os conceitos de povo e plebe no mundo luso-brasileiro setecentista

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100 artigos Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 100-114, mai. 2010 Os conceitos de Povo e Plebe no Mundo Luso-Brasileiro Setecentista The Concepts of People and Plebs in Brazilian Old Regime (Eighteenth Century) Luisa Rauter Pereira Professora no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (ICHF / UFF- Rio de Janeiro / Brasil) e pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e-mail: [email protected] Resumo No setecentos luso-brasileiro, assistimos ao progressivo desagregamento dos significados tradicionais do Antigo Regime Português: 1) o povo ou os povos como a totalidade de corpo político, os súditos ou vassalos, participantes de uma ordem de cunho místico cujo centro é o monarca; 2) o povo como os “mecânicos” ou o terceiro estado na sociedade de ordens. Tais significados são abalados pelas condições de uma sociedade colonial e escravista e pelas transformações rumo à modernidade que já ocorriam, ainda que timidamente. Neste movimento, a Ilustração e formas de contestação típicas do Antigo Regime português ganham peso, trazendo a idéia de que está nos povos a origem do poder. Além disso, a questão da plebe colonial se agrava, de modo que para muitos contemporâneos a colônia não possui um verdadeiro “povo” apto a participar do sistema político. Quem é o povo nos territórios coloniais passa crescentemente a ser um problema a ser solucionado ou uma aposta no futuro, desmantelando-se a estabilidade semântica de uma sociedade estamental. Abstract Brazil in the eighteenth century witnessed the gradual unbundling of the traditional meanings of the Portugal’s Old Regime: 1) the people as the entire Political body participants of an order of mystic stamp whose center is the monarch 2) the people as the “mechanics” or the third state in the society of orders. These meanings are shaken by the conditions of a colonial slave society and the transformations towards modernity that has already occurred, though timidly. In this movement, Illustration and typical forms of contestation of the Portugal’s Old Regime become more important, bringing the idea the source of power resides in the people. Moreover, the issue of colonial rabble gets worse, in a way that for many contemporaries the colony does not have a true “people” able to take place in the political system. The identity of the people in colonial territories becomes an increasing problem to be solved or a bet on the future, disrupting the semantic stability of an estate society. Palavras-chave liberalismo, vocabulário político, Império português, Iluminismo, idéias políticas Keywords liberalism, political vocabulary, Portuguese Empire, Enlightenment, political ideas

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"Os Conceitos de Povo e Plebe No Mundo Luso-brasileiro Setecentista". Luisa Rauter Pereira. Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 100-114, mai. 2010

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  • 100artigos Almanack Braziliense. So Paulo, n11, p. 100-114, mai. 2010

    Os conceitos de Povo e Plebe no Mundo Luso-Brasileiro Setecentista

    The Concepts of People and Plebs in Brazilian Old Regime (Eighteenth Century)

    Luisa Rauter PereiraProfessora no Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense (ICHF / UFF- Rio de Janeiro / Brasil) e pesquisadora do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)e-mail: [email protected]

    ResumoNo setecentos luso-brasileiro, assistimos ao progressivo desagregamento dos significados tradicionais do Antigo Regime Portugus: 1) o povo ou os povos como a totalidade de corpo poltico, os sditos ou vassalos, participantes de uma ordem de cunho mstico cujo centro o monarca; 2) o povo como os mecnicos ou o terceiro estado na sociedade de ordens. Tais significados so abalados pelas condies de uma sociedade colonial e escravista e pelas transformaes rumo modernidade que j ocorriam, ainda que timidamente. Neste movimento, a Ilustrao e formas de contestao tpicas do Antigo Regime portugus ganham peso, trazendo a idia de que est nos povos a origem do poder. Alm disso, a questo da plebe colonial se agrava, de modo que para muitos contemporneos a colnia no possui um verdadeiro povo apto a participar do sistema poltico. Quem o povo nos territrios coloniais passa crescentemente a ser um problema a ser solucionado ou uma aposta no futuro, desmantelando-se a estabilidade semntica de uma sociedade estamental.

    AbstractBrazil in the eighteenth century witnessed the gradual unbundling of the traditional meanings of the Portugals Old Regime: 1) the people as the entire Political body participants of an order of mystic stamp whose center is the monarch 2) the people as the mechanics or the third state in the society of orders. These meanings are shaken by the conditions of a colonial slave society and the transformations towards modernity that has already occurred, though timidly. In this movement, Illustration and typical forms of contestation of the Portugals Old Regime become more important, bringing the idea the source of power resides in the people. Moreover, the issue of colonial rabble gets worse, in a way that for many contemporaries the colony does not have a true people able to take place in the political system. The identity of the people in colonial territories becomes an increasing problem to be solved or a bet on the future, disrupting the semantic stability of an estate society.

    Palavras-chaveliberalismo, vocabulrio poltico, Imprio portugus, Iluminismo, idias polticas

    Keywordsliberalism, political vocabulary, Portuguese Empire, Enlightenment, political ideas

  • 101artigos Almanack Braziliense. So Paulo, n11, p. 100-114, mai. 2010

    IntroduoO conceito de povo ganhou lugar central no vocabulrio poltico ocidental, tanto no campo da teoria poltica formal, quanto nos usos discursivos da prtica poltica cotidiana. Refiro-me idia de soberania do povo ou dos povos posta em relevo pela ilustrao nas ltimas dcadas do sculo XVIII e forjadora do discurso poltico contemporneo. Este lugar proeminente obscurece em grande medida os usos e significados que teve o termo povo no mundo do Antigo Regime Portugus, assim como as peculiaridades que adquiriu nos primrdios da ilustrao luso-brasileira. Questionar os significados que tiveram no passado os termos capitais que compem nossa vivncia poltica algo que pode nos revelar camadas de significado esquecidas na linguagem poltica bem como compreender as razes de nossa linguagem poltica atual.

    O sculo XVIII foi um perodo de intensos conflitos e negociaes no espao colonial entre as imposies de um Estado em processo de afirmao frente s formas tradicionais de organizao e de repartio do poder na sociedade, o que se verifica, j nos primrdios do sculo, na guerra dos mascates em Pernambuco e nos diversos levantes na regio das minas; um momento em que as autoridades e grupos dominantes da sociedade colonial percebem com mais clareza as especificidades da populao colonial, marcada pela escravido, pela questo racial, e pela formao de uma populao livre e pobre sem lugar estvel no sistema produtivo; o sculo da ilustrao europia e do avano da noo de soberania dos povos, que se verificou, ainda que de forma mais acanhada, no espao colonial.

    Ao reunir fenmenos fundamentais, o perodo palco de muitas controvrsias historiogrficas. O olhar do observador e suas pr-concepes tm grande peso nas interpretaes realizadas a respeito de um perodo conturbado como este. Implicados nas transformaes postas em curso neste sculo, cientistas sociais e historiadores lanaram ao perodo olhares diversos. Desde a dcada de 1950 at a dcada de 1970, as anlises foram marcadas pela idia de crise do sistema colonial e do Antigo Regime: um conjunto de amplas transformaes mundiais que marcaria a ao dos atores especficos e sua linguagem poltica no espao da colnia. Neste sentido, haveria ao longo do setecentos um processo de tomada de conscincia da situao colonial, e tambm de incorporao do iderio ilustrado europeu, que iria culminar no processo de independncia nacional. Esta tomada de conscincia seria forjada no embate entre interesses contrrios relativos aos lugares sociais fundamentais do sistema, colonos e colonizados. Nas ltimas dcadas, esta historiografia de vis marxista tem sido revista. Em lugar de enfatizar os interesses contrrios de metrpole e colnia, tm se percebido o jogo de conflitos e negociaes dentro das regras e modelos de pensamento de uma sociedade de Antigo Regime.

    A viso de um movimento liberal e ilustrado que teria sido posto em marcha a partir de finais da segunda metade do sculo que se teria malogrado, especialmente em funo da vinda da famlia real, tem sido bastante matizada. Concorreram nas Inconfidncias e no movimento Pernambucano de 1817 uma srie de tradies polticas e sociais tpicas do mundo ibrico do Antigo Regime, para alm do iderio ilustrado que pouca penetrao teve na sociedade colonial.

    Neste esforo de reviso preciso aprofundar a investigao histrica dos termos e conceitos que se tornaram centrais no pensamento poltico

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    contemporneo, abordando momentos anteriores em que no tinham o mesmo significado e peso conceitual da atualidade. Desta forma, se pode contribuir para o esforo de desnaturalizao da linguagem poltica atual, atentando para sua historicidade. Alm de evitar anacronismos na interpretao histrica, este tipo de investigao pode revelar camadas de significado que compem o cnon da semntica poltica moderna.

    1. O Povo e os Povos como totalidade do corpo polticoO povo como totalidade do corpo poltico, embora comparea nos documentos do sculo XVIII, concorre com outros tambm muito presentes, como o conjunto dos vassalos ou sditos, comunidade ou Reino. O povo ainda no tem neste momento o peso que passar a ganhar no mundo liberal embora isso no signifique que tem pouca importncia no lxico poltico setecentista luso-brasileiro. Felicidade, conservao, sossego dos povos eram, por exemplo, as justificativas constantes para as resolues das cmaras municipais, bem como para os pedidos feitos administrao lisboeta1.

    As Ordenaes portuguesas, textos legais que regeram a nao portuguesa desde meados do sculo XV at os primrdios sculo XIX podem nos dar indicaes importantes a respeito desta antiga tradio. Dentre estas, podemos citar as Ordenaes Afonsinas, pois so o alicerce de todos os textos posteriores. Trata-se de uma sistematizao escrita dos costumes e leis vigentes no reino luso, o direito natural ou das gentes. Em suas palavras iniciais, o texto lembra o grande louvor que o Estado Real consegue por bem da justia (...), que no achada entre todas as virtudes alguma to louvada, nem de to grande preo como a justia; porque ela s a que tolhe todo pecado, e maldade e ainda conserva cada um em seu verdadeiro ser, dando-lhe o que seu diretamente. O rei deve ser sbio para subjugar seus apetites mentais e desejos carnais ao jugo da razo para diretamente reger seu Reino, e senhorio, e manter seu povo em direito, e justia (...) 2. Logo, assim se deve fazer o bom Prncipe, pois que por Deus foi dado [seu poder] principalmente no para si, nem seu particular proveito, mas para bem governar o seu povo, e aproveitar a seus sditos como a prprios filhos3.

    Nas Ordenaes, vemos que o povo associado idia de justia e relao com o monarca. Este o detentor da soberania, mas deve governar de forma justa, o que na lgica de uma sociedade de Antigo Regime significava fundamentalmente manter as distines sociais, os lugares especficos, as funes e privilgios dos corpos componentes da sociedade, isto , os povos.

    Antonio Manuel Hespanha sistematizou muito bem esta concepo4. Para este autor, o povo visto na tradio corporativa portuguesa como um elemento integrante de uma ordem universal dirigida por um destino mstico comum. Cada uma destas partes tem uma funo especfica e indispensvel a desempenhar na garantia da harmonia e na caminhada rumo a um telos. Disso se depreende que o poder visto como algo necessariamente repartido: cada parte possui uma determinada jurisdio que o rei deve respeitar e manter sob pena da desagregao do todo social. Trata-se de uma viso plural do poder: a figura real deve acatar as diversas jurisdies existentes, atribuindo a cada parte o que lhe prprio por direito, mantendo assim a harmonia, a paz e realizando a justia, considerada o fim supremo da poltica humana. O poder real visto como algo limitado, tendo que respeitar os poderes tradicionais dos diveros membros que compoem o corpo social, realizando assim seu pricipal dever: realizar a justia, resolver os conflitos, fazer valer o direito que preexiste s vontades e paixes humanas.

    1Formadas por um conselho de dois a seis vere-adores, dois juzes ordinrios um procurador os oficiais e por uma srie de funcionrios subalternos, como os fiscais de obras pblicas, os escrives e os juzes de rfos, as cmaras eram os rgos de administrao, mas tambm de representao poltica do povo ou dos povos da colnia frente ao rei. A escolha dos oficiais e funcionrios era feita por uma assem-blia de todos os chefes de famlia abastados e respeitveis habilitados a votar. As cma-ras se reportavam ao Conselho Ultramarino em Portugal atravs de peties, que eram res-pondidas em nome da vontade do monarca. As peties eram vistas como um direito dos povos, mas seu acatamento era uma escolha real.

    2Ordenaes Afonsinas. Livro I. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1984. p.4.

    3Ordenaes Manoelinas. Livro I. Fundao Calouste Gulbenkian, 1984. p.1.

    4XAVIER, ngela Barreto e HESPANHA, Antnio Manuel. A Representao da Sociedade e do Poder. Paradigmas Polticos e Tradies Literrias. In. HESPANHA, A. M. (coord.). Histria de Portugal. Vol. 4. O Antigo Regime. Lisboa: E. Estampa, 1993.

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    5Infelizmente no pudemos ter acesso ao Tractado analytico e apologtico sobre os pro-vimentos dos bispados da coroa de Portugal: calumnias de castella convencidas: resposta ao seu author D. Francisco Ramos del Manzano: justifica-se o procedimento do senhor Rey D. Joam o IV e do senhor Rey D. Affonso seu filho, com a f apostlica (...) escrita em 1715 por Manuel Rodrigues Leito (Lisboa: Officina Real Deslandesiana, 1715. Esta obra citada por Antnio Manuel Hespanha como um exemplo do paradigma corporativo

    6SOUZA, Iara Lis Carvalho. Ptria Coroada. O Brasil como corpo poltico autnomo (1780-1831). So Paulo: Fundao Editora UNESP, 1999.

    7CAMPOS, Francisco Antnio de Novaes. Prncipe Perfeito. Emblemas de D. Joo de Solrzano. Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1985.

    8Segundo E. Kantorowicz, A doutrina da teo-logia e do direito cannico, que ensina que a Igreja e a sociedade crist em geral so um corpo mstico, da qual a cabea o Cristo foi transposta pelos juristas da esfera teolgi-ca quela do estado, do qual a cabea o rei. KANTOROWICZ, Ernst. Les Deux corps du roi: essai sur la thologie politique au Moyen ge. Paris: Gallimard, 1989.

    9No original: Fe o Povo frma o Corpo/ o Rey Cabea/ Os fentidos trazer deve apurados/ Para q~ prompto o firva e lhe obedea/ Por todos vlle em fim com mil cuidados,/ Qf por q~ tantos poderes lhe fo dados. KANTOROWICZ, Ernst. Op.Cit.

    10Ibidem. p.663.

    De toda esta explanao, devemos apreender que conceito de povo e de povos deve ser entendido no mbito de uma idia de pacto: dos vassalos era esperada a lealdade e a defesa da soberania portuguesa nos territrios e do rei era esperado que fosse virtuoso, agisse com justia, o que siginificava na lgica do Antigo Regime repeitar os direitos das diversas partes que compoem a sociedade os povos representados nas cmaras. Porm, este pacto no deve ser compreendido simplesmente como o resultado de uma ao voluntria realizada por indivduos autnomos, no plano lgico ou em algum momento da histria, que fundaria a sociedade, a poltica e o direito. Trata-se de um pacto entre os homens, ou melhor, entre os corpos da sociedade mas sempre referido a uma ordem superior que deve ser respeitada, que o torna possvel e lhe d sentido.

    Diversas obras influntes no sculo XVIII clarificam esta concepo bsica que informa a semntica e o lugar do povo na poltica. Faremos uma breve exposio de algumas delas, lembrando-nos sempre que a letra da doutrina no expressa diretamente a vivncia do cotidiano poltico de uma dada poca e lugar, embora possa nos esclarecer sobre muitos de seus pontos. Em todo o setecentos portugus, muitos tratadistas escreveram obras em que teorizaram a respeito da relao entre o rei e seus vassalos5. Muitas delas faziam parte da antiga tradio dos espelhos de prncipes6 obras destinadas a dar aos reis ensinamentos de virtude e de bom governo atravs de exemplos histricos, argumentos de razo e autoridade. O final do sculo foi particularmente profcuo nestas obras, tanto pelos defensores das reformas ilustradas, quanto dos defensores da tradio poltica do Antigo Regime, interessados em influenciar de algum modo a monarquia.

    Uma destas obras foi o Prncipe Perfeito de 1790, escrita por Francisco Antnio de Novaes Campos 7. O autor, formado em Leis em Coimbra em 1759, parafrasea neste livro do autor espanhl Solrzano Pereira, cuja obra data do sculo XVII. O Principe Perfeito procura lembrar Dom Joo VI seu dever moral ante Deus e seu povo. Em sua argumentao, a segurana e harmonia do corpo social vem da relao entre Deus e o Rei. Este no absoluto, pois julgado por Deus em seus atos, devendo agir com justia. Em relao ao seu povo, o corpo social, o rei a cabea8:

    Se o povo forma o Corpo, o Rey Cabea Os sentidos trazer deve apurados Para que pronto o sirva, e lhe obedea Por todos vele em fim com mil cuidados Que s por que nenhum dos seus perea, que tantos poderes lhe so dados 9

    Segundo esta metfora do corpo humano que impregnou o pensamento poltico desde o final da Idade Mdia 10, ser a cabea no significa ser absoluto nesta tradio. Significa, em primeiro lugar ser um centro moral que sirva de espelho ao resto do corpo social, o que contribui para a manuteno da ordem e harmonia.. Seus poderes lhe foram dados por Deus para que cuide de seu povo, entendido como o conjunto dos sditos ou vassalos, como um pastor cuida do seu rebanho, punindo quando necessrio. Deve dar franca entrada aos povos, ouvindo as queixas dos vassalos e administrar com justia, dando a cada um o que lhe prprio.

    Outra obra importante foi a Dissertao a favor da monarquia escrita pelo Marqus de Penalva em 1799. Seu autor, um nobre da melhor tradio do reino, neto de um guerreiro da Restaurao portuguesa concluda em

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    1640 - o segundo Conde de Vila-Maior e primeiro Marqus de Alegrete , foi governador da capitania de So Paulo e do Rio Grande no Reinado de Dona Maria Primeira.

    A obra uma defesa da legitimidade da monarquia portuguesa e das hierarquias do Antigo Regime frente ao contratualismo, s noes de igualdade e direitos do homem. A monarquia, a soberania de um s, vista como o melhor dos regimes, pois natural e necessria como a autoridade que um pai tem em relao aos seus filhos. A metfora do pai e filhos de ampla utlizao no periodo para tratar da relao entre rei e vassalos: os reis so os Pais e Pastores dos Povos. Segundo Penalva,

    cederam a este pai comum [o Soberano] todos os pais de famlias e seus venerveis direitos, e encarregou-se a um s o governo de todos. Sentiram-se logo os benignos influxos que a concrdia produz: unio de foras, igualdade de subordinao, semelhana de costumes, interesse recprocro; tudo concorreu para fazer o Patriotismo, uma das mais belas e necessrias qualidades de Cidado e Vassalo 11

    Embora o monarca seja o titular nico da soberania, isso no significa em absoluto que no regime monrquico no haja liberdade e direitos do cidado. Para Penalva, a monarquia difere radicalmente do despotismo, pois os cidados possuem direitos que podem ser exigidos, o que se verificaria de forma peculiar na ptria portuguesa onde o soberano consente que sejam julgadas as causas entre a coroa e os seus Vassalos (...) tanto o respeito que os nossos Prncipes tem a Deus por quem reinam, e justia e observancia das mesmas leis! 12

    Da mesma forma, para Penalva, a igualdade tambm existe na monarquia. Tal como pai de famlia, o monarca distingue e paga os seus servios, mas sem ofensa do direito que tm a ser ouvidos e protegidos com igualdade 13. Toda esta argumentao se dirige a provar que a argumentao dos inquietos ilustrados contra o antigo regime no possui fundamento, pois neste, h todas as garantias aos povos e limites ao alcance do poder real. O poder absoluto legtimo e justo no significaria despotismo, pois possui uma jurisdio verdadeiramente real que no pode ser extendida para alm de certos limites ditados pela Constituio.

    Como ento provar esta legitimidade? Historicamente a leigitimidade do dominio dos Prncipes portugueses pode ser provada, primeiro, pelo direito de propriedade adquirido por doao feita pelo Rei Espanhol ao Conde D. Henrique e por conquista em guerra justa a expulso dos maometanos do territrio. Estes fatos fundadores confeririam ao rei pelas leis do resgate e pela gratido a sujeio dos Povos libertados da opresso. Alm disso, a celebrao das Crtes de Lamego, a primeira reunio das Cortes Portuguesas, cujo acontecimento sempre fora motivo de dvidas, seria uma prova de que a monarquia era, alm de fruto de conquista e doao, consequencia da livre escolha dos Povos.

    O argumento da livre escolha atravs da tradicional instituio das cortes difere de longe do argumento de que a soberania fruto de um contrato ou pacto originrio entre os homens, entendidos como indivduos autnomos. As Crtes representavam simplesmente o momento em que o rei ouvia seus vassalos,

    imitao dos Pais que chamam seus filhos crescidos para de comum acordo alterarem alguma coisa na famlia, assim os nossos soberanos chamavam os Procuradores dos povos para lhes manifestar as circunstancias imperiosas, que os

    11PENALVA, Marqus de. Dissertao a favor da Monarquia. Porto: Edies Gama, sd. (Ttulo original: Dissertao a favor da Monarquia. Onde fe prova pela razo, authoridade, e expe-riencia fer efte o melhor e mais jufto de todos os Governos; e que os noffos Reis so os mais absolutos, e legtimos Senhores de Feus Reinos: offerecida a sua alteza Real o Prncipe do Brazil nosso senhor pelo Marquez de Penalva. Lisboa: na Regia officina Typografica. M. DCC. XCIX, por ordem de sua magestade)

    12PENALVA, Marqus de. Op.Cit. p.47.

    13Ibidem. p.76.

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    obrigavam a dispensar algumas das leis fundamentais, ficando-lhes com o seu voto um penhor da sua aprovao, e obedincia 14

    Esta conceituao aparece tambm nos episdios conflituosos opondo os povose as autoridades metropolitanas, por exemplo nas rebelies ocorridas na regio mineradora no inicio do sculo. Eram os povos que buscavam a preservao de seus antigos direitos e privilgios pactuados ou costumeira-mente assegurados, que estavam sendo ameaados pela administrao real. Deste era esperado que fizesse a justia e a paz, o que significava fundamentalmente o respeito e manuteno dos lugares sociais e privilgios estabelecidos. Na colnia, estes direitos decorriam em grande medida dos direitos adquiridos pelos povos em decorrncia da conquista e defesa do territrio, o que garantia a soberania portuguesa nas regies coloniais.

    Segundo Carla Maria Junho Anastasia,

    estas revoltas explicitavam a dificuldade que tinham as autoridades em impor regras sem respeitar aquelas estabelecidas no convvio da comunidade. Foram revoltas claramente reativas, nas quais os mineradores no pretendiam colocar em xeque as regras estipuladas para o jogo colonial, mas to somente lutavam para garantir a manuteno de determinados procedimentos inaugurados no alvorecer das minas, e, em geral, considerados razoveis pela sua populao 15

    Anastasia, ao analisar um levante ocorrido em 1715 conclui que os revoltosos no discutiam a justia do pagamento do tributo cobrado pelos representantes do rei, mas apenas a pretendida mudana em sua forma. Em outras palavras, no discutiam sua fidelidade ao rei e seu direito soberano sobre o territrio e as gentes. O rei terminou por ceder s presses pedido do governador D. Bras, e concedeu perdo aos revoltosos a fim de sossegar esses povos com deixar de executar as ordens para se cobrarem os quintos por bateias (...) permitindo em que se contituasse com a forma estabelecida e assentada com os povos em trinta arrobas de ouro por ano (...) 16.

    No grande levante de 1720, conhecido pelo nome de um dos seus lderes, Felipe dos Santos, este significado reiterado. De cordo com uma das fontes mais importantes referentes ao movimento, supostamente escrita pelo ento governador, o Conde de Assumar, entre os intentos dos povos estava a conservao do respeito por parte daqueles que se tinham antigamente apoderado da autoridade e mando de que hoje se achavam destitudos, e o procuravam por meio to ilcito recobrar 17. Eram os povos que buscavam a preservao de seus antigos direitos e privilgios pactuados ou costumeiramente assegurados, que estavam sendo ameaados pelo poder real. Estes, dizia conde, querem que a lei seja conforme eles vivem, e no querem viver eles conforme a lei.18

    Estes movimentos ocorridos na primeira metade do sculo XVIII, dos quais expusemos um exemplo das Minas, demonstram a fora na colnia da tradio de relao entre povos e monarca. Deste era esperado que fizesse a justia e a paz, o que significava fundamentalmente o respeito e manuteno dos lugares sociais e privilgios estabelecidos. Na colnia, estes direitos decorriam em grande medida dos direitos adquiridos pelos povos em decorrncia da conquista e defesa do territrio, o que garantia a soberania portuguesa nas regies coloniais.

    Em outros casos, os conflitos podiam trazer uma radicalizao do pacto entre povos e rei e uma conceituao diferente do povo. Na famosa

    14PENALVA, Marqus de. Dissertao a favor da Monarquia. Porto: Edices Gama, sd. p.118.

    15ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes. Violncia coletiva nas minas na pri-meira metade do sculo XVIII. Belo Horizonte: Editora c/ Arte, 1988. p.34

    16Carta Regia de 04 de maro de 1716. APM. Seo Colonial. Cdice SG 04 fls 129 e 130. Apud. ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes. Violncia coletiva nas minas na pri-meira metade do sculo XVIII. Belo Horizonte: Editora c/ Arte, 1988.

    17Discurso Histrico e Poltico sobre a Sublevao que houve nas Minas no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1994. p.72.

    18Ibidem. p.68.

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    Guerra dos Mascates no incio do sculo, os povos no eram apenas os participantes de uma ordem mstica, mas os integrantes de um verdadeiro pacto ou contrato com o rei. Sendo este pacto quebrado, por tirania real, isto , pela no observncia da obrigao de fazer a justia, aos povos cabia o direito de rebelarem-se. Isto possvel por que nesta concepo a justia reta e igualmente distribuda, de modo que todos os membros da comunidade poltica tem o direito e o dever de, por todos os meios, procurar mant-la. Esta noo pactual radicalizada, bom que se entenda, no foge ao corporativismo que regia a viso tradicional da sociedade e da poltica. O pacto entre povos e rei s se legitima por que ancorado num ordenamento natural, costumeiro e de cunho divino.

    No episdio em questo, a guerra foi travada pois a nobreza da terra defendia o monoplio da representao poltica na Cmara de Olinda sob o argumento de que seus antepassados tinham conquistado a capitania aos ndios no sculo XVI e a reconquistado aos holandeses no sculo XVII, restaurando a soberania portuguesa na regio. Este argumento, que fez histria nos movimentos em Pernambuco at 1824, fica claramente exposto num clebre trecho de uma carta atribuda na Narrao Histrica um membro da nobreza:

    Bem sabe vossa Merc o quanto se desvelaro nossos antepassados na restaurao desta terra, acreditando a sua fidelidade custa de seu sangue, vidas e fazendas, e que a vossa merc compete muita parte desta gloria pelo assinalado nas proezas do memoravel pai de vossa merc, como um dos principais restauradores dela, aumentando a coroa de Portugal, de quem todos somos legitimos vassalos, esta conquista, que sempre conservamos em paz na sua obedincia (...) 19

    Em resposta ao governador da Paraba que havia enviado nobreza pernambucana um manifesto em 18 de Julho de 1711 condenando o levante, a nobreza se refere tradicional relao entre os povos e o monarca, recordando que a obrigao do rei e dos seus ministros conservar os vassalos e suditos em paz, fazendo observar a cada um os ditames da razo e justia. Porm, continua, como a justia divina s reta e igualmente distributiva, permite algumas vezes superiormente, que os mesmos que reconhecem a obediencia castiguem as tiranias, mostrando rebeldia (...). 20

    Esta concepo radicalizada teve paralelo no plano doutrinrio, embora seja difcil determinar o quanto estas obras tinham influncia nos eventos descritos. A restaurao portuguesa de 1640 havia trazido novos elementos para o conceito. Era preciso, aps 60 anos de domnio dinstico espanhol, fundamentar o direito do reino portugus de rebelar-se e retomar sua soberania. Neste contexto, o argumento da escolha livre dos povos, que j fazia parte do repertrio tradicional legitimador da soberania real, ganhou relevo e proeminncia. Era certo ainda que a sucesso dinstica, a conquista e adoo tinham sua importncia na determinao do poder soberano, mas para que a soberania de fato fosse conferida era imprescindvel o consentimento dos povos, entendidos aqui como o conjunto dos trs estados ou ordens. Em meados do sculo XVII, Francisco Velasco Gouveia escreveu um tratado analtico defendendo a justia e legitimidade da aclamao de D Joo IV. Portugal acabara de sair da dominao da coroa Espanhola e era necessrio justificar perante as naes crists e a igreja catlica a sublevao que culminara com a aclamao do Duque de Bragana D. Joo. A primeira parte se dedica a mostrar que o reino de Portugal tem o poder para aclamar rei quem tiver esse direito e expulsar

    19Narrao Histrica das Calamidades de Pernambuco sucedidas desde o anno de 1707 at 1715 com a notcia do Levante dos Povos de suas capitanias. Escrita por um annimo (1749). Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n.53, Parte II, 1890.

    20Ibidem. p.139

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    aquele que no o tiver. Para Velasco Gouveia, o fundamento desse direito que o poder regio dos reis est nos povos e Repblicas, e delas o receberam imediatamente 21. Todo o poder existente no mundo dos homens vem de Deus, verdade, mas sua existncia se destina conservao humana, de modo que a razo natural diz que este poder foi dado todos os homens da comunidade, ao reino, enfim, aos povos.

    Nesta concepo, portanto, o rei recebe o poder no diretamente de Deus, como queriam muitos tericos do periodo, mas com a mediao dos povos e atravs de um pacto cuja condio a de que os povos sejam governados e administrados com justia. Porm, esta transferncia de poder que origina a soberania real no implica que os povos fiquem absolutamente desprovidos do poder. Citando So Tomaz de Aquino, Gouveia argumenta que de acordo com o direito natural, na Repblica, assim como entre os particulares, no pode haver renuncia total ao poder para autoconservar-se. Em outras palavras, assim como um indivduo pode rebelar-se e usar de violncia para manter sua vida, as comunidades tambm o podem. Isto porque, embora os povos transfiram o poder aos reis, este lhes fica habitualmente e pode ser reassumido quando lhes for necessrio para sua conservao. A autor salienta que esta possibilidade se restringe.

    somente nos casos particulares (que raramente acontecem) dos Reys convertem o governo justo do povo, em tirania, abusando do que os mesmos povos lhes transferiram; ou de serem intrusos, sem lhes pertencer o direito do reino; podem os povos uzar do poder, que in habitu lhes ficou, e reduzi-lo a acto, tratanto de sua natural defesa e remedio 22

    A poltica pombalina posta em ao a partir da segunda metade do sculo pode ser entendida justamente como uma reao a viso corporativa do povo e de sua relao com o poder real. A lei, em autores pombalinos como Tomz Antnio Gonzaga, depende da vontade do legislador e no, de forma alguma, da aceitao do povo. Os privilgios so apenas leis particulares e sua validade no vem do costume, das tradies ou da emanao popular, mas, como em qualquer outro caso, provm do reconhecimento que lhe d ou no o monarca. No que toca ao nosso ponto, o lugar e a funo do povo na linguagem poltica, importa perceber que o esprito fundamental do pombalismo transforma os povos, que na tradio eram identificados a um conjunto de vassalos detentores de direitos e jurisdies, em algo prximo a indivduos sditos horizontalmente submetidos a uma lei comum23.

    Na viso dos contemporneos, o projeto pombalino foi um conjunto de aes no sentido de modernizar o Imprio Portugus a partir da ao deci-siva do rei, o que pode ser entendido contemporaneamente tambm como a ao do Estado. criada uma verdadeira burocracia num sentido mais prximo ao moderno: um conjunto de funcionrios que respondem direta-mente autoridade real, no sentido de enfraquecer a tradional administrao organizada nos moldes do Antigo Regime, isto , atravs da con cesso real de mercs, honras e privilgios24. Como vimos, na tradio lusitana, o poder era essecialmente repartido, de modo que estes cargos signi ficavam para os nobres a concesso de poderes e jurisdies em nvel local, embora vincu-lados manuteno da soberania portuguesa em seus territrios. Com as mudanas, os rgos institucionais da coroa e seus funcionrios ganharam mais prestgio social e passaram a ser pagos com salrios, o que se opunha a tradio de tomar os cargos por bens particulares e transmssveis por

    21Justa Acclamao do Serenssimo rey de Portugal D. Joo o IV. Tratacdo analytico divi-dido em trs partes . Ordenado e divulgado em nome do mesmo reyno, em justificao de sua aco. Dirigido ao summo pontfice da Igreja Cathlica, Reys, Prncipes, respublicas, e senho-res soberanos da Christandade. Composto pelo Doutor Francisco Velasco Gouveia (...). custa dos trs Estados do Reyno. Lisboa, Typ. Fnix Beco de Santa Martha, n. 123, 1846.

    22Ibidem. p.48

    23Esta transformao semntica, entretanto, no eliminou o peso da tradio hierrquica, de modo que, tanto o governo pombalino quanto os governos mariano e joanino, tiveram que dialogar com os diversos poderes estamentais e incorporar suas reivindicaes e vises de mundo. Segundo Ana Rosa Cloclet da Silva, a poltica iniciada no governo de Pombal teve franca participao de elementos tradicionais, como a Igreja, e foi obrigada a abrir espao nobreza descontente, especialmente no perodo conhecido como a viradeira. Ver: SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nao: Intelectuais Ilustrados e estadistas luso-brasileiros na Crise do Antigo Regime Portugus (1750-1822). So Paulo: Hucitec: FAPESP, 2006.

    24BICALHO, Maria Fernada. O que significava ser cidado nos tempos coloniais. In. ABREU, Martha e SOIHET, Rachel. (orgs). Ensino de Histria. Conceitos, Temticas e Metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

    25SERRO, Jos Vicente. Sistema Poltico e Funcionamento Institucional do Pombalismo. In. MONTEIRO, Nuno Gonalo et ali (orgs.). Do Antigo Regime ao liberalismo (1750-1850). Lisboa: Ed. Veja, sd.

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    hereditariedade.25 Era preciso, frente crise econmica por que passava o Imprio, transformar o Estado numa entidade com mais poder frente sociedade, dotando-o de uma administrao mais eficiente.

    No plano dos grandes textos fundamentadores do projeto pombalino, podemos definir duas grandes vertentes, de acordo com o estudo de J. S. Da Silva Dias 26: um grupo que se apoia no argumento do direito divino dos reis e outro no discurso jusnaturalista. Dois autores se destacam no primeiro grupo: Pereira de Figueiredo; que publica em 1766 a Tentativa Teolgica e em 1769 a Demonstrao Teolgica; e Jos Seabra da Silva, com sua Deduo Cronolgica e Analtica em 1768.

    Estas obras se batiam contra a viso sacral da sociedade, isto , contra a concepo da sociedade e do Estado como um brao secular da Igreja. O poder emanado diretamente de Deus ao rei sem passar pela mediao da Igreja romana e dos corpos da nao reunidos nas cortes. A nica limitao da autoridade regia a vontade de Deus. Contra as doutrinas pactistas, defendem que a monarquia portuguesa pura, no sentido de autnoma frente a qualquer outro poder, igreja e povos, pois no nasceu de um pacto, sendo as cortes rgos conjunturais e consultivos. A soberania portuguesa teria sido o fruto de uma conquista obtida em gerra justa contra os infiis, doao e concesso e no por eleio dos povos reunidos nas cortes de Lamego como na viso pactual.

    A justificao jusnaturalista teve seu lugar em autores pombalinos. Porm o jusnaturalismo propriamente moderno, teve pouca insero at os anos 70, quando ento comea a ter alguma representatividade. No Brasil, o maior nome foi ironicamente o de Thomaz Antnio Gonzaga, o futuro inconfidente Mineiro de 1789. No era propriamente um autor brasileiro, uma vez que no se pode ainda falar num mundo intelectual autnomo na colnia. Nascido na cidade portuguesa, teve pai brasileiro e me portuguesa, tendo se mudado para o Brasil em 1751, onde fez seus primeiros estudos. Como muitos filhos da elite brasileira, ingressou na Universidade de Coimbra em 1761 onde sete anos depois se formou bacharel. Voltando ao Brasil, em 1782, foi nomeado Ouvidor dos Defuntos e Ausentes da capital da capitania de Minas Gerais, Vila Rica.

    Ainda em Portugal escreveu o Tratado de Direito Natural, tese apresentada com a inteno de tornar-se docente na Universidade em que se formou. Neste texto, nos apresenta o jusnaturalismo possvel na sociedade portuguesa naquele momento: ancorado nos parmetros da teologia, do direito cannico e do jusnaturalismo tradicional. Por direito natural, Gonzaga entende a coleo de leis que Deus infundiu no homem para conduzir ao fim que se props na sua criao. Estas leis levaram os homens a organizarem-se em sociedade, isto , a postarem-se sob um imprio e unirem-se por pactos para assegurarem sua segurana e tranquilidade.

    Segundo Gonzaga, apoiado nas sagradas escrituras, todo o poder que um homem pode exercer sobre seus semelhantes tem origem divina, logo, o rei s pode ser julgado por Deus. O problema saber se chega ao rei com algum tipo de mediao, a que Gonzaga responde negativamente: no verdade que o poder estava no povo e esse o transferiu no ato da eleio (entendido como escolha); o povo no tem em si poder algum, mas somente a faculdade da eleio de quem receber o poder. O povo d origem sociedade, mas apenas escolhe a forma de governo e elege aqueles que iro exercitar o imprio.

    26DIAS, J. S da Silva. Pombalismo e Teoria Poltica. Cultura, Histria e Filosofia. Vol 1. Instituto Nacional de Investigao Cientfica. Centro de Histria da Cultura da Universidade Nova Lisboa, 1982.

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    No h, para Gonzaga, contrato algum em que o monarca deva prestar contas ao povo. Portanto, o rei no pode ser de forma alguma subordinado ao povo; e por isso ainda que o rei governe mal e cometa algum delito, nem por isso o povo se pode armar de castigos contra ele27. Ao povo, depois que o elegeu, j nada mais toca do que obedecer-lhe e respeit-lo. Sua alegao se ope, no somente ao direito natural de extrao laica, mas tambm s teorias pactistas da segunda escolstica ibrica que postulavam o povo como a origem da soberania real e a possibilidade de que, em caso de despotismo, este poderia retomar para si a soberania e se rebelar contra o rei. Este pactismo ganhava relevo num momento em que o despotismo sufocava as colnias e muitos tericos, como Gonzaga, apoiados pelo governo, procuraram combat-la.

    Ao final do XVIII, conjuraes em Minas Gerais (1789), Rio de Janeiro (1794) e Bahia (1798) criticaram o que viam como o despotismo pombalino e trouxeram novas conceituaes do povo. Os princpios do direito natural iluminista, reforados pelo exemplo das revolues na Amrica e Frana, forneciam aos conjurados novas ferramentas crticas, notadamente a idia de liberdade, igualdade e soberania dos povos ou do povo. Estas se somavam tradio ibrica do governo justo e da crtica tirania.

    O impacto das idias propriamente liberais foi diferenciado em cada movimento, e, sobretudo, no deve ser sobrevalorizado. Foi mais importante no caso carioca e baiano e menos nas minas. Os conspiradores mineiros, embora tenham sido tocados pelas idias ilustradas permaneciam fortemente imersos no mundo do Antigo Regime. Sua concepo do governo justo contraposto tirania atrelava-se no ao pressuposto da igualdade entre cidados, mas ao dever do governante de respeitar e manter as hierarquias e privilgios dos estratos da sociedade. De fato, os inconfidentes falavam em liberdade, repblica, mas, ao contrrio da imagem que se cristalizou na memria nacional, no foram o prenncio de um republicanismo liberal no Brasil. O termo repblica, tal como aparece nos textos coloniais, significava, no um regime poltico especfico, mas qualquer organizao poltica. A defesa da liberdade, por seu turno, e o conseqente desejo de romper com o pacto colonial expresso pelos conjurados das minas faziam parte de concepes tradicionais j expressas em outros movimentos nas Minas no sculo XVIII: manter a justia, as dignidades nobres eliminando os constrangimentos que impediam a fruio tradicional de direitos28. Logo, ao falar em povo ou povos, no era soberania popular que se referiam ou a um governo representativo no sentido liberal.

    No movimento revolucionrio pernambucano de 1817, da mesma forma, ao jusnaturalismo iluminista uniram-se mais uma vez as concepes tradicionais da vassalagem e do pacto ou contrato entre sditos e o rei. Ao povo pernambucano, caberiam privilgios e liberdades pela lealdade prestada ao rei por ocasio da grande obra da expulso dos holandeses no sculo XVII.29 O movimento revolucionrio de 1817, portanto, no pode ser definido apenas como um conflito diretamente ligado situao colonial opondo colonizadores e colonizados, aristocracia rural e mercadores coloniais portugueses, como sugeriu Carlos Guilherme Mota 30. No se tratava de um movimento liberal emancipacionista e anti-colonialista. Os rebeldes justificavam a rebelio com argumentos tpicos da tradio ibrica de crtica ao despotismo em nome dos povos.

    27GONZAGA, Tomaz Antonio. Tratado de Direito Natural. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p.147.

    28FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Os Inconfidentes Intrpretes do Brasil. In: AXT, Gnter e SHULER, Fernando. Intrpretes do Brasil. Cultura e Identidade. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 2004. p.10.

    29MELLO, Evaldo. C. de. Rubro Veio o imagin-rio da restaurao pernambucana. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

    30MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: Estruturas e Argumentos. So Paulo: Perspectiva, 1972.

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    2. O povo como o terceiro estado na sociedade de ordens do Antigo RegimeAlm de denotar a totalidade do corpo poltico em sua relao com o poder real, a mesma palavra povo tambm era o terceiro estado da sociedade de ordens do Antigo Regime, aquele que tinha o dever e o direito ao trabalho, ao lado da nobreza e do clero, de acordo com a tripartio da sociedade teorizada por So Tomaz de Aquino no sculo XI.

    No decorrer das transformaes econmicas e sociais postas em curso a partir das grandes navegaes e dos processos de colonizao, notada-mente, a partir do sculo XVIII, surgiram inmeros novos grupos sociais, o que acelerou um processo crescente que Antnio Manuel Espanha chamou de pluralizao de estamentos, que abalou esta tripartio tradicional. A viso da sociedade, que sempre tivera um carter simplificador, o que fora percebido mesmo pelos tericos medievais, se tornava bastante mais complexa com as transformaes em direo modernidade. Surgia um grupo intermedirio entre o povo os mecnicos, como eram chamados no mundo luso e os nobres: os burgueses, os letrados, os lentes das universidades, os advogados, os cirurgies, os grandes comerciantes, de modo que a definio de quem o povo passa a ser mais complexa. Embora formalmente fizessem parte do povo, no se adequavam bem ao qualificativo de mecnicos. No interior do povo, cada vez mais passaram a haver os vis (ou plebe) e os limpos, isto , aqueles dignos de alguma participao na sociedade e aqueles indignos por condio social, tipo de ocupao ou origem de sangue.

    Os territrios coloniais portugueses constituram o local onde este processo de dissoluo ou complexificao na demarcao das trs ordens tradicionais foi mais evidente. O professor rgio Luis dos Santos Vilhena, famoso na historiografia pela sua frase no das menores desgraas viver em colnias31, exps bem este sentimento de dissoluo e desagregao que tanto incomodava os observadores. Em suas cartas datadas nos anos iniciais do sculo XIX, analisa os prejuzos causados pela introduo de negros escravos, especialmente no que diz respeito aos costumes. Explica que

    como todas as obras servis e artes mechanicas so manuzeadas por elles, poucos so os mulatos e raros brancos que nellas se querem empregar, sem exceptuar aquelles mesmos indigentes, que em Portugal nunca passaro de Criados de servir, de mos de taboa, e cavadores de enxada 32.

    certo, continua ele, que havia no Brasil daquela poca famlias nobres, mas a durao dos tempos tem feito sensvel confuso entre nobres e abjetos plebeos 33. Com essa confuso, muitos indivduos, tendo seus pais vindo no h muitos anos para o Brazil para serem caixeiros, quando tivesses a capacidade de o ser, porque a fortuna lhes foi propcia (...) cuidam seus filhos que o Imperador da China he digno de ser seu criado 34. Esta mania de ser nobre seria mais grave nos mulatos, por sua condio ainda mais indefinida. Quase todos eles querem ser Fidalgos, muitos ffos e soberbos, e pouco amigos dos brancos e dos negros, sendo differentes as causas 35 Devido ao que Vilhena considera uma, ou uma quimrica nobreza,

    o comum do povo he serem todos ociosos, no trabalhando a maior parte dos artfices, enquanto lhes dura o comer a tempo que querendo apurar-se so em extremo habilidozos. O ordinrio he serem conviventes e folgazes, e do comum bons homens 36.

    31A frase foi tida como um marco pela historio-grafia interessada em entender o processo de tomada de conscincia da situao colonial, que teria contribudos para os movimentos liberais do final do sculo XVIII e para a independncia

    32VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilao de Notcias Soteropolitanas e Brazlicas. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1921. p.140.

    33Ibidem. p.44.

    34Ibidem.

    36Ibidem. p.46.

    35Ibidem. p.47.

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    Segundo Schwartz, no sculo XVIII, autoridades coloniais apontavam o problema de que nos territrios coloniais do Brasil no havia um povo propriamente dito. As tradicionais instituies representativas portuguesas as cortes - nunca haviam sido institudas na colnia e o conceito de povo como terceiro estado na sociedade de ordens, isto , organicamente e constitucionalmente vinculado ao corpo da poltica, era frgil ou ausente em decorrncia do tipo de ocupao mecnica, do sangue impuro e dos costumes da populao. Por isso, segundo o autor, o termo plebe ou o povo no sentido de plebe (povo mido, vulgo, canalha,) passou a ser cada vez mais utilizado pelas autoridades coloniais em referncia populao da colnia. 37

    Ao tentar definir o que era esta plebe, autoridades coloniais recorriam muitas vezes a exemplos do passado greco-romano. Analisar a realidade atravs da histria clssica era uma caracterstica do modo de se produzir conhecimento sobre o mundo humano daquele momento, ainda profundamente marcado por uma concepo que podemos denominar de histria mestra da vida. Porm, podemos identificar neste recurso um esforo realizado pelas autoridades coloniais para entender as caractersticas mpares de um mundo em que as formas costumeiras e tradicionais de demarcao social pareciam mais confundidas.

    Era, porm, difcil para os observadores do perodo ter uma apreciao clara do contedo significativo da vasta plebe colonial. Reportando-se aos acontecimentos da guerra dos mascates em Pernambuco na primeira dcada do setecentos, Evaldo Cabral de Mello tambm percebeu que as crnicas coevas designavam a populao livre e pobre por plebe, a fim de distingu-la do povo, noo mais abrangente que inclua as camadas mdias, como os mascates (...) 38. Porm, no a descrevem de fato, no s por preconceito elitista, mas at pela miopia ideolgica que no lhes permite definir-lhe os contornos 39. Esta cegueira fica evidente nos Desagravos em que o tema tratado em poucos pargrafos em que evocada a plebe da antiguidade clssica, a qual ter de retoricamente invocar para preencher a ausncia da outra, a plebe colonial 40.

    Nas pginas dos Desagravos, Couto escreve que sendo a nobreza a alma de uma republica, o seu corpo se compe de homens mecnicos, assim chamados das artes mecnicas, ou servis, (...), e de povo mido, que a gente popular, plebe e povo. Aps esta introduo, parte o autor para Plato, que compara a plebe a um grande animal, do qual preciso conhecer as manhas para saber como h de ser tratado, que se no tem este animal quem o amanse, faz-se furioso, se no o guiam, no sabe para onde anda, terrvel se no tem medo, comeando a temer se perturba e foge. Alm disso, incapaz de distinguir as aparncias das verdades e quando falam de poltica, confundem as coisas, de modo que no podem governar a si prprios. Cita ainda Scipio, para quem o vulgo era como o mar imvel por sua natureza, mas segundo os ventos, que o agitam, quieto ou proceloso, e Cato, para quem o vulgo era como uma carneirada, pois que assim como nenhum carneiro obedece a pessoa alguma, mas todos juntos seguem o mesmo pastor 41.

    No Discurso Histrico e Poltico sobre a Sublevao que houve nas Minas no ano de 1720, D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o Conde de Assumar, a quem se atribui a obra, percebia que os representantes da coroa portuguesa viviam nos territrios coloniais ameaados por habitantes hostis e insubmissos, prontos a motins, tumultos e desordens. Assim como no escrito de Loreto Couto, o povo, utilizado aqui no sentido de plebe, era

    37SCHWARTZ, Stuart. Gente da Terra Braziliense da Naso Pensando o Brasil: a Construo de um Povo. In: C. G. Mota (org.). Viagem Incompleta. A Experincia Brasileira (1500-2000). Formao: Histrias. So Paulo: Editora Senac, 2000.

    38MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazom-bos. Nobres contra mascates. Pernambuco 1666-1715. So Paulo: Editora 34, 2003. p.302.

    39Ibidem.

    40Ibidem.

    41COUTO, Domingos de Loreto. Desagravos do Brasil e Glrias de Pernambuco. Rio de Janeiro: Officina Typographica da Biblioteca Nacional, 1904.

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    descrito atravs de exemplos da autoridade clssica. Para o conde, a situao vivida na colnia era um espelho do que havia ocorrido na criao de Roma, de acordo com a descrio legada por Lucio Floro o povo constava de vares que no tinham mais bens que a esperana do que houvessem de conquistar suas armas, roubando 42. Em outra passagem, cita a descrio de Tertuliano sobre os habitantes do Ponto Euximo: uma regio habitada por gente intratvel, sem domiclio, e ainda que est em contnuo movimento. Analisar a realidade atravs da histria clssica era uma caracterstica do modo de se produzir conhecimento sobre o mundo humano daquele momento, ainda profundamente marcado por uma concepo que podemos denominar de histria mestra da vida. Porm, podemos identificar neste recurso um esforo realizado pelas autoridades coloniais para entender as caractersticas mpares de um mundo em que as formas costumeiras e tradicionais de demarcao social pareciam mais confundidas.

    Outra marca presente no Discurso e nos Desagravos a concepo de que a plebe ou o vulgo no tem motivaes e atuao polticas prprias, sendo apenas levada pela vontade de alguns principais. Para Loreto Couto, a plebe incapaz de governar a si prpria, tal qual os carneiros que seguem o pastor e o mar que muda conforme os ventos. O Conde de Assumar, assinala o mesmo, ao afirmar que tal a natureza do vulgo, que para se alegrar e folgar com o seu prprio mal, basta ser novidade e sem razo, porque tem, como por hombridade e capricho, seguir tudo o que vem contra a razo, contra a piedade e contra o agradecimento 43 A nfima plebe s se envolve em amotinaes quando levada pelos cabeas. As pessoas envolvidas nos movimentos rebeldes das minas so de duas qualidades: aqueles que desejam dominar o governo, recuperar ou manter seus antigos privilgios, e a plebe desejosa apenas de se ver livre das dvidas e da punio por seus crimes. Este perdido gado deve o quanto antes voltar ao seu pastor, pois sem ele vai mal guiado.

    Laura de Melo e Souza, no seu conhecido Desclassificados do Ouro assinalou o problema que significou para as autoridades coloniais a manuteno desta plebe colonial nos limites da ordem e a falta de um verdadeiro povo. No perodo da produo aurfera nas Minas, houve, segundo a autora, um indito ajuntamento populacional na regio, tornando ainda mais premente a preocupao das autoridades. A urbanizao na regio das minas trouxe como conseqncia a convivncia entre populaes de forma muito mais ntima que em qualquer outro ponto da colnia. Da que normalizar a populao e cobrar impostos tornaram-se necessidades prementes. A populao de escravos, ndios e forros representava um grave problema. Temia-se uma revolta escrava, e tambm o agravamento das revoltas fiscais que se proliferaram no setecentos.

    As autoridades portuguesas, que para l eram mandadas em grande nmero, apontavam, como fez o Marques do Lavradio, que aqueles povos eram gentes da pior educao, de um carter o mais libertino, como so negros, mulatos, cabras, mestios e outras gentes semelhantes tornavam impossvel o exerccio do governo 44. Da a ideologia da vadiagem: a populao livre e pobre era considerada vadia e deveria ser rapidamente enquadrada em uma forma de trabalho. Urgia aplicar, segundo o Conde de Assumar em 1718, os Remdios Violentos, como to preciosos, a uma canalhada to indmita 45

    A distino entre nobres e no nobres, bem como entre povo e plebe permaneceu fundamental nos principais movimentos ocorridos na segunda

    42Discurso Histrico e Poltico sobre a Sublevao que houve nas Minas no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1994. p.62.

    43Ibidem. p.73.

    44Relatrio do Marques do Lavradio. Apud. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro. A Pobreza Mineira no Sculo XVIII. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1986. p.106.

    45Ibidem. p.109.

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    metade do sculo XVIII e incio do XIX. No movimento mineiro de 1789, composto basicamente por membros da elite urbana nascente, padres e intelectuais, embora se conclamasse genericamente o povo para participar da luta contra a tirania, no se viu o povo pobre e mestio, a plebe, como participante legtimo da nova sociedade a ser criada. A concepo estamental de sociedade ainda prevalecia sobre a de igualdade civil e poltica. Os conspiradores tinham no horizonte proclamar uma republica nos moldes norte-americanos com um povo composto de proprietrios e ilustrados. Era, segundo Maxwell, sobretudo um movimento de oligarcas e no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo evocado apenas como justificativa 46.

    Consideraes FinaisNo sculo XVIII luso-brasileiro, o conceito de povo, embora tenha perma-necido nos marcos da tradio poltica, teve seu significado em grande medida reinventado. As contingncias da vida em colnia e os primeiros ares da modernidade comeavam a abalar a estabilidade das concepes polticas vigentes. A noo de pacto ganhou muitas vezes maior radica-lidade, com o direito de rebelio dos povos frente ao despotismo vindo a primeiro plano. Ao mesmo tempo, percebia-se cada vez mais claramente a artificialidade da tripartio em trs ordens clero nobreza e povo num mundo marcado pela escravido, pela convivncia de raas no brancas num espao econmico e social amplamente diverso do europeu. As distin-es se fluidificavam e complexificavam, tornando o conceito de povo sinnimo ou substituvel pelas expresses plebe, vulgo, povo mido.

    A fora da tradio no uso e semntica do conceito de povo mesmo nas grandes conspiraes do final do sculo no significa o malogro do liberalismo ou um liberalismo peculiar ao mundo ou luso-brasileiro, que no soubera generalizar uma sociedade de cidados livres e iguais. Mesmo na Europa ilustrada, a concepo de um povo de iguais era difcil nestes primrdios no mundo contemporneo, ainda fortemente imerso nas prticas e idias do Antigo Regime.47.

    Se a idia de um povo de indivduos iguais em direitos civis e polticos era muito frgil nos movimentos liberais de finais do XVIII e incios do XIX em pases como a Frana, no mundo portugus e brasileiro do Antigo Regime, o peso e a permanncia da tradio estamental corporativa era particularmente notvel48, especialmente no espao colonial, muito fechado ao contato com o mundo europeu.

    O fato de o mundo estar passando por amplas transformaes intelectuais, sociais e polticas, com as revolues americana e francesa e a ilustrao, no implica um reflexo direto destas no espao luso-americano. A anlise da linguagem poltica dos agentes mostra que para alm de uma influncia de idias estrangeiras, os movimentos de contestao contaram com um repertrio de crtica ao despotismo e de defesa de direitos prprios ao antigo regime portugus. Isso no implica um pressuposto de imobilidade da histria, de que as mudanas eram impossveis dado o peso das tradies. As prprias tradies, como vimos, podiam ganhar contornos de radicalizao e foram veiculadas e defendidas em determinados contextos de crise, como em Pernambuco em 1817. No podemos esquecer que de fato, houve momentos em que o povo ganhou significados em grande medida j afastados da tradio, como na Bahia de 1798.

    Ser o povo no sculo XVIII um conceito propriamente? A histria de um conceito se quiser fugir ao historicismo ingnuo da tradicional histria

    46MAXWEL, Kenneth. A Devassa da Devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

    47Sobre esta questo ver MONNIER, Raymonde. Autour des usages dun nom indistinct: peu-ple sous la Rvolution Franaise. Rvue Dix-Huitime Sicle, 34, 2002. p.389-418 ; e tam-bm FRITZ, Gerard. Lide de Peuple em France du XVIIe au XVIIIe sicle. Presses Universitaires de Strasburg, 1988.

    48XAVIER, ngela Barreto e HESPANHA, Antnio Manuel. A Representao da Sociedade e do Poder. Paradigmas Polticos e Tradioes Literrias. In. HESPANHA, A. M. (coord.). Histria de Portugal. Vol. 4. O Antigo Regime. Lisboa: E. Estampa, 1993.

  • 114artigos Almanack Braziliense. So Paulo, n11, p. 100-114, mai. 2010

    das idias, deve renunciar a tentativas de seguir uma linha de evoluo do conceito passando pelas suas diversas pocas histricas. Esta dmarche tem por base uma viso essencialista das idias e conceitos, atribuindo-lhes uma substncia fixa e a-histrica, que se manifestaria de maneiras diferentes em seus estgios de desenvolvimento e maturao. preciso, ento questionar a propriedade de se falar em conceito de povo no sculo XVIII. A poltica pensada em termos de um campo discursivo formado por conceitos uma criao do mundo moderno, assim como a vivncia de um amplo espao pblico de debate poltico. No caso especfico do conceito de que estamos tratando, importante no perder de vista que sua centralidade no debate poltico , sobretudo, um fenmeno contemporneo, a partir da generalizao da idia de soberania popular. Embora se falasse em povo desde os primrdios da colonizao, no acredito que o povo fosse de fato um conceito. Seu significado inextricavelmente ligado relao com a figura real, no tendo contornos prprios e definidos, um contedo especifico e fundamentado. A palavra povo, alm disso, podia ser substituda por outras expresses intercambiveis (os vassalos, os sditos, a comunidade, os mecnicos e outros).

    Embora a idia de povo estivesse ganhando maior relevncia ao longo do sculo XVIII na verdade, desde o sculo XVII com as doutrinas pactistas da Segunda Escolstica o seu contedo significativo era pouco questionado. A tradio ibrica e tambm, de modo mais geral, a tradio ocidental forneciam os elementos de seu significado. O debate sobre quem o povo, quais suas caractersticas, suas potencialidades, sua composio, praticamente inexistia. Sua existncia era apenas considerada em funo de sua relao com o monarca, no tendo um significado inerente e particular. As poucas tentativas de defini-lo de forma direta e especfica levavam quase sempre evocao do passado greco-romano ou ao texto bblico, evidenciando, alm de uma cegueira elitista, o fato de que o povo no havia ainda se tornado um conceito imerso no debate poltico, o que ocorreria no sculo XIX.

    Recebido para publicao em agosto de 2009Aprovado em dezembro de 2009