental – este sempre público ou privado - se agrega um novo bem, imaterial, cujo titular não é o mesmo sujeito do bem material, mas toda a comunidade. Este novo bem que surge da soma dos dois, isto é, do material e do imaterial, ainda não batizado pelo Direito, vem sendo chamado de bem de interesse público, e tem uma titularidade difusa, e talvez outro nome lhe caiba melhor, como bem socioambiental, porque sempre tem de ter qualidade ambiental humanamente referenciada” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e Proteção Jurídica. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1997. p. 18). 8 Ressaltando-se que todo bem socioambiental tem uma parcela de imaterialidade, pois precisam ser referenciados pela comunidade que reconhece a necessidade de protegê-los. 9 SOUZA FILHO, Bens Culturais..., p. 32. 10 Desde a Constituição de 1937 até a emenda de 1969, há tratamento conjunto entre os bens naturais e culturais.
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pluralismo cultural e a diversidade de valores dos grupos étnicos integrantes do nosso
“processo civilizatório”. Prevê o artigo 216 da Constituição Federal:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
Assim, pode-se concluir que a ordem constitucional vigente se insere no contexto
do reconhecimento do multiculturalismo e lança-se na difícil tarefa de buscar proteger
todos os processos acumulativos dos diferentes grupos portadores de referência à
identidade, à ação e à memória que formam o patrimônio cultural brasileiro.
2.1. Normas de proteção aos territórios tradicionais como bens culturais
A matéria vem sendo tratada pelas normas internacionais que, com grande
consistência de fundamentos e de validade, estabelecem mecanismos de proteção jurídica
aos diversos elementos culturais, materiais e imateriais, que compõem o testemunho da
intervenção humana sobre a natureza. Tais normas foram internalizadas pelo sistema
jurídico brasileiro11 e são referidas, em síntese, nas linhas seguintes.
11 É oportuno frisar que, nos termos do § 3º, do art. 5º da Constituição Federal, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
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a) Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural,
promulgada pelo Decreto nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977, e aprovada pelo
Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 77 de 30 de junho de 1977 –
Estabelece mecanismos de reconhecimento e proteção de estruturas com destacado
interesse para a humanidade.
b) Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 5 de
junho de 1992, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, e
aprovada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 2 de 03 de
fevereiro de 1994. Tal instrumento, dentre outros dispositivos, prevê:
Respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das
comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais
relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e
incentivar sua mais ampla aplicação com a participação dos detentores desse
conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos
benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas: alínea j
do artigo 8;
Proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos biológicos de acordo com
as práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de conservação e
utilização sustentável: alínea c do artigo 10.
c) Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT 12,
promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, e aprovada pelo
12 A Convenção 169 da OIT, revendo a Convenção n.º 107, busca criar um instrumento internacional vinculante tratando especificamente dos direitos dos povos culturalmente tradicionais. Esta Convenção aplica-se aos povos em países independentes que apresentem condições sociais, culturais e econômicas distinguindo-se de outros segmentos da população nacional. A auto-identidade das populações indígenas ou tribais é uma inovação do instrumento, ao instituí-la como critério subjetivo, mas fundamental, para a definição dos povos. Isto é, nenhum estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal como tal ele próprio se reconheça. Os conceitos básicos, pelos quais se norteia a interpretação das disposições da Convenção, são a consulta e a participação dos povos interessados e o direito destes povos de decidir sobre
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Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002.
Com os seguintes destaques:
Os governos deverão respeitar a importância de que, para as culturas e valores
espirituais dos povos indígenas e tribais, se reveste sua relação com as terras e/ou
territórios que ocupam ou utilizam de algum modo, particularmente, os aspectos
coletivos dessa relação: artigo 13;
Reconhecimento do direito de propriedade e posse desses povos sobre as terras
ocupadas tradicionalmente e direito à utilização de terras não ocupadas, que venham
sendo utilizadas de forma tradicional para atividades e subsistência. É dever do
Estado tomar as providências necessárias para definir as terras que esses povos
ocupam tradicionalmente e garantir a proteção de seus direitos de propriedade e de
posse: artigo 14;
Dever de proteção dos direitos desses povos sobre os recursos naturais existentes
nos territórios. Esses direitos compreendem os direitos desses povos de participação
do uso, administração e conservação desses recursos. No caso em que a propriedade
dos minerais ou dos recursos do subsolo ou de outros recursos existentes nessas
terras pertençam ao Estado, os governos deverão consultar os povos interessados
para verificar se estes seriam prejudicados e em que medida antes de empreenderem
ou autorizarem quaisquer programas de prospecção ou exploração desses recursos.
Os povos interessados deverão participar, sempre que possível, dos benefícios
decorrentes dessas atividades e deverão receber justa indenização por quaisquer
danos que possam sofrer em razão dessas atividades: artigo 15;
Excepcionalidade da remoção das terras tradicionalmente ocupadas. Quando se
considerarem necessárias a remoção e o reassentamento desses povos, desde que
seja feito mediante seu livre consentimento, dado com pleno conhecimento de
causa. Sempre que possível, esses povos deverão ter o direito de regressarem as suas próprias prioridades de desenvolvimento na medida em que afetem suas vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam. A Convenção reconhece o direito de posse e propriedade e preceitua medidas a serem tomadas para a salvaguarda destes direitos em relação à terra e ao território que as comunidades tradicionais ocupam ou utilizam coletivamente.
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suas terras tão logo deixem de existir as causas que motivaram sua remoção e
reassentamento. Quando o retorno não for possível, esses povos deverão receber
terras cuja qualidade e situação jurídica sejam pelo menos iguais às das terras que
ocupavam anteriormente. Quando esses povos preferirem receber indenização em
dinheiro, esta lhes deverá ser garantida com as devidas garantias. As pessoas
removidas e reassentadas deverão ser plenamente indenizadas por qualquer perda ou
dano sofrido em conseqüência de sua remoção: artigo16;
Deverão ser respeitadas as modalidades estabelecidas pelos povos indígenas e
tribais para a transmissão dos direitos sobre a terra entre seus membros. Os povos
deverão ser consultados sempre que se considere sua capacidade de alienar suas
terras ou transmitirem de outro modo seus direitos sobre essas terras fora de sua
comunidade. Dever-se-á impedir que pessoas estranhas a esses povos possam se
aproveitar dos costumes ou do desconhecimento das leis para obterem a
propriedade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes: artigo 17;
A lei deverá estabelecer as devidas sanções de toda intrusão não-autorizada nas
terras desses povos, e os governos deverão tomar as medidas para impedir essas
infrações: artigo 18;
Os programas agrários nacionais deverão garantir a esses povos tratamento
equivalente ao concedido aos demais segmentos da população, para (a) distribuição
de terras adicionais quando as que dispunham se tornem insuficientes para lhes
garantir o indispensável a uma existência normal ou para fazer frente ao seu
possível crescimento numérico e (b) concessão dos meios necessários para
promover o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam: artigo 19.
d) Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais (assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005, com Instrumento de
Ratificação depositado pelo Brasil em 16 de janeiro de 2007, entrou em vigor
internacional em 18 de março de 2007), aprovada pelo Decreto Legislativo nº 485,
de 20 de dezembro de 2006, que, em síntese, direciona-se a:
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Respeitar e proteger os sistemas de conhecimentos tradicionais, bem como
reconhecer a contribuição desses conhecimentos para a proteção ambiental e a
gestão dos recursos naturais e favorecer a sinergia entre a ciência moderna e os
conhecimentos locais, e, ainda, prevê a integração da cultura nas políticas de
desenvolvimento, em todos os níveis, a fim de criar condições propícias ao
desenvolvimento sustentável e, nesse marco, fomentar aspectos ligados à proteção
e promoção da diversidade das expressões culturais (artigo 13). Tem como
principais objetivos:
proteger e promover a diversidade das expressões culturais;
criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em
benefício mútuo;
encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais
amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma
cultura da paz;
fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no
espírito de construir pontes entre os povos;
promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a
conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;
reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos
os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações
empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o
autêntico valor desse vínculo;
reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto
portadores de identidades, valores e significados;
reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as
políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais em seu território;
fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de
parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países
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em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das
expressões culturais.
e) Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (adotada em
Paris, em 17 de outubro de 2003, e assinada em 3 de novembro de 2003) ,
promulgada pelo Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006, aprovada pelo Congresso
Nacional, através do Decreto Legislativo n º 22, de 01 de fevereiro de 2006, amplia
a esfera de proteção de acervos culturais também no plano imaterial.
A par de uma malha normativa internacional e do conjunto de regras, preceitos e
princípios constitucionais já mencionados, no campo legislativo em sentido estrito, merece
destaque o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, preconizando
que os territórios tradicionais são espaços necessários a reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, utilizados de forma permanente ou
temporária. Estabelece como objetivo geral o desenvolvimento sustentável dos povos e
comunidades tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia de seus
diretos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à
sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. Tem como objetivos
específicos:
a garantia aos povos e comunidades tradicionais de seus territórios e o acesso aos
recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural
e econômica (inciso I do artigo 3º);
a solução e/ou minimização dos conflitos gerados pela implantação de Unidades de
Conservação de Proteção Integral em seus territórios tradicionais e o estímulo à
criação de Unidades de Conservação de Uso Sustentável (inciso II do artigo 3º);
garantir os direitos dos povos e das comunidades tradicionais afetados direta ou
indiretamente por projetos, obras e empreendimentos: inciso IV do artigo 3º.
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Outra norma que pode ser alçada é o Decreto-Lei 25/3713, aplicável a uma categoria
de bens que merecem ser reconhecidos como pertencentes ao “patrimônio” histórico e
artístico nacional, destinando-se aos bens que se sobressaem do conjunto, que se
apresentam como referenciais por sua excepcionalidade: os bens que podem ser inscritos no
Livro do Tombo14.
Cabe aqui uma breve incursão no instituto do tombamento. Trata-se do ato pelo qual
o poder público declara o valor especial, histórico, paisagístico, científico, cultural, artístico
ou ambiental, de coisa ou lugar e a necessidade de sua preservação15, sendo considerado o
instrumento de proteção mais importante16, por acarretar diversos efeitos jurídicos
protetivos aos bens culturais17. A decisão para o tombamento é ato discricionário da
administração pública18. Quando o proprietário do bem solicita ou aceita a decisão,
verifica-se o tombamento voluntário; quando há recusa, é compulsório, instaurando-se um
processo administrativo contraditório. Existe uma posição defendendo a gratuidade do
tombamento e outra que o tombamento deve ser indenizado19. Considerando as correntes
que discutem sobre a natureza e regime jurídico do tombamento, ora o inserindo na 13 BRASIL. Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Publicação: Diário Oficial da União, Brasília, p. 24056, coluna 1, 06 dez. 1937. Republicação: Diário Oficial da União, Brasília, p. 24520, coluna 1, 11 dez. 1937. 14 Do latim tumulum, tombar significa colocar sob a tutela pública aqueles bens que por possuírem características excepcionais históricas, artísticas, paisagísticas, arqueológicas e naturais, ou por vincularem-se a fatos memoráveis da nossa história, mereçam integrar o acervo cultural do país. 15 CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B. Tombamento e dever do Estado de indenizar. Revista dos Tribunais, São Paulo, n° 709, p. 35-41, nov. 1994. p. 36. 16 PIRES, Maria Coeli Simões. Da Proteção do Patrimônio Cultural: o tombamento como principal instituto. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. 17 Principais efeitos: os bens públicos têm sua inalterabilidade reforçada, só podendo sofrer transferência para pessoa jurídica de direito público; a alienação dos bens particulares requer prévia comunicação e a exportação só é possível por prazo determinado, para fins de intercâmbio cultural, mediante autorização; o proprietário deve comunicar eventual extravio ou furto no prazo de seis dias; é vedada a alteração (imóveis vizinho também podem sofrer limitação de construção) destruição ou mutilação dos bens tombados, cujo restauro também requer prévia autorização; as reparações necessárias à conservação do bem são encargos do proprietário, que, impossibilitado, deve comunicar ao órgão competente, que fará os reparos ou promoverá a desapropriação do bem; os órgãos públicos têm preferência nas alienações onerosas. 18 Para Marés é possível que também o Poder Legislativo e o Judiciário declarem tombado um bem, muito embora a inscrição no livro do tombo deva ser feita pelo funcionário competente (SOUZA FILHO, Bens Culturais..., p. 49). 19 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ação Civil Pública e Tombamento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
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categoria de limitação, ora de servidão administrativa20, hipótese que acarreta na
necessidade de indenização. Quanto ao pronunciamento da autoridade, para José Cretella
Júnior “está localizado na esfera discricionária da Administração: pode o administrador
reconhecer a qualificação do bem, louvando-se no parecer do órgão competente e, no
entanto, não editar o ato, por não achar nem conveniente e nem oportuno tombá-lo” 21.
Nestas breves considerações sobre o instituto do tombamento é importante finalizar
destacando que, à luz da atual Constituição, o critério para avaliar o caráter cultural não é a
monumentalidade, mas o fato de ser uma referência cultural.
Ocorre que, em se tratando de contextos culturais mais dinâmicos, como é o caso
dos faxinais, nos quais se mesclam elementos materiais e imateriais, além da necessidade
de proteger o próprio sujeito coletivo faxinalense, o instituto do tombamento não é de
incidência tão simples. É de se considerar, entretanto, que sob a ótica adotada pela
Constituição de 1988, que destina uma seção específica ao assunto22, os bens integrantes do
nosso “processo civilizatório” pertencem ao patrimônio cultural independente de
tombamento, face ao caráter declaratório e não constitutivo do valor cultural23. O artigo 216
prevê, em seu parágrafo 1º, além do tombamento, as seguintes formas de proteção:
inventários; registros; vigilância; tombamento; desapropriação; outras formas de
acautelamento e preservação. Nas linhas seguintes, em breves digressões, serão comentados
os instrumentos mencionados:
Desapropriação - é o “procedimento administrativo através do qual o Poder
Público compulsoriamente despoja alguém de sua propriedade e a adquire para si,
mediante indenização, fundada em um interesse público” 24. O Decreto-Lei n°
20 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. 7ª. tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 180. 21 CRETELLA JR, José. Regime Jurídico do Tombamento. Revista de Direito Administrativo - RDA, Rio de Janeiro, n. 112, 1975, p. 54. 22 Desde a Constituição de 1937 até a emenda de 1969, há tratamento conjunto entre os bens naturais e culturais. 23 O tombamento decorre do valor cultural e não é este que surge do primeiro (RICHTER, Rui Arno. Meio Ambiente Cultural: omissão do Estado e tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 1999. p. 98-99). 24 MELLO, op. cit., p. 258.
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25/37 atribui aos bens culturais a qualidade de utilidade pública para fins de
desapropriação.
Inventário - pode ser definido como relação oficial dos bens culturais, ainda não
recebeu regulamentação, mas pode ser promovido para funcionar como fonte de
conhecimento das referências identitárias previstas constitucionalmente.
Registro - Registro é o ato de inscrever ou lançar em livro especial.
Vigilância - Trata-se de uma obrigação de estar atento e não um instrumento de
proteção25. Na realidade é um dever estatal ser vigilante pela conservação do bem
cultural, tendo o direito de inspecioná-lo sempre que entender conveniente.
Outras formas de acautelamento e preservação – aqui estariam recepcionados,
por exemplo, os instrumentos judiciais para a proteção dos bens culturais:
- Lei nº 4.717/65, nos seus novos contornos dados pela Lei 6.513/77, que trata da Ação
Popular, cuja propositura é facultada a qualquer indivíduo para defender os bens
públicos, sempre que a integridade destes seja comprometida por ato ilegal praticado
por autoridade pública – lesividade ao patrimônio público e ilegalidade do ato
administrativo são as condições específicas da ação;
- Lei nº 7.374/85, que instituiu a Ação Civil Pública26, que busca a reparação efetiva de
danos causados aos bens culturais e interesses coletivos em geral e pode ser proposta
por pessoas jurídicas de direito público, pelo Ministério Público e pelas associações
25 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e Proteção Jurídica. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1997. p. 49. 26 Em estando no poder discricionário analisar a oportunidade e conveniência do tombamento, se faz imprescindível o exercício dos outros mecanismos cabíveis repartindo-se o ônus social da preservação dos bens componentes do patrimônio cultural. “A lei admite que, por meio da ação civil pública, seja promovida a defesa em juízo dos interesses de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico – valores esses que integram o chamado patrimônio cultural” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 13a. ed. 2001. p. 152)
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civis criadas a mais de um ano e que tenham em seus estatutos a finalidade de realizar a
proteção aqui analisada27.
Verifica-se que a construção normativa busca proteger amplamente os contextos
culturais, em seus aspectos materiais e imateriais, reconhecendo a importância da
manutenção do território como elemento de destaque na continuidade da cultura viva,
dentro da premissa de que as sociedades e suas manifestações são sistemas dotados de uma
complexidade inerente, que funcionam entre a construção e a reconstrução, unidade e
pluralidade, plenitude e incompletude28.
Passemos a analisar o contexto cultural específico dos faxinais e o seu acolhimento
no sistema lógico-formal vigente.
2.2. Proteção jurídica específica dos faxinais
Os termos Faxinal e Sistema Faxinal são utilizados, na maioria das vezes, como
sinônimos. Alguns autores definem o Sistema Faxinal como a forma de organização
camponesa com criação extensiva de animais em áreas comuns, extração florestal dentro do
criadouro comum e policultura alimentar de subsistência. Outros apontam o Faxinal como
um sistema agrossilvopastoril secular com características singulares de uso da terra. A
organização do Sistema Faxinal está dividida basicamente em três espaços principais:
“As terras do criadouro comum são, em geral, formadas por vales com relevo suavemente ondulado e presença de cursos d’águas. Elas abrigam um ambiente florestal alterado pelo pastoreio
27 O jurista Marés chama a atenção que ambas as ações podem ser utilizadas quando os bens culturais estejam sendo danificados ou se encontrem em risco, faltando ao sistema jurídico uma ação para que o cidadão pleiteie a declaração de interesse cultural (SOUZA FILHO, Bens Culturais..., p. 59). 28 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: Etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; RIBEIRO, Darcy. As américas e a civilização: Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; RIBEIRO, Darcy Os índios e a civilização: A integração das populações indígenas no Brasil moderno.3. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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extensivo. Já as terras de plantar se localizam geralmente nas encostas, em áreas mais íngremes, e são separadas do criadouro através de um sistema de cercas e/ou valos” 29.
Trata-se de uma experiência auto-sustentada de relevante importância ecológica,
social, histórica e cultural, de modo que o poder público do Estado do Paraná, alinhado com
as normas internacionais, normas constitucionais e normas federais, estabelece regramento
para a matéria. Inicialmente, através do Decreto nº 3.446/97, protege-se o faxinal como
Área Especial de Uso Regulamentado (ARESUR), pressupondo um ato administrativo de
cadastramento do faxinal como unidade de conservação específica do Estado do Paraná.
Sob tal esfera de proteção, consoante documento emitido pelo Instituto Ambiental do
Paraná – IAP (em anexo) se encontram inseridos 24 (vinte e dois) faxinais: Seixas, no
Município de São João do Triunfo; Papanduva, Paraná Anta Gorda, Ivaí Anta Gorda, Barra
Bonita, Marcondes, Guanabara, Tijuco Preto e Taboãozinho, no Município de
Prudentópolis; dos Melos e do Rio do Couro, no Município de Irati; Marmeleiro de Baixo,
Marmeleiro de Cima, Barro Branco e Salto, no Município de Rebouças; Lageado dos
Melos, Taquari e Água Quente dos Meiras, no Município de Rio Azul; Lageado de Baixo,
no Município de Mallet; Kruger, no Município de Boa Ventura de São Roque; Emboque,
no Município de São Mateus do Sul; Água Amarela de Cima, no Município de Antônio
Olinto, Campestre dos Paulas e Meleiro/Espigão das Antas/Pedra Preta, no Município de
Mandirituba.
Alguns faxinais, embora apresentem as características estabelecidas no Decreto
3.446/97, ainda não obtiveram o respectivo cadastramento como ARESUR, o que contribui
para a ocorrência de ações degradadoras. Segundo notícia do IAP (em anexo), 15 (dezoito)
faxinais demandam criação urgente de ARESUR, conforme a seguir relacionados:
Faxinal Município Barreirinha dos Beltrão Rebouças Braço do Potinga Rio Azul Rio Azul dos Soares Rio Azul
29 LÖWEN SAHR, Cicilian Luiza; GONÇALVES CUNHA, Luiz Alexandre. O Significado Social e Ecológico dos Faxinais: Reflexões Acerca e uma Política Agrária Sustentável para a Região da Mata com Araucária no Paraná. in Revista Emancipação, 5(1), 2005 (P. 94)
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Monjolo Irati Carriel Turvo Saudade Santa Anita Turvo Água Branca de Baixo São Mateus do Sul Água Amarela de Cima Antonio Olinto Ribeiro Pinhão Bom Retiro Pinhão São Roquinho Pinhão Salso Quitandinha Mato Branco Quitandinha Cai Quitandinha Doce Grande Quitandinha
Ocorre que, muito embora o artigo 1º, do Decreto nº 3.446/97, crie “ipso facto” as
ARESUR, a depender, segundo o parágrafo 3º, do mesmo artigo, de simples ato
administrativo emanado do Secretário de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos30,
estabeleceu-se a praxe de se iniciar o procedimento por proposta do município. É uma
estratégia política que não coaduna com o comando legal, mas tem suas motivações
práticas, pois o mesmo requerimento que tem o condão de possibilitar a criação da
ARESUR também se presta a solicitar a participação no ICMS-Ecológico. Assim se deu
com todas as ARESUR criadas, mas esse modelo dá sinais de seu esgotamento, haja vista
que nem sempre o executivo municipal está disposto a enveredar em tema que, por vezes,
se apresenta com relativo grau de complexidade.
O Faxinal do Salso, cujo contexto motiva o presente parecer, está entre as ARESUR
a serem criadas, e o órgão ambiental aguarda o requerimento do Município de Quitandinha,
que ainda não concluiu pela conveniência e oportunidade de postular o ICMS- Ecológico
que resultará do cadastramento da referida unidade de conservação. Para resolver impasses
à semelhança do que ora se apresenta em relação ao Faxinal do Salso, o IAP está buscando
readequar seus procedimentos para que, independente de manifestação do município, sejam
cadastradas as ARESUR, mas, para atender ao previsto no parágrafo 3º, do artigo 1º, do
30 Atribuições hoje conferidas ao Instituto Ambiental do Paraná.
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Decreto nº 3.446/07, o órgão ambiental aguarde que o Instituto de Terras, Cartografia e
Geociências – ITCG elabore o mapa e o memorial descritivo do território.
A criação de ARESUR não é a única forma de proteção dos faxinais. Ainda no
âmbito estadual, aplicável ao tema a Lei nº 15.673/2007, que reconhece a identidade
faxinalense31 pela autodefinição, mediante Declaração de Auto-reconhecimento
Faxinalense, a ser atestado pelo órgão estadual que trata de assuntos fundiários, através da
outorga de certidão. Entende a lei em comento que a cultura faxinalense tem como traço
marcante o uso comum da terra para produção animal e a conservação dos recursos
naturais, fundamentando-se na integração de características próprias, tais como:
a) produção animal à solta, em terras de uso comum;
b) produção agrícola de base familiar, policultura alimentar de subsistência, para
consumo e comercialização;
c) extrativismo florestal de baixo impacto aliado à conservação da biodiversidade;
d) cultura própria, laços de solidariedade comunitária e preservação de suas
tradições e práticas sociais.
O procedimento administrativo para atestar e outorgar certidão está definido na
Portaria nº 023/2010 – ITCG/GP (em anexo), de 27 de setembro de 2010, mas é de se
salientar que diante da incipiência na regulamentação da matéria, apenas 15 (quinze)
certidões foram outorgadas. A Comunidade de Faxinal do Salso, que desde julho/2008 já
havia feito o requerimento, foi a primeira a obter Certidão de Auto-Reconhecimento
(anexo).
Do exposto, em primeiro plano, pode-se concluir que não há incidência material da
norma em relação aos faxinais ainda não cadastrados como ARESUR ou certificados como
comunidades autodefinidas.
31 Entende-se por identidade faxinalense a manifestação consciente de grupos sociais pela sua condição de existência, caracterizada pelo seu modo de viver, que se dá pelo uso comum das terras tradicionalmente ocupadas, conciliando as atividades agrossilvopastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas sociais tradicionais, visando a manutenção de sua reprodução física, social e cultural (art. 2º, parágrafo único).
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Além, portanto, da outorga da referida certidão em favor da Comunidade de Faxinal
do Salso, resta ainda patente a natureza declaratória tanto do Decreto nº 3.446/97, quanto da
Lei nº 15.673/2007, e que os faxinais já estão constituídos faticamente enquanto contextos
culturais diferenciados, atraindo-lhes a incidência das mencionadas normas estaduais, bem
como das normas internacionais aplicáveis à proteção da cultura. Em outras palavras, o
Faxinal do Salso está situado no tempo e no espaço presente e obtém a proteção enquanto
unidade de conservação ambiental e enquanto contexto cultural diferenciado, aspectos
físicos e simbólicos, materiais e imateriais, que garantem a incidência concreta das normas
estaduais, não podendo a ausência do ato administrativo prejudicar a proteção do
patrimônio cultural quando ainda não cadastrados como ARESUR.
Abre-se aqui uma breve incursão no campo hermenêutico, que há de ultrapassar os
cânones da mera subsunção e até da ponderação de valores/princípios produto das novas
teorias constitucionais. Em se tratando de contextos culturais diferenciados, a interpretação
e aplicação de institutos jurídicos requerem a adoção de uma hermenêutica diatópica32
através do diálogo intercultural33. Para Maria José Farinas Dulce34, a gestão pública
institucional dos contextos de pluralismo passa por um discurso dialógico, ou seja, pelo
diálogo entre as diferenças ou o diálogo intercultural ou transcultural em uma dimensão de
paridade. Para a autora, a diferença enquanto elemento de identidade dos seres humanos
deve ter sentido e relevância também na esfera pública, convertendo-se em uma nova
categoria política, jurídica e social, pois o diálogo intercultural é uma via alternativa à
32 A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto à própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objetivo inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra (SANTOS, Boaventura de Sousa. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura4.html#3> Acesso em: 13 abr. 2006). 33 Numa sociedade pluralista o modo de instaurar o conflito é dialógico, não se adotando uma postura unitária (PANIKKAR, Raimundo. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban, 1990). 34 DULCE, María José Farínas. La tensión del “pluralismo” desde la perspectiva filosófica intercultural. In Derechos y Libertades. Madrid: Revista Del Instituto Bartolomé de Las Casas. Año VIII. Enero/Diciembre. Número 12. Universidad Carlos III de Madrid. Boletín Oficial del Estado. 2003.
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oposição ontológica entre a lógica dogmática do universalismo e a lógica particularista do
relativismo ético, que é um paradoxo falso por não admitir o diálogo35.
Assim, para valorar-se a existência dos faxinais e a incidência ou não nas normas
aplicáveis à proteção de tal contexto cultural específico há que se abrir para o diálogo
intercultural, permitindo que os conceitos, valores e símbolos de compreensão dessas
comunidades sejam contemplados em condições de igualdade com aqueles elementos
apresentados pelo discurso proprietário, que representa o grande topoi36 da cultura
moderna.
Levantadas as premissas para uma discussão no campo cultural, em que se busque
proteger os faxinais enquanto espaços de produção do saber local e de se proteger os
faxinalenses, enquanto sujeitos históricos com valores, crenças, símbolos e modo de vida
específicos, há que se analisar o faxinal enquanto espaço de proteção ambiental, conforme
se abordará em seguida.
3 – Da violação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
Outro campo de igual relevância a ser abordado é o da preservação dos recursos
naturais necessários para a reprodução do modo de ser, fazer e viver da aludida comunidade
tradicional.37
Nesse sentido, pode-se inferir que os atos noticiados em relação ao Faxinal do Salso
são igualmente incompatíveis com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
não apenas da própria comunidade, como de toda a coletividade, em afronta ao artigo 225
35 Idem, p. 202. 36 Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura e funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. 37 É importante destacar que numa visão holística não há uma barreira entre ambiente natural e ambiente cultural, trata-se de uma realidade complexa que, dentro a cientificidade moderna, pode ser analisada separadamente, tendo sido esta a opção do presente arrazoado.
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da Constituição Federal38. Neste cânon já foram manejadas ações civis públicas em favor
da defesa ambiental de faxinais, uma delas em trâmite na Comarca de Pitanga, autuada sob
nº 037/2008, outra na Comarca de Rebouças, sob o nº 141/200639. Tais ações focaram
principalmente o aspecto ambiental, e, portanto, a natureza difusa do interesse envolvido,
para buscar coibir as atividades degradadoras de faxinais.
A importância ambiental destas comunidades tradicionais para o desenvolvimento
sustentável da região e do País é elevada, pois são consideradas garantes dos recursos
naturais do País, defendendo a diversidade biológica, qualidade ambiental e o
desenvolvimento social. De outro lado, é de se reforçar o argumento de que a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(PNPCT), instituída por meio do Decreto nº 6.040/2007, adota os seguintes princípios no
campo ambiental:
“Art. 1º. (...) I - o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade; (...) III - a segurança alimentar e nutricional como direito dos povos e comunidades tradicionais ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis; V - o desenvolvimento sustentável como promoção da melhoria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras e respeitando os seus modos de vida e as suas tradições;
38 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 39 Com acordo homologado em 03/07/2010, prevendo a cessação de atos que implicavam na descaracterização do faxinal.
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VI - a pluralidade socioambiental, econômica e cultural das comunidades e dos povos tradicionais que interagem nos diferentes biomas e ecossistemas, sejam em áreas rurais ou urbanas; XII - a contribuição para a formação de uma sensibilização coletiva por parte dos órgãos públicos sobre a importância dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e do controle social para a garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais”.
Ainda, no artigo 2º do mesmo diploma legal, é definido como objetivo geral da
PNCT, dentre outros, o reconhecimento, fortalecimento e garantia dos direitos ambientais
das comunidades tradicionais, com respeito à valorização à sua identidade, suas formas de
organização e suas instituições.
É considerado como objetivo específico da PNPCT:
Art. 3o (...) I - garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica.
Em plena consonância com a supracitada política federal, o Estado do Paraná, por
meio da Lei Estadual nº 15.673/2007, que reconhece os direitos culturais dos faxinais,
elenca como característica das referidas comunidades tradicionais a produção agrícola de
base familiar, policultura alimentar de subsistência, extrativismo florestal e baixo impacto
aliado à conservação da biodiversidade (art. 1º, alíneas “b” e “c”). Na linha da importância
da preservação dos recursos naturais para tais comunidades, o parágrafo único, do artigo 2º,
da Lei Estadual reconhece como fator da identidade faxinalense a conciliação das
“atividades agrosilvo-pastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas sociais
tradicionais, visando a manutenção de sua reprodução física, social e cultural”.
Em igual sentido, têm-se as disposições do Decreto Estadual nº 3.446/1997, que
instituiu as Áreas Especiais de Uso Regulamentado - ARESUR, abrangendo porções
territoriais do Estado caracterizadas pela existência do modo de produção denominado
"Sistema Faxinal". Consoante o § 1º, do artigo 1º, do Decreto mencionado:
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Art. 1º - Ficam criadas no Estado do Paraná, as Áreas Especiais de Uso Regulamentado - ARESUR, abrangendo porções territoriais do Estado caracterizadas pela existência do modo de produção denominado "Sistema Faxinal", com o objetivo de criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes e a manutenção do seu patrimônio cultural, conciliando as atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental, incluindo a proteção da "araucaria angustifolia" (pinheiro-do-paraná). § 1º - Entende-se por Sistema Faxinal: o sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a conservação ambiental. Fundamenta-se na integração de três componentes: a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola - policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo florestal de baixo impacto - manejo de ervamate, araucaria e outras espécies nativas.
No caso em tela, em que pese não ter sido declarada pelo poder público como
ARESUR, os membros do Faxinal do Salso já tiveram a Certidão de Auto-Reconhecimento
como faxinalenses outorgada pelo ITCG. Outra característica importante nesse sentido é a
presença de acordos comunitários realizados no âmbito da comunidade, de modo a
apresentar todas as características inerentes ao sistema faxinal, em favor do qual devem
vigorar os direitos individuais e coletivos desta comunidade tradicional, a teor do que
dispõe os incisos VI e XIV, do art. 3º, da PNCT:
Art. 3º. (...)
VI - reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos; (...) XIV - assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e coletivos concernentes aos povos e comunidades tradicionais, sobretudo nas situações de conflito ou ameaça à sua integridade;
Vale lembrar, aqui, que um dos princípios basilares do direito ambiental é o da
prevenção, sendo que a utilização de meios judiciais e extrajudiciais é essencial para se
evitar que danos maiores se materializem, comprometendo os recursos naturais necessários
à sobrevivência do sistema faxinal.
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Nesse sentido, a Carta Magna de 1988, no § 1º, de seu artigo 21640, estabelece que
são variadas e não exaustivas as formas de proteção do patrimônio cultural brasileiro
(dentre os quais se incluem, como já dito, os modos de ser, fazer e viver) atribuídas ao
poder público, com a colaboração da comunidade.
É de se frisar o papel central do parquet na resolução dos conflitos territoriais e
socioambientais, no sentido de sua atuação na defesa dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (art. 127 da CF) e dentre as suas funções institucionais encontra-se gizada a
promoção da ação civil pública para a proteção do meio ambiente (art. 129, inciso III, da
Constituição). Ainda, a legitimação do Ministério Público para a promoção da ação civil
pública vem ainda disciplinada, infraconstitucionalmente, nos artigos 1º, inciso I, e 5º, da
Lei nº 7.347/8541, bem como no artigo 25, inciso IV, da LOMP (Lei nº 8.625/93)42.
4. Uma breve abordagem no âmbito dos direitos reais
Desenvolvidos os principais aspectos coletivos stricto sensu e difusos, merece uma
breve abordagem o aspecto individual homogêneo dos interesses que emanam da relação
possessória consolidada no uso e gozo da área do criadouro comunitário.
Conforme se verifica das descrições expostas na bibliografia especializada e na lei,
em consonância com o que informa o real concreto, os faxinais se caracterizam
principalmente pela existência do criadouro comunitário, ou seja, terras de uso comum
destinadas à produção animal à solta. Vários proprietários são titulares do domínio, mas
40 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...] § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. 41 Art. 1º - Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meio ambiente; (...) Art. 5º - A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público,... . 42 Art. 25, IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei: a) para a proteção, e prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;
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suportam o gravame de uma modalidade específica de limitação ao direito de propriedade:
a servidão43.
A servidão de pastagem (servitus pascendi) ou de fazer pastar gado nas invernadas
do vizinho (pecoris pascendi) trata-se de servidão aparente, que, no caso do Faxinal do
Salso, exterioriza-se continuamente por mais de cem anos, e, portanto, comporta exercício
possessório44. No caso vertente, existem práticas que estão impedindo que os faxinalenses,
titulares ou possuidores de imóveis dominantes, prossigam exercendo a sua posse
tradicional centenária sobre o criadouro. A situação dá suporte fático para uma tutela
possessória, que, a considerar o relevante valor social e o caráter de indisponibilidade de
valores culturais, permite a tutela do Ministério Público.
A matéria já foi judicializada dentro dos marcos legais do Direito Civil, através do
Interdito Proibitório autuado sob nº 416/82, na Comarca de Pitanga, cuja decisão
reconheceu a composse do criadouro e determinou a manutenção do mesmo. Assim, sob o
viés do Direito Civil também se encontram tutela as áreas de uso comum dos faxinais, o
chamado criadouro comunitário, e por mais este fundamento hão de serem repelidas as
práticas noticiadas por integrantes do Faxinal do Salso.
5. Conclusão
Ante todo o exposto, considerando que a falta de cadastramento de ARESUR não
impede a intervenção do Ministério Público para proteger o faxinal, conclui-se e se sugere a
tomada das seguintes providências, a critério do titular da Comarca:
A) Identificação e qualificação dos responsáveis pelas práticas violadoras de direitos
relatadas pelos integrantes da Comunidade.
43 Código Civil, art. 1.378. A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subseqüente registro no Cartório de Registro de Imóveis. 44 Código Civil, art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião. Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.
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B) Realização de Termo de Ajustamento de Conduta a fim de que os infratores se
comprometam a não descaracterizar o criadouro comunitário, em violação dos
direitos coletivos da Comunidade Faxinal do Salso.
C) Ou, em sendo necessário, a propositura de ação civil pública para que: i) os
denunciados pela comunidade se abstenham de praticar o cercamento e conseqüente
desmembramento da área pertinente ao Faxinal; ii) cessem imediatamente o
desmatamento e o uso de agrotóxicos na área; iii) seja proibida a utilização
inadequada dos Sistemas Comuns do Faxinal e outras atividades que causem
prejuízos ao Sistema Faxinal, notadamente o levantamento de cercos ou a realização
de lavouras que impliquem no fracionamento do criadouro comunitário, bem como
a utilização de sementes transgênicas, agrotóxicos e outros produtos químicos; iv)
em havendo descumprimento da ordem de paralisação de quaisquer das atividades
mencionadas, seja determinada a cominação de multa diária, conforme dispõe o
artigo 11, da Lei nº 7.347/85.
Curitiba, 14 de março de 2011.
Marcos Bittencourt Fowler
Procurador de Justiça
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais