paisagen sentimentais: a construção de um olhar sobre são paulo

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Monografia de final de curso em Pós-Graduação em Fotografia, pelo SENAC - SP

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2

1

Partindo do pressuposto de que a sociedade encontra-se cega fren-

te às metrópoles contemporâneas por conta da saturação imagética

peculiar ao nosso tempo, e das intrincadas dinâmicas que constituem

as cidades globais, que não nos permitem formar representações rele-

vantes das mesmas e conseqüentemente nos situar diante destas. A

questão que pretende orientar esse trabalho é: Será possível por meio

da produção de imagens resignificar as paisagens urbanas, por hora

opacas, e restituir-lhes o significado?

Para responder essa pergunta este trabalho rercorre a uma pesquisa

conceitual e histórica sobre as relações da fotografia com a cidade,

tendo com finalidade estruturar a análise do percurso da construção de

um olhar sobre a cidade de São Paulo, marcado pela minha vinda para

essa cidade (que coincide com o início do curso de pós-graduação

que esses escritos pretendem pontuar).

resumo

2

3

“A cidade se define pelos seus contrastes; quer sempre ex-plodir, não suporta estéreis regras... uma cidade inesquecí-vel é um acervo imenso de imagens”,

Win Wenders

4

5

INTRODUÇÃO 007

1 A representação das cidades através da fotografia: Da Paris capital do Século XIX às vanguardas modernas. 009

1.1 A gênese da fotografia urbana: Charles Marville, o fotógrafo do Barão Haussman. 013

1.2 A “Flanerie”: Inaugurando o olhar moderno: Atget e Baudelaire. 023

1.3 A fotografia urbana no século XX. 033

1.3.1 Straight photography. 034

1.3.2 Futurismo. 044

1.3.3 Construtivismo. 047

1.3.4 Surrealismo. 056

2 A saturação imagética e a irrepresentabilidade das cidades globais. 065

3 Possíveis caminhos de fotografia urbana contemporânea 071

3.1 Michael Wesely. 072

3.2 Cassio Vasconcelos. 078

3.3 Andreas Gursky . 080

3.4 Abellardo Morell. 084

4 A construção subjetiva de um olhar sobre São Paulo. 089

4.1 Catálogo urbano. 090

4.2 Augusta. 094

4.3 Derivas. 114

4.4 ZL. 130

sumário

6

7

Esse trabalho pretende analisar como a linguagem fotográfica vem dan-

do conta de representar as cidades ao longo da sua recente história,

e consequentemente como a imagem fotográfica vem contribuindo

para a formatação dos imaginários urbanos. Esse percurso tem com

objetivo final uma reflexão sobre a produção pessoal do autor.

A questão da representação das cidades tornou-se central diante das

configurações da sociedade contemporânea, predominantemente

urbana. As cidades se transformaram em estruturas impossíveis de

serem percebidas na sua totalidade. A experiência fenomenológica de

um indivíduo está longe de dar conta da complexidade das dinâmicas

e da escala que as cidades globais vem assumindo. Diante de um

cenário onde a humanidade pouco consegue perceber do ambiente

onde vive, repensar a cidade a partir de suas representações é um es-

forço de situabilidade1. Em um espaço urbano cada vez mais genérico

e sem identidade, a subjetividade do ser urbano está ameaçada de

paralisia. As imagens técnicas quanto mais se sofisticam, numa ten-

tativa de documentação absoluta, tornam-se também cada vez mais

rasas e incapazes de dizer algo sobre o mundo.

Cada vez mais áreas disciplinares vem abarcando o estudo sobre as

cidades: Arquitetura, geografia, sociologia, psicologia ambiental vêm

se debruçando sobre o deciframento dessas estruturas hoje opacas2.

Entre esforços de mapeamento, cartografias, fotografias aéreas, quanto

1 Termo empregado por Nelson Brissac Peixoto para descrever o processo de se situar no espaço urbano, não só abrangendo a situação geográfica mas também o lugar que o cidadão ocupa nas complexas dinâmicas que permeiam a vida metropolitana.

2 Atribuir às metrópoles contemporâneas o adjetivo de estruturas opacas é uma forma de comunicar o quanto o entendimento dessas está além do que se pode ver, o quanto a visualidade acessível da cidade se coloca entre o observador e o que a experiência desta realmente representa.

introdução

8

mais recursos objetivos são aplicados na tentativa de varredura de

toda a extensão dos grandes centros, mais as cidades parecem longe

de serem compreendidas.

A essência das cidades não reside apenas nos fatores funcionais,

produtivos ou tecnocráticos. Além do aspecto material, infra-estrutural

as cidades são constituídas de diversos fluxos de informação, de rep-

resentação, símbolos, da memória, dos desejos e sonhos. A super-

posição contínua de diversos níveis. A cidade é o reino da diversidade

da pluralidade, fenômeno que não pode ser reduzido, é ainda cenário

simultâneo de nossas vidas e de outras. Tal condição une a todos, do

pobre ao rico, esplêndido fenômeno social total, babélico.

Mesmo a imagem coletiva da cidade “captada” através de mapas men-

tais (objeto de estudo de grandes estudiosos como Kevin Lynch e Gor-

don Cullen), mostram-se ineficientes diante da midiatização do mundo

contemporâneo, onde a massa humana não consegue mais discernir

quais experiências são realmente suas e quais foram embutidas pelo

mass-midia. Esses mapas elaborados a partir da sobreposição do de-

senho de vários indivíduos tendem a se transformar em alegorias rasas

que ameaçam a integridade do sujeito.

Assim a arte (e a fotografia) parecem ser de fundamental importância

nessa busca por imagens realmente relevantes.

“A função da arte é construir imagens da cidade que sejam novas, que

passem a fazer parte da própria paisagem urbana. Quando parecíamos

condenados às imagens uniformemente aceleradas e sem espessura,

típicas da mídia atual, reinventar a localização e a permanência. Quan-

do a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se com

o desmedido das metrópole como uma nova experiência das escalas,

da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a ci-

dade.” (PEIXOTO, Nelson Brissac, 1996, p.15).

O presente trabalho pretende relacionar alguns momentos em que a

linguagem fotográfica conseguiu contribuir para que a mente huma-

na fosse capaz de “organizar perceptivelmente o espaço circundante

e mapear cognitivamente sua posição no mundo.” (PEIXOTO, Nelson

Brissac, 1996, p.416).

A primeira etapa desse trabalho parte da idéia de se entender de que

forma a representação das cidades acompanhou as mudanças no meio

urbano que ocorreram à partir do século XIX, analisando a evolução da

fotografia urbana nesse período.

A representação das cidades através da fotografia: Da Paris capital do Século XIX às Vanguardas modernas.

9

Antes do advento da fotografia o olhar renascentista dominava os hori-

zontes das representações urbanas. A perspectiva orientava o universo

pictórico, as coisas eram percebidas como distribuídas no espaço. O

olhar percorria em profundidade, localizado no tempo e no espaço.

Michel de Certau reflete sobre a abstrata visão cunhada no renasci-

mento, evocando a vontade dos homens que instauram as perspec-

tivas artificiais:

“A vontade de ver a cidade precedeu os meios de satisfazê-la. As pin-

turas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em

perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas

inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama

que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval

em olho celeste. Fazia deuses.” (CERTAU, Michel,1996, p.170)

11A representação das cidades através da fotografia: Da Paris capital do Século XIX às Vanguardas modernas.

No entanto o advento da perspectiva tem uma importância para a ci-

dade que vai muito além da forma como esta era representada (o que

mostra a importância do estudo da iconografia urbana). As interven-

ções que começam a marcar a cidade moderna são moldadas pelos

princípios de organização que migraram da perspectiva. A perspectiva

torna-se definidora de espaços.

Foi a partir da Revolução Inglesa e, mais em especial, no século XIX,

que o desenvolvimento das cidades muda de ritmo não mais para

acompanhar as badaladas dos sinos nos mosteiros, mas o tic-tac do

relógio mecânico. Agora, o crescimento ou refluxo obedece às normas

ditadas pelas necessidades econômicas de produção de mercadorias,

e não simplesmente de trocas. (MENEZES, 2004, p.60)

Ordenar, disciplinar a cidade vira obsessão para os governantes saídos

10

das lutas de 1848. A defesa contra a ameaça revolucionária dá o tom

das intervenções que vão provocar o deslocamento de uma ordem, até

então confusa e mal-traçada, que remonta ao período medieval.

Essas re-estruturações do espaço urbano que “coincidiram” com as

mudanças nos meios produtivos (que ficaram conhecidas como rev-

olução industrial), foram responsáveis por mudanças profundas no es-

tilo de vida dos citadinos. A modernidade se impõe sobre todos, tra-

zendo uma mudança de ritmo cada vez mais frenética.

“A cidade do século XIX é a Babel que prospera com a perda das

conexões e a falta de referência aos valores do passado; palco para a

atrofia progressiva da experiência relativa à tradição, à memória válida

para toda a comunidade, substituída pela vivência do choque ligada

à esfera do individual. O impacto da técnica moderna mudou tudo e,

especialmente, a cidade, cuja capacidade de regeneração – metamor-

fose sem fim de autodestruição criativa – foi ficando cada vez mais

rápida.” (MENEZES, 2004, p.154)

Aparece, então, a cidade moderna: afastada do mundo religioso dos

mosteiros e das igrejas, mas condenada a se erigir à beira dos muros

da fábrica, com a fumaça das chaminés a encobrir os campanários

das antigas igrejas e o relógio das indústrias a regular o tempo nas ruas.

A arquitetura do passado cede rapidamente terreno a formas e contor-

nos do mundo da produção e do trabalho. (MENEZES, 2004, p.61)

Ambientes públicos e privados são separados e até contrapostos por

medidas legais. A via pública passa a ser o lugar onde cada um se

misturará com os outros sem ser reconhecido. A rua oitocentista, filha

da rua medieval, é modificada e destruída. Os caminhos sinuosos e ir-

regulares são alargados e substituídos. Velhos bairros são demolidos, e

uns poucos edifícios antigos – os mais importantes – são mantidos por

serem considerados documentos históricos. Estes edifícios “isolados”

tornam-se “monumentos” separados do ambiente urbano. Arte e vida

já não estão entrelaçadas, o ambiente quotidiano começa a ficar mais

pobre.” (MENEZES, 2004, p.66)

Nelson Brissac Peixoto também descreve as transformações da ci-

dade, como mudanças intrissicamente ligadas à visualidade moderna:

“Haussman revoluciona o traçado de Paris, abrindo amplas e retilíneas

vias sobre as ruelas tortuosas dos bairros antigos. Seu ideal urbanístico

eram as visões em perspectiva através de longas séries de ruas. Tudo

aqui é dispositivo cênico, construção ótico-mecânica. A cidade toda

convertida num panorama.” (PEIXOTO, 1996, p.110)

É nesse contexto que a humanidade assiste a gênese da fotografia.

Em 1839, na França, Daguerre consegue fixar em placas o “espelho

com memória”, materializando o invento que parecia estar no ar com

pesquisadores envolvidos por diversos lugares do mundo. Logo a foto-

grafia passa a exercer uma profunda mudança no estatuto da imagem

e da representação, com acaloradas discussões a cerca de seu “lugar

no mundo”, e dentro desse contexto a imagem das cidade vai ganhar

importância sem precedentes. A fotografia difunde-se levando as ima-

gens da modernidade para todos os cantos do mundo.

Desde muito cedo as relações entre a cidade suas representações

instigavam os pensadores. Baudelaire e Walter Benjamin ainda no lim-

11

iar do século XIX para o XX alardeavam as implicações que as novas

configurações que estavam se delineando naquele momento teriam na

sociedade.

Em um curto espaço de tempo a fotografia se difundiu nos principais

centros urbanos, em estúdios fotográficos que realizavam o sonho bur-

guês de se ver representado, privilégio antes concedido só aos mais

abastados que podiam arcar com os custos de um pintor retratista.

Mas o debate sobre a forma como a fotografia era entendida pela so-

ciedade da época, e as consecutivas mudanças nesse entendimento

ao longo dos anos, é que se mostra de importância central para a dis-

cussão da influência desta no imaginário urbano. A fotografia desde sua

invenção se mostrou muito bem aceita no que se refere ao seu caráter

de apoio à memória e nas suas contribuições para o mundo das ciên-

cias objetivas. Mas no que se refere ao impacto sobre a arte, e sua

relação com a pintura a fotografia sempre causou debates acalorados.

Em um primeiro momento, a fotografia traz do universo pictórico toda

a gramática imagética que vai constituir seu repertório. Segundo Fab-

ris (1998, p.42) isso se deve ao fato dos primeiros fotógrafos terem se

derivado da tradição pictórica e também por uma forte questão técnica

que exigia longos períodos de exposição para o processo de fixação

das imagens, fazendo com que a imobilidade dos modelos restringisse

as possibilidades, e, portanto, limitassem a produção ao universo ima-

gético já consolidado da época.

Natureza morta, paisagens, retratos e o nu que se constituem nos

gêneros que vão sendo tratados pela tradição pictórica são transpostos

como temas para as primeiras gerações de fotógrafos. O fato de a ima-

gem fotográfica ser composta pelas duas dimensões, assim como a

pintura, faz com que estes também retomem a “concepção do espaço

figurativo e do enquadramento como limite desse espaço” da tradição

pictórica. (BAURET, Gabriel. 2006)

O entendimento dos primeiros pensadores sobre o fotográfico se

baseava no seu caráter objetivo, colocando-o como algo mecânico

desprovido de caráter subjetivo ou intelectual. Aproximando a fotografia

das ciências e afastando do campo das artes. A própria abordagem de

alguns fotógrafos que numa tentativa de valorizar a fotografia tentando

se apegar ao valor de atestado do real que esta possuía, acabavam

por construir discursos que dificultaram que esta pudesse ser aceita

no panteão artístico.

“As pranchas da presente obra foram impressas pela única ação da luz,

sem qualquer ajuda do lápis do artista. São as próprias pinturas do sol

e não, como  alguns imaginaram, gravuras da imitação.” (TALBOT, W.

H.Fox, 1844 apud FABRIS, 1998)

Nas discussões sobre o caráter estético da fotografia destaca-se o cé-

lebre texto de Baudelaire sobre o salão de 1859, onde pela primeira vez

se expôs fotografias ao lado da produção pictórica da época. Baude-

laire que já vinha questionando o caráter cada vez mais realístico e

objetivo da pintura alinhado ao gosto burguês, critica arduamente a

fotografia, considerada “espelho do real” inserida nesse contexto.

“Em matéria de pintura, o credo atual das pessoas de sociedade, prin-

cipalmente na França é o seguinte: “Acredito na natureza e só acredito

12

na natureza. Acho que a arte é e só pode ser a reprodução exata da

natureza (...) Assim, a indústria que nos desse um resultado idêntico à

natureza seria a arte absoluta.” Um Deus vingador acolheu favoravel-

mente os desejos dessa multidão. Daguerre foi seu Messias. E então

ela disse para si. “ Como a fotografia nos proporciona todas as garan-

tias desejáveis de exatidão (eles acreditam nisso os insensatos), a arte

é a fotografia.” A partir desse momento, a sociedade imunda precipi-

tou-se, como um único narciso, para contemplar sua imagem trivial no

metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário apoderou-se de todos

esses novos adoradores do sol.” (BAUDELAIRE, 1859 apud ENTLER,

2007, p. 11-12)

A relutância em atribuir à fotografia qualquer valor expressivo era abas-

tecido pelo credo do ato fotográfico como algo mecânico:

“o registro das intervenções do fotógrafo e, portanto, os meios de mar-

car o seu estilo a nível formal, é evidentemente mais limitado do que o

do pintor, que pode além disso jogar com as dimensões da imagem,

com a matéria, com a pasta da cor, mas sobretudo intervir diretamente

pelo gesto da mão.” (BAURET, Gabriel. 2006)

Se por um lado a fotografia sofria ataques pelas suas limitações quanto

às suas possibilidades expressivas, desde seu surgimento esta é muito

comemorada como meio auxiliar da memória. As suas aplicações para

a história da arte e da arquitetura e a possibilidade de reprodução real e

circulação de obras de arte foram tema de vários dos primeiros escritos

sobre o advento da fotografia. A responsabilidade de retratar as obras

de arte fidedignamente antes centrada na figura do ilustrador, vai aos

poucos passando para o fotógrafo.

Para se entender o momento da gênese da fotografia urbana, que

nesse primeiro momento surge no contexto da documentação da obra

de arte/arquitetura, é importante salientar que o papel da fotografia

nesse caso se relaciona com o que ela tem de mais objetivo. São valo-

rizados critérios da pura visualidade, as tomadas devem ser frontais de

edifícios e esculturas, respeitando a perspectiva renascentista, sendo

descartado qualquer tentativa de visualização não ortodoxa. O fotógrafo

era então entendido como um técnico reprodutor da realidade para

meio de estudos.

Rosalind Krauss atenta para uma questão etimológica crucial que

demonstra muito bem o caráter objetivo das fotografias urbanas da ép-

oca. O termo utilizado para descrever as empreitadas que se prestavam

a fotografar elementos urbanos ou naturais era “vistas” diferente do ter-

mo “paisagem” utilizado no discurso estético:

“A palavra “vista” remete além disso a uma concepção de autor em que

o fenômeno natural, o ponto notável, apresenta-se ao espectador sem

a mediação aparente nem de um indivíduo específico que dele registre

o traço, nem de um artista em particular, deixando a “paternidade” das

vistas a seus editores e não aos operadores (como eram chamados

na época) que haviam tirado as fotografias....Nesse sentido, as carac-

terísticas perceptíveis da “vista”, sua profundidade e nitidez exagerada

desembocavam sobre um segundo aspecto, o isolamento de seu ob-

jeto. Efetivamente, o objeto é um “lugar extraordinário”, uma maravilha

natural, um fenômeno singular que vem ocupar essa posição central

da atenção. Essa forma de apreender a natureza do singular se apóia

sobre uma transferência da noção de autor da subjetividade do artista

para manifestações objetivas da Natureza.” (KRAUSS, 2002)

13

1.1

Foi no contexto descrito no item anterior que Charles Marville(1816-1878)

produziu exemplares importantíssimos da fotografia urbana parisiense

ao longo da segunda metade do século XIX.

Atuando desde 1830 como ilustrador (principalmente de paisagens) ele

passou pela rápida mudança de paradigma tecnológico, carregando

consigo os conhecimentos de perspectiva e de luz ( da tradição rena-

scentista) adquiridos ao longo dos anos como desenhista.

Marville nunca chegou a utilizar o Daguerreótipo, tendo sido um dos

primeiros a usar a calotipia profissionalmente no ano de 1851, e algum

tempo depois migrou para o uso de placas de vidro com revestimento

de colódio, que possuía uma excelente nitidez. (SILVA, 2007)

Associado a Blanquart-Evrard, Marville torna-se fotógrafo do Musée

Imperial du Louvre (depois Museu Nacional), trabalhando em um in-

A gênese da fotografia urbana: Charles Marville, o fotógrafo do Barão Haussman.

ventário da arquitetura religiosa do oeste Europeu e principalmente em

temas ligados à capital francesa. Charles Marville fotografa Paris criando

quatro grandes séries que documentaram as transformações urbanas. A

primeira delas foi as promenades e plantações criadas por Haussmann

para o Bois de Boulogne; a segunda série foi constituída pela arquitetura

como palácios, igrejas, escolas, o Hotel de Ville reconstruído; A terceira e

a quarta séries são as de maior interesse para esse trabalho.

Por volta de 1865, a Comissão dos Trabalhos Históricos, já sobre o co-

mando do Barão Haussman, encomenda a terceira destas séries que

foi chamada de Album du Vieux Paris que documentou a cidade antes

das transformações urbanísticas, ele foi encarregado de elaborar 425

vistas das antigas ruas da cidade, prestes a serem destruídas dentro do

plano de re-urbanização. (SILVA, 2007)

14

15Charles Marville, 1868

Charles Marville, 1865Charles Marville, 1868

16

A cidade seria totalmente re-urbanizada, tornando-se um imenso can-

teiro de obras. A “velha” Paris estava sendo totalmente transformada,

no lugar das vielas grandes boulevards, que tanto atendiam à uma de-

manda de uma nova visualidade, quanto se adequavam muito bem à

idéia de tornar mais fácil de se reprimir insurreições. As reformar não se

restringiram à redecorar a cidade. As mudanças atendiam a uma nova

ordem econômica/social global.

“Haussmann promovera a quebra de monopólios estatais visando lu-

cros privados (como a quebra do monopólio da companhia de táxis

e o fomento à fabricação de lâmpadas de rua para a iluminação da

“nova” Paris) e remodelara a cidade de tal modo a não apenas expulsar

a classe trabalhadora do centro para as periferias, mas também para a

circulação de mercadorias e tropas de soldados... Ao homogeneizar os

negócios da cidade, o prefeito de Paris abre campo desempedido para

a livre empresa: os grands magazins serão o signo e o instrumento da

substituição de uma nova forma de capital por outra, que obedeceria

a lógica geral do processo de haussmanização.” (FABRIS, 2008, p.03)

A última série de Marville foi o próprio canteiro das obras gigantescas

abertas por Haussmann. As duas últimas séries foram apresentadas

juntas depois, na Exposição Universal de 1878, sendo colocadas lado

à lado as ruas desaparecidas e aquelas que as substituíram.

Charles Marville, 1870

Charles Marville, ?Charles Marville, ?

17

18

O trabalho de Marville carrega uma importante questão que acom-

panha a teoria fotográfica até os dias de hoje. Travestidas pela pretensa

objetividade, as imagens produzidas pelo fotógrafo e principalmente a

forma como essas são organizadas e exibidas para o público, carre-

gam uma clara intenção de criar um discurso sobre o espaço urbano.

Independente de qualquer questionamento sobre o caráter estético do

conjunto de fotografias, torna-se claro a utilização de recursos formais

na criação desse discurso.

A intenção da Administração Municipal, não era mostrar a estética ur-

bana anterior a Haussmann, nem exprimir a poesia e a alma da antiga

cidade. O objetivo, pelo confronto ente o antigo e o novo, era a valori-

zação da obra do prefeito. As imagens da cidade pregressa deveriam

acusar o caráter insalubre, o aspecto labiríntico e confuso das ruas

condenadas, e para isso o fotógrafo escolhia por exemplo momentos

de bruma cobrindo a cidade, que ressaltavam o caráter sombrio. O que

está implícito nessas atitudes é uma subversão do caráter objetivo e

imparcial atribuído à fotografia.

Essa prática tornou-se cada vez mais comum, a fotografia empregada

para moldar o imaginário coletivo sobre as cidades. A fotografia ser-

vindo como propaganda, legitimando uma visão específica da cidade.

Pode-se dizer que surge aí a idéia de city-marketing que hoje, nas ci-

dades contemporâneas tem sido levada à extremos, e que ameaça a

humanidade de viver em espaços homogeneizados por todo o planeta.

Charles Marville, ?Charles Marville, ?

Charles Marville, ?

19

20

O tipo de empreitada fotográfica de Charlles Marville em Paris, teve

seus análogos em outras grandes cidades no século XIX. Sempre no

âmbito da documentação, e da imagem da cidade institucionalizada,

na retratação dos ícones arquitetônicos. Em São Paulo, nenhum dos

primeiros fotógrafos viajantes a passarem pela cidade ofereciam vistas

da cidade. Só em novembro 1959 o jornal Correio Paulistano traz o

“reclame”:

“VISTAS PHOTOGRAPHICAS da Academia em São Paulo achão-se a

venda no Bazar Paulistano n.36. Aqueles srs. estudantes que dezeja-

rem levar para seus lares uma lembrança do lugar de sua vida academ-

ica acharão nestes lindos quadros mui próprios para tal fim.” (MENDES,

Ricardo, 2004)

Ainda no início da década de 1860 início da década surge o primeiro

álbum de vistas anunciado por um fotógrafo: Jesus Christo Müller.

Anúncio em Correio Paulistano, em outubro de 1860, informa sobre

álbum com trintas vistas:

“dos principais edifícios e ruas desta cidade... tiradas a fotografia”. “Os

srs. quintanistas que têm de retirar-se desta cidade para o seio de suas

famílias e que quiserem levar consigo êste álbum terão assim uma re-

cordação agradável da cidade onde passaram, talvez a melhor época

da vida e onde vieram receber um pergaminho e habilitar-se para ocu-

par os altos cargos sociais, o que sem dúvida seria também agradável

às suas famílias que, não conhecendo a Capital de São Paulo, podem

por meio dêste álbum fazer uma idéia dos principais edifícios e ruas

dela - Jesus Christo Muller.” (MENDES, Ricardo, 2004)

Militão Augusto de Azevedo - Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e Pátio da Cadeia (Sao Paulo), 1862

Militão Augusto de Azevedo - Faculdade de Direito (Sao Paulo), 1862

Militão Augusto de Azevedo, ?

21

22

mídia se apropria dessas imagens, fortalecendo visões superficiais. A

cidade palco da pluralidade, é retratada de forma unívoca, atendendo

a interesses específicos.

Por isso esse trabalho pretende debruçar-se sobre uma produção

fotográfica que foge a essa visão única, alinhada com o poder e as

forças extremas do capital. A busca por uma outra visualidade, perme-

ada pela vivência dos espaços, e que carregue em si a capacidade

de representar as dinâmicas do meio urbano é o que orienta o recorte

feito para selecionar os momentos destacados por esse trabalho.

Nos reclames é possível perceber o caráter propagandista sobre a

imagem da cidade. A edição de álbuns de lembranças com vistas da

cidade continuam sendo elaboradas por diferentes artistas, entre eles

Militão que tempos depois em 1887, reúne o material de 25 anos de

fotografia e elabora um álbum comparativo. A repercussão no jornal A

Província de São Paulo, mostra claramente o caráter caráter progres-

sista, onde persiste a idéia de propagandear a evolução da cidade:

“A Velha e a Nova Cidade de São Paulo – Vimos um álbum comparativo

da cidade de São Paulo em 1862 e em 1887, trabalho da Photograph-

ia Americana, do Sr. Militão, nesta capital. Ahi figuram bairros, ruas,

praças, jardins e edifícios com a sua cor local de 1862 e depois com a

de 1887. É o progresso de São Paulo photographado

...traz-nos as recordações de outros tempos, da simplicidade dos

costumes, do pouco luxo das edificações, mas também da falta de

comodidade e de atividade industrial da velha cidade. O conforto é

agradável e útil... o álbum de vistas photographicas do Sr. Militão tem

um grande valor para se verificar o progresso da província, medido pela

transformação da capital em 25 anos... o trabalho do Sr. Militão vale

mais como fonte de estudo para formação de uma opinião favorável ao

engrandecimento da província do que como obra de arte.” (MENDES,

Ricardo, 2004)

A evolução da história da fotografia urbana de São Paulo, e de qual-

quer outra grande cidade, continua sempre permeada por esse tipo de

fotografia institucional propagandista. Na sociedade contemporânea a

23

No capítulo anterior foi apresentada a gênese da fotografia urbana no

que se refere à um padrão de representação que de certa forma é

reproduzido até hoje, e que consiste numa fotografia pretensamente

objetiva, lisonjeira de uma sociedade burguesa capitalista e que se vê

cada vez mais orientada pelos interesses do grande capital, reforçando

clichês sobre os quais se insiste em construir imagens de cidades

unívocas.

O interesse desse trabalho é justamente examinar uma postura de re-

sistência à supremacia dessa imagem. E dentro dessa linha o trabalho

fotográfico de Atget é de extrema importância por inaugurar um olhar

diferenciado. As misteriosas circunstâncias que cercam a produção

do fotógrafo não impedem que suas imagens tenham sido cooptadas

desde muito cedo por movimentos que buscavam uma outra visuali-

dade. Uma outra forma de enxergar a cidade e suas dinâmicas. Se

Charles Marville retratava grandes perspectivas lisonjeiras da nova Paris

que surgia, da cidade retratada por Atget pode-se dizer o oposto. As

imagens representavam uma visão pré-haussmaniana, uma imagem

fantasmagórica, nos termos de Walter Benjamin, Atget, ao contrário de

Marville, acentua a impressão de abandono e deterioração.

Para a real compreensão do salto que as fotografias de Atget repre-

sentam para a visualidade moderna é preciso entender as discussões

estéticas que aconteciam nesse momento de transição, e que tiveram

como figura central o poeta e crítico de arte Charles Baudelaire. Um

escritor movido pela necessidade de criar mecanismos de represen-

tação que dessem conta das profundas mudanças que ele testemun-

hava.

1.2A “Flanerie” inaugurando o olhar moderno: Baudelaire e Atget.

24

Baudelaire que ávido por retratar a cidade moderna não podia contar

com um repertório / vocabulário que desse conta do novo cenário, já

que a literatura urbana ainda dava seus primeiros passos. As relações

metafóricas então são usadas na falta de um outro referencial, e a ci-

dade é descrita em metáforas médicas, metáforas visuais relacionadas

com a natureza, metáforas orgânicas ou, ainda, metáforas bíblicas:

“Na poesia de Baudelaire, estão presentes as metáforas da morte, da

destruição, da degeneração, da putrefação, da caveira. São alegorias

mais que apropriadas para se mostrar o que ocorria com o corpo da

cidade. São fragmentos figurativos mostrados dispersamente, sem for-

ma, mas nunca uma imagem completa – e isso lhe confere o caráter

alegórico. A imagem é fragmento, ruína.” (MENEZES, 2004, p.154)

Se na literatura Baudelaire tentava abrir a golpes de foice o caminho

para uma linguagem moderna condizente com as novas configura-

ções da sociedade, nas artes visuais essa inquietação demorou para

encontrar respostas. Em suas famosas críticas aos pintores contem-

porâneos de seu tempo, Baudelaire deixava claro a insatisfação de ver

que a pintura ainda não tinha conseguido absorver as mudanças no

cenário da humanidade. E através de suas críticas ele evocava uma

nova postura por parte dos artistas que pareciam cada vez mais en-

voltos pela vida burguesa que os afastava da realidade da cidade. Os

espaços públicos e privados vão se separando cada vez mais. E os

intelectuais parecem também irem se distanciando da coisa pública.

Em 1859, Baudelaire escreve seu célebre texto criticando o Salão de

artes daquele ano à pedido do Sr. Diretor da Revue française Morel.

No texto Baudelaire destila toda sua impaciência com o gosto bur-

guês cada vez mais ávido pela representação verossímil, e pela com-

placência dos artistas da época entregues a satisfazer essa demanda

abandonando o que Baudelaire defendia ser a verdadeira vocação do

artista que era representar o seu tempo. Baudelaire que desde o Salão

de 1846 proclama por uma atitude artística que dê conta das modifi-

cações que acontecem na cidade, mostra toda sua revolta na inserção

da fotografia, banalizada, e até então sem expressão própria inserida

no contexto dos salões de arte.

“todos pintam cada vez melhor, algo que nos assusta, pois nos parece

desolador – no entanto em termos de invenção, de idéias, de tempera-

mento, não há mais do que antes”. (BAUDELAIRE, 1996)

“ninguém está prestando atenção ao vento que há de soprar amanhã,

e todavia o heroísmo da vida moderna nos rodeia e nos pressiona ...

O verdadeiro pintor é aquele que saberá captar o lado épico da vida

atual, fazer-nos ver e compreender como somos grandes com nossas

gravatas e nossas botas lustrosas” (BAUDELAIRE, 1996)

Segundo Nelson Brissac (1996, p.103): “Baudelaire diz que preferiria

voltar aos dioramas cuja “magia grosseira” impõe uma “ilusão útil”, que

prefere contemplar cenários de teatro, em que encontra, expressos

com arte e trágica concisão”, seus mais caros sonhos. “Estas coisas,

25

porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto

a maioria dos nossos paisagistas mente, justamente porque se esque-

cem de mentir.”

Ao contrário da pretensão à verossimilhança - a ocultação de todo

artifício - o poeta defende essas imagens (os dioramas e panoramas)

justamente no que têm de falsidade e grosseria. Um poder de signifi-

cação que deriva, paradoxalmente, da própria singeleza e artificialidade

mecânica dessas paisagens.”

O desafio que Baudelaire propunha era o de transformar em poesia

uma cidade: representar seus personagens, evocar figuras humanas

e situações; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira

protagonista seja a cidade. Com ele, a literatura urbana inaugura novos

aspectos: sons, edifícios, tráfego, tudo isso é matéria literária por fazer

parte da nova consciência que envolve homens e mulheres. Pode-se

afirmar que a literatura modernista nasceu na cidade, e com Baude-

laire.

“Baudelaire nos revela, como num quadro de fisionomias, o que está

interno ao olhar, percepção que na metade do século XIX nos dá a

idéia do Outro, do que não temos controle, que perambula desatento e

aflito, que foge ao olhar e ao verbo. O olhar do flâneur vai de encontro

ao olhar da bela passante na multidão, e o detém, por menos de um in-

stante, mas ao perdê-lo apreende que a Paris do século XIX é um mo-

saico de luzes, movimento, e solidão. A bela passante é esquecida e

relembrada a cada instante … Nesse contexto, no século XIX, Baude-

laire aparece como criador de um paradigma da cidade moderna, ao

assimilar, principalmente, o caráter brusco e inesperado que caracteriza

a vida transitória do homem moderno.” (MENEZES, 2004, p.64)

Ele foi um desses primeiros pensadores que demonstrou, através de

uma percepção instintiva, essas alterações que passaram a caracteri-

zar a vida moderna. Para Baudelaire, o artista tem de estar vinculado

com sua época. Esta é a condição da produção da arte moderna.

Assim, a obra está ligada ao tempo e à história. Existem, pois, artistas

mais ou menos capazes de compreender a beleza moderna. Neste

caso, a modernidade é mais que um período histórico, é atitude, con-

siste em procurar, por uma decisão da vontade de construir uma eter-

nidade particular.

“Ser moderno, para Baudelaire, é tirar do agora o que ele tem de poé-

tico. É antes uma atitude. Mais uma vez ele lembra que a beleza mod-

erna é particular.... Baudelaire quer uma poesia e uma arte que um dia

se torne clássica por ter falado de seu presente.”

“O espaço urbano foi eleito por Baudelaire como locus de interpretação

do social. A cidade natal do poeta, Paris aparece em suas poesias

como musa e objeto. Em sua escrita, a cidade transforma-se no mate-

rial mais poético dentre todos. Baudelaire revela, em sua obra, sintonia

com a época, com o país, com a cidade. Ele viveu intensamente os

anos da revolução burguesa, participou dela, viu a cidade – Paris –ser

remodelada: o solo sob seus pés parecia se mover.“ (MENEZES, 2004,

p.78)

26

A prática dessa literatura em sintonia com as novas configurações que

a cidade toma no fim do século XIX, pressupõe uma postura diferen-

ciada por parte do autor/artista. O Flâneur como figura conceitual que

encarna o observador capaz de enxergar a cidade para além da su-

perfície:

“Se, no século XVII, a flânerie ainda não era de todo possível devido

o aspecto insalubre da cidade a partir do século XIX, as reformas no

espaço urbano – tendo como modelo a Paris de Haussmann – propi-

ciariam o livre passeio pela malha da cidade e com isto favorecer sua

descrição pela literatura... O texto rápido que narra o desenrolar da vida

no dia-a-dia da cidade é a moda que ganha as páginas dos jornais

inaugurando a reportagem.

“Como um ocioso que circula em Paris ... o poeta transmudado no

flâneur tenta levar uma vida paradoxal: estar na multidão sem se en-

volver nela e, junto com ela, ir ao mercado contemplar as mercadorias.”

(MENEZES,2004, p.62)

O flâneur ainda não está condicionado pelo hábito que automatiza a

percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão. Seu con-

tato com a massa urbana é aquele do olhar, ele vê a cidade, e este

método o faz criar em torno de si um escudo. Não sendo um autô-

mato, ele é o ocioso que mapeia a urbe, fazendo referência ao labirinto

emocional despertado pela modernidade.

A figura do Flâneur tem uma relação direta com a fotografia que se

pretende destacar nesse trabalho. Inaugura toda uma “teoria da visão”.

Nelson Brissac Peixoto analisa muito bem essas inovações do olhar,

através dos escritos de Walter Benjamin sobre a obra de Baudelaire,

em seu livro Paisagens Urbanas:

“O tema da flânerie implica uma teoria da visão. Justamente para

mostrar que não se trata de um olhar imediato, como o daquele que

contempla uma paisagem. Baudelaire usa o termo flâneur para definir

o tipo de observação que ele admira no pintor parisiense Constan-

tin Guys, recorrendo para isso a anotações feitas por Poe. Benjamin

observa Baudelaire observando, por meio de Poe, o pintor. Ele usa

a figura do transeunte e a poética baudelairiana como lentes através

das quais se pode ver a vida parisiense. Paris, o objeto da pintura de

Guys, é trazida aos olhos do leitor através de uma série de mediações.”

(PEIXOTO, 1996, p.100)

O olhar flâneur entra em contraponto com a perspectiva renascentista

adotada de imediato pela fotografia do século XIX. Ele é diferente da

contemplação tradicional, do dispositivo perspectivo criado pela pin-

tura. A perspectiva implica um espaço homogêneo e potencialmente

mensurável. Enquanto o olhar do flâneur achata as coisas por sobre-

posição, uma visão múltipla, que permite mais de um acesso a um

objeto.

27

“Desde o renascimento, com a perspectiva, as coisas eram percebi-

das como distribuídas no espaço. O olhar percorria a extensão vendo

antes o que está em primeiro plano, depois o que vem mais atrás e

só por fim o que está no fundo. O olhar avançava em profundidade,

se fazia no tempo e no espaço. Aqui, ao contrário, tudo que está em

determinado lugar é percebido simultaneamente. O espaço perde suas

coordenadas, o fundo se confunde com o primeiro plano.” (PEIXOTO,

1996, p.101)

Uma nova disposição da paisagem. Esse modo de andar, a arquitetura

das galerias, o dispositivo ótico-mecânico dos panoramas, das feiras

e dos jogos infantis inauguram uma nova visualidade. Uma superfície

planar, desprovida de profundidade, em que os elementos são justa-

posto. Onde o olhar se desloca lateralmente, multiplicando os pontos

de vista. Um espaço de agregação de várias perspectivas e lingua-

gens. “as distâncias irrompem na paisagem”, assim como épocas

passadas surgem no momento presente.

As sobreposições tornam-se a experiência fundamental do camin-

hante. Uma outra percepção do espaço, própria de uma espaço ob-

struído, exatamente como as vistas congestionadas das cidades con-

temporâneas. As áreas separadas são apreendidas por acumulação

de diferenças, uma colagem de diversos relevos.

Essa nova forma de captar o espaço se relaciona com as fisionomias

e com o folhetim, fazem parte da vontade de catalogação dos tipos

e lugares, característica do século XIX. A profundidade espetacular da

imagem e a autonomia do lugar recortado do contexto natural. Uma

justaposição de primeiro plano e fundo, perto e longínquo, passado e

presente... construídos através de sobreposições ou seqüências de

diferentes formas de espaço, de descrições, de imagens. (PEIXOTO,

1996)

Porém, na segunda metade do século XIX, toda essa nova visualidade

descrita e que pressupunha uma nova postura na relação com a ci-

dade, não tinha mais espaço. Na Europa industrial, o poeta já não mais

podia viver à parte do mundo que, a cada dia, aceitava o mercado

como regente. Baudelaire é o primeiro moderno, o primeiro a aceitar a

posição desclassificada, desestabelecida do poeta – que não é mais

o celebrador (retratador lisonjeiro da burguesia) da cultura a que per-

tence; é o primeiro a aceitar a miséria e a sordidez do novo espaço

urbano.

Todas as inquietações relativas à uma estética literária moderna en-

caradas por Baudelaire, só foram encontrar análogo na linguagem

fotográfica no projeto de Eugene Atget. Francês, nascido em 1857,

Atget perdeu seus pais ainda criança e foi educado por um tio. Se

tornou marinheiro, viajando por rotas americanas; passou pela car-

reira de ator, até que em 1889 se dedica à pintura e posteriormente à

fotografia.

28

No entanto apesar de sobreviver de fotografia Atget não sucumbiu ao

mercado dominante da época de retratos lisonjeiros burguês. Preferiu

refugiar-se em um projeto sem fim de documentação de Paris, ven-

dendo suas fotos para ateliês de artistas como forma de ganha pão.

“Atget foi um ator que retirou máscara, descontente com sua profissão,

e tentou, igualmente, desmascarar a realidade. Viveu em Paris, pobre e

desconhecido, desfazia-se de suas fotografias, doando-as a amadores

tão excêntricos como ele, e morreu a pouco tempo, deixando uma

obra de mais de quatro mil imagens. (...) Os publicistas contemporâ-

neos ‘nada sabiam sobre aquele homem que passava a maior parte do

tempo percorrendo os ateliês, com suas fotos, vendendo-as por alguns

cêntimos, muitas vezes ao mesmo preço que aqueles cartões-postais

que, em torno de 1900, representavam belas paisagens urbanas en-

voltas em numa noite azulada, com uma lua retocada. Ele atingiu o pólo

da suprema maestria, mas na amarga modéstia de um grande artista,

que sempre viveu na sombra, deixou de plantar ali seu pavilhão. Por

isso, muitos julgam ter descoberto aquele pólo, que Atget já alcançara

antes deles.’ “ (BENJAMIN, 1994)

O obra de Atget está diretamente relacionada com a idéia de corte, de

amputação, de autópsia. Atget realizou uma prática analítica ao frag-

mentar a cidade e transformá-la em um grande mosaico. Esta repre-

sentação está mais próxima daquela do colecionador que classifica e

Eugene Atget, boulevarde de strasbourg 1912.

29

ordena partes ou fragmentos de acordo com proximidades temáticas

ou históricas. Assim como uma coleção que jamais se completa, a

obra de Atget será infinita. E baseado nesta característica de coleção

infinita de fragmentos fotográficos, que a cidade passa a adquirir valor.

As alterações do meio urbano se refletem de forma indireta na imagem

fotográfica. (CIDADE, Daniela Mendes, 2002)

A cidade e a sociedade estavam contaminados pelo orgulho burguês,

e Atget parecia determinado a se opor por meio da (aparente) simpli-

cidade com que tratava suas fotografia às formas espetaculares da

modernização. Suas fotografias pareciam querer suspender a ação

dramática da peça burguesa, para mostrar uma outra visão menos

ilusionista sobre o meio urbano moderno.

“ Foi o primeiro a sanear a atmosfera sufocante difundida pela fotografia

convencional, especializada em retratos, durante a época da decadên-

cia. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: Começa a libertar o objeto

da sua aura, nisso consistindo-o mérito mais incontestável da moderna

escola fotográfica(...)

‘ Buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se

voltam contra a ressonância exôtica, majestosa, romântica, dos nomes

da cidade; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a

água de um navio que afunda(...)” (BENJAMIN, 1994)

Eugene Atget, rue 5 de mail, 1908.

30

Eugene Atget, ?

Eugene Atget, ?

31

32

Marcus Fabris conseguiu sintetizar bem em suas palavras o importante

papel desempenhado por Atget, tanto no que se refere ao saneamento

do fazer fotográfico transformando sua produção no embrião do olhar

moderno, quanto no que se refere à sua postura em relação a cidade,

quando virava as costas para as grandes perspectivas:

“...à margem do mercado fotográfico que se desenvolvia em direção

à representação lisonjeira da burguesia nas famosas “cartes-de-visite”,

ou do crescente mercado da fotografia de paisagem, de lugares exóti-

cos – a produção fotográfica tornara-se aliada da expansão imperialista

–, Atget se tornava um trabalhador tão obsoleto quanto suas “persona-

gens”. Um flâneur em Paris com uma velha câmera, fora do dernier cri

da indústria e do mercado fotográficos, reunia evidências dos proces-

sos acima descritos cifradas em suas imagens. Terminou sua vida na

tristeza e miséria.” (FABRIS, 2008, p.10)

Eugene Atget, au petit dunkerque, 1900.

33

1.3A fotografia urbana no século XX

Já bem no final do século XIX todas as mudanças na sociedade que

vinham se intensificando, finalmente encontram seu análogo nas artes.

Um grupo de pintores imbuídos da vontade de criar uma visualidade

moderna e bastante impactados pela inserção da fotografia no univer-

so das representações, começam um movimento que vai se tornar na

visão tradicional da história da arte o maior rompimento artístico desde

o renascimento: o impressionismo.

Na fotografia, a busca pela aceitação no campo das artes, vai levar

vários fotógrafos- artistas, como David Octavius Hill, Robert Adam-

son, Gustave Lê Gray, Nadar, Antoine Samuel, Adam Salomon, Julia

Cameron à procurar desenvolver as possibilidades plásticas do meio,

tentando elevar a fotografia à categoria de uma arte inspirando-se no

modelo da pintura. Desenvolvem técnicas que buscam se desvencilhar

da verossimilhança com o real que é intrínseca ao registro fotográfico.

Produzindo imagens desfocadas, ou borradas, muitas vezes se aproxi-

mando de impressões de luz e movimento que geram uma ligação

instantânea com os contemporâneos pintores impressionistas. Esse

“movimento” artístico dentro da história da fotografia é conhecido como

pictorialismo. (BAURET, Gabriel. 2006)

Com a entrada do século XX, essas mudanças que vinham acon-

tecendo no campo das artes (com o impressionismo e o pictorialismo)

se difundem e consolidam.

A sociedade vai se adaptando às novas dinâmicas no espaço urbano

já descritas, e pode-se dizer que a abertura do século é marcada

pelo: sensível e pelo individualismo. No campo da política na Europa,

os partidos começam a se organizar com mais eficácia e os tempera-

mentos são contagiados pela anarquia.

34

Grandes revoluções epistemológicas tomam contornos nesse mo-

mento: a psicanálise, a teoria da relatividade, teoria do átomo. Os am-

bientes culturais da época são impregnados por essas novas desco-

bertas além de respirarem a angústia do pré-guerra. No mundo literário:

o culto do eu, a solidão a descoberta da vida interior. (PERSICHETTI,

Simonetta. Notas de aula, 2008)

É nesse contexto, de um início de século cheio de transformações

radicais na sociedade, que surgem, na Europa, os primeiros movimen-

tos das vanguardas artísticas. Antes da primeira guerra surgem o fau-

vismo, cubismo, expressionismo e futurismo; depois até o começo

dos anos 30 surgem: o dadaísmo, surrealismo, abstracionismo, e o

construtivismo. A fotografia ganha uma nova dimensão sendo incor-

porada pela maior parte desses movimentos, ganhando, por conta de

sua gramática, uma importância fundamental em alguns deles como

no Surrealismo. Nesse trabalho interessa destrinchar de que forma as

vanguardas tentavam resolver a questão da imagem da cidade.

Nos Estados Unidos a straight-photography, apesar de ter sido um

movimento restrito à fotografia e deslocado espacialmente, também

pode ser considerado como um dos movimentos de vanguarda, ex-

atamente porque as revoluções de linguagem proposta para a fotogra-

fia também se alinhavam com as novas formas de pensar.

Diante da extensa produção fotográfica do século XX, um recorte é pro-

posto nessa monografia. Além dos momentos abordados, o século XX

ainda foi palco para diversos outros movimentos. Da fotografia humani-

sta francesa do pós guerra, à “subjektive Fotografie” alemã dos anos

50, passando pela produção de vários grandes nomes que em muito

“enriqueceram e desenolveram o patrimônio fotográfico”(referencias

Gabriel Bauret) inclusive no que se refere à fotografia de cidades. No

entanto o recorte proposto por esse trabalho é o de alinhavar os mo-

mentos de gênese de certas posturas, e sendo assim esse primeiro

momento do século XX reúne os principais passos.

1.3.1 Straight photography.

O movimento que culmina na straight photography pode ser analisado

como uma reação ao movimento precedente: o pictorialismo. A par-

tir do momento em que a fotografia começa a encontrar reconheci-

mento no mundo das artes, através do pictorialismo, surge também o

questionamento sobre o desvirtuamento da fotografia como linguagem

autônoma. Abastecido pelo contexto efervescente, onde manifestos

artísticos e salões independentes tomam conta do cenário cultural, um

homem, Alfred Stieglitz, começa a agregar pessoas em torno da idéia

de que o pictorialismo seria cada vez mais uma estilo pertencente ao

século passado, e de que o academicismo em que a fotografia tinha

mergulhado deveria ser derrubado. (PERSICHETTI, Simonetta. Notas

de aula, 2008)

Alfred Stieglitz, terminal,1892. (ainda no pictorialismo)

35

36

Alfred Stieglitz, two towers new york, 1911.Alfred Stieglitz, old and new in new york, 1910.

37

Stieglitz organizou exposições, abriu uma galeria e fundou a revista

Camera Work, organizando aos poucos em torno dessas inciativas a

idéia da Straight Photography. O preceito era de que a fotografia de-

veria construir um caminho pela modernidade, assim como a pintura

começava a fazer, sem no entanto copiar os mesmos mecanismos.

A straight photography não se apresenta como uma simples alteração

nas formas da imagem, à maneira daqueles que se sucedem no âm-

bito dos diversos movimentos da abstração pictórica. Trata-se antes

da afirmação de uma nova concepção do ato fotográfico.

“Procura, de fato, algo de essencial, de necessário, esvaziando-a de

tudo o que essa arte tinha até ali de superficial e de fictício... Nada

de truques com as objectivas especiais no acto fotográfico, excluídos

igualmente os retoques no acto de impressão.” (BURET, 2006)

Alfred Stieglitz encara a fotografia como um ato espontâneo, como

uma relação “direta com a realidade”. Desenvolve uma linguagem que

pretende se despir de tudo o que não fosse necessário, procurando

o que há de essencial. Abolidos os truques, o uso de objetivas es-

peciais assim como retoques no ato de impressão. Acredita que a

arte está fora da manipulação, visando produzir efeitos. Stieglitz pratica

uma fotografia com equipamentos leves o que lhe permite fáceis des-

locamentos e acesso aos exteriores. (BAURET, 2006)

As idéias de Stieglitz sobre a straight photography vão revolucionar o

entendimento do olhar fotográfico, inaugurando a fotografia moderna.

Esse movimento vai influenciar tanto os fotógrafos repórteres como

Henri Cartier-Bresson e Robert Frank, como por outro lado fotógrafos

mais formalistas como Edward Weston, Walker Evans e André Kertesz.Alfred Stieglitz, two towers new york, 1911.

Alfred Stieglitz, the city of ambition, 1910.)

38

Mas se as idéias foram evoluindo gradualmente, foi na fotografia de

Paul Strand que Stieglitz viu a materialização da straight photography:

“uma fotografia sem chiste, sem batota […]: o trabalho é brutalmente

directo, desprovido de qualquer tentação de mistificar um público ig-

norante, incluindo os próprios fotógrafos... Estas fotografias são a ex-

pressão directa da actualidade... A objectividade é a verdadeira es-

sência da fotografia, a sua contribuição e ao mesmo tempo a sua

limitação.” (STIEGLITZ, 1916 apud BAURET, 2006)

Paul Strand (1890-1976), conheceu Alfred Stieglitz através de Lewis

Hine (com quem estudava) quando tinha 17 anos, começou a foto-

grafar pessoas nas ruas de Nova York, oito anos mais tarde ele volta

ao estúdio de Alfred Stieglitz com uma pasta cheia de fotografias, e

impressiona o mestre. No período entre as duas Guerras Mundiais, os

fotógrafos americanos realizaram estudos através de formas e elemen-

tos arquitetônicos, inspirados nas imagens de Stieglitz, no construtiv-

ismo russo e na nova visão gráfica desenvolvida na Alemanha, pelo

grupo Bauhaus.

Paul Strand, 1907. Paul Strand, geometric backyards, 1917.

39

40

As experiências de Paul Strand eram mais formalistas. Sua fotografia

ícone, de 1916 chamada “White Fence” é unanimamente considerada

pelos historiadores como a imagem que marca a ruptura definitiva com

a paisagem pictorialista. Nela são sintetizadas as novas posturas es-

téticas:

“consiste em captar no mundo real formas a maior parte das vezes de

tendência geométrica, e que são, em seguida, valorizadas e arranjadas

na imagem de tal maneira que acabam por parecer abstractas e total-

mente desligadas do seu contexto.” Paul Strand só mostra aquilo que

vê. É exclusivamente pela sua forma de olhar, de isolar, de enquadrar,

de compor, quer dizer pelo tratamento fotográfico da realidade, que ele

consegue revelar todas estas formas espantosas, estas linhas, estes

valores insuspeitos. Com ele, a concepção da fotografia como olhar

singular sobre o mundo ganha verdadeiramente todo o seu sentido,

diferindo assim do picturialismo.” (BAURET, 2006)

As fotografias urbanas de Paul Strand são marcadas por grande for-

malismo, utilizando para isso somente o que podia enquadrar pela sua

camera, angulos inusitados (sejam de cima de janelas ou de baixo),

detalhes arquitetônicos em composições geométricas abstratas, e

pessoas nas ruas formam o repertório de fotografia urbana que mudou

a forma como se entendia fotografia até então.

Paul Strand, The Court New York, 1924. Paul Strand, White Fence, 1916.

41

42Paul Strand, wall street, 1915.

Paul Strand, fifth avenue.Paul Strand, From the viaduct 125th Street, 1915.

43

44

1.3.2 FUTURISMO na fotografia urbana.

O Futurismo foi um dos primeiros desses movimentos de vanguarda

lançando seu manifesto em 1909, a princípio na Itália. Os conceitos

chave são o dinamismo, a velocidade, a simultaneidade, a onipresença

das coisas: tudo se move, tudo corre, tudo está em desenvolvimento.

Uma figura não é estável, aparece e desaparece incessantemente.

(PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008)

A fotografia futurista, ou o conceito desta linguagem nasce no início

do movimento com os irmãos Bragaglia que “criam” o fotodinamismo

futurista. Assim como os participantes do Photo-secession, os futuris-

tas acreditavam numa fotografia com uma linguagem autônoma e não

simplesmente uma técnica de reprodução ou interpretação do “real”.

Os futuristas foram se inspirar em fotografias científicas como as de

Marey para embasar o fotodinamismo, no entanto era clara que as

motivações nas experimentações dos futuristas eram diferentes dos

predecessores:

As pesquisas do fotodinamismo datam desde 1910, mas só entre

1911-13, Arturo e Anton tentam encontrar uma equivalência fotográfica

da pintura futurista, porém indo além de seus predecessores (Marey e

Muybridge), tinham como ambição materializar o invisível de um gesto,

o desenvolvimento do tempo de uma ação, onde a fotografia parece

querer colher a pulsão psíquica que está na origem da ação; diferente-

mente da análise cronofotográfica, preocupada com a captação da

mecânica fisiológica, eles desejavam alcançar a figuração do gesto

repentino e súbito, a sua síntese dinâmica, sem no entanto efetivá-la

através de etapas sucessivas em um movimento linear e contínuo.

(NINO, Maria do Carmo, 2007)

Marey

45

Do ponto de vista técnico o fotodinamismo nasce como fotografia com

altos tempos de exposição, colocando uma nítida recusa em relação

à instantaneidade. A cidade como não poderia deixar de ser estava

presente nas experimentações:

Mario Bellusi - Dinamismo de uma cidade moderna, 1930

irmãos Bragaglia

46

47

CONSTRUTIVISMO na fotografia urbana.

O Construtivismo foi uma das mais importantes vanguardas do início

do século, o movimento estético-político iniciou-se na Rússia. O movi-

mento negava uma “arte pura” e abolia a idéia da arte como elemento

especial da criação humana, separada do mundo cotidiano. A arte, in-

spirada pelas novas conquistas do novo Estado Operário, se inspirava

nas novas perspectivas abertas pela máquina e pela industrialização

servindo a objetivos sociais e a construção de um mundo socialista.

Surge como uma decorrência do futurismo italiano e do cubismo

francês. Adquire características próprias perseguindo o ideal de abst-

ração: despoja-se de qualquer alusão à natureza. Rompe radicalmente

com a arte do passado (da representação do real) e propõe uma nova

linguagem plástico-pictórica: “O mundo da não-representação” (Male-

vitch). De forma genérica configurou-se como a utilização constante de

elementos geométricos, cores primárias, fotomontagem e a tipografia

sem serifa. O Construtivismo teve influência profunda na arte moderna,

contando com várias manifestações: o suprematismo, o De stijl e o

que mais nos interessa no contexto deste trabalho que foi a Bauhaus.

(PERSICHETTI, Simonetta. Notas de aula, 2008)

A Bauhaus foi uma escola criada por Walter Gropius como novo cen-

tro de idéias. A arquitetura e o design eram as principais vertentes. Mas

a fotografia também encontrava sua representação.

Dentre os fotógrafos que podem se dizer construtivistas, o húngaro

Laszlo Moholy-Nagy (1895- 1946) discutia o lugar da imagem na cul-

tura moderna e as transformações necessárias e as funções desta

nova imagem. A fotografia aparecia como suporte de suas investiga-

ções. Seus trabalhos estão de acordo com a filosofia da Bauhaus que

se propunha a encontrar novos materiais e novas utilizações para o

já conhecido.

Ele afirmava que a fotografia é uma das grandes opções para a ima-

gem moderna. Além de suas experimentações em utilizar todas as

alternativas possíveis para compor uma imagem, Moholy-Nagy, tam-

bém escreveu bastante sobre o assunto. Em 1929 ele escreveu o

livro “A nova visão”, onde ele explica suas descobertas em relação

à fotografia: graduação da luz, novos ângulos e uma nova forma de

olhar.

László Moholy-Nagy (American, b. Hungary, 1895–1946)

As fotografias de Moholy-Nagy vão influenciar toda uma geração de

fotógrafos, que partem para o abstracionismo. Entre ele André Kertezs

que também possui uma extensa produção sobre a cidade.

1.3.3

Filippo Masoero - Veduta aerea do foro romano, 1930

48

49

Laszlo Moholy-Nagy, Radio Tower Berlin, 1928.

Laszlo Moholy-Nagy, House painter in Switzerland. 1925. Laszlo Moholy-Nagy. Laszlo Moholy-Nagy.

50

Kertezs saiu de uma área rural da Hungria para a metropolitana Paris

para morar com um tio que tinha a fotografia como ofício. Autodida-

ta tornou-se fotógrafo de rua, levando ao extremo a mobilidade que

máquinas de pequeno formato começavam a propiciar. O contraste da

paisagem rural de sua origem com a metropolitana Paris o impulsionou

a produzir largamente pelas ruas. Em Paris Kertezs chegou a alcançar

o sucesso, trabalhando como free-lancer para revistas como Vu, Art et

Medecine, the London Sunday Times, Berliner Illustrirte Zeitung, e UHU.

Além disso fazia experimentações como sua famosa série distorções

onde trabalha o nu distorcido por espelhos côncavos e convexos.

Em 1936 Kertesz realiza uma viagem para Nova York planejando ficar

pouco tempo, mas com a eclosão da guerra na Europa, ele acaba por

permanecer o resto de sua via na américa. Em Nova York Kertesz é

relegado a trabalhar como fotógrafo de interiores e moda para revistas

da época, alcançando pouca visibilidade na cidade, frustrado Kertesz

passa por um longo período de depressão. Seu trabalho autoral de rua

em Nova York talvez seja o que melhor traduz a sensação de eterno

estrangeiro ao qual ele mesmo se impôs. Com forte dose de experi-

mentalismo formal, Kertesz acumula uma extensa produção, que só

no final de sua vida quando passa a se dedicar novamente a séries

autorais alcança o devido reconhecimento. (PERSICHETTI, Simonetta.

Notas de aula, 2008)

André Kertezs.André Kertesz, Shadows, 1931.

51

52

André Kertezs. André Kertész, on the boulvards, 1934. André Kertész, Lost cloud, 1937..

André Kertesz, fireworks at longchamps, 1930..

53

54

André Kertesz, new york, 1970. André Kertesz, white horse, 1962. André Kertesz, roof..

André Kertesz, Torre Eiffel, 1940.

55

56

1.3.4 Surrealismo na fotografia Urbana.

O Surrealismo foi uma corrente que evoluiu do movimento dadaísta.

Os Surrealistas criticavam a negação de tudo proposta pelo Dadaísmo

e se baseavam fortemente na psicanálise e no marxismo.

André Breton que se dedicava a literatura foi um dos fundadores do

movimento, e autor do seu manifesto. Como médico Breton era um

estudioso de Freud, cuja teoria do inconsciente abria à pesquisa uma

vastíssima região da psique.:

“No inconsciente pensa-se por imagens, e, como a arte formula ima-

gens, é o meio mais adequado para trazer à superfície os conteúdos

profundos do inconsciente.”(ARGAN, 1992, p.360)

O manifesto surrealista foi criado em Paris, em 1924. Nele são lança-

dos as bases da estética surrealista, que segundo a análise de Argan:

“O inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica explorada com

maior facilidade pela arte, devido à sua própria dimensão da arte. Se a

consciência é a região do distinto, o inconsciente é a região do indis-

tinto: onde o ser humano não objetiva a realidade, mas constitui uma

André Kertesz, Place Gambetta, Paris, 1928-29.

57

unidade com ela. A arte, pois, não é representação, e sim comunica-

ção vital, biopsíquica, do indivíduo por meio de símbolos. Tal como na

teoria e na terapia psicanalíticas, na arte é de extrema importância a

experiência onírica, na qual coisas que se afiguram distintas e não rela-

cionadas para a consciência revelam-se interligadas por relações tanto

mais sólidas quanto ilógicas e incriticáveis.” (ARGAN, 1992, p.360)

A livre associação e a análise dos sonhos, ambos métodos da psi-

canálise freudiana, transformaram-se nos procedimentos básicos do

surrealismo, embora aplicados a seu modo. Dessa forma o movimento

surrealista era polarizado: “o automatismo abstrato por uma parte; o

academicismo ilusionista por outra parte [...]” (KRAUSS, 2002, p.109).

Eram imagens ligadas ao universo dos sonhos e da livre associação,

unidas “em torno do conceito da imagem metafórica concebida irracio-

nalmente” (KRAUSS, 2002, p.109).

Por meio do automatismo, ou seja, qualquer forma de expressão em

que a mente não exercesse nenhum tipo de controle, os surrealistas

tentavam plasmar, seja por meio de formas abstratas ou figurativas

simbólicas, as imagens da realidade mais profunda do ser humano: o

subconsciente.

“...quer no emprego de procedimentos fotográficos e cinematográficos,

quer na produção de objetos “de funcionamento simbólico”, afastados

de seus significados habituais, deslocados (o ferro de passar cheio de

pregos, a xícara de chá forrada de pele) Todavia, também se utilizam

as técnicas tradicionais, principalmente entre os artistas mais interes-

sados no conteúdo onírico das figurações, seja porque, sendo de uso

corrente, prestam-se muito bem à “escrita automática”, seja porque

a normalidade ou mesmo a banalidade da imagem isolada ressalta a

incongruência ou o absurdo do conjunto (como quem narra as coisas

mais incríveis da maneira mais normal e aparentemente objetiva).” (AR-

GAN, 1992, p.361)

Os surrealistas talvez tenham sido os que melhor percebem o para-

doxo da fotografia. Ela é índice, ela é rastro, ela é pista. Paradoxal-

mente também é realidade construída por um signo, a presença trans-

formada em ausência, em representação, em espaços, em escritura.

Os surrealistas se apropriaram da idéia “da fotografia como documen-

to”, como um fragmento da realidade. André Breton afirmou que a ima-

gem e a palavra em estado selvagem não representavam o real, mas

o apresentavam. A ação de fotografar seria a de tornar visível a escrita

automática do mundo, aumentando a quantidade de imagens pelas

quais o mundo se apresenta. Esse “tornar visível” o mundo estaria me-

diado pelo aparelho fotográfico, que modelaria a realidade conforme

seus próprios termos. Dentro desse contexto fica fácil entender o in-

teresse dos Surrealistas pela obra de Eugene Atget, o ato de tornar

visíveis objetos familiares deslocados de seu contexto e função.

58

Segundo Benjamin, as fotografias de Atget são precursoras da foto-

grafia surrealista:

“ (...) Esse lugares não são solitários, e sim privados de toda atmosfera;

nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda

não encontrou moradores. Nessa obras a fotografia surrealista prepara

uma saudável alienação do homem com relação a seu ambiente. Ela

liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda in-

timidade cede lugar à iluminação dos pormenores.” pelo registro de

lugares solitários, alienados do homem, “em que toda intimidade cede

lugar à iluminação dos pormenores” (BENJAMIN, 1994).

E foi na própria Paris que se deram as experiências do grupo de sur-

realistas pela cidade. As experiências visavam transformar qualquer

elemento da paisagem em objeto de valor, através de analogias e en-

trecruzamentos de idéias. Para o pensamento analógico, qualquer ele-

mento poderá ser um sinal para revelar o desconhecido e desencadear

idéias e projetos. Segundo Breton:

“os objetos da realidade não existem apenas como tal: a observação

dos traços constitutivos do mais banal de todos eles oferece-nos –

num abrir e fechar de olhos – uma admirável imagem-adivinha, a qual,

incorporada nesse mesmo objeto, nos fala, com toda a veracidade, do

único objeto real e atual, do nosso desejo”. (BRETON apud MENDES,

2002, p.96)

Eugene, Atget. Eugene, Atget..

59

60

cas, pois só o espanto consegue excitar a lógica, sempre tão fria, e

obrigá-la a estabelecer novas associações”” (MENDES, 2002, p.97)

Para ilustrar os procedimentos de fruição da cidade experimentados

pelos surrealistas, segue a série fotográfica “autópsia da cidade” de

Daniela Mendes, realizada na cidade de Paris em 2000, inspirada jus-

tamente nas práticas dos surrealistas. Daniela leva à cabo a ideia de

fragmentar e recombinar.

“Esses fragmentos de tempo e de espaço, captados pela câmara

fotográfica, estão relacionados com a percepção da cidade. A reunião

dos fragmentos nos mostra uma outra cidade, aquela que não coincide

com a cidade real, mas que coincide com a que temos em nossa

mente, no nosso inconsciente.” (MENDES, 2002, p.134)

A relação entre os diversos fragmentos que compõe o trabalho de

Daniela Mendes não é estabelecida por questões plásticas, formais

nem por associação temática.

“O corte, e consequentemente a fragmentação, por si próprios não

permitem que exista uma ligação desta maneira. Na sequência aqui

apresentada como representação de um percurso, apesar da imagem

conter elementos que podem ser identificados com o espaço físico, o

que se mostra é justamente esta aparente falta de ligação, produzindo

uma sensação de inquietante estranheza.” (MENDES, 2002, p.138)

Outro grande representante do universo onírico dos surrealista, na

Existiam determinados lugares que os surrealistas costumavam fre-

quentar. A partir de três pontos, marcados no mapa formando um triân-

gulo, as possibilidades de percursos eram múltiplas. Qualquer imagem

dentro deste percurso podia ser utilizada, mesmo que a paisagem real

seja medíocre, o flâneur a transforma em um outro sentido. Assim,

uma outra cidade passa a ser revelada, resgatando o que é deixado

à margem, como as colagens onde os objetos revelam os desejos

inconscientes através do encontro de imagens.

O procedimento de tirar a fotografia do contexto inicial e reagrupar ima-

gens segundo o hásard faz a imagem narrar outras histórias, distintas

daquelas que representavam originalmente, passando a adquirir novos

significados. O eterno percorrer possibilita todo o tipo de encontro.

E é neste sentido que os surrealistas em Paris deixaram-se levar por

caminhos não anteriormente estabelecidos.

“As collages, assim como a hipnose, a escrita automática, os textos co-

letivos e os “cadáveres deliciosos” são processos onde o “acaso” cos-

tuma manifestar-se. Estes procedimentos foram adotados pelos sur-

realistas como um meio de conhecimento da realidade e do psiquismo,

da beleza que poderia resultar de uma atividade inconsciente ocultada

pelo racionalismo... pelo fato de não racionalizarmos aquilo que preten-

demos, o resultado é muito superior porque não conduzimos o nosso

pensamento a idéias objetivamente fechadas e “a surpresa provocada

por uma nova imagem ou por uma nova associação de imagens deve

ser encarada como elemento primordial do progresso das ciências físi-

61

Autópsia da cidade, Daniela Mendes Cidades, 2000.

62

fotografia urbana, é Brassai. Nascido na Hungria em 1899, encontrou

em Paris seu grande tema. Revelou a cidade nos mais variados as-

pectos, dos desenhos anônimos rabiscados em paredes às grandes

personalidades da vida cultural da capital francesa.

Embora não fosse oficialmente alinhado ao surrealismo, Brassaï man-

teve uma relação próxima com os integrantes do movimento, e uma

contribuição reincidente expondo vários de seus trabalhos na revista

Minotaure, editada pelo grupo na década de 30, além de incluir suas

imagens em algumas das principais obras do escritor-agitador André

Breton, como Nadja e L’amour fou.

Sua série fotográfica Paris de nuit, que foi publicada em 1932, inaugura

toda uma nova visualidade sobre Paris, revelando aspectos até então

ocultos da cidade. As imagens parecem possuir a crueza reveladora

dos sonhos.

“No mundo de Brassai à noite, as sombras revelam mais do que escon-

dem, antropomorfizadas pelas fontes de luz que as criam. As grades

Art Nouveau que decoram as estações de metro da cidade assumem

personagens sobrenaturais, isolado pela lente do fotógrafo contra a

escuridão. Prostitutas e dândis emergem como espectros luminosos

nas entradas de bordéis e na lâmpada acesa nas esquinas.” (SAND,

Michael. 1994)

Ao comentar esse trabalho, Graham Clarke assinala a capacidade de

Brassaï.Brassaï.

63

64

Brassaï perceber a metrópole francesa como um “território de ligações

ilícitas e prazeres privados”. “Tudo está em fluxo, um espaço psicológi-

co da imaginação que tem pouco a ver com a arquitetura da cidade”.

(LOUZAS, 2003)

A posição de Brassaï em relação ao movimento Surrealista, próxima

mas ao mesmo tempo independente, reflete-se numa frase publicada

na apresentação de Paris de nuit:

“O efeito surreal de minhas imagens nada mais é do que a realidade

tornada fantástica por meio de uma visão particular. Tudo o que eu quis

expressar foi a realidade, porque nada é mais surreal... Meu objetivo

constante é fazer as pessoas verem um aspecto da vida diária como

se elas tivessem descoberto isso pela primeira vez.” (BRASSAI, 1932

apud SAND, 1994)

Desafios potencializados: As novas configurações do meio urbano.

Brassaï. Brassaï. Brassaï.

65

12Desafios potencializados: As novas configurações do meio urbano.

Como dito anteriormente, vários outros movimentos culturais se se-

guiram às vanguardas modernas do século XX. O recorte proposto no

trabalho visa a identificação de momentos de gênese de certas práti-

cas que ainda serão desenvolvidas ao longo do século XX por diversos

grandes nomes da fotografia.

Para que esse trabalho possa refletir melhor quais foram as mudan-

ças no meio urbano que vêem desafiando a fotografia urbana contem-

porânea a dar um passo à frente na representação das cidades, nesse

subcapítulo serão elencados alguns importantes conceitos trabalha-

dos por autores que se debruçaram sobre o estudo dessas condições

urbanas a partir da segunda metade do século XX.

Se as mudanças vividas pela sociedade no final do século XIX trans-

formaram completamente as cidades, o que se viu no século XX foram

todas as questões que estavam sendo elaboradas naquele momento

alcançarem patamares inimagináveis mesmo para os mais eloquentes

críticos daquela época como Baudelaire.

Após o final da segunda grande guerra poderosas forças econômicas

dominaram a Europa e criaram uma reação que teve seu auge nas

manifestações de maio de 68. O texto que serviu de base para es-

sas manifestações são de autoria de Gui Debord, no livro Sociedade

do Espetáculo de 1967, que por sua vez tem como base as teorias

marxistas. A questão central é o espetáculo como forma de alienação

visando a dominação do proletariado pela burguesia e assim a questão

da imagem torna-se o foco dessas discussões.

66

“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social

entre pessoas, mediatizada por imagens... Toda a vida das sociedades

nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia

como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era dire-

tamente vivido se esvai na fumaça da representação. (DEBORD, Guy

apud JAQUES, 2003)

A relação real com a “vida” parece não poder mais ser restabelecida,

as imagens se desligam do seu referente e passam a fazer parte de

um sistema próprio. O espetáculo movimenta-se autonomamente,

tornando-se a inversão da realidade. A cidade como palco da vida

moderna torna-se o grande espaço do espetáculo.

“Tornando-se cada vez mais idêntico a si mesmo, e aproximando-se o

máximo possível da monotonia imóvel, o espaço livre da mercadoria é

a cada instante modificado e reconstruído. A história econômica, que

se desenvolveu intensamente em torno da oposição cidade-campo,

chegou a um tal grau de sucesso que anula ao mesmo tempo os dois

termos.” (DEBORD, Guy apud JAQUES, 2003)

O espaço espetacular também era o cenário das discussões propos-

tas por Manuel Castells. A partir da década de 1980 ele começa a se

concentrar no papel das novas tecnologias de informação e comunica-

ção na restruturação econômica no final do século. Segundo Castells

essas novas tecnologias conjugadas com o contexto de restruturação

da ordem mundial criaram uma nova sociedade “em rede”, uma eco-

nomia “informacional/global” e uma cultura da “virtualidade real”.

“O surgimento de uma economia poderosa e competitiva na região

do Pacífico e os novos processos de industrialização e expansão de

mercado em várias regiões do mundo ampliaram o escopo e a escala

da economia global, estabelecendo uma base multicultural de interde-

pendência econômica. Por intermédio da tecnologia, redes de capi-

tal, de trabalho, de informação e de mercados conectaram funções,

pessoas e locais valiosos ao redor do mundo ao mesmo tempo em

que desconectaram as populações e territórios desprovidos de valor

e interesse para a dinâmica do capitalismo global.” (CASTELLS, 2003)

Castells chama atenção para o quanto esse novo cenário global/vir-

tual, dirigido pelo paradigma informacional é diferente de todo o con-

texto onde a humanidade já produziu cultura historicamente. O com-

partilhamento do espaço e do tempo, sob determinadas condições:

produtivas; de poder; e a “experiência modificada por seus projetos”;

sempre foram importantíssimas ao significado de cada cultura e na

diferenciação da evolução, que inclui a produção de artefatos culturais

como as cidades.

“No paradigma informacional surgiu uma nova cultura a partir da supe-

ração dos lugares e da invalidação do tempo pelo espaço de fluxos e

pelo tempo intemporal: a cultura da virtualidade real, chamo de virtu-

alidade real um sistema em que a realidade em si (ou seja, a existên-

cia material/simbólica das pessoas) está imersa por completo em um

67

ambiente de imagens virtuais, no mundo do faz-de-conta, em que os

símbolos não são apenas metáforas, mas abarcam a experiência real.”

(CASTELLS, 2003)

Dentro deste contexto onde toda a humanidade está destinada à imer-

gir, é possível prever que as cidades tendem a se tornar cada vez

mais genéricas. As imagens das cidades, a princípio fruto de culturas

distintas, acabam se parecendo cada vez mais. Dentro da lógica da

economia global as cidades precisam seguir um modelo internacional

extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores multina-

cionais dos grandes projetos de revitalização urbana.

Além disso as cidades incharam e se tornaram megalópoles com áreas

corporativas conectadas por fluxos de informações que aproximam

áreas desenvolvidas das grandes metrópoles espalhadas por todos os

continentes, enquanto periferias destas mesmas tornam-se cada vez

mais miscigenadas e excluídas. A dicotomia entre campo e cidade se

esmaeceu formando grandes áreas com ocupações híbridas sujeitas

à lógica da velocidade.

A memória da cultura local (que deveria ser preservada) se perde, e

em seu lugar são criados grandes cenários para turistas. Condomínios

fechados, praças de alimentação e corredores de shopping-centers.

O processo dito de revitalização é indissociável dessas estratégias de

marketing urbano que buscam construir uma nova imagem para a ci-

dade que lhe garanta um lugar na nova geopolítica das redes interna-

cionais.

“A grande originalidade desta cidade gerada simplesmente abandonar

o que não funciona - que já sobreviveu a sua utilização em quebrar

o asfalto-idealismo com martelos neuméticos realismo e aceitar qual-

quer coisa que cresce no lugar. Nesse sentido, a cidade gerada abriga

tanto o primitivo e o futurista: na verdade, apenas estas duas coisas.

A cidade genérica é tudo o que resta do que a cidade costumava ser.

A cidade genérica é a pós-cidade a ser desenvolvida no local do ex-

cidade.” (KOOLHAAS, 1995)

Este modelo visa basicamente o turista internacional (e não o habitante

local) e exige um certo padrão mundial, um espaço urbano tipo, pa-

dronizado. Como já ocorre com espaços padronizados das cadeias de

grandes hotéis internacionais, ou ainda dos aeroportos, das redes de

fast food, dos shopping centers, dos parques temáticos ou dos con-

domínios fechados,que também fazem com que as grandes cidades

mundiais se pareçam cada vez mais, como se formassem todas uma

única imagem: paisagens urbanas idênticas, ou talvez mesmo como

diz Rem Koolhas, genéricas.

Marc Augé é outro autor que se debruça sobre esses espaços pa-

dronizados. No seu conceito de “não-lugar” ele sintetiza as característi-

cas dessa nova espacialidade ao qual a humanidade parece destinada

a habitar.

“Se um lugar pode definir-se como lugar de identidade, relacional e

68

histórico, um espaço que não pode se definir como espaço de identi-

dade nem como relacional nem como histórico, definirá um não lugar. A

hipótese aqui defendida é que a sobremodernidade é produtora de não

lugares, quer dizer, de espaços que não são em si lugares antropológi-

cos e que, contrariamente a modernidade baudelairiana, não integram

os lugares antigos: estes, catalogados, classificados e promovidos à

categoria de “lugares de memória”, ocupam ali um lugar circunscrito e

específico.” (AUGÉ, 1994, p.73)

Diante desse cenário que parece inevitável Rem Kolhaas no seu livro

de 1998 S, M, L, XL, deixa de lado a crítica pela crítica e desenvolve

reflexões muito pertinentes sobre esses espaços genéricos exploran-

do questões até então intocadas.

“Estas são as cidades contemporâneas, como os aeroportos contem-

porâneos, ou seja, “todos iguais”? É possível teorizar esta convergên-

cia? E em caso afirmativo, qual configuração finalmente aspirar? A

convergência é possível apenas com o custo de desfazer-se da iden-

tidade. Isto é geralmente visto como uma perda. Mas a escala que

ocorre, deve significar algo. Quais são as desvantagens da identidade

e, inversamente, quais são as vantagens de vazio? E se essa homoge-

neização acidental - e habitualmente deplorada - fosse um processo

intencional, um movimento consciente de distanciamento da diferença

e aproximação com a semelhança? E se estamos sendo testemunhas

de um movimento libertação global: “abaixo o caráter!”? O que resta se

se remove a identidade? O genérico?” (KOOLHAAS, 1995)

A questão da identidade é uma questão central na discussão da ci-

dade genérica. O marketing urbano reduz o que antes era cultural-

mente peculiar e único nas cidades à simplificações rasas, que se

aproximam de logotipos da cidade. A imagem da cidade culturalmente

diferenciada passa por um processo de repetição e midiatização que

a esgota.

“Há uma redundância calculada na iconografia que a Cidade Genérica

adota. Se linda como a água, os símbolos inspirados nela se espalham

por todo o seu território. Se tem uma montanha cada folheto menu,

bilhete ou cartaz insistir em uma colina, como se o único que conven-

cesse fosse uma tautologia ininterrupta. Sua identidade é como um

mantra.” (KOOLHAAS, 1995)

Conhecer novas cidades praticando turismo deixou de ser um exercí-

cio de entrar em contato com uma nova cultura para se transformar em

consumo de imagens já saturadas. A experiência midiatizada antecede

a experiência real esvaziando-a e tirando seu sentido.

“Os turistas, por exemplo, fazem viagens quase imóveis, sendo depos-

itados nos mesmos tipos de cabine de avião, de pullman, de quarto

de hotel e vendo desfilar diante de seus olhos paisagens que já en-

contraram cem vezes em suas telas de televisão, ou em prospectos

turísticos. Assim a subjetividade se encontra ameaçada de paralisia.”

(GUATARRI, 1992, p.169)

“Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana

69

considerada como consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente

à distração de ir ver o que já se tornou banal. A ordenação econômica

dos frequentadores de lugares diferentes é por si só a garantia da sua

pasteurização. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo,

retirou-lhe também a realidade do espaço.” (PEIXOTO, 1996)

Diante deste cenário onde a vida é permeada por tecnologias da in-

formação e as cidades se tornaram cada vez mais parecidas entre si,

uma mudança profunda na sociedade se configurou. A velocidade

dos fluxos de informação fazem com que tudo circule com mais facili-

dade, um paradoxo se coloca:

“Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas, os chips

da informática, as filiais industriais e, ao mesmo tempo, tudo parece

petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças se esbatem

entre as coisas, entre os homens e os estados das coisas. No seio

de espaços padronizados, tudo se torna intercambiável, equivalente.”

(GUATARRI, 1992, p.169)

Guatarri no seu livro caosmose alarda sobre a necessidade de se pen-

sar a subjetividade dentro desse novo contexto. Os novos recursos

técnicos desorientam a experiência da vida urbana moderna afetando

a subjetividade do homem. É a própria metrópole que passa a ditar

comportamentos, modo de vida e sensibilidade, impondo e alterando

os modos de vida. Segundo seus escritos, o ser humano contemporâ-

neo é “fundamentalmente desterritorializado” justamente porque sua

relação com o tempo e espaço não obedecem mais a lógica historica-

mente estabelecida.

“O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado.

Com isso quero dizer que seus territórios etológicos originários – cor-

po, clã, aldeia, culto, corporação... - não estão mais dispostos em um

ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos

incorporais. A subjetividade entrou no reino de um nomadismo gen-

eralizado. Os jovens que perambulam nos boulevards, com um walk-

man colado no ouvido, estão ligados a ritornelos que foram produzidos

longe, muito longe de suas terras natais. Aliás, o que poderia significar

“suas terras natais”? Certamente não o lugar onde repousam seus an-

cestrais, onde eles nasceram e onde terão que morrer! Não têm mais

ancestrais; surgiram sem saber porque e desaparecerão do mesmo

modo!” (GUATARRI, 1992, p.169)

No que se refere à representação das cidades, todas essas mudan-

ças descritas impedem a humanidade de formar uma imagem clara do

ambiente em que está imersa. O espaço é sobrecarregado por dimen-

sões mais abstratas. As cidades tornam-se tão extensas e complexas

que não é mais possível formar representações mentais destas.

“A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imaginabili-

dade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Pres-

supunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, através

da experiência e da observação ocular. Mas a configuração atual im-

70

pede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não

permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma lo-

calização, correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano.”

(PEIXOTO, 1996, p.417)

A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais

com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são

mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem con-

ceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência... Hoje

têm-se sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional

de realidades radicalmente descontínuas. Um espaço abstrato, ho-

mogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade _ uma

inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência

individual. (PEIXOTO, 1996, p.417)

As imagens técnicas que desde meados do século XX já pareciam

ter saturado a humanidade, provocando movimentos como a pop art,

ainda ganharam novo fôlego com as tecnologias digitais no final do

século XX. A facilidade na produção de imagens digitais por um lado

favorece a democratização, e por outro massifica e dificulta a leitura

crítica das imagens, a impressão que se tem é de que quanto mais se

retrata, mais as coisas nos escapam.

“Horizonte saturado de inscrições, depósito em que se acumulam

vestígios arqueológicos, antigos monumentos, traços de memória e o

imaginário criado pela arte contemporânea. O olhar é um embate com

uma superície que não se deixa perspassar. Cidades sem janelas, um

horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superfície que enruga,

fende, descasca. Sobreposições de inúmeras camadas de material,

acúmulo de coisas que se recusam a partir. Tudo é textura: o skyline

confunde-se com a calçada; olhar para cima equivale a voltar-se para o

chão. A paisagem é um muro.” (PEIXOTO, 1996, p.13)

Ao mesmo tempo não se pode pretender numa atitude romântica voltar

ao tempo das cidades pré-modernas, é preciso enfrentar a “nova” re-

alidade urbana, e dentro dessa perspectiva resgatar a subjetividade.

Como disse Martin Barbero:

“... seguir desejando nostalgicamente o tempo de uma cidade sem

deterioração e caos não é só escapar por uma brecha metafísica aos

desafios da história mas nos impedir de assumir ativamente os materiais

dos quais está feita – e com os quais construir – a cidade de hoje: suas

territorialidades e sua desterritorialização, seus medos e suas narrativas,

seus jogos e seu caos, seus trajetos a pé e de ônibus, seus centros e

sua marginalidade, seus tempos e seus calendários.” (MARTÍN-BAR-

BERO, 2004, p.275)

O cenário descrito levanta questões centrais para esse trabalho: Es-

tará a humanidade destinada à habitar o meio absorto que inventou

pra si mesma?Ainda será possível por meio da produção de imagens

resignificar as paisagens urbanas, por hora opacas, e restituir-lhes o

significado?

Possíveis caminhos na fotografia urbana contemporânea

71

13Possíveis caminhos na fotografia urbana contemporânea

Nesse contexto explicitado no item anterior, a linguagem fotográfica

(claro que estamos falando das imagens de exceção e não da grande

massa fotográfica que vem sendo produzida) se voltou cada vez mais

à esfera intimista, de caráter subjetivo e experimental. Uma subversão

da ideia da fotografia como representante fiel da realidade.

Apesar do cenário amedrontador traçado pela reunião de escritos do

item anterior, alguns fotógrafos ainda tentam lançar luz sobre essas

paisagens, e conscientes da opacidade do meio, vão contribuindo

para que tentemos vislumbrar o cenário no qual uma desbaratinada

humanidade vai escrevendo as primeiras páginas do recém iniciado

século XXI. São artistas que parecem mergulhar bem fundo dentro de

si mesmos para resgatar imagens. Deslocam seus sentidos, provo-

cam estranhamentos que permitem novas leituras. Assumem a inca-

pacidade da pretensão documental e seguem um olhar interpretativo.

Afastam-se do real, aproximando-se do imaginário. Utilizam-se de sua

iconosfera, de seus repertórios urbano/imagéticos, apegando-se às

poucas experiências que lhes pareçam realmente suas, numa tentativa

heróica de resignificar as opacas paisagens contemporâneas.

A seguir segue uma análise crítica de séries isoladas de quatro fotógra-

fos contemporâneos.

72

3.1 Michael Wesely – Potzdamer Platz

Michael Wesely nascido em 1963 em Munique é um fotógrafo que

vem perseguindo a idéia de dilatar os tempos de exposição de suas

fotografias . Para esta monografia a séria mais significativa é o conjunto

realizado na Potzdamer Platz, entre o ano de 1997 e 1999.

Em um primeiro contato com essas imagem prevalece um certo es-

tranhamento, uma massa confusa de elementos urbanos sobrepostos

em camadas, parece tratar-se de uma fotografia com múltiplas ex-

posições, juntando em uma só imagem o registro de mais de um lugar

. Ao mergulharmos na análise mais detalhada da fotografia é possível

perceber indícios que permitem a reconstrução da lógica constitutiva

desta imagem, que remete diretamente à técnica utilizada.

Para entender como as fotos foram realizadas tecnicamente, é impor-

tante conhecer um pouco do histórico da produção de Wesely, e das

questões conceituais que perpassam o trabalho.

Segundo Boris Kossoy, o ato fotográfico “pressupõe um inevitável re-

corte espacial e uma interrupção temporal em relação ao objeto do

registro em seu continum no real (Fragmento-congelamento)”. Michael

Wesely demonstrava vir perseguindo a idéia de mexer com a relação

dessa interrupção temporal, trabalhada tradicionalmente na fotografia,

em diversos de seus trabalhos autorais. Seja no retrato, seja na foto-

grafia urbana, a idéia de condensar em uma imagem uma seqüência

de instantes permanece.

Lochkamera Portraits, 1988.

8 min. Dorothee von Windheim12 min. Kengiro Azuma6 min. Josef Paul Kleihues

Madrid, 1991.

73

Na série sobre a praça alemã Michael Wesely já tinha reunido a ex-

periência necessária para adaptar um dispositivo com filtros, calcu-

lados de forma que o seu negativo de médio formato pudesse ficar

exposto pelo período de aproximadamente dois anos, possibilitando o

registro de “ um número infinito de momentos individuais sobrepostos

formando uma complexa estrutura de fragmentos da realidade”1 re-

alidade que no caso remetia ao processo de reconstrução da icônica

praça de Berlim.

Para compreender as motivações do fotógrafo ao registrar a praça

levando ao extremo a idéia de dilatação do momento, faz-se necessário

entender também o contexto do lugar na reestruturação urbana ocor-

rida em Berlim após a queda do muro. A cidade como um todo vinha

passando por um grande processo de transformação, a questão so-

bre a nova imagem que a cidade deveria formar tornou-se central. O

momento propiciava uma grande discussão pública entre defensores

da imagem da tradição, da cidade histórica, e os de uma cidade capi-

tal do novo mundo corporativo. A reconstrução da Potsdamer Platz,

por sua importância histórica, representava um ícone desse processo.

A quantidade de propostas arquitetônicas para a ocupação da praça

representava o interesse por trás da discussão que ultrapassava a

relevância apenas do lugar.

1 Palavras do próprio autor no seu site oficial (http://www.wesely.org), em tradução livre.

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99

74

Uma afirmação do fotógrafo extraída de uma entrevista2 com o arquite-

to Paulo Tavares torna-se imprescindível para compreensão das suas

motivações: “eu teria fotografado o processo de construção da praça

independente do que estivesse sendo construído”. Essa informação

é importante para entender que o interesse do fotógrafo estava no

processo de transformação vivido pela cidade e não exatamente na

imagem que se pretendia construir. Em meio a todas as discussões

que permeavam a construção dessa nova imagem de Berlim, ele na

sua perspectiva de artista talvez tenha sido quem melhor conseguiu

sintetizá-la, “todos buscando uma imagem de Berlim e você estava

fotografando esta busca” resumiu o entrevistador Paulo Tavares.

A análise das fotografias nos permite reconstruir através de indícios

a realidade à qual esta se remete e através desse processo gerar al-

gumas reflexões. A invisibilidade de alguns elementos é uma delas.

Como disse o próprio autor da fotografia: “Tudo está lá, mas nem tudo

é visível.” A abertura do diafragma durante dois anos, nos permite su-

por que em algum grau, tudo está representado naquele negativo: as

figuras humanas, o movimento dos trabalhadores, as luzes da cidade

no período da noite. É como se tudo estivesse sobreposto em cama-

das, sendo que a perenidade e a intensidade de luz incidida ditam o

quão visível os elementos se tornam na imagem final.

Nesse aspecto a fotografia de Michael Wesely se relaciona com as

hitóricas primeiras imagens de paisagens urbanas feitas por Daguerre

2 http://www.vitruvius.com.br/entrevista/wesely/wesely.asp

em 1839. As fotografias que na época prescindiam de um tempo de

exposição bastante elevado (entre 15 e 30 minutos) para fixação da

imagem, mostram um espaço urbano vazio, as figuras humanas, as-

sim como na obra de Wesely tornam-se invisíveis causando estran-

heza. O interessante nesse paralelo é que o que antes aparecia como

uma limitação da recém nascida técnica fotográfica, na obra de Wesely

reaparece como um recurso extremamente sofisticado.

Boulevar Parisiense, 1839, Daguerre.

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99.

75

76

Na obra do fotógrafo alemão até mesmo a permanência da arquitetura

é relativa no espaço de tempo trabalhado. A imagem dos edifícios

geralmente associada ao perene, nas fotos de potsdamer aparecem

em transformação. O skyline ao fundo é sobreposto pelo fantasma

de um novo prédio que surge no primeiro plano durante o período

da exposição. O sol torna-se o elemento que nos remete ao eterno,

apesar do seu movimento registrado, é como se este fosse o único

testemunho permanente das constantes modificações que ocorrem

no horizonte da humanidade.

Os caminhos do sol registrados na fotografia são um dos poucos el-

ementos que dão materialidade para essa imagem. A observação

atenta do seu registro nos permite pressupor algumas interessantes

questões, a variação do percurso solar evidencia o decorrer das es-

tações no passar do ano, e sua sobreposição com a figura fantas-

magórica do prédio que surge em primeiro plano nos permite resgatar

a informação de que durante todo o primeiro ano da exposição a parte

superior do prédio ainda não existia, mostrando um pedaço a mais do

céu, e o antigo skyline da paisagem.

Outra possível observação é em relação as interrupções que surgem

nesses caminhos, que sugerem o passar de nuvens interrompendo as

linhas dos percursos. Linhas que tornam-se tracejados formando um

interessante grafismo que contém informações que podem ser utiliza-

das para resgatar informações “meteorológicas” sobre o céu de Berlim

durante aqueles dois anos.

Outra característica marcante da fotografia resultante é a ausência de

sombras. As variações de luminosidade provocadas pela longa ex-

posição fazem com que a iluminação da cena torne-se difusa, dando

uma imaterialidade a cena urbana.

A análise das fotografias nos faz perceber que os esforços de Michael

Wesely na tentativa de diluir a sensação de interrupção do momento,

como se quisesse estender o instante fotográfico aos limites da con-

tinuidade do real, na verdade nos coloca de frente com a inevitabili-

dade dessa sensação, que se mostra inerente ao processo fotográ-

fico. Levando ao extremo esse raciocínio, a análise das fotografias nos

faz perceber que os dois anos de exposição do negativo, analisados

sobre o prisma da história, pouco se diferem do instante de um click.

Michael Wesely, Potzdamer Platz, 1997-99.

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78

3.2 Cassio Vasconcelos – Série Noturnos

Cassio Vasconcelos nascido em São Paulo em 1965, iniciou sua tra-

jetória na fotografia em 1981, na escola imagem-ação. Suas fotos tem

uma forte ligação com a cidade, tendo desenvolvido vários trabalhos

que representam a metrópole através de um exercício que se afasta do

documental e que recorre a imaginação.

A série destacada nesse trabalho chama-se “noturnos” e foi produzida

durante 14 anos, de 1988 à 2002 quando foi publicado o livro que

leva o mesmo nome. As fotografias foram realizadas com uma Polaroid

SX-70, evidenciando o caráter analógico do processo, e a ausência

de manipulações. Para aumentar o caráter surreal das fotos o fotó-

grafo em diversas fotos jogava uma iluminação colorida improvisada

nos elementos do primeiro plano, aumentando a sensação de estra-

nhamento. Nelson Brissac Peixoto no prefácio do livro Noturnos-São

Paulo, atenta para a estranheza do processo:

“Atentem para o inusitado desta cena: em plena São Paulo do século

XXI – megacidade caótica, desfigurada, assolada pela crise social e

pela violência -, alguém vagando à noite por ruas desertas e terrenos

baldios, com um holofote, cuja bateria vem num carrinho de feira. O

personagem já expressa tudo o que, a princípio, teria de quixotesco

nessa empreitada. Tudo parece conspirar para que seja uma aventura

malograda.” (PEIXOTO no prefácio de VASCONCELOS, 2002)

O breu da noite torna-se imprescindível para configurar a atmosfera na

qual Cassio ambienta sua São Paulo.

“O fato de o trabalho ter sido realizado à noite não foi por acaso. Fui

envolvido pelo lirismo noturno, que é quando os sonhos se fazem. A

poesia e atmosfera única captadas nas imagens não são encontradas,

na mesma proporção, à luz do dia.”

“como marca registrada procuro a singularidade, o limite entre o real e

o imaginário. Nessas fotos, particularmente, busquei formas de retratar

uma visão pessoal e distinta. Tentei resgatar o que está invisível ou o

que não é tão explícito. Encontrar na fotografia a beleza escondida no

comum, no caos, no feio...” (VASCONCELOS, 2002)

Dessa forma ele constrói uma São Paulo que não existe. Ao sobrepor

elementos díspares como tapumes de contrução, estruturas em ruínas

com o skyline da cidade ele faz aflorar um estranhamento desses el-

ementos banais. “Ele retira as coisas do tempo e do lugar: tudo parece

em suspensão.” (ref nelson)

“O que salva então a aventura solitária deste fotógrafo? Cassio Vascon-

cellos não pretende mostrar onde estão as coisas, mapear. A luz in-

tensa que joga sobre as coisas, na verdade cega. Ela lhe permite andar

pela cidade como se estivesse de olhos bem fechados. Sua empresa

é essencialmente tátil. É o que lhe possibilita descobrir a presença,

palpável, de tudo aquilo que, a princípio, não pode ver.” (PEIXOTO no

prefácio de VASCONCELOS, 2002)

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Cassio Vasconcelos, Noturnos, 1988 à 2002.

80

3.3 Andreas Gursky

Andreas Gursky, nascido na alemanha em 1955, estudou fotografia

na Academia de Artes de Düsseldorf, que criou o primeiro curso de

fotografia da Alemanha, instituído no início dos anos 70. Ali foi aluno

de Bernd (1931-2007) e Hilla Becher (1934), cuja obra revolucionou

a fotografia na Alemanha. A proximidade com os dois mestres que

fotografavam edificações industriais da paisagem alemã com câmeras

de grande formato, obtendo o status de fotógrafos conceituais, sem

dúvida influenciou a obra de Gursky.

“Water towers” | Bernd e Hilla Becher

Andreas Gursky.

81

O principal foco das fotografias de Gursky são justamente a cidade

genérica descrita por koolhas, com seus espaços desmedidos, e a

derrocada da escala do homem. Nas fotografias de grandes formatos

de Gursky (chegam a ter 7 metros quadrados) aparecem supermer-

cados, shoppings centers, a bolsa de valores, espaços da vida do

homem contemporâneo em registros que conjugam panorâmicas

enormes, detalhismo absoluto e o processamento da imagem digital.

“...retém da imagem fotográfica mais do que a sua função narrativa ou

simbólica, pois o seu trabalho opera numa dimensão mais vasta, onde

se cruzam, de modo sutil, ilusão e realidade, experiência simultanea-

mente visual e reflexiva, marcas essenciais de uma certa especificidade

da criatividade artística. Recorrendo a excepcionais condições técni-

cas, partindo sobretudo das possibilidades oferecidas pelo processa-

mento fotográfico electrónico.” (SANTOS, 2005)

Muitas fotografias de Gursky levantam a questão de como foram feitas.

A única coisa evidente é que se trata de imagens artificiais, que Gursky

começa a diluir o limite existente até então entre fotografia e pintura.

Em sua obra, a fotografia tende a se tornar pintura digital. O observador

nota que há algo de errado, as fotos são montadas para aumentar o

impacto da imagem.

Gursky sempre escolhe perspectivas incomuns. Procura sua imagem

à distância. Ele busca o panorama, nunca se coloca como parte do

acontecimento, mantendo-se de fora como observador. Guindastes,

Andreas Gursky.

82

Com esses recursos o fotógrafo consegue criar representações que

exatamente por mentir aproximam-se da realidade. Em suas imagens,

ele condensa tempo e ocorrência espacial. Não nos revela o mundo

como ele é, mas sim como ele o vê, no entanto de uma forma muito

diferente da fotografia subjetiva, como o que conhecemos da história

da fotografia. Ele constrói imagens como ficções baseadas em fatos.

Em sua obra, a realidade é resultado de uma construção imagética.

Fotos da incomensurabilidade dos espaços ao qual o ser humano/

urbano está submetido nas cidades globais.

telhados, sacadas e outros subterfúgios que o permita se posicionar

em pontos não humanos fazem parte do dia a dia da produção do

fotógrafo.

O foco também é uma questão interessante no trabalho de Gursky,

suas grandes panorâmicas possuem foco em toda sua extensão, re-

sultado obtido com a utilização de objetivas de altíssima resolução,

com uma grande preocupação com o aumento do campo de profun-

didade da foto.

Andreas Gursky.Andreas Gursky.

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3.4 Camera Escura - Abelardo Morell

Nascido em Cuba, o artista se mudou para os estados unidos aos 14

anos, fugido da revolução de Fidel Castro. Abelardo Morell começou,

a partir da década de 90 do século XX, a se rebelar contra a ideia da

fotografia como algo culturalmente superdeterminada, e da ideia da

inevitabilidade da programação imposta pela mediação do aparelho

fotográfico.

Como que atendendo à instigante “filosofia da caixa preta” de Villém

Flusser que pregava a necessidade do fotógrafo se libertar da fun-

ção de funcionário do aparelho, Morell começou a experimentar em

cima dos conceitos básicos do processo fotográfico. Em sua fotografia

mais conhecida, Light Bulb, de 1991, ele simplesmente ilustra o func-

ionamento de uma camera obscura, utilizando uma precária caixa de

papelão com uma lente fixada com fita adesiva, o resultado é de uma

simplicidade genial.

Segundo as palavras de Andy Grundberg em um artigo publicado no

próprio site do fotógrafo:

“Pode-se dizer que Morell redescobriu e revivificou o paradoxo cen-

tral da fotografia: ao representar a realidade com grande fatualismo,

apresenta o mundo de forma irreal. Um grande fotógrafo da geração

anterior, Garry Winogrand, descreveu de forma bastante apropriada

quando disse: “Não há nada tão misterioso quanto um fato claramente

exposto.” (GRUNDBERG, 2006)

Abelardo Morell.

Abelardo Morell.

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Abelardo Morell. Abelardo Morell.

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No entanto no contexto desta monografia o trabalho mais interessante

de Abellardo Morell é a série intitulada “Câmara Obscura”, que tam-

bém começou em 1991, com uma experiência que ele realizou para

demonstrar o funcionamento do mecanismo de uma camara obscura

em sala de aula.

A série consiste justamente na transformação de diferente ambientes

que são transformados em cameras escuras através da vedação e

da aplicação de películas opacas nas janelas, com um pequeno furo.

Como em um passe de mágica a imagem do mundo externo, a “vista”

que se pode observar das tais janelas, se projetam na superfície opos-

ta recriando a magia das primitivas camaras obscuras, que finalmente

são fotografadas.

A sobreposição do interior dos ambientes ocupados normalmente pela

imagem do exterior cria uma leitura profusa. Essa série evoca muitas

questões. A forma como Morell dá vida aos inanimados ambientes,

fornecendo-lhes um “olho” capaz de manifestar vistas causam um

interessante estranhamento. O artista repete esse procedimento em

diferentes imóveis, em diferentes localidades.

“A capacidade de Morell de ver o mundo como novo e surpreendente

evoca não somente a perspectiva de um criança, mas também a de

um completo estranho as tradições pictóricas do ocidente. Suas ima-

gens transmitem o senso de que o ato da representação é algo re-

centemente descoberto e levemente alheio.” (GRUNDBERG, 2006)

88

A construção subjetiva de um olhar sobre São Paulo

89

O objetivo final deste trabalho, que consiste numa reflexão sobre o ato

de fotografar a cidade hoje, é alimentar a minha produção autoral sobre

a cidade de São Paulo. Essa monografia sinaliza o final de um pro-

cesso de aproximação com a cidade que começou com a mudança

para a principal metrópole da América Latina objetivando a conclusão

de um curso de pós-graduação em fotografia.

O período de quase dois anos funcionou como um auto-exílio, um

período de fuga de uma estável e confortável situação na tão diferente

cidade de origem: Brasília; da insatisfação com o dia-a-dia da pro-

fissão de arquiteto, apesar da afinidade com o pensar o urbano; e de

uma grande apatia emocional.

O mergulho no universo da teoria fotográfica, e a compulsão pelo ato

fotográfico nos vazios dias de ócio pela cidade ajudaram à acumular

uma extensa produção fotográfica nesse período. Escolher uma única

série para ser o objeto deste trabalho, num esforço de pensar a cidade

em um processo de síntese, me pareceu menos rico do que apresen-

tar vários momentos vividos no período. Dessa forma serão apresen-

tadas 4 séries.

4A construção subjetiva de um olhar sobre São Paulo

90

4.1 Catálogo urbano.

A primeira série apresentada é composta por 3 fotomontagens digitais

supercontrastadas, preto e branco, as três com tamanho aproximado

de 100 x 100 centímetros.

Cada uma das montagens é constituída por vários fragmentos de el-

ementos urbanos fotografados ao longo dos dois anos de residência

em São Paulo. Os elementos trabalhados são parte da infraestrutura

metropolitana que possuem impacto direto na paisagem urbana, mas

que passam desapercebidos no cotidiano. Esse trabalho consiste em

ir coletando “espécies” com a câmera para uma tipologia urbana. Os

elementos que vão se repetindo são catalogados como se fosse pos-

sível fazer “botânica no asfalto”: antenas, postes, placas, chaminés,

heliportos são sistematicamente capturados para depois serem reuni-

dos em uma mesma imagem que mostra múltiplas visões.

Na primeira montagem a rede de fiações elétricas que está presente

como coadjuvante em praticamente qualquer vista da cidade, torna-se

o foco principal sendo fotografada incessantemente. Na composição

cem fotografias dos mais variados cantos da cidade são recombina-

dos tentando sugerir outros significados ainda não contaminados pelo

funcionalismo do dia-a-dia.

Os viadutos que irrompem a paisagem nos percursos rodoviários são

o foco da segunda montagem. As estruturas que apontam para a velo-

cidade e para o deslocamento são uma marca na Mega-cidade. Múlti-

plas visões de um mesmo princípio rearranjadas conforme uma outra

ordem, dessa vez plástica.

Por último diversas coberturas dos edifícios de diferentes pontos da

cidade, saturadas de elementos funcionais como antenas, para-raios,

parabólicas, transmissores, são reagrupadas inventando um outro

skyline, que altera a lógica das coisas, colocando lado à lado chami-

nés (comuns na áreas industriais) e heliportos (signos dos edifício das

sofisticadas áreas corporativas) destituindo esses elementos de sig-

nificado.

Nessa série a pretensão é olhar para as coisas como se elas não tives-

sem significados funcionais, encarando a cidade como uma floresta

de símbolos cuja sintaxe ainda é desconhecida, como se fizessem

parte de uma topografia natural de uma virgem floresta de concreto,

com suas espécimes prontas para serem registradas e catalogadas.

“Com seu jeito de passear, como se recolhesse espécies para uma

verdadeira tipologia urbana, ele está “a fazer botânica no asfalto”. Ele

faz “um inventário das coisas”:o trabalho de classificação característico

da época.” (PEIXOTO, 1996, p.99)

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Ricardo Theodoro, rede, 2009.

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Ricardo Theodoro, viadutos, 2009.

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Ricardo Theodoro, reinventando o horizonte, 2009.

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4.2 Augusta.

A segunda série: Augusta, é composta por 16 fotografias, organiza-

das duas à duas totalizando 8 painéis de 90 x 30 cm. Tratam-se de

imagens noturnas, com grandes áreas de breu, contrastando com as

fortes cores das luzes do néon dos “bordéis” da baixa augusta.

Nesse período de imersão na cidade de São Paulo fiquei morando na

região do baixo augusta. O trecho da famosa rua próxima ao centro

da cidade, passou por um período de decadência, reunindo bordéis,

casas noturnas, e a vida boêmia. O caráter mau cuidado que dá o tom

das fachadas da região durante o dia contrastam com o colorido das

luzes de néon que tomam contam do lugar à noite, evidenciando a

vocação do lugar para a vida noturna.

Se em um primeiro momento esse cenário me parecia decadente

e amedrontador, depois de uma certa aproximação, freqüentando a

região, aquela fantasia que recai sobre a rua todas noites me encan-

tou fazendo com que eu começasse um processo de documentação.

Nesse período foi possível perceber claramente que recentemente

a região tem se tornado alvo de interesse do mercado imobiliário e

de estabelecimentos mais sofisticados, e que vários dos peculiares

botecos e bórdeis estavam sendo substituídos gradualmente por es-

tabelecimentos “hypes” inseridos no contexto de uma cidade global,

podendo-se prever a transformação da região em mais um dos “es-

paços genéricos” ou “não lugares” descritos por Rem Koolhas e Marc

Augé tratados no capítulo 2 deste trabalho.

Assim o desafio de retratar o dia-a-dia da vizinhança tomou outro sen-

tido, como se com esse ato fosse possível preservar a peculiaridade

daquela trecho da cidade. Lendo sobre a Paris de Baudelaire que de-

saparecia sob os projetos de modernização do Barão Haussman me

identifiquei com a figura de Atget que fotografava uma cidade que es-

tava prestes a desaparecer. É claro que na São Paulo do século XXI

esse processo é apenas mais um dentre muitos outros que fazem com

que a cidade seja descrita com uma “cidade que se constrói sobre

suas próprias ruínas”6.

A escolha por fazer uma abordagem mais plástica da região, em contra-

posição à possibilidade de fazer algo mais documental que expusesse

a questão da prostituição ou das mazelas associadas à esse tipo de

atividade, foi consciente. Para um olhar desapercebido as cores e às

meia-luzes não revelam muito sobre o mundo oculto naqueles breus.

A abordagem surge de um olhar que se deixou encantar e não de um

crítico externo à situação.

Nas minhas várias saídas para fotografar a augusta à noite, Brassai

também sempre foi um referência, em seu livro Paris de nuit, ele in-

augurava um novo modo de olhar para a metrópole. Seu projeto as-

sociado ao surrealismo se utilizava do breu, das sombras para revelar

muito mais do que esconder e foi esse o caminho que eu tentei per-

correr nesse ensaio.

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4.3 Derivas

A terceira série de fotografias apresentada chama-se Derivas e é um

conjunto de imagens realizadas em caminhadas aleatórias pela cidade,

o montante de fotografias produzido é imenso, e para esse trabalho

foram selecionadas 21 fotografias. Durante os quase dois anos mo-

rando em São Paulo para realizar a pós-graduação, a atividade de

freelancer possibilitou bastante tempo de ócio. Caminhar pela cidade,

sem rumo predeterminado, tornou-se parte do cotidiano. A posição de

estrangeiro, afastado dos condicionantes funcionais (percursos prede-

terminados com fins pragmáticos) e de vivências pregressas (uma vez

que os espaços estavam sendo percorridos pela primeira vez) fazia

com que a cidade se apresentasse sem pré-concepções.

“A inesgotável imaginação do recém chegado, atraído por tudo aquilo

que nunca havia visto, lança mão de todos os recursos possíveis para

construir sua cenografia.” (PEIXOTO, 1996, p.99)

Dessa forma São Paulo mostrou-se muito mais rica do que mais uma

cidade genérica. A possibilidade de percorre-la sem estar inserido em

uma rotina de utilização funcionalista propiciou uma apreensão que

foge do controle proposto pelos espaços anódinos que os extremos

do sistema capitalista impõem.

Os grandes ícones da cidade surgiam de forma inesperada, sempre

sobrepostos por outras camadas da cidade. Nas fotografias pontos

como a Igreja da Sé, o prédio do Banespa ou o Mercado Munici-

pal foram destituídos de sentido e reaparecem deslocados em planos

secundários em pé de igualdade com as outras camada das sobre-

posições.

“Os monumentos são como mapas: traçam inexoravelmente o perfil

da cidade. São marcos que estabelecem sem apelação a história e

os caminhos do lugar, que reduzem suas espessas camadas de vida

a signos exteriores erguidos sobre a grama. Eles excluem o não dito

o invisível, da cidade. É por isso que o estrangeiro, incapaz de recon-

hecer o que as estátuas significam, pode ter acesso ao rosto interior da

cidade, não estampado nos mapas nem esculpido nos monumentos.

Sensível aos acenos sutis - luzes, nomes, barulhos - que as cidades

fazem para nós, ele pode desvendar os seus segredos, o seu mistério.”

(PEIXOTO, 1996, p.29)

Os percursos são determinados por condicionantes não conscientes.

Michel de Certau, no livro “a invenção do cotidiano” analisou vária das

questões do espaço urbano que influenciam os percursos na cidade.

Desde os nomes de ruas e logradouros, à semelhança com outros

lugares, segundo ele orientam os percursos que a princípio parecem

aleatórios. Certau promove uma “teoria das práticas cotidianas, do es-

paço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade.”

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“Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados

roubados à legibilidade por outro, temos empilhados que podem se

desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permane-

cem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações en-

quitadas na dor ou no prazer do corpo.” (PEIXOTO, 1996, p.29)

Por fim as fotografias formam um corpus imagético que foge das pais-

agens ícones da metrópole e mostram alguns de seus importantes

marcos vistos sobre outros pontos de vista impregnados pela subje-

tividade. A série pretende revelar outras possibilidades de percepção

da cidade associadas tanto ao acumulo de experiências do fotógrafo

como do observador da imagem. Fotografias realizadas com a con-

sciência de que uma imagem resoluta e fechada não é mais possível.

No fim a vontade é que o conjunto de imagens seja aberto à interpre-

tações. Passíveis de diversas apropriações. Fragmentos à espera de

sujeitos que as reagrupem sobre diversas perspectivas.

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4.4 Zona Leste

A última série apresentada chama-se ZL, e consiste em um apanhado

de fotografias da Zona Leste de São Paulo, que diferem dos princípios

que orientaram o restante da produção. Essas fotografias foram realiza-

das em incursões pela Zona Leste, na companhia de Nelson Brissac

Peixoto (Coordenador do grupo de intervenções Arte/Cidade), motiva-

dos pela elaboração do catálogo/livro do Arte/Cidade 4 ZL.

No contexto da formação da minha relação com a cidade de São

Paulo é preciso contextualizar o envolvimento na confecção dessas

fotos para o catálogo do Arte/Cidade. Desde o curso de graduação

em arquitetura, quando surgiram questionamentos sobre a atuação

do arquiteto na cidade contemporânea, que o contato com os tex-

tos de Nelson Brissac Peixoto e com as idéias trabalhadas no evento

Arte/Cidade, foram de fundamental importância na formulação do meu

pensamento sobre a cidade, tendo sido alvo de estudos do meu tra-

balho final de graduação. Durante o período em São Paulo eu tive a

oportunidade de conhece-lo pessoalmente, e de participar de algumas

atividades do arte/cidade, incluindo essas incursões pela Zona Leste,

com intuito de fotografar cenas que fossem sintéticas dos conceitos

trabalhados no evento. As fotografias realizadas foram de extrema im-

portância para a formatação do meu imaginário sobre a cidade de São

Paulo como espaço de diversidade.

119

Essas imagens são muito diferentes das outras séries justamente

porque foram elaboradas a partir de uma reflexão crítica sobre o es-

paço que antecedeu a experiência do lugar. As fotografias abordam

o embate entre a informalidade e a especulação imobiliária na região

tema do livro e das intervenções que ocorreram no evento que agora

é alvo do catálogo.

Para entender o conceito parte-se da idéia de que as cidades têm sido

estruturadas por duas linhas de atuação: a da classe dominante (ci-

dade formal que em última instância tem o arquiteto instrumentalizado

agindo em prol dos interesses das classes dominantes); e a da classe

dominada (cidade informal: uma gama de diferentes atores, atuando

pela sobrevivência nas brechas da cidade formal, uma atuação tática,

modificando, invadindo e adaptando estruturas, caracterizada pelo

movimento e fluidez.).

“Se a classe dominante atua por seu poderio econômico e político, com

seus capitais e seu estado à frente, as classes, camadas e setores

oprimidos também atuam na produção do espaço, mesmo quando

lutam simplesmente pela própria sobrevivência e a melhoria das suas

condições de vida.” (CARIELO, 1995)

É a partir dessa idéia que o filósofo Nelson Brissac utiliza-se de figuras

de linguagem cunhadas por Deleuze e Guatari, para ilustrar essas duas

linhas de atuação na cidade:

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“A cidade torna-se o campo de batalha das máquinas de guerra contra

os aparelhos de captura... De um lado, populações de rua instrumen-

talizando tudo que está ao alcance, criando máquinas de guerra, redi-

recionando a infra-estrutura urbana para atender usos diversos, usando

as torneiras de jardins públicos, ocupando calçadas com camelôs,

favelas se infiltrando entre os interstícios, uma infinidade de recursos

de sobrevivência que permite a ocupação de um território pelo deslo-

camento, por trajetos que distribuem indivíduos e coisas num espaço

aberto indefinido.” (PEIXOTO, 2002)

“De outro lado: “Aparelhos de captura constituídos para se apropria-

rem das máquinas de guerra. Sua função é estriar o espaço, controlar

o nomadismo. Instaurar um processo de captura dos fluxos. Trajetos

fixos, em direções bem determinadas, que limitem a velocidade, que

mensurem nos seus detalhes os movimentos.” (PEIXOTO, 2002)

122

Pode-se atribuir a esse modelo as grandes desigualdades na apro-

priação do espaço das cidades, o crescimento caótico, a ocupação

e utilização predatória do meio ambiente natural, a segregação dos

pobres em áreas distantes e desprovidas de equipamentos urbanos,

o fracasso de planos urbanísticos de intenções igualitárias, o desen-

freado mercado imobiliário, a violência urbana. As cidades expressam

as contradições sociais. As ocupações irregulares, invasões, favelas,

o contingente de sem tetos, a expansão do mercado informal, o cres-

cente número de feiras se dão como soluções diretas à necessidade

de sobrevivência e melhoria das condições de vida dessa parcela da

população.

As fotografias refletem justamente esse embate. A escala monumental

da infraestrutura urbana da megalópole São Paulo, em contraste com

os “primitivos” abrigos por debaixo de viadutos espalhados pela Zona

Leste.

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125

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna / Giulio Carlo Argan: Tradução

Denise Bottmann e Federico Carotti: Companhia das Letras,

São Paulo, 1992.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São

Paulo: Ed. Martins Editora, 2005.

AUGÉ, Marc. Não Lugares: uma antropologia da super-moderni-

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