panorama lit africana (panorama da literatura africana)

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  • 7/26/2019 Panorama Lit Africana (Panorama da Literatura Africana)

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    PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA PORTUGUESA

    Maria Nazareth Soares Fonseca1

    Terezinha Taborda Moreira

    Resumo

    O texto constri-se como uma viso panormica das literaturas africanas de lnguaportuguesa e procura ressaltar alguns momentos significativos dos projetos literrios decada pas bem como caractersticas marcantes de alguns de seus notveis escritores.

    Palavras-chave: Literaturas africanas de lngua portuguesa; Projetos literrios; Literaturae identidade nacional.

    O aparecimento das literaturas de lngua portuguesa na frica resultou, por um lado,

    de um longo processo histrico de quase quinhentos anos de assimilao de parte a parte e,

    por outro, de um processo de conscientizao que se iniciou nos anos 40 e 50 do sculo XIX,

    relacionado com o grau de desenvolvimento cultural nas ex-colnias e com o surgimento de

    um jornalismo por vezes ativo e polmico que, destoando do cenrio geral, se pautava numa

    crtica severa mquina colonial. Parte das manifestaes literrias desse perodo pode ser

    rastreada em algumas publicaes, como nos volumes do Almanach de lembranas e nos

    vrios nmeros doAlmanach de lembranas luso-brasileiro, livrinhos cheios de informaes

    teis que continham, tambm, bons versos e prosas, firmados por autores conceituados

    (MOSER, 1993, p. 17). Gerald Moser pesquisou esses livrinhos, na biblioteca da Pennsylvania

    State University, EUA, e publicou, em 1993, o Almanach de lembranas (1854-1932). Em

    sua publicao, o estudioso ressalta caractersticas do material pesquisado, que constava de

    uma produo literriaque se inspirava em modelos europeus mas tambm continha preciosas

    amostras dos costumes tradicionais de vrios pases africanos de lngua portuguesa. Como

    bem acentua Moser (1993, p. 27), os livrinhos do velho Almanach de lembranas luso-

    brasileirocontm, sob capa modesta, um arquivo nico [...] como referncia vida literria

    da frica de expresso portuguesa, de 1854 para diante.

    Em Angola, Cabo Verde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom e Prncipe, o

    escritor africano vivia, at a data da independncia, no meio de duas realidades s quais no

    podia ficar alheio: a sociedade colonial e a sociedade africana. A escrita literria expressava a

    tenso existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar

    1 - Este texto foi elaborado a partir de pesquisas desenvolvidas pela autora, com financiamento do CNPq.

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    uma lngua europia, era um homem-de-dois-mundos, e a sua escrita, de forma mais intensa

    ou no, registrava a tenso nascida da utilizao da lngua portuguesa em realidades bastante

    complexas. Ao produzir literatura, os escritores forosamente transitavam pelos dois espaos,

    pois assumiam as heranas oriundas de movimentos e correntes literrias da Europa e das

    Amricas e as manifestaes advindas do contato com as lnguas locais. Esse embate que se

    realizou no campo da linguagem literria foi o impulso gerador de projetos literrios

    caractersticos dos cinco pases africanos que assumiram o portugus como lngua oficial.

    Manuel Ferreira (1989b) discute a emergncia da literatura (sobretudo da poesia) nos

    espaos africanos colonizados pelos portugueses, propondo a observao de quatro

    momentos. No primeiro, destaca o terico que o escritor est em estado quase absoluto de

    alienao. Os seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte do mundo: o

    momento da alienao cultural. Ao segundo momento corresponde a fase em que o escritor

    manifesta a percepo da realidade. O seu discurso revela influncia do meio, bem como os

    primeiros sinais de sentimento nacional: a dor de ser negro, o negrismo e o indigenismo. O

    terceiro momento aquele em que o escritor adquire a conscincia de colonizado. A prtica

    literria enraza-se no meio sociocultural e geogrfico: o momento da desalienao e do

    discurso da revolta. O quarto momento corresponde fase histrica da independncia

    nacional, quando se d a reconstituio da individualidade plena do escritor africano: o

    momento da produo do texto em liberdade, da criatividade e do aparecimento de outros

    temas, como o do mestio, o da identificao com frica, o do orgulho conquistado.

    Segundo Manuel Ferreira (1989b), o entendimento da literatura africana passa pela

    compreenso da perspectiva dinmica que orienta a produo literria, que faz com que esses

    momentos no sejam rgidos nem inflexveis e permite que um escritor, muitas vezes,

    atravesse dois ou trs deles: no espao ontolgico e de criatividade potica do escritor

    movem-se valores do colonizador que so dados adquiridos, funcionam valores culturais de

    origem e h sempre a conscincia de valores que se perderam e que necessrio ressuscitar.Numa perspectiva mais historicista, Patrick Chabal (1994) refere-se ao relacionamento

    do escritor africano com a oralidade e prope quatro fases abrangentes das literaturas

    africanas de lngua portuguesa. A primeira denominada assimilao, e nela se incluem os

    escritores africanos que produzem textos literrios imitando, sobretudo, modelos de escrita

    europeus. A segunda fase a da resistncia. Nessa fase o escritor africano assume a

    responsabilidade de construtor, arauto e defensor da cultura africana. a fase do rompimento

    com os moldes europeus e da conscientizao definitiva do valor do homem africano. Essafase coincide com a conscientizao da africanidade, sob a influncia da negritude de Aim

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    Csaire, Lon Damas e Lopold Senghor. A terceira fase das literaturas africanas de lngua

    portuguesa coincide com o tempo da afirmao do escritor africano como tal e, segundo o

    terico, verifica-se depois da independncia. Nela o escritor procura marcar o seu lugar na

    sociedade e definir a sua posio nas sociedades ps-coloniais em que vive. A quarta fase, da

    atualidade, a da consolidao do trabalho que se fez em termos literrios, momento em que

    os escritores procuram traar os novos rumos para o futuro da literatura dentro das

    coordenadas de cada pas, ao mesmo tempo em que se esforam por garantir, para essas

    literaturas nacionais, o lugar que lhes compete no corpusliterrio universal.

    Se quisermos ter uma viso de conjunto das literaturas africanas de lngua portuguesa,

    torna-se necessrio considerar essas fases da produo do texto mas tambm os grandes

    momentos de ruptura com os cdigos estabelecidos. A crtica e os historiadores concordam

    que os fundamentos desses momentos caracterizam-se pelo surgimento de movimentos

    literrios significativos ou de obras importantes para o desenvolvimento das literaturas, entre

    os quais podem ser citados:

    a) em Cabo Verde, a publicao da revista Claridade(1936-1960);

    b) em So Tom e Prncipe, a publicao do livro de poemas Ilha de nome santo(1942), de

    Francisco Jos Tenreiro;

    c) em Angola, o movimento Vamos descobrir Angola (1948) e a publicao da revista

    Mensagem(1951-1952);

    d) em Moambique, a publicao da revistaMsaho(1952);

    e) na Guin-Bissau, a publicao da antologia Mantenhas para quem luta! (1977), pelo

    Conselho Nacional de Cultura.

    A esses momentos importante acrescentar outros que abarquem, tambm, a narrativa

    e a produo mais recente dos diferentes pases, em prosa e poesia. o que pretende fazer

    este estudo panormico, assumindo os aspectos mais importantes das diferentes literaturas

    africanas escritas em portugus.Para isso, considera-se que o estudo da produo potica dos escritores africanos pode

    ser feito mediante uma abordagem diacrnica das literaturas a que pertencem, o qual observe:

    as dificuldades do sujeito potico de se encontrar com seu universo africano; o fato de que

    grande parte da produo literria reflete a busca da identidade cultural e a tomada progressiva

    de uma conscincia nacional; o fato de que sempre possvel detectar, nos autores, o

    momento potico da luta, que se configura num discurso de resistncia e de reivindicao por

    mudanas; as mudanas que encaminham para um processo de releitura constante que liga opresente e o passado na construo de uma frica que se renova continuamente.

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    Cabo Verde

    O impacto do colonialismo no foi to drstico, impulsivo e dramtico em Cabo Verde

    como o foi nas outras regies africanas que passaram pelo processo de colonizao portuguesa.

    Essa situao acabou por criar algumas condies necessrias para o aparecimento da

    literatura cabo-verdiana. Amlcar Cabral (1976, p. 25) informa-nos que desde muito cedo a

    terra, bem como os centros de controle e administrao, passaram para as mos de uma

    burguesia nascida em Cabo Verde, formada, majoritariamente, por mestios.

    Em seus apontamentos sobre a literatura cabo-verdiana, Cabral (1976) afirma que a

    poesia que se escrevia em Cabo Verde caracterizava-se por um desprendimento quase total do

    ambiente, sublimando-se numa expresso potica que nada tinha em comum com a terra e o

    povo do arquiplago. Para Cabral, possuidores de uma cultura clssica, adquirida principalmente

    no Seminrio de S. Nicolau, os poetas da gerao em referncia esqueceram-se da terra e do

    povo. De olhos fixos nos clssicos europeus, os escritores produziam uma poesia em que o

    amor, o sofrimento pessoal, a exaltao patritica e o saudosismo eram traos comuns.

    Em raras excees, como nas composies de P. Cardoso, ao traduzir, do crioulo,

    quadras populares do Fogo, encontrava-se algo do que, mais tarde, se tornaria realidade nos

    poetas da nova gerao: uma comunho ntima entre o poeta e o seu mundo.

    Porm, era ainda a influncia da cultura clssica que caracterizava o aspecto formal da

    poesia em referncia: o respeito sagrado mtrica e a submisso rima. Essa submisso ao

    modelo de escrita europeu devia-se condio econmica em que vivia a elite cabo-verdiana,

    alheia realidade do pas. Segundo Cabral (1976, p. 27), para essa elite, a terra e o povo

    estavam distantes: Este, nas letras da Morna, canta os seus sofrimentos e amores, enquanto

    os poetas compem sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer (...), as belezas da

    Grcia ou uma data clebre da Histria.Entre 1920 e 1930 j existia uma elite muito consciente dos problemas que afetavam

    as ilhas. Essa elite concentrava-se em So Nicolau, Santo Anto e So Vicente, e muitos eram

    comerciantes, professores, estudantes e jornalistas que estavam em contato com as correntes e

    os movimentos literrios de Portugal, como o modernismo e o neo-realismo. Mas foi

    sobretudo o modernismo brasileiro que influenciou essa gerao de escritores, que comeava

    a tomar uma conscincia cada vez mais ntida da realidade das ilhas. A ateno era focada

    cada vez mais na terra, no ambiente socioeconmico e no povo das ilhas.

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    Os poetas dessa fase eram homens comuns que caminhavam de mos dadas com o

    povo e tinham os ps fincados na terra. Cabo Verde passou a ser o espao e o ambiente onde

    as rvores morrem de sede, os homens, de fome, e a esperana nunca morre. O mar passou a

    ser a estrada da libertao e da saudade, e o marulhar das vagas, a tentao constante, a

    lembrana permanente do desespero de querer partir e de ter de ficar. A terra, a terra mrtir,

    tornou-se a Mam que alimenta os filhos; que no morreu, mas jaz adormecida numa migalha

    de terra no meio do mar. A voz do poeta, agora, a voz da prpria terra, do prprio povo, da

    prpria realidade cabo-verdiana.

    O grande passo para a virada da temtica da literatura produzida em Cabo Verde foi

    dado em 1936, na Ilha de S. Vicente, por um grupo de intelectuais, que lanou a revista

    Claridade. Os intelectuais que possibilitaram a publicao da revista foram, principalmente,

    Baltasar Lopes (autor do romance Chiquinho 1947), Manuel Lopes (autor do romance Os

    flagelados do vento leste 1960) e Jorge Barbosa (poeta renomado, autor de Arquiplago

    1935, Ambiente 1941, Caderno de um ilhu 1956, e Poesia indita e dispersa edio

    pstuma, 1993).

    Podem ser indicadas como presenas literrias fortes no movimento dos claridosos,

    principalmente nos primeiros anos, a revista portuguesa Presena, de Coimbra, que publicou

    vrios poemas de Jorge Barbosa e tinha uma boa recepo entre os intelectuais cabo-

    verdianos, e a literatura brasileira, principalmente os romances neo-realistas da segunda fase

    do modernismo:Menino do engenhoe Bang, de Jos Lins do Rego,Jubiabe Mar morto,

    de Jorge Amado, e romances de Graciliano Ramos, de Raquel de Queiroz e de Marques

    Rebelo. A poesia de Manuel Bandeira foi um alumbramento para os intelectuais cabo-

    verdianos, que tambm destacaram Jorge de Lima e Ribeiro Couto como descobertas

    instigantes. Vejam-se os versos do poema Palavra profundamente, de Jorge Barbosa (1926,

    p. 26), dedicado ao poema de mesmo nome de Manuel Bandeira:

    [...]Enquanto isso Manuel Bandeira vai passandopor ns no tempona sua alegria melanclicana sua alegria de corao apertadovai passando na suapoesia profundamente.

    Nos anos de 1936 e 1937 saram os trs primeiros nmeros da revista; os outros seis

    foram publicados no perodo de 1947 a 1960.

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    As linhas mestras dos movimentos dos claridosos esto praticamente condensadas

    na obra de Jorge Barbosa. A preocupao fundamental da sua poesia revelar as situaes

    com que diariamente se defronta o cabo-verdiano: a fome, a misria, a falta de esperana no

    dia de amanh, as secas e os seus efeitos devastadores. Os grandes tpicos so o lugar, o

    ambiente socioeconmico e o povo; e todos em relao constante com o mar, elemento

    gerador de outros dois temas tratados na potica de Jorge Barbosa: a viagem e o sonho de

    encontrar uma terra prometida.

    A ilha, o mar, a viagem e o sonho so os signos de maior densidade na poesia de Jorge

    Barbosa. Toda essa temtica distribui-se pelas suas trs obras:Arquiplago(1935),Ambiente

    (1941) e Caderno de um ilhu(1956). Mas emAmbienteque Jorge Barbosa se define como

    poeta inovador, ao dar sua poesia uma tonalidade dramtica, traduzida pela intimidade, pela

    denncia, pela epopia do homem cabo-verdiano vivendo o drama da migrao. Um poema

    revelador da dualidade que marca a escrita de Jorge Barbosa, de um eu em constante tenso

    com um ambiente exterior, Priso (BARBOSA, 1989, p. 113):

    Pobre do que ficou na cadeiade olhar resignado,a ver das grades quem passa na rua!

    pobre de mim que fiquei detido tambm

    na Ilha to desolada rodeada de Mar!...... as grades tambm da minha priso!

    Esse poema paradigmtico quando se procura organizar uma amostragem

    comparativa da poesia de Cabo Verde. que a poesia dos claridosos, se por um lado

    rompeu com as normas temticas do colonialismo, no se libertou completamente de uma

    viso que vitimiza o homem, herdada do neo-realismo portugus. Essa poesia retrata o

    homem cabo-verdiano e o mundo que o rodeia, sem, no entanto, apontar grandes solues. De

    lirismo intimista, no apresenta outra soluo ao homem cabo-verdiano que no seja a evasodo mundo a que pertence. Tal postura gera crticas ao carter escapista e evasionista da poesia

    dos claridodos e de Jorge Barbosa.

    A gerao da Claridade lanou porm os alicerces da nova poesia, posteriormente

    continuada pelos escritores que participaram de outras duas publicaes: Certeza (1944) e

    Suplemento Cultural(1958). Nessas duas revistas colaboraram poetas como Antnio Nunes,

    Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Onsimo Silveira (um dos primeiros a utilizar o crioulo

    em parceria com o portugus, em seu livro Hora grande, de 1962) e Ovdio Martins (quecombateu abertamente o evasionismo dos claridosos). Apesar das crticas, a gerao da

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    Claridadeinfluenciou e continua a influenciar grande parte da produo potica e ficcional de

    Cabo Verde.

    O salto qualitativo e a ruptura com a influncia dos claridosos deveram-se a dois

    escritores que chegaram a participar na revista Claridade: Joo Varela (ou Joo Vrio, ou

    Timtio Tio Tiofe), que publicou, em 1975, O primeiro livro de Notcha, e Corsino Fortes,

    autor de dois importantes trabalhos poticos, Po & fonema (1975) e rvore & tambor

    (1985). Foi sobretudo Corsino Fortes quem provocou o maior desvio de contedo temtico e

    formal na escrita cabo-verdiana. Em Po & fonema percebe-se a inteno do autor em

    reescrever a histria do povo em uma epopia. O livro abre-se com uma Proposio que

    constitui, por si s, uma demarcao da poesia de tipo esttico dos claridosos. Repare-se em

    sua primeira estrofe (FORTES, 1975, p. 30):

    Ano a anocrnio a crnioRostos contornamo olho da ilhacom poos de pedraabertosno olho da cabra

    Essa cadncia ritmada do esforo humano marca o compasso da epopia que se

    pretende escrever, inteno que o autor condensa na epgrafe, de autoria de Pablo Neruda:

    Aqui nadie se queda inmvel. / Mi pueblo es movimiento. / Mi ptria es um camino

    (FORTES, 1975, p. 7).

    Esse livro de Corsino Fortes (1975) assinala o desenvolvimento e a expanso de uma

    metfora, que se inicia com o ttulo. O povo tomou conta da sua terra o Po e do seu

    destino a fala que d nome s coisas, que indica posse. A utilizao do crioulo em muitos

    poemas intencional, uma vez que a fala, anterior escrita, o grande sinal da liberdade que

    se tornou patrimnio, tal como a terra. Por isso o subttulo do canto primeiro: Tchon de povetchon de pedra; por isso tambm os subttulos de outros dois cantos: Mar & matrimnio e

    Po & matrimnio.

    A problemtica da identidade cabo-verdiana est presente na obra de Corsino Fortes.

    Porm, ao contrrio dos claridosos, a nova poesia uma expresso artstica cuja formulao

    sugere e reflete a dinmica do real e nela intervm. A grande diferena, no entanto, reside no

    fato de que esse autor, para alm de criar uma nova dinmica das relaes entre o sujeito e o

    objeto potico, coloca toda a problemtica da identidade cabo-verdiana num contexto muitomais vasto, que o da identidade da frica. Cabo Verde, com sua especificidade o

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    isolamento de arquiplago , participa na viagem de construo da frica de rosto e corpo

    renovados:

    Dos seios da ilha ao corpo da fricaO mar ventre e umbigo maduroE o arquiplago cresce. (FORTES, 1975, p. 40).

    O tema do isolamento provocado pela insularidade constri contrapontos com o da

    migrao, com a expresso da necessidade de deixar as ilhas seja por causa do clima inspito

    em muitas delas, seja porque no exterior que o futuro pode ser conquistado, s vezes

    ilusoriamente. Nessa vertente da produo literria que explora os diferentes matizes da

    temtica da insularidade, a escritora Orlanda Amarilis nome significativo, assumindo as

    variantes de um mesmo tema o do exlio, da dispora, da solido , mas tambm

    observando, com olhos muito ternos, o dia-a-dia das mulheres e das ilhas.

    Orlanda Amarilis nasceu em Assomada, Santa Catarina, Cabo Verde, em 1924. Fez os

    estudos primrios na cidade de Mindelo, na ilha de So Vicente, e ali iniciou, no Liceu Gil

    Eanes, os estudos secundrios. Completou-os depois em Goa, na cidade de Panguim, capital

    do chamado Estado da ndia Portuguesa, onde viveu cerca de seis anos. Mais tarde,

    freqentou o curso de Cincias Pedaggicas na Faculdade de Letras de Lisboa.

    Foi no trnsito entre as ex-colnias da frica Cabo Verde e da ndia Goa e aprpria metrpole portuguesa que se deu a formao da escritora. Formao que se completou

    nas intervenes pblicas que marcaram a inscrio de seu nome entre os ficcionistas cabo-

    verdianos, feitas em seus percursos pela Nigria, Canad, Estados Unidos da Amrica, ndia,

    Moambique, Angola, Holanda, Espanha e Hungria, dentre outros pases, como tambm nas

    tradues de sua obra.

    A partir do trnsito entre espaos distintos as colnias, com suas tradies, seu perfil

    socioeconmico e grandes metrpoles mundiais com seus modelos hegemnicos decultura e economia propagadores da modernidade , a obra de Orlanda Amarilis resulta de

    uma tica privilegiada para se pensar a vida contempornea. Reflete a posio da autora de

    equilibrar-se entre mundos que parecem distantes entre si, no tempo e no espao, lanando

    sobre cada um deles um olhar enviezado que procura visualizar detalhes que a visada

    convencional deixa escapar.

    Seus contos evidenciam-se como jogo de espelhos, emblema da duplicidade que a

    marca da prpria vida da autora. Cada mundo descrito traa uma geografia imaginria em que

    os espaos se interpenetram, ora se confundindo, ora se expandindo. Com esse procedimento,

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    a obra de Orlanda Amarilis lana luzes sobre algumas questes frente s quais se coloca o

    escritor contemporneo, como a necessidade de construir, com sua literatura, um mundo

    novo, moderno, sobre as culturas que ele carrega dentro de si, ou, ainda, ao escrever, no se

    fechar em guetos, esquecendo-se de que h um mundo alm da comunidade qual pertence

    originariamente.

    Embora tenha uma publicao literria reduzida Ilhu dos pssaros(1983),A casa

    dos mastros (1989) eCais-do-Sodr te Salamansa (1991) , Orlanda Amarilis importante

    referncia na construo de narrativas curtas que procuram explorar questes significativas da

    cultura cabo-verdiana, com destaque para as tenses que podem se resumir na temtica da

    insularidade, vista como priso e, ao mesmo tempo, como liberdade, particularmente com

    relao aos lugares por onde transitam as mulheres.

    Em seu conjunto, a obra de Orlanda Amarilis aborda a questo do deslocamento entre

    espaos diferentes, numa perspectiva tanto fsica quanto psicolgica. O conto Thonon-les-

    Bains, que abre as narrativas que compem a coletnea Ilhu dos pssaros (AMARILIS,

    1983), transcorre a partir do cruzamento de dois espaos distintos: o Ilhu dos Pssaros,

    situado prximo Ilha de So Vicente, em Cabo Verde, e a cidade Thonon-les-Bains,

    localizada ao sul da Frana, na fronteira com a Sua. O nome da cidade francesa d ttulo ao

    conto. No entanto, a percepo da vida e o modo de ser do homem cabo-verdiano que so

    retratados na narrativa. Assim, o sentido do conto deve ser depreendido da percepo que o

    homem cabo-verdiano tem do significado de viver fora de seu pas sem abrir mo de suas

    razes.

    Pelo olhar atento do narrador (AMARILIS, 1983) conhecemos a intimidade de

    NhAna, a mulher-me cujas relaes so delimitadas pelo comadrio e pela vizinhana, em

    Cabo Verde, e pelas cartas de Gabriel e Piedade, que vm da Frana. NhAna uma das

    mulheres-ss de Orlanda Amarilis, de que nos fala Maria Aparecida Santilli. Segundo a

    autora, as personagens femininas de Orlanda Amarilis so aparas sociais que giram noespao de suas Ilhas, recortadas dos homens pais, maridos ou parceiros cuja ausncia (ou

    eventual presena) , no entanto, o eixo em torno de que se descreve a rbita de suas vidas

    (SANTILLI, 1985, p. 107). De fato, em torno da expectativa do sucesso do enteado Gabriel,

    na Frana, que giram as perspectivas de vida de NhAna. Enrodilhada em sonhos, NhAna

    exila-se dos sete anos sem chuva, da falta de aposentadoria, da renda parca advinda das

    encomendas dos rendeiros, da venda dos cachos de banana, todos eles signos da carncia que

    governa sua existncia nas ilhas de Cabo Verde.

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    O exlio no sonho de NhAna ilustra o ser mulher-me que espera dentro de uma

    tradio, cujos pontos de referncia delimitam a ao da mulher entre as panelas e os santos.

    A espera de NhAna decorre entre as idas e vindas de Antoninho Coxinho para entrega das

    cartas da Frana, as xicrinhas de caf tomadas com a comadre e as rezas na cantoneira do

    outro lado da cama, onde uma Santa Terezinha e uma Nossa Senhora do Rosrio circundam

    uma imagem dentro de um nicho feito de uma caixa de sapatos com um friso de floritas de

    cera em volta, [que] mostrava uma face descada com dois vincos sobre os cantos dos lbios

    (AMARILIS, 1983, p. 12).

    De maneira semelhante, Piedade outra mulher-s cuja existncia gira em torno de

    dois homens: o meio-irmo Gabriel e o namorado francs Jean. Exilada do espao de

    referncia tradicional de NhAna, Piedade chamada ao mercado de trabalho da sociedade

    francesa moderna. Porm no consegue exilar-se de uma outra tradio: a da represso

    machista do homem que no lhe faculta a independncia emocional e a expresso de sua

    individualidade. Seja na relao com Gabriel ou com Jean, pesa sobre Piedade a ideologia da

    interveno do homem protetor, que lhe delimita as aes:

    Jean era um bocado ciumento, tinha quarenta e dois anos, era separado de uma outramulher, mas era muito seu amigo. Trazia-lhe chocolates quando vinha namorar comela, tudo vista de Gabriel e dos seus amigos. Nunca ficava s com ele porque

    Gabriel no deixava, sempre a espiar, at os dois amigos eram capazes de lhe ircontar qualquer coisa mal feita ela viesse a fazer. (AMARILIS, 1983, p. 19).

    Nessa tradio, o lugar subalterno que Piedade ocupa na sociedade no somente

    realado como, no que se refere a sua relao com Jean, determina a deciso sobre sua prpria

    vida. O assassinato de que vtima revela sua dupla condio de minoria: Piedade mulher e

    estrangeira, ou seja, emigrada, marginalizada e submetida a uma sociedade onde representa

    apenas a fora do trabalho. Sobre seu assassinato recai a injustia do silncio, j que o

    protesto domstico fica circunscrito ao espao daqueles que, como ela, no tm direito voz(AMARILIS, 1983).

    A mesma preocupao em invocar o universo feminino tm Vera Duarte, que

    publicou, alm de vrios poemas em antologias, Amanh a madrugada (1993) e O

    arquiplago da paixo(2001), e Dina Salstio, autora de Mornas eram as noites(1994) e A

    louca do Serrano(1998), primeiro romance de autoria feminina publicado em Cabo Verde.

    Em entrevista concedida, em 1994, a Simone Caputo (2006, p. 26), Salstio explica a

    presena da figura feminina em seus escritos:

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    [...] a necessidade de publicar as inmeras histrias de mulheres, histrias de vidaque passam por mim [...] c um encontro que verdade, um momento s [...] paraquerer mostrar o meu reconhecimento a estas mulheres cabo-verdianas quetrabalham duro, que fazem o trabalho da pedra, que carregam gua, que trabalham aterra, que tm a obrigao de cuidar dos filhos, de acender o lume. Quis prestar umahomenagem a esta mulher [...]. As histrias acontecem ao sabor do vo. Falo das

    mulheres intelectuais, daquelas que no so intelectuais, daquelas que no tmnenhum meio de vida escrito, falo da prostituta, falo de todas as mulheres que medo alguma coisa, e que eu tenho alguma coisa delas [...] Em Cabo Verde, quandonasce uma menina, ela j uma mulher.

    Na poca atual, Germano Almeida , sem dvida, o escritor cabo-verdiano mais

    conhecido fora das ilhas. Com um estilo muito prprio, marcado por um irreverente humor,

    ele traz para os seus livros a sociedade cabo-verdiana do ps-independncia, abordando fatos

    concretos da realidade do pas numa prosa fluida que se vale de magistrais pinceladas

    pitorescas e coloridas. Germando Almeida autor de uma vasta coletnea de ttulos: Otestamento do Senhor Napumoceno da Silva Arajo (1989), O meu poeta (1992), A ilha

    fantstica (1994), Estrias de dentro de casa (1996), A famlia Trago (1998), Estrias

    contadas (1998), O dia das calas roladas (1999), Dona Pura e os camaradas de abril

    (1999),As memrias de um esprito(2001), O mar na Lajinha(2004) e, mais recentemente,

    Eva (2006). Dentre os inmeros ttulos j publicados pelo escritor, destaca-se o romance O

    testamento do Senhor Napumoceno da Silva Arajo(1989), sem dvida o mais conhecido dos

    leitores cabo-verdianos e estrangeiros. O romance foi levado ao cinema por Francisco Manso,numa produo cabo-verdiana, portuguesa e brasileira que tem o ator Nelson Xavier como

    protagonista.

    So Tom e Prncipe

    A literatura de So Tom e Prncipe ainda pouco representativa no contexto das

    literaturas africanas de lngua portuguesa. No entanto, So Tom e Prncipe tem sua presenaassegurada na histria da literatura africana com escritores como Francisco da Costa Alegre e

    Francisco Jos Tenreiro.

    Francisco Jos Tenreiro, nascido em So Tom, em 1921, autor deIlha de nome santo

    (1942), considerado um dos marcos da poesia santomense e das literaturas africanas de

    lngua portuguesa. Muitos crticos apontam Tenreiro como o primeiro poeta a imprimir a

    negritude na poesia africana de lngua portuguesa, inspirando-se nos poetas americanos

    Langston Hughes e Counteen Cullen e em Nicolas Guilln. Na obra de Tenreiro, o iderio da

    negritude motiva uma produo potica mais voltada para as realidades da vida do homem

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    africano, esteja ele no continente ou perambulando pela Europa com o corao em frica.

    Essa motivao perpassa o longo poema Corao em frica, de que faz parte a seguinte

    estrofe:

    Caminhos trilhados na Europade corao em fricaSaudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelastons fortes da paleta cubistaque o Sol sensual pintou na paisagem;saudade sentida de corao em fricaao atravessar estes campos de trigo sem bocasdas ruas sem alegrias com casas cariadaspela metralha mope da Europa e da Amricada Europa trilhada por mim Negro de corao em frica.De corao em frica na simples leitura dominicaldos peridicos cantando na voz ainda escaldante da tinta

    e com as dedadas de misria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europatrilhada por mim Negro e por ti ardinacantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do oramento que no equilibrado Benfica venceu o Sporting ou no(...). (TENREIRO, 1982, p. 124).

    Francisco Jos Tenreiro, em parceria com o angolano Mrio Pinto de Andrade,

    organizou o clebre Caderno de poesia negra de expresso portuguesa, lanado em Lisboa,

    em 1953. A publicao, uma pequena antologia de poetas de Angola, Moambique e So

    Tom e Prncipe, conta com um poema do cubano Nicolas Guilln, a quem o caderno dedicado, e tem como objetivo fundamental propor uma reflexo sobre o que se deveria

    entender por negritude na frica sob dominao portuguesa. O texto introdutrio, de autoria

    de Mrio Pinto de Andrade (1982), bem explcito com relao ao objetivo da publicao:

    seguir a tendncia da poesia negro-africana produzida na Europa no intervalo entre as duas

    guerras mundiais.

    A obra potica de Tenreiro foi, desde sempre, uma leitura obrigatria para todos

    quantos participaram dos movimentos sociais, polticos e literrios que geraram, em Lisboa,

    sobretudo a partir da dcada de 50, organizaes como a Casa dos Estudantes do Imprio e o

    Centro de Estudos Africanos, de que Tenreiro foi um dos fundadores, em 1951. Em tais

    organizaes militou a maioria dos intelectuais cujas obras passaram a integrar o que de mais

    representativo existe na poesia e na fico dos pases africanos de lngua portuguesa. E

    sobretudo a poesia desses autores que absorveu, com maior grau de profundidade, a expresso

    da negritude existente na obra de Francisco Jos Tenreiro, a qual contribuiu para modelar uma

    literatura africana que, embora no tenha constitudo uma ruptura essencial com a cultura

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    dominante de cinco sculos, se desenvolveu num movimento que comeou na assimilao e

    estendeu-se at a luta pela libertao.

    Francisco da Costa Alegre, nascido em 1864, teve a obra Versos editada

    postumamente, em 1916. Conforme Jos Francisco Costa (2006), um dos primeiros poetas

    africanos a se exprimir em lngua portuguesa e a ter conscincia da sua cor, Costa Alegre

    articulou uma resposta injustia social por meio da exposio da situao do homem

    africano negro:

    a minha cor negra,Indica luto e pena;[...] Todo eu sou um defeito,Sucumbo sem esperanas, [...]. (COSTA, 2006).

    Em sua poesia encontra-se um despertar para a cor, um dos passos importantes para a

    conscincia nacional que a poesia africana tomou em determinada altura.

    Alda do Esprito Santo tambm figura em todas as antologias de poesia africana. Sua

    poesia tem a diferena racial e a explorao colonial como pano de fundo. Seu livro nosso o

    solo sagrado da terra: poesia de protesto e luta(1978) caracteriza-se por uma grande dose de

    combatividade e por uma grande profundidade lrica e descreve, com traos sensveis, a vida

    dos habitantes de So Tom.

    Outros poetas, como Tomaz Medeiros, Maria Manuela Margarido, Marcelo da Veiga e

    Carlos do Esprito Santo, mantm uma linha de continuidade em que a temtica de fundo a

    luta contra o colonialismo, a explorao dos negros nas plantaes, a conscincia da diferena

    que a cor provoca e a alienao.

    Na poca atual, destaca-se Conceio Lima, que tem poemas dispersos em vrias

    revistas e antologias e publica poesia h quase duas dcadas. Seu livrotero da casa(2005)

    apresenta uma produo potica de cunho mais reflexivo.

    Angola

    Como acontece com os outros pases, a literatura de Angola tambm reflete a

    influncia de antecedentes e precursores de carter social, cultural e esttico. Alm disso, um

    fator de grande influncia a tradio da oralidade na frica, que marca, inclusive, uma

    identidade cultural expressa na literatura. Alguns nomes de escritores, ainda no sculo XIX,

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    esto relacionados com algumas obras que delineiam as primeiras manifestaes significativas

    do cenrio literrio angolano.

    Nesse sentido, devem ser destacados, em primeiro lugar, Jos da Silva Maia Ferreira

    (Luanda, Angola, 1827 Rio de Janeiro, Brasil, 1881) e seu livro Espontaneidades da minha

    alma: s senhoras africanas(1849), considerado por alguns tericos como a primeira obra da

    literatura angolana. H, no entanto, divergncias a esse respeito. O livro, uma coletnea de

    poemas dedicados s senhoras africanas, foi realmente o primeiro a ser impresso em

    Angola, logo aps a implantao da prensa no pas, mas seu autor, Maia Ferreira, no poderia

    ser apontado como um precursor, j que a sua obra no teve repercusso em outras. A se

    observar o que diz Carlos Ervedosa (1974, p. 21), Maia Ferreira um dos casos tpicos da

    assimilao cultural que se registrava nos primrdios do sculo XIX. Talvez por isso possa

    ser considerado, como querem alguns crticos, antecessor dos precursores.

    Ressalte-se, na dcada de 80 do sculo XIX, a importncia da gerao do jornalismo

    literrio. Os escritores-jornalistas dessa gerao pertenciam elite crioula, que detinha muito

    poder entre os naturais da terra e os reinis, antes da fratura criada pelo colonialismo.

    O escritor Alfredo Troni, portugus nascido em Coimbra, publicou, em 1882, no

    Dirio da Manh, de Portugal, o folhetim Nga Mutri. A novela foi publicada em partes, no

    perodo de junho a agosto de 1882, em Portugal e em Angola, mas sua primeira edio em

    forma de livro s saiu em 1973. O romance Nga Mutri(Senhora Viva) uma narrativa de

    cunho etnogrfico. Embora seja de fato considerado a primeira narrativa de motivao

    angolana, pois retrata a ascenso de uma africana negra sociedade de Angola, no pode ser

    visto como um texto precursor, pois no criou uma tendncia literria.

    So considerados os precursores da moderna literatura angolana os escritores Antnio

    de Assis Jnior, Castro Soromenho e Oscar Ribas. Antnio de Assis Jnior (Luanda, 1887

    Lisboa, 1960) autor do romance O segredo da morta(1935), apontado pelo crtico angolano

    Luiz Kandjimbo (1997) como o marco inicial da literatura angolana. A estudiosa brasileiraRita Chaves (1999, p. 65) observa que o romance incorpora marcas do momento em que o

    desenvolvimento socioeconmico provoca fortes mudanas culturais, mexendo no cotidiano

    daquelas populaes fixadas em torno de Luanda e das localidades prximas, situadas nas

    atuais provncias de Icolo e Bengo, Malange e Kuanza Norte. A temtica de O segredo da

    mortafoi, de certa forma, retomada por Castro Soromenho (Chinde, Zambzia, Moambique,

    1919 So Paulo, Brasil, 1968), autor de Terra morta (1949), Viragem (1957) e A chaga

    (publicado, postumamente, em 1970). Os livros de Soromenho so importantes pela descriode aspectos da vida angolana, regulada, na poca de sua produo, pela presena da

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    administrao colonial e pelos cdigos com que a Metrpole pensava eternizar o colonialismo

    na frica. Conforme observa Inocncia Mata (2001, p. 53), os romances do escritor, por sua

    temtica, podem ser considerados romances da colonizao, j que tm uma abrangncia

    que ultrapassa o contexto angolano. Oscar Ribas (Luanda, 1909 Lisboa, 2004) foi ficcionista e

    poeta e, embora no tenha tido formao etnogrfica formal, fez recolhas etnogrficas ou

    etnografias que contriburam para o cunho documental do seu romance Uanga (Feitio),

    publicado em Lisboa em 1950 ou 1951, e enriqueceram a obra Missosso, literatura

    tradicional angolana, editada em trs volumes, em Luanda, nos anos de 1961, 1962 e 1964.

    Por essa razo sua obra situa-se entre a pesquisa etnogrfica e a criao literria. No romance

    Uanga, as contradies vividas pelo escritor como intelectual e pesquisador mostram-se de

    forma bastante evidente tanto na fabulao romanesca quanto no modo como o autor interfere

    na trama, permitindo ao leitor perceber a presena do pesquisador nas informaes de cunho

    etnogrfico que costuram a histria. O escritor, embora tenha participado da revista

    Mensagem, a Voz dos Naturais de Angola, porta-voz do Movimento dos Novos Intelectuais

    de Angola, no assumiu inteiramente a proposta revolucionria do movimento.

    Em 1948, estudantes e intelectuais angolanos negros, brancos e mestios lanaram,

    em Luanda, o brado Vamos descobrir Angola, que tinha como objetivos romper com o

    tradicionalismo cultural imposto pelo colonialismo; debruar-se sobre Angola e sua cultura,

    suas gentes e seus problemas; atentar para as aspiraes populares, fortalecendo as relaes

    entre literatura e sociedade; conhecer profundamente o mundo angolano de que eles faziam

    parte mas que no figurara nos contedos escolares aos quais tiveram acesso. Tal propsito

    fica claro nas palavras de Carlos Ervedosa (1974, p. 107), quando diz que o vermelho

    revolucionrio das papoilas dos trigais europeus encontraram-no, os poetas angolanos, nas

    ptalas de fogo das accias, e a cantada singeleza das violetas, na humildade dos beijos-de-

    mulata que crescem pelos baldios ao acaso.

    Alm da insatisfao natural com as aes e o controle impostos pela censura, a inspiraomaior do movimento era dada pelo modernismo brasileiro, que estimulava os poetas a buscar

    uma poesia genuinamente nacional, como sugere o poema de Maurcio Gomes (1988, p. 85):

    Ribeiro Couto e Manuel Bandeirapoetas do Brasil,do Brasil, nosso irmo,disseram: preciso criar a poesia brasileira,de versos quentes, fortes como o Brasil,sem macaquear a literatura lusada[...]

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    Angola grita pela minha vozpedindo a seus filhos a nova poesia de Angola.

    O poema de Maurcio Gomes confirma tendncias da modernidade literria angolana,

    defendidas pelos Naturais de Angola, tais como a busca do prprio, do nacional; o reforode uma potica da ruptura; a busca do universal a partir das particularidades nacionais.

    O brado de 1948, reiterado pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola

    (MNIA), de 1950, foi responsvel pela publicao da Antologia dos novos poetas de Angola

    (1950) e das revistasMensagem, a Voz dos Naturais de Angola(1951-1952) e Cultura(1957-

    1961), que consolidaram o sistema literrio angolano.

    Sobre a presena da literatura brasileira nesses movimentos, observa o escritor Costa

    Andrade (1982, p. 26):

    Entre a nossa literatura e a vossa, amigos brasileiros, os elos so muito fortes.Experincias semelhantes e influncias simultneas se verificam. fcil aoobservador corrente encontrar Jorge Amado e os seus Capites de Areia nos nossosescritores. Drummond de Andrade, Graciliano, Jorge de Lima, Cruz e Souza, Mriode Andrade, Solano Trindade e Guimares Rosa tm uma presena grata e amiga,uma presena de mestres das jovens geraes de escritores angolanos.

    As revistas Mensagem e Cultura marcaram o incio da poesia moderna de Angola.

    Uma pliade de escritores participaram deMensageme foram os responsveis pela construoda literatura do novo pas, nascido em 1975. No primeiro nmero de Mensagemcolaboraram,

    entre outros, Mrio Antnio, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, Antnio Jacinto e

    Mrio Pinto de Andrade. A publicao da revista foi o resultado concreto da ambio dessa

    nova gerao de intelectuais de Angola de amplificar o movimento cultural iniciado nos anos

    40 por Viriato da Cruz (CHABAL, 1996, p. 143, traduo nossa). A revista Culturateve 13

    nmeros nos quatro anos de sua durao, e dela participaram escritores de renome, como

    Agostinho Neto, Costa Andrade, Carlos Ervedosa, Ermelinda Pereira Cavier, Luandino Vieira

    e Oscar Ribas. Nas edies desse peridico foram delineados aspectos da arte e da literatura

    angolanas e consolidou-se o lugar a ser ocupado pela poesia e pela fico.

    A produo potica angolana abrange trs grandes perodos: de 1950 a 1970, marcado

    pela conscientizao; a dcada de 1970, marcada pelas inovaes estticas; e a gerao de 1980.

    As dcadas de 1950 e 1960 marcaram a fase da viragem para a conscientizao da

    problemtica angolana, sobretudo em trs grandes vertentes a terra, a gente e as suas

    origens. A temtica dos escritores da Mensagem girava volta de tpicos que viriam a

    caracterizar a potica que existe at os nossos dias, como o da valorizao do homem negro

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    africano e de sua cultura, o de sua capacidade de autodeterminao, o da nao africana que

    se antevia como Estado com autoridade e existncia prprias. A poesia era marcada pelo

    protesto anticolonial, sem deixar de ser humanista e social. Agostinho Neto, Viriato da Cruz e

    Mrio Antnio concentraram muito da sua produo nessa temtica.

    O protesto anticolonial tomou uma feio muito mais direta com a publicao da

    revista Cultura, em 1957. Essa revista, publicada at 1961, revelou a existncia de novos

    poetas, entre eles Antnio Cardoso e Costa Andrade. Para alm da contestao contra o

    colonialismo, desenvolve-se, progressivamente, uma temtica que tem a ver com a evocao e

    a invocao da me-ptria, da terra grande da frica. Quase todos esses poetas tratam dos

    temas da identidade, da fraternidade, da terra angolana como ptria de todos negros, brancos

    e mestios. De grande importncia tambm o tpico da alienao, sobretudo a que respeita

    ao estado de esprito do branco nascido e criado em Angola. Muita da poesia revela-se

    tambm de carter intimista, como o caso de poemas de Mrio Antnio.

    Toda essa gerao, utilizando recursos lricos e dramticos, consegue criar uma poesia

    de fundo emocional. Atravs da poesia, descobre-se Angola, conhecem-se as suas origens, as

    suas tradies e os seus mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedaggica e didtica:

    com ela tenta-se recriar frica e Angola, os valores ancestrais do homem africano e da sua

    terra, bem como ensinar esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Essa

    poesia pe em prtica a reposio da tradio oral, onde as prprias lnguas nacionais ocupam

    um espao importante. , numa palavra, a poesia da angolanidade.

    Um dos autores que representam essa problemtica Agostinho Neto. A sua obra

    principal, Sagrada esperana(1979), uma amostra valiosa no s da poesia de combate e

    contestao mas tambm da poesia lrica e intimista. Agostinho Neto revela um grande

    humanismo, em que so evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer

    humano, que amide obriga o poeta utilizao de um realismo feroz nos seus versos. Leiam-

    se, como exemplos, os poemas Velho negro (NETO, 1979, p. 64) e Civilizao ocidental(NETO, 1979, p. 69). Se dizemos que h poemas intimistas, tal no significa que o poeta se

    isole do contexto social e perca a referncia fundamental da sua poesia. constante a relao

    estabelecida por Agostinho Neto entre o eu potico e o outro: um eu que povoado

    pela humanidade e colocado no contexto da vida do seu povo, como se pode ver, por

    exemplo, no poema Confiana (NETO, 1979, p. 79):

    O oceano separou-se de mimenquanto me fui esquecendo nos sculose eis-me presente

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    reunindo em mim o espaocondensando o tempo.Na minha histriaexiste o paradoxo do homem dispersoEnquanto o sorriso brilhavano canto de dor

    e as mos construam mundos maravilhososjohn foi linchadoo irmo chicoteado nas costas nuasa mulher amordaadae o filho continuou ignoranteE do drama intensoduma vida imensa e tilresultou a certezaAs minhas mos colocaram pedrasnos alicerces do mundomereo o meu pedao de cho.

    Pode-se dizer que a esperana o tpico fundamental da poesia de Agostinho Neto, oncleo volta do qual se constroem unidades poticas de relao dialtica, como a dor e o

    otimismo, o sonho do poeta e o despertar do povo, a escravido e a f de transcender a

    opresso. No poema O choro de frica (NETO, 1979, p. 139), por exemplo, o poeta fala do

    sintoma de frica, que uma combinatria dialtica do sofrimento e da alegria que

    temperam, durante sculos, o homem africano.

    Na dcada de 70 surgem trs nomes que vo ser os principais responsveis por uma

    mudana profunda na esttica e na temtica angolanas: David Mestre, Ruy Duarte deCarvalho e Arlindo Barbeitos. Por um lado, procura-se maior rigor literrio; por outro, e como

    conseqncia do anterior, evita-se propositadamente o panfletarismo. Entra-se igualmente

    numa fase de maior experimentalismo, na qual os escritores tentam tambm reconciliar os

    temas polticos do passado com a procura de uma linguagem potica mais universal. Por

    exemplo, Ruy Duarte de Carvalho autor de uma poesia que, ao lado de uma grande

    ambincia de oralidade e de um apontar para as conseqncias da guerra, constitui tambm

    uma reflexo sobre o prprio discurso potico. , no entanto, Arlindo Barbeitos a voz potica

    que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradio daMensagem.

    Arlindo Barbeitos tem publicados Angola angol angolema (1977), Nzoji (1979), O

    rio: estrias do regresso (1985), Fiapos de sonho (1992) e Na leveza do luar crescente

    (1998). Numa nota de introduo aAngola angol angolema, Barbeitos (1977) traa as linhas

    mestras de sua potica, que tenta ser uma reconciliao do homem com a sua condio, um

    testemunho e um instrumento de libertao. A poesia tem como funo primordial sugerir. Ela

    um compromisso entre a palavra e o silncio. Uma outra sua funo a de relatar as formas

    culturais africanas e a vivncia do autor. Arlindo Barbeitos (1977, p. 4) afirma, a propsito,

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    que s poesia se sugere, s tem expresso, s tem fora, s arte em forma de palavra, se

    simultaneamente retm e transcende a palavra. Em sua poesia encontramos a experincia do

    ser humano que procura sempre a perfeio e o desejo de retorno imanncia, a vontade de

    construir a irmandade universal. , tambm, uma poesia que reflete a dor, a guerra, a situao

    colonial. Em relao lngua, Arlindo Barbeitos tenta, e consegue, africanizar a lngua

    colonial, num esforo continuado de repossuir todos os valores e tradies culturais do pas.

    A poesia de Arlindo Barbeitos, como a de outros autores angolanos, desponta no

    cenrio literrio do pas no perodo da guerra colonial e alimenta-se da experincia libertria.

    um movimento de sonhos desfeitos pela angstia e pela represso que silencia as estrias

    que brotavam naturalmente em volta das fogueiras, pois a palavra foi cerceada e com ela a

    magia, a energia que alimentava a chama da tradio temporariamente adormecida.

    A obra Angola angol angolema(BARBEITOS, 1977) retrata a violncia social que

    assola a sociedade angolana durante a luta armada. Os poemas expressam, pelo

    esgaramento semntico e sonoro dos versos, o dilaceramento de Angola, pas mutilado pela

    misria e pela guerra (SECCO, 2003, p. 168). A poesia de Barbeitos traz os ecos da guerra:

    borboletas de luzesvoaandode cadver em cadver

    colhemo fedor dos mortos emvo. (BARBEITOS, 1977, p. 38).

    Numa leitura ampliada da idia de liberdade, as borboletas, metfora de homens livres,

    esto circulando em vo, j que aps a independncia Angola experimenta, por mais de

    duas dcadas, os pesadelos gerados pela guerra civil.

    Durante o perodo da luta armada, a palavra potica precisou ser direcionada,

    tornando-se veculo de contestao. Dessa forma, os trabalhos poticos textualizaram temas

    especficos, atualizaram sentires e saberes diferentes, segundo a imagem da nao a construir,

    a partir de signos, smbolos, motivos e formas (MATA, 2001, p. 18), idealizaram as

    individualidades nacionais. Cabe ressaltar que, mesmo guardando suas naturais especificidades,

    os cinco pases africanos de lngua portuguesa vivenciaram a luta pela libertao colonial.

    A partir dos anos 80 surge uma nova gerao de escritores, cujo ecletismo a

    caracterstica mais marcante. Digna de nota uma pequena antologia publicada em 1988,

    intitulada No caminho doloroso das coisas. Na introduo, o organizador da antologia deixa

    perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova poesia angolana vai tomando:

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    So jovens, mas dentre eles h poetas que so artistas nos seus versos comocarpinteiros nas tbuas. Tiveram que por (sic) verso sobre verso como quem constrium muro. Analisaram se estava bem e tiraram, sempre que no estivesse, sentados naesteira do Pessoa, [...] Jovens subscritores de uma auto-explicao metalingustica

    em que a ruptura formal no tudo (FEIJO, 1988, p. 13).

    As vozes que despontam no cenrio literrio africano na contemporaneidade

    consolidam uma luta travada nos primrdios das guerras pela descolonizao nos pases

    africanos de lngua portuguesa. Desvincular a lngua portuguesa da tradio europia foi o

    primeiro passo dado por autores que ansiavam encontrar a palavra precisa, transgressora e

    fundadora de um novo lirismo com marcas prprias.

    Os escritores dessa nova potica inserem em suas poesias aspectos caractersticos dos

    falares do povo. A lngua portuguesa distanciada da matriz, aclimatada em solo africano,

    sofre a distenso necessria para viabilizar a escrita potica em vrios sentidos. Esse

    mecanismo propicia os desvios que consolidam a produo de uma literatura que transgride os

    modelos europeus para se afirmar intensamente africana.

    Nesse contexto, a poesia faz circular os saberes. Desloca do espao do poder a lngua

    que regula a histria humana, dando-lhe uma nova roupagem, para imprimir os vrios

    sentidos buscados. O poeta trabalha e vislumbra sadas na encenao dos enunciados, livre

    das amarras do poder regulador que delimita os atos e as aes do homem na vida diria. Numjogo teatral, os significados efetivam-se no desvio, na reordenao do cdigo lingstico que

    permite ouvir a lngua fora do poder. O discurso literrio ultrapassa os obstculos tpicos da

    lngua, como cdigo regulador do discurso coerente que sustenta o corpo social, e funciona

    como o logro, o lugar que dialoga com o dentro e o fora, com o interior e o exterior da

    linguagem literria, quando o discurso potico tem carter testemunhal, como neste poema de

    Ruy Duarte de Carvalho (2003, p. 90):

    Sou testemunho da noo geogrficaque identifica as quatro direcesdo sol s muitas mais que o homem tem.Sou mensageiro das identidadesde que se forja a fala do silncio

    Poetas como Jos Lus Mendona, Ruy Duarte de Carvalho, Joo Maimona e Ana

    Paula Tavares, dentre outros, buscam na escrita literria a abertura para um tempo de

    memrias construdas a partir de alguma fenda original (CARVALHO, 2003, p. 45). Apesar

    do esfacelamento do projeto social coletivo, a nova tica lrica precisa encontrar, nas guas do

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    passado, os elementos essenciais para exorcizar a morte e a dor (CARVALHO, 2003, p.

    45).

    Ruy Duarte de Carvalho autor de uma produo expressiva e bastante acurada no

    cenrio literrio contemporneo angolano. Entre suas obras figuram Cho de oferta(1972),A

    deciso da idade(1976), Como se o mundo no tivesse leste(1977),Exerccios de crueldade

    (1978),Hbito da terra(1988) e Vou l visitar pastores(1999). O discurso interlocutrio de

    Ruy Duarte de Carvalho transita entre a militncia pela terra, em especial no sul de Angola, e

    um pacto de solidariedade firmado com o pas como um todo. Em sua potica o autor efetiva

    a comunho de muitas outras vozes. Nos versos a seguir (CARVALHO, 2003, p. 91),

    percebe-se a estratgia discursiva de quem busca contemplar as origens, os hbitos da terra.

    Um cho propcio para erguer o encontroentre o destino e o corpo.Se as minhas mos se tingem de vermelho, ao nortee eu todavia me reservo ao sulporque da terra quero a superfcie plana.

    Num dilogo com outros campos da arte, Ruy Duarte de Carvalho imprime

    determinadas marcas no discurso potico, confere-lhe feio particular. O contexto histrico-

    social, destoante e desconcertante no plano real, torna-se objeto singular no plano potico e

    precisa ser redimensionado, via representao na poesia, espao significante e de jogos desentidos, para o funcionamento da discursividade de vozes no autorizadas e marginalizadas

    na sociedade. Diante de tal fato, a voz autorizada precisa apresentar e representar a vida com

    toda a fora que emana das palavras.

    A presentificao dos fatos caracteriza-se como o detalhe especfico da arte literria.

    Os elementos recuperados do contexto so modelados, transformados ou reforados no

    mbito potico. A arte tece a rede dos significados que podem emanar da superfcie ou da

    profundidade do contexto, ou melhor, de um cho propcio para erguer o encontro entre odestino e o corpo (CARVALHO, 2003, p. 91).

    Distanciando-se do discurso emblemtico de exaltar a luta de libertao, a poesia

    contempornea opta por operar uma revoluo no mago da linguagem [e leva] s ltimas

    conseqncias a meta-conscincia potica j praticada, desde os anos 70, por alguns poetas de

    Angola (SECCO, 2003, p. 168).

    Com um discurso crtico que busca a memria de um tempo distante anterior quele

    da opresso e das desiluses , os poetas da contemporaneidade mergulham nos subterrneosdo sonho e encontram as imagens que sero metaforizadas por meio de recursos lingsticos,

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    como as repeties frasais e de termos que remetem s suas origens lingsticas e,

    concomitantemente, s caractersticas nacionais e regionais angolanas. Esses elementos

    constituem dados necessrios para compor um cenrio potico capaz de exprimir

    simultaneamente uma viso de mundo e uma forma de estar nele.

    Nesse percurso situa-se a poesia de Jos Lus Mendona, autor de Chuva novembrina

    (1981), Gria de cacimbo(1987), Respirar as mos na pedra(1989), Quero acordar a alva

    (1997) e Poemas de aMar(1998). Seu discurso transita entre a subjetividade do eu que se

    nutre num sentimento evasivo para o interior de si mesmo e o desejo de depreender o

    momento presente, os homens presentes: O instante do fascnio que a beleza das palavras

    provoca, o momento de fruio do verbo, do que sugere e da vertigem que a confunde, no

    raramente, com o momento do encanto (MATA, 2001, p. 253).

    Sua palavra potica constri imagens sensoriais na convergncia de um prazer que

    emana da feitura de versos com uma crtica social contundente, repleta de lirismo e pautada

    nos reflexos das aes de homens subalimentados que povoam o universo africano, mais

    precisamente uma Angola frgil, de sonhos desfeitos, representados no poema Subpoesia

    (MENDONA, 2002, p. 34):

    Subsarianos somos

    sujeitos subentendidossubespcies do submundosubalimentados somossurtos de subepidemiassumariamente submortosdo subdlar somossubdesenvolvidos assuntosde um sul subserviente.

    O cenrio exposto por Jos Lus Mendona traz tona uma aventura literria pautada

    amplamente na experincia da dor, que precisa encontrar o caminho profcuo para ser

    transformada em linguagem capaz de recuperar a crena na utopia. O poeta extrai da vidadiria, real, as sensaes expostas em Como um saco de sal (MENDONA, 2002, p. 35),

    que funciona como metfora do tempo presente: O africano est a escorrer / como saco de

    sal.

    Outro poeta importante Joo Maimona, que, desde os poemas apresentados na

    antologia No caminho doloroso das coisas (FEIJO, 1988), insiste na experimentao de

    processos estticos que filtram a realidade sensvel para exp-la em cenrios (re)construdos

    por imagens. Sua poesia densa, profunda, porque privilegia a utilizao de alegorias,smbolos, imagens e construes que descartam a percepo de significaes imediatas,

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    instala tenses e dissonncias, busca expulsar do poema a segurana enganadora de sentidos

    ilusoriamente instalados. A poesia de Maimona percorre as trilhas do desassossego

    (FONSECA, 2006) e elabora-se como uma viso sofrida e amarga da realidade. Seus vrios

    livros publicados, dentre os quais se destacam Trajectria obliterada (1984), Les roses

    perdues de Cunene (1985), Trao de unio (1987), As abelhas do dia (1988), Quando se

    ouvir os sinos das sementes(1993), Idade das palavras (1997), No tero da noite (2001) e

    Festa da monarquia (2001), trabalham com a obscuridade, com a percepo de um mundo

    despedaado, com runas que impedem a esperana, ainda quando se procura ultrapassar a

    melancolia e a desesperana.

    A abundncia de imagens e os artifcios de linguagem que buscam alcanar o que se

    produz para alm do poema dizem muito do trabalho do poeta com a materialidade da

    palavra, com a produo de arranjos verbais que fazem a escrita repercutir o som e o gesto

    que ela mesma silencia.

    Dentre a produo literria de autoria feminina, destaca-se, neste breve panorama, a

    produo potica de Ana Paula Tavares, revelada aos leitores em 1985. Ana Paula Tavares,

    como Ruy Duarte de Carvalho, dedica-se a reverenciar, no espao da literatura, os rituais da

    tradio oral. Desde os poemas publicados emRitos de passagem(1985) alguns retomados

    pela antologia dos jovens poetas angolanosNo caminho doloroso das coisas(FEIJO, 1988)

    expe-se em seus versos o olhar atento sobre as tradies ainda preservadas em vrias

    regies do seu pas. A escrita literria busca apreender essas tradies e detm-se cuidadosa

    nas artes que a cultura delegou mulher africana, oleira, tecel, fazedora de tarefas que a

    tornam guardi das tradies do cuidar, do zelar pela vida, enquanto os homens se extinguem

    nas guerras ou desempenham outras funes. Nos poemas de Ana Paula Tavares que fazem

    parte da antologia organizada por Feijo (1988), algumas constantes discursivas identificam a

    sua potica: a atenta retomada, pelo vis da poesia, das cerimnias de passagem, a percepo

    da sensualidade que percorre os gestos, os atos e a natureza e transborda de forma graciosa emfrutos que se metamorfoseiam em predicados prprios do corpo humano. Essas constantes que

    desabrocham em seu primeiro livro, Ritos de passagem (1985), percorrem O lago da lua

    (1999) e mantm-se em seus livros mais recentes,Dizes-me coisas amargas como os frutos

    (2001) eEx-votos(2003).

    As tradies da Hula, regio onde nasceu a escritora, esto em seus poemas, com

    seus cheiros, sons, corais e canes, como ela mesma confessa a Michel Laban (1991, p.

    850). A sua formao em Histria e uma grande sensibilidade marcam o modo como a poetisa

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    observa os costumes das mulheres de sua etnia e transporta-os para os seus poemas, com

    grande respeito e delicado cuidado.

    O livro Ritos de passagem(TAVARES, 1985) revela o olhar da historiadora sobre o

    lugar da mulher em sociedades em que se celebram rituais de iniciao e de passagem de uma

    idade para outra e em que se elaboram tarefas em meio a cantos e sofrimentos. Como ela

    prpria afirma, os rituais, os costumes aparecem em sua poesia permeados de admirao e

    espanto, j que, pertencendo a uma dessas sociedades, no convive mais com ela, pois se

    distanciou de costumes e de vivncias que, ao mesmo tempo, so e no so dela (LABAN,

    1991, p. 850).

    Os poemas de Ana Paula Tavares, desde os deRitos de passagem(1985), apresentam-

    se como grande diferena em relao aos produzidos pela gerao da poesia de combate,

    particularmente por aqueles poetas que acompanharam o processo de libertao de Angola do

    colonialismo portugus. Atenta s manifestaes de sua cultura, Paula Tavares no se sente,

    no entanto, porta-voz dela. Seu olhar observa os rituais, apreende os costumes, destaca, com

    rara sensibilidade, detalhes e impresses de culturas angolas ancestrais, mas deixa-se

    atravessar por outros saberes.

    No seu primeiro livro, a predileo pela descrio de frutos tpicos de sua regio

    recortada por um vis ertico, sempre presente em seus poemas. As cores e o sabor dos

    frutos o maboque, a anona, o mirangolo, a nocha, a nspera, o mamo so tambm

    imagens de um corpo que transcende em cheiros, em tessitura macia e em forte sensualidade.

    A descrio do mirangolo , nesse sentido, bastante interessante (TAVARES, 1985, p. 12):

    Testculo adolescentepurpurinocorta os lbios vidoscom sabor cidoda vida

    encandesce de maduroe caisubmetido s trezentas e oitenta e duasfeitiarias do fogotransforma-se em gelia real:ILUMINA A GENTE.

    J se mostra no livro Ritos de passagem(1985) uma feio que reaparece em O lago

    da lua, de 1999, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001, e em Ex-votos, de

    2003: a escrita potica de Ana Paula Tavares deixa visvel sua inteno de povoar o texto com

    dados concretos da realidade, que nele pousam com seus sentidos expandidos ou apenassugerem relaes que demandam um olhar mais cuidadoso sobre os costumes da terra

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    angolana. Talvez seja esse transbordar de sensaes e de toques suaves o que o leitor

    apreende, mesmo aquele que desconhece os dados concretos que habitam os versos de Paula

    Tavares. Encantam o leitor a explorao de recursos prprios da escrita potica, o trabalho

    cuidadoso com a plasticidade das cenas, as elaboraes sensuais que organizam os poemas,

    comedidos, sintticos, avessos ao excesso.

    Ex-voto

    No meu altar de pedraarde um fogo antigoesto dispostas por ordemas oferendas

    neste altar sagrado

    o que disponhono vinho nem ponem flores raras do desertoneste altar o que est exposto meu corpo de rapariga tatuado

    neste altar de paus e de pedrasque aqui vsvale como oferendameu corpo de taculameu melhor penteado de missangas. (TAVARES, 1999, p. 12).

    Inocncia Mata (2001, p. 63) afirma, com relao literatura angolana, que aconstruo literria da nao se fez particularmente atravs da poesia, que assumiu a

    coletivizao da voz. Esse aspecto est presente, sobretudo, na produo potica do pr-

    independncia, que cantou a construo de uma frica livre e exibiu ao mundo as mazelas da

    opresso colonialista. Essa vertente, muito forte na poesia, no esteve no entanto afastada da

    fico, que, ainda no sculo XIX, com escritores como Antnio de Assis Jnior e Castro

    Soromenho, procurou delinear os contornos da terra angolana. Tal inteno est presente

    mesmo na fico de tendncia etnogrfica de Oscar Ribas, mas ir tomar uma feiosignificativa em escritores como Jos Luandino Vieira, defensor de um projeto literrio

    marcado no apenas pelo engajamento e pela utopia mas por um expressivo trabalho com a

    linguagem, visvel em seus livros Luuanda (1974), Ns, os do Makulusu (1975) e Joo

    Vncio: os seus amores (1979). Sobre essa proposta literria, evidente tambm em vrios

    outros romances do escritor, diz Vima Martin (2006, p. 216): Seja atravs do exerccio da

    escritura do conto e do romance, a opo de Luandino Vieira foi por ficcionalizar os desafios

    vividos pelos marginalizados que habitam a periferia de Luanda e atestar o seu potencial de

    resistncia.

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    A obra mais recente do escritor, O livro dos rios (VIEIRA, 2006), segue outros

    percursos. Afasta-se dos musseques e da cidade de Luanda, temas presentes na maioria dos

    seus livros anteriores, sem abandonar um modo de contar caracterstico da discursividade

    oral. Ao contrrio, prope uma contao recortada por rememoraes sobre rios Isto ,

    conheo rios. De uns dou relao, de outros, memria (p. 17) , mas no se furta s

    lembranas que as guas largas, lentas, dormidas permitem evocar.

    Acreditando ser a literatura um dos elementos formadores da identidade de um pas,

    Pepetela, nome artstico de Artur Carlos Maurcio Pestana dos Santos, nascido em Benguela,

    em 1941, um dos maiores escritores angolanos, ligado a uma vertente ficcional que assume,

    por vezes deliberadamente, a funo social da literatura. Seus vrios romances registram a

    inteno de permanecer junto daqueles que ficaram do lado de fora na distribuio do mel,

    metfora com que o autor, implcito no romanceJayme Bunda, agente secreto(PEPETELA,

    2001, p. 85), alude perversa diviso de renda e de direitos que o panorama do ps-

    independncia angolano acentua. O escritor publicou trs romances no perodo anterior

    independncia:As aventuras de Ngunga (1977), Muana Pu (1978) e Mayombe (1980). Os

    demais livros foram publicados aps a independncia, e neles pode ser identificada uma

    reviso melanclica da utopia revolucionria, como em A gerao da utopia (1992), mas

    tambm se acentua a viso irnica sobre os desmandos da classe que assumiu os destinos da

    nova nao. O romanceA gloriosa famlia(1997) faz uma incurso pela histria de Angola e

    retoma dados importantes relativos aos interesses de diferentes poderes, expondo as armaes

    necessrias sustentao dos negcios gerenciados por aventureiros de vrias nacionalidades

    durante o longo e lucrativo perodo do comrcio de escravos.

    Manuel Rui, poeta e ficcionista, teve vrios livros publicados antes da independncia.

    Seu livro de maior alcance entre os leitores angolanos e estrangeiros , sem dvida, Quem me

    dera ser onda, cuja primeira edio, em 1991, foi seguida de outras edies em lngua

    portuguesa e em vrios outros idiomas. Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a fico deManuel Reis marcada por um realismo social que assegura ao escritor o manejo de

    instrumentos capazes de tornar risveis as situaes enfocadas. O riso e a ironia so as armas

    com que esse escritor angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de

    vida dos mais abastados. Em Quem me dera ser onda, um porco simboliza situaes tpicas de

    uma Angola que tem de conviver com a construo de um novo tempo e com a precariedade

    dos instrumentos de que dispe para faz-lo. Em alguns contos magistrais como A grade,

    do livro 1 morto & os vivos (1993), ou Rabo de peixe frito e rusga, do livro Saxofone emetfora (2001), a ironia costura situaes corriqueiras do universo urbano luandense,

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    permitindo que o leitor se aperceba de outras histrias que so contadas no burburinho da

    enunciao.

    Um outro escritor significativo na literatura angolana atual Boaventura Cardoso,

    cultor de uma vertente literria que explora a ironia, a stira e os recursos da carnavalizao,

    sem desprezar as possibilidades inventivas da linguagem. Os contos de seus livros O fogo da

    fala(1980), cujo ttulo indica a percepo da linguagem como o fogo que aquece ou destri, e

    Dizanga dia muenhu (1988), que reelabora formas de narrao muito adequadas aos temas

    abordados, intensificam um projeto de escrita que se elabora prxima s potencialidades da

    fala, do sopro da palavra viva, que sempre fogo tomado em sua polissemia. Seus livros mais

    recentes, Maio, ms de Maria (1997) e Me, materno mar (2001), traduzem a maestria do

    escritor tanto com relao ao trabalho sempre inovador no nvel da linguagem, quanto com

    relao perspiccia imaginativa utilizada para enfocar situaes tpicas dos novos

    enfrentamentos propostos literatura, que quer estar sempre atenta fala, ao fogo que anima

    as conversas e d firmeza ao que narrado.

    Moambique

    O processo de formao da literatura de Moambique no difere muito do dos demais

    pases africanos de lngua portuguesa, tendo assistido construo, nas zonas urbanas da

    Beira e Loureno Marques (agora, Maputo), de uma elite de alguns negros, mestios e

    brancos que se apoderou, aos poucos, dos canais e centros de administrao e poder.

    Suporte inicial foram os jornais, que, como em Angola, desempenharam um papel

    importante na divulgao das idias contrrias ao colonialismo. O jornal O Africano foi

    fundado pelos irmos Jos e Joo Albasini em 1909, com edio em portugus e ronga. Em

    1918 os irmos Albasini fundaram O Brado Africano, rgo oficial do Grmio Africano

    Associao Africana. Em 1932 o jornal, tendo sido impedido de funcionar, foi substitudopelo Clamor Africano, que teve 12 nmeros e foi criado por Jos Albasini. A partir de 1933,

    O Brado Africanovoltou a circular, mas a partir de 1958, at a sua suspenso, em 1974, seu

    funcionamento esteve subordinado a muitas influncias oficializantes.

    No final da dcada de 40 e incio da dcada de 50 Moambique assistiu a um perodo

    de afirmao de um projeto literrio, que est registrado em textos publicados em livros e em

    jornais. Destaca-se a importncia, para a afirmao da literatura moambicana, de projetos

    como o da revistaMsaho(fundado em1952), cujo nome se relaciona com um canto do povo,em lngua chope, e o do jornal Paralelo 20(1957 a 1961).

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    Entre 1959 e 1975 o jornal Voz de Moambiquefoi o veculo mais importante para a

    publicao de textos literrios, em vrios dos quais se percebem tendncias que revelam o

    contato dos escritores com a Europa e o Brasil. Ceclia Meireles, Adalgisa Nery, rico

    Verssimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego e Castro Alves figuravam

    entre os escritores brasileiros que mais circulavam no meio literrio.

    Os principais escritores moambicanos so Nomia de Souza (que teve de se exilar do

    pas em 1951), Jos Craveirinha (o maior poeta de Moambique, morto em 2003), Lus

    Bernardo Honwana (autor do clebre Ns matamos o co tinhoso), Rui Knopfli, Virglio de

    Lemos e Rui Nogar, todos ligados a movimentos que traaram o panorama literrio de

    Moambique dos anos 40 e 50, cujos ecos podem ser percebidos na poesia do ps-

    independncia.

    Distinguem-se pelo menos trs fases no processo de construo da literatura

    moambicana: a fase colonial, a fase nacional e a fase ps-colonial.

    Na fase colonial destacam-se, como precursores da literatura moambicana, autores

    como Rui de Noronha, Joo Dias, Augusto Conrado e Lus Bernardo Honwana. Entre eles

    merece realce Rui de Noronha, cujo livro Sonetosfoi publicado em 1943, seis anos aps a sua

    morte. A sua poesia reveste-se de pioneirismo, no pela forma mas pelo contedo, uma vez

    que alguns dos sonetos mostram sensibilidade para a situao dos mestios e negros, o que

    constitui a primeira chamada de ateno para os problemas resultantes do domnio colonial.

    Rui de Noronha representa tambm uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos

    literrios, o legado da tradio oral africana.

    A coletnea de contos intitulada Godido e outros contos, de autoria de Joo Dias,

    publicada em 1952, considerada como a primeira obra de fico moambicana, por causa

    dos temas e motivos que explora. Joo Dias tenta desmascarar realidades sociais concretas,

    relacionadas com o estatuto do africano tanto no contexto colonial como no espao social

    portugus. Nesse caso, o que interessa a vertente nacional, consubstanciada no conto maisextenso e que d ttulo coletnea, que se destaca dos restantes em funo de determinados

    temas e modos de representao. O nome da personagem principal, Godido, remete figura

    histrica de mesmo nome, filho do Imperador de Gaza, cuja deportao ocorre com

    Gungunhana, outra figura elevada categoria de mito na memria coletiva. Desse modo,

    Godido conota a resistncia do povo moambicano ao invasor europeu, funcionando como

    smbolo das reivindicaes sociais no espao colonial portugus. A histria incide no

    quotidiano de um negro, destacando-se o seu inconformismo num espao rural marcado pelasubservincia, humilhao e despersonalizao e as suas frustraes num espao urbano, lugar

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    de sonhos e aspiraes. O leitor confrontado com os temas da explorao do negro, do

    racismo nas suas diversas formas, da violncia fsica e psicolgica qual sujeito o

    moambicano, da duplicidade do mulato a negar as suas origens, do direito colonial a servio

    do opressor, da mulher transformada num simples objeto, da idealizao do Brasil em

    resultado da mestiagem social (DIAS, 1952).

    Ns matmos o co tinhoso, de Lus Bernardo Honwana (1980), trata de questes

    sociais como a explorao e a segregao. Na sua totalidade, as narrativas de Honwana

    denunciam as foras produtivas em jogo, o autoritarismo do Estado colonial, a opresso

    exercida pelas instituies de poder e pelo seu aparelho ideolgico. Alm disso, evidenciam

    certos aspectos de conscientizao social e de classe de determinadas personagens. No conto

    Dina, por exemplo, encontramos os temas da rudeza do trabalho rural, do sofrimento do

    trabalhador sujeito a uma disciplina desumana, da arrogncia do branco em relao ao negro,

    da impotncia perante o opressor, da prostituio como forma de sobrevivncia, da

    incompreenso e da alienao, os quais realam as configuraes mais salientes de um espao

    social violentado. Os demais contos mostram tambm situaes concretas de explorao,

    humilhao e racismo, comportando, assim, uma perspectiva crtica e desmistificadora, tpica

    da chamada literatura comprometida. No texto que d ttulo ao livro, o protagonista,

    incumbido de liquidar o enigmtico Co-Tinhoso, elucida-nos sobre a luta surda no seio de

    uma comunidade juvenil, representada por brancos, negros e mestios. J o curto relato de

    Inventrio de imveis e jacentes mostra, de modo documental e objetivo, a condio

    econmico-social de uma famlia, mediante a enumerao de objetos que conotam a vida

    difcil dos africanos, aspirando a um lugar na hierarquia preestabelecida pelo colonizador

    europeu. Semelhante problemtica ocupa a ateno do enunciador do conto Pap, cobra e

    eu, no qual est retratado o quotidiano de uma famlia africana, com destaque para as tenses

    latentes, como a relacionada lngua utilizada e humilhao qual os negros tm de se

    sujeitar perante o explorador branco. A humilhao baseada na cor da pele tematizadatambm em As mos dos pretos, cujo protagonista, de modo ingnuo e algo irnico, aborda

    a impotncia dos negros perante os argumentos aparentemente inabalveis dos colonos sobre

    a segregao racial. O ltimo conto, Nhinguitimo, evolui para a revolta, entendida como

    meio de romper com a colonizao, e faz uma crtica ao comodismo dos negros assimilados,

    em favor da esperana na construo de uma sociedade diferente.

    Uma parte significativa da produo literria moambicana deve-se a escritores que

    centram a sua temtica nos problemas de Moambique. Foram eles que contriburamdecisivamente para a formao da identidade nacional moambicana. Merecem realce Alberto

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    de Lacerda, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glria SantAnna, Antnio Quadros, Sebastio

    Alba e Lus Carlos Patraquim. Alguns desses escritores produzem uma literatura de carter

    mais pessoal, enquanto outros retratam questes relativas ao aspecto social. Por exemplo, Rui

    Knopfli debrua-se fundamentalmente sobre a frica, a Me frica e o povo que vive e

    sofre as conseqncias do colonialismo. Por muita dessa poesia perpassa tambm a esperana

    da libertao. Esses autores contriburam, de um modo decisivo, para a emergncia da

    literatura da moambicanidade. Em muitos desses poetas podemos detectar a alienao em

    que se encontram perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo de Rui

    Knopfli (1997, p. 11):

    Europeu me dizem.

    Eivam-me de literatura e doutrinaEuropiase europeu me chamam.No sei se o que escrevo tem raiz de algumpensamento europeu, provvel... No. certo,mas africano sou.

    A fase nacionalista caracteriza-se pela produo de uma literatura poltica e de

    combate, que foi cultivada, sobretudo, por escritores que militavam na Frente de Libertao

    de Moambique (FRELIMO). Entre eles destacam-se Marcelino dos Santos, Rui Nogar eOrlando Mendes. Essa literatura preocupa-se especialmente com comunicar uma mensagem

    de cunho poltico e, algumas vezes, partidrio. Sobressaem-se, do ponto de vista esttico, as

    obras Portagem(1965), de Orlando Mendes, e Silncio escancarado(1982), de Rui Nogar.

    Publicado em 1965, Portagem, de Orlando Mendes, considerado o primeiro romance

    moambicano por causa da sua perspectiva crtica em relao s estruturas coloniais e da

    abordagem, sem subterfgios, do drama de um mulato em choque com a sociedade de brancos

    e de negros, minada pela presena do europeu. A ao decorre em vrios espaos, tanto rurais

    como urbanos, para mostrar a inadaptao do protagonista, o mulato Joo Xilim, que,

    oscilando entre os valores dos contextos europeu e moambicano, termina por reencontrar-se

    no seu destino de africano. Ao longo do seu percurso existencial, a personagem central

    confrontada com situaes que tematizam a marginalizao de Joo Xilim, tanto no plano

    profissional, como no plano afetivo. Da condio de emigrado nas minas da frica do Sul at

    de ajudante numa oficina grfica, o protagonista exerce empregos precrios (marinheiro,

    capataz, tipgrafo e pescador), passando pela atividade de contrabandista e pela situao de

    recluso devido a uma tentativa de homicdio. Todos os acontecimentos apontam para a

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    subalternidade dos negros e dos mulatos numa sociedade conotada pela explorao, pela

    assimilao e pelo racismo. O universo das personagens com as quais o protagonista convive

    ou que enfrenta outra marca da condio de inferioridade qual est condenado o africano.

    Trabalhadores miserveis, camponeses famintos, patres arrogantes, comerciantes desonestos

    e mulheres que se prostituem por necessidade so os interlocutores privilegiados de Joo

    Xilim. Todo esse universo enfatiza a idia da excluso social generalizada que o romance

    traduz, delineando uma sociedade cheia de tenses agudas, onde o dio, o crime e a violncia

    confluem para esboar um quadro de tragdias e desgraas (MENDES, 1965).

    Como nos outros pases, surge tambm em Moambique um nmero significativo de

    escritores cuja obra literria conscientemente produzida tendo em conta o fator da

    nacionalidade. So eles que forjam a conscincia do que ser moambicano no contexto,

    primeiro, da frica e, depois, do mundo. Entre os principais autores dessa literatura

    encontram-se Nomia de Souza, Jos Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastio Alba, Ungulani Ba

    Ka Khosa e Mia Couto.

    A figura de maior destaque na poesia da moambicanidade e referncia obrigatria em

    toda a literatura africana Jos Craveirinha. A poesia de Craveirinha engloba todas as fases

    ou etapas da poesia moambicana, desde os anos 40 at praticamente os nossos dias. Em

    Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural,

    social, poltica, uma poesia de priso, uma poesia carregada de marcas da tradio oral, bem

    como muito poema com grande pendor lrico e intimista.

    Craveirinha publicou Cela 1(1980),Xigubo(1980), Karingana Ua Karingana(1982)

    eMaria(1988). Uma leitura atenta leva-nos a perceber a diferena marcante entre cada uma

    dessas obras de Craveirinha. Xigubo um livro mais voltado para a narratividade, para a

    descrio de elementos exteriores ao poeta. Nesse livro, o poeta distancia-se do eu potico

    ou, ento, funciona como um narrador de estrias cuja voz eco de um drama que se

    desenrola num universo (frica) do qual ele prprio participante. Em Cela 1 e Maria, oeu potico identifica-se com o sujeito da narrativa. Essas ltimas duas obras so um

    corolrio da itinerncia do poeta num clima de epopia de que Xigubo e Karingana Ua

    Karinganaso um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experincia coletivizante

    narrada emXigubo, para uma escrita que individualiza a sua prpria vivncia mimada em

    Cela 1eMaria.

    A literatura do perodo ps-independncia, ou ps-colonial, desvia-se do vis coletivo.

    Os autores assumem um tom individual e intimista para relatar a sua experincia ps-colonial.

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    Entre os escritores destacam-se Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto, Lus Carlos Patraquim,

    Paulina Chiziane, Suleiman Cassamo e Llia Mompl.

    Llia Maria Clara Carrire Mompl nasceu em 1935, na Ilha de Moambique.

    Ningum matou Suhura, seu primeiro livro de contos, foi publicado em 1988 e narra fatos

    ocorridos durante o tempo colonial. A ele se seguiu o romance Neighbours, de 1995, que

    retrata fatos ocorridos durante a guerra civil. De maneira semelhante, o livro Os olhos da

    cobra verde (1997) tambm se inspira na vida quotidiana de Moambique, desde o tempo

    colonial at a poca atual. Alm desses livros, produziu o vdeo-dramaMuipiti, que ganhou a

    distino de melhor vdeo moambicano produzido em 1998 e conta a histria de uma mulher

    da Ilha de Moambique.

    Ungulani Ba Ka Khosa publicou dois livros: o romance Ualalapi, em 1987, ganhador

    do Grande Prmio de Fico Moambicana em 1990, e a coletnea de pequenas histrias

    Orgia dos loucos, em 1990. Ualalapi(KHOSA, 1987) pode ser visto como uma espcie de

    relato tnico-histrico que recupera a tradio oral moambicana. Texto de difcil

    classificao quanto ao gnero, constitui-se como uma surpresa do ponto de vista formal: o

    livro parece mais uma coletnea de contos, mas sua ordenao no plano temporal permite

    catalog-lo como um romance. Uma personagem central polariza as situaes das intrigas das

    seis narrativas breves, aparentemente distintas entre si, mas marcadas por uma perspectiva de

    continuidade. Trata-se da figura mtica do Imperador Ngungunhane, o mesmo Gungunhana do

    livro de Joo Dias (1952), cuja ao, invocada direta ou indiretamente, faz com que as

    diferentes histrias isoladas funcionem como independentes e, ao mesmo tempo, dependentes.

    O que o romance tematiza o passado recente de Moambique, numa perspectiva tipicamente

    ps-moderna, porque surge reescrito, reinventado, reformulado, enfim, questionado luz do

    presente. Para tal, revisitam-se alguns fatos histricos do sculo XIX, esboando-se o retrato

    cruel de um Imprio em decadncia e degradao. Esses fatos remontam figura de

    Ngungunhane, personagem de origem nguni, que invade o sul de Moambique e coloniza ostsongas, tornando-se Imperador das terras de Gaza. O relato pico que exalta a bravura

    guerreira dos africanos cede lugar, em alguns momentos, a dvidas e incertezas que se

    depreendem de situaes de injustia e opresso, corroboradas por situaes de terror,

    barbrie, arbitrariedades e abusos de poder da parte do ltimo imperador moambicano.

    Mia Couto transfere todo o seu potencial potico para a fico. O moambicano

    Antnio Emlio Leite Couto, ou Mia Couto, um dos escritores mais conhecidos da frica e

    da lngua portuguesa. autor de vrios livros de narrativas curtas (contos e crnicas) Cronicando(1988), Cada homem uma raa(1990),Estrias abensonhadas(1994),Contos

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    do nascer da terra (1997), Na berma de nenhuma estrada (2001), O fio das missangas

    (2003), O pas do queixa andar(2005) e Pensatentos(2005) e de vrios romances Terra

    sonmbula (1994), A varanda do frangipani (1996), Vinte e zinco (1999), Mar me quer

    (2000), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) e O outro p da sereia

    (2006). O romance Terra sonmbula (1994) considerado um dos doze melhores livros

    africanos do sculo 20. Alm desses, escreveu um livro de poemas,Raiz de orvalho e outros

    poemas (1999), e livros infantis. Como se pode observar, o escritor transita entre vrios

    gneros literrios, o que, como afirmam Rita Chaves e Tnia Macedo (2007, p. 50), pode ser

    visto como uma caracterstica da literatura moambicana, uma vez que os escritores migram

    de um gnero a outro, optando, a cada momento, por aquele que consideram mais adequado

    ao que tm a dizer.

    Nas narrativas de Mia Couto chama a ateno o motivo comum que atravessa sua

    escrita: a profunda crise econmica e cultural que acompanha o quotidiano da sociedade

    moambicana, durante e depois da guerra civil, ou seja, aps a independncia nacional. Suas

    obras problematizam a instabilidade na qual est mergulhado o povo moambicano, a

    corrupo em todos os nveis do poder, as injustias como conseqncia de um racismo

    tnico, a subservincia perante o estrangeiro, a perplexidade face s r