o tanque de bombeiro: estudo sobre abstracoes ... · física dos fluidos que envolvem rela ções...

5
30 Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002 O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola Introdução E ste trabalho apresenta alguns resultados das primeiras experi- ências do projeto Brincando com Ciências. O projeto em questão tem como objetivo observar e compreen- der como a criança percebe e explica fenômenos físicos básicos apresenta- dos a ela em condi- ções experimentais revestidas de aspec- tos lúdicos. Não se colocam por en- quanto questões relativas ao Ensino de Física, o que exi- giria abordagens teóricas mais abran- gentes. Já nos primeiros momentos da pes- quisa, uma experi- ência piloto (exploratória) apresentou resultados interessantes, que serão aqui divulgados. Antes de relatar as experiências é preciso lembrar que, de acordo com Piaget, no estágio pré-operatório 1 , a criança é capaz de abstrações simples, mas ainda não possui condições para o que ele chama de abstração reflexi- vante. Grosso modo, as abstrações simples são feitas a partir das carac- terísticas empiricamente observáveis (cor, textura, peso, forma, proprie- dades de quebrar etc.), enquanto as abstrações reflexivantes exigem estabelecer relações entre os objetos. Para não interpretar o pensamento de Piaget de forma dualista, citamos Kamii e Devries (1992) quando ela observa a dialética entre esses dois ti- pos de abstração. “Depois de ter dis- tinguido entre abstração simples e re- flexivante, Piaget mostra que não po- de haver abstração simples sem abs- tração reflexivan- te”. Isso permite concluir que, para crianças nesse está- gio, o que existe é predominância de abstração simples, mas não impossibi- lidade total de abs- tração reflexivante. Esta pode ocorrer esporadicamente em determinados momentos quando o adulto - por exemplo, o professor - incita a criança a explicação de um fenômeno. É esta possibilidade que conduz o objetivo primordial desta pesquisa. A criança está constantemente “tangenciando” abstrações reflexivantes; admitir o contrário seria negar a própria cons- trução do conhecimento na mente in- fantil. A criança avança realizando tais abstrações reflexivantes. Nosso objetivo é, portanto, veri- ficar como a criança, no estágio pré- operatório, que se caracteriza pela M.A. Whitaker Departamento de Física e Química, Campus de Guaratinguetá - UNESP E-mail: [email protected] D.C. Whitaker Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara - UNESP T.C.M. de Azevedo Departamento de Física e Química, Campus de Guaratinguetá - UNESP Este trabalho apresenta um relato de atividades desenvolvidas com crianças em idade pré-esco- lar, com objetivo de observar e compreender co- mo a criança percebe e explica fenômenos da Física dos Fluidos que envolvem relações entre a pressão da água e a profundidade do recipiente que a contém, e a pressão da água e a velocidade de escoamento. As atividades experimentais fo- ram abordadas com ênfase nos aspectos lúdicos, e as crianças foram estimuladas a descrever e desenhar os fenômenos físicos observados. As explicações registradas mostram como as crian- ças desenvolvem seu “conhecimento” desses fe- nômenos. Procuramos apresentar uma estraté- gia para avaliar a especificidade do pensamento infantil no que se refere à compreensão de fenô- menos da natureza. Início de uma das entrevistas A - “Como o bombeiro faz para apagar o fogo?” C- “Pega a casinha e joga no pote de água.” O adulto mostra as torneiras do “tanque” para a criança. A criança pega a casinha e empurra mais perto. A criança é capaz de abstrações simples, mas ainda não possui condições para o que ele chama de abstração reflexivante. Grosso modo, as abstrações simples são feitas a partir das características empiricamente observáveis, enquanto as abstrações reflexivantes exigem estabelecer relações entre os objetos

Upload: vuongliem

Post on 13-Feb-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

30 Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola

Introdução

Este trabalho apresenta algunsresultados das primeiras experi-ências do projeto Brincando com

Ciências. O projeto em questão temcomo objetivo observar e compreen-der como a criança percebe e explicafenômenos físicos básicos apresenta-dos a ela em condi-ções experimentaisrevestidas de aspec-tos lúdicos. Não secolocam por en-quanto questõesrelativas ao Ensinode Física, o que exi-giria abordagensteóricas mais abran-gentes.

Já nos primeirosmomentos da pes-quisa, uma experi-ência piloto (exploratória) apresentouresultados interessantes, que serãoaqui divulgados.

Antes de relatar as experiências épreciso lembrar que, de acordo comPiaget, no estágio pré-operatório1, acriança é capaz de abstrações simples,mas ainda não possui condições parao que ele chama de abstração reflexi-vante. Grosso modo, as abstraçõessimples são feitas a partir das carac-terísticas empiricamente observáveis(cor, textura, peso, forma, proprie-dades de quebrar etc.), enquanto asabstrações reflexivantes exigem

estabelecer relações entre os objetos.Para não interpretar o pensamento dePiaget de forma dualista, citamosKamii e Devries (1992) quando elaobserva a dialética entre esses dois ti-pos de abstração. “Depois de ter dis-tinguido entre abstração simples e re-flexivante, Piaget mostra que não po-

de haver abstraçãosimples sem abs-tração reflexivan-te”.

Isso permiteconcluir que, paracrianças nesse está-gio, o que existe épredominância deabstração simples,mas não impossibi-lidade total de abs-tração reflexivante.Esta pode ocorrer

esporadicamente em determinadosmomentos quando o adulto - porexemplo, o professor - incita a criançaa explicação de um fenômeno. É estapossibilidade que conduz o objetivoprimordial desta pesquisa. A criançaestá constantemente “tangenciando”abstrações reflexivantes; admitir ocontrário seria negar a própria cons-trução do conhecimento na mente in-fantil. A criança avança realizandotais abstrações reflexivantes.

Nosso objetivo é, portanto, veri-ficar como a criança, no estágio pré-operatório, que se caracteriza pela

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

M.A. WhitakerDepartamento de Física e Química,Campus de Guaratinguetá - UNESPE-mail: [email protected]

D.C. WhitakerFaculdade de Ciências e Letras,Campus de Araraquara - UNESP

T.C.M. de AzevedoDepartamento de Física e Química,Campus de Guaratinguetá - UNESP○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Este trabalho apresenta um relato de atividadesdesenvolvidas com crianças em idade pré-esco-lar, com objetivo de observar e compreender co-mo a criança percebe e explica fenômenos daFísica dos Fluidos que envolvem relações entre apressão da água e a profundidade do recipienteque a contém, e a pressão da água e a velocidadede escoamento. As atividades experimentais fo-ram abordadas com ênfase nos aspectos lúdicos,e as crianças foram estimuladas a descrever edesenhar os fenômenos físicos observados. Asexplicações registradas mostram como as crian-ças desenvolvem seu “conhecimento” desses fe-nômenos. Procuramos apresentar uma estraté-gia para avaliar a especificidade do pensamentoinfantil no que se refere à compreensão de fenô-menos da natureza.

Início de uma das entrevistasA - “Como o bombeiro faz para apagar o fogo?”

C- “Pega a casinha e joga no pote de água.”O adulto mostra as torneiras do “tanque” para a criança.

A criança pega a casinha e empurra mais perto.

A criança é capaz deabstrações simples, mas

ainda não possui condiçõespara o que ele chama deabstração reflexivante.

Grosso modo, as abstraçõessimples são feitas a partir dascaracterísticas empiricamente

observáveis, enquanto asabstrações reflexivantes

exigem estabelecer relaçõesentre os objetos

31Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002

predominância das abstrações simples,compreende e explica fenômenos físi-cos fundamentais, observáveis e ma-nipuláveis, que exigem estabelecimen-to de relações de abstração reflexivante.

Não se pretende, absolutamente,imaginar que a criança no estágio pré-operatório seja capaz de realizar tarefasou apresentar desempenhoscaracterísticos do estágio posterior. Oque se pretende é descobrir como elaora se aproxima ora se afasta desse de-sempenho, e como nesse processo aoriginalidade desse pensamento e aspossíveis diferenças individuais, já quesegundo Vygotsky (1998) e corro-borado por estudos de Freitag (1993),o meio sócio-cultural e fatores sócio-econômicos influenciam a formaçãodesses estágios. O alvo é, portanto, ava-liar a especificidade do pensamento in-fantil no que se refere à compreensãode fenômenos da natureza. Estas expe-riências irão colaborar para a formaçãode esquemas de assimilação que estascrianças utilizarão ao longo da escolari-dade, com efeitos pedagógicos a seremconsiderados.

Descrição da AtividadeNesta experiência inicial procu-

rou-se observar como as crianças emestágio pré-operatório percebem eexplicam:

• as relações entre a pressão daágua e a profundidade do recipienteque a contém.

• a pressão e a velocidade de es-coamento da água por um orifício,observando o alcance do jato.

Tais fenômenos envolvem a fór-mula de Torricelli e o Princípio de Pas-cal (Halliday et al., 1996; Gaspar,2000).

A fórmula de Torricelli fornece avelocidade de escoamento da água quesai de um orifício de um recipiente.Se o orifício está situado a uma pro-fundidade h, a velocidade é dada por(2gh)1/2. O alcance do jato de água

observado pelas crianças na atividadedepende desta velocidade e do tempode queda da água. Portanto, o alcanceserá maior à medida que o furotorna-se mais profundo, partindo dasuperfície até o meio do recipiente. Apartir desta profundidade o alcancediminui na mesma proporção em quecresceu na parte superior do recipi-ente. Este efeito é compreendido apartir da aplicação da equação de Ber-noulli, sendo explicável através decálculos compreensíveis para alunosa partir do Ensino Médio. Para nãoconfundirmos as crianças, fizemosfuros somente a partir do meio da al-tura do recipiente para cima.

Na experiência, usamos um reci-piente cilíndrico transparente com asseguintes dimensões: 20 cm de alturae 20 cm de diâmetro. Preenchido comágua até a borda, e mantido semprecom água até o topo, foi colocado so-bre um suporte, simulando um cami-nhão de bombeiro. Três furos em altu-ras distintas funcionaram como tor-neiras. Os furos receberam canudos,tampados inicialmente e abertos nomomento da experiência.

Uma casinha foi posicionada nadireção dos furos a uma distância ade-quada. Este modelo (Figura 1) foireproduzido seis vezes, um para cadaduas crianças, possibilitando a todaselas o manuseio e a interação com oexperimento. No início da atividade,foi explicado às crianças que brinca-riam com o caminhão de “bombeiro”,tentando apagar um suposto incêndiona casinha.

O experimento foi aplicado emduas turmas de doze crianças cada,na faixa de cinco a seis anos, na pré-escola do campus da UNESP de Gua-ratinguetá. As crianças foram distri-buídas, duas a duas, em mesinhas e

cada dupla recebeu a supervisão deum adulto ligado ao projeto (uma daspesquisadoras, o técnico ou bolsistasde iniciação científica), configurandocontrole metodológico rigoroso da ati-vidade. Todas as atividades foram re-gistradas através de diálogos grava-dos. No final de cada atividade pedi-mos para as crianças relatarem aatividade através de desenho. Conclu-indo o desenho, cada criança descre-veu-o a sua professora da pré-escolaque anotou os comentários.

Resultados

Observação do alcance do jato

A primeira demonstração da qualas crianças participaram consistiu emabrir um furo de cada vez em dife-rentes alturas do recipiente, fazendoa criança avaliar os alcances do jatode água. Perguntadas porque o jatosaia mais forte no furo inferior docilindro, aproximadamente metadedas crianças2 respondeu prontamenteque a causa estava no fato de que “nofuro de baixo tem mais água”.

Alguns diálogos entre o adultoinstrutor e a criança ilustram a formapela qual elas apreendem o fenômenoem questão (A = adulto instrutor eC = criança).

A - “Qual jato vai mais longe?”C - “O último!”A - “Porque?”C- “Porque é mais fundo.”Então o adulto perguntaA - “O que tem no mais fundo?”C- “Tem mais água.”A - “O que acontece quando tem

mais água?”C- “Tem água chupando mais

água, vai mais longe.”A - “Quando tem água até em ci-

ma, todos estão com água, porque odebaixo vai mais longe?”

C- “Porque o debaixo ainda temmais água.”

A - “É, mais lá, o de cima, tambémtem água!”

C- “O debaixo que é o mais longetem mais água. Tem muita água em-baixo.”

Tanto o diálogo acima transcritoquanto a predominância da frase“embaixo tem mais água” sugeremque estas crianças estão fazendo umaFigura 1. O tanque do bombeiro e a casinha.

O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola

32 Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola

abstração simples tal como esperadoa partir de pressupostos teóricos acer-ca de sua forma de pensamento.

Para a criança a quantidade estáligada a forma1,2, o que indica abs-tração simples, ligada a aspectos con-cretamente observáveis, no momentoda experiência, sem estabelecer rela-ções.

Outro exemplo está no diálogo en-tre esta criança e o adulto que aplicoua experiência. No primeiro momentodo diálogo acima transcrito, a criançapareceu ensaiar uma abstração re-flexivante, quando disse que o que vaimais longe “é porque é mais fundo”.No entanto, quando um adulto inde-vidamente pergunta, “O que tem nomais fundo?”, a criança retorna à idéiada quantidade “tem mais água”, pró-pria do seu estágio operatório. Tan-genciou um estágio acima de seu nívele voltou à abstração simples. Nossosregistros indicam que a forma deabordagem do adulto, neste caso,trouxe a criança para o estágio “apro-priado” à sua idade. Deve-se pensarno papel do professor quando lidandocom tais momentos contraditórios daaprendizagem.

Se, como afirma Vygotski, háuma zona de aprendizado proximal3,como estimular a criança a invadi-la,sem pressiona-la artificialmente nadireção do conhecimento?

No entanto, se analisarmos algu-mas frases elaboradas pelas crianças,evitaremos o dualismo simplificadorque afirmaria a contraposição mecâ-nica - abstração simples vs. abstraçãoreflexivante e concluiria pela ausênciada segunda. Em alguns momentos,algumas crianças tangenciam abstra-ções reflexivantes, buscando relaçõesque encaminham o desenvolvimentodo pensamento em uma direção maisrelacional. Observemos alguns dessesmomentos:

C- “No furo de cima tem um tan-tinho de água (quantidade) e o jatosai fraco (velocidade). No furo de bai-xo, tem um tantão de água, e por issoo jato sai mais forte.”

No trecho acima, a criança faz aabstração simples baseada na quan-tidade, (tantinho e tantão) o que ex-plica o jato. No entanto, ao explicar ojato, tangencia a idéia de força ou

velocidade. A abstração reflexivante seanuncia especialmente quando acriança diz “por isso o jato sai maisforte” (relacional).

Como ilustração, apresentamosnas Figuras 2, 3, e 4 exemplos de dese-nhos feitos pelas crianças. Os dese-nhos revelam a ênfase dada ao jato de“sucesso” configurando a atenção da-da a aquilo que deu certo, em contra-posição ao que não deu certo.

A questão da largura da coluna deágua

Na segunda atividade, apresen-tamos dois recipientes transparentesde mesma altura com um furo emcada um na mesma profundidade. Aúnica diferença entre eles era a áreada base, do que resultava um cilindrobem mais estreito do que o outro.Antes de abrir o furo, perguntamosàs crianças qual jato sairia mais forte.

Por unanimidade responderam “omais largo porque tem mais água”.Abrimos os dois furos simultanea-mente, mas mesmo diante do fenô-meno do alcance idêntico dos dois ja-tos, as crianças continuaram afir-mando que havia diferenças e que ocilindro “gordo” promovia um maioralcance do jato.

Observem nos diálogos abaixoalgumas respostas “imediatas” decaráter intuitivo.

O adulto mostra os dois jatos che-gando juntos e pergunta:

A - “Qual jato está ganhando?”C - “O gordo.”O adulto coloca uma régua na po-

sição em que os jatos estão chegandoe mostra que chegam juntos. Ascrianças ainda acham3 que o cilindro‘gordo’ está ganhando. Enquantomostrava o alcance idêntico, o adultoperguntou “O que os dois potes têmde igual?”

As crianças gritam “A cor do ca-nudo (torneira de saída)” “O canudo”“As torneiras” etc.

O adulto pergunta - “Em que lu-gar as torneiras estão?”

C - “Estão no caminhão do bom-

Figura 4. O desenho acima é típico da ne-cessidade de “desobediência” característicada criança que resiste aos fatos reais e usasua imaginação. A criança compreendeuo fenômeno e desenhou os três jatos deágua corretamente. No entanto usou suacriatividade para “enfeitar” o jato de ‘su-cesso’, que cai sobre cada uma das trêsplantas de forma estética e individua-lizada. Após jorrar sobre a primeira plan-ta, alça um impulso que só existe em suaimaginação para depois cair sobre asoutras plantas. Ou seja, a criança aceita eadapta seus esquemas de pensamento aoque observou, mas acrescenta sua ima-ginação poética quando representa esse“real” observado com duas curvas a maisno jato.

Figuras 2 e 3. Os desenhos acima mos-tram a tendência dualista derivada do ma-niqueísmo infantil. O fenômeno mostrouduas situações, um jato de ‘sucesso’, (ode baixo) e dois outros com menor alcance(os de cima). Algumas crianças represen-taram o jato de baixo corretamente, mis-turando os outros dois que se tornaramequivalentes (constituem o outro pólo dadualidade). Os desenhos das criançasrevelam a ênfase dada ao jato de ‘sucesso’configurando a atenção dada àquilo quedeu certo, em contraposição ao que nãodeu certo. A dualidade não leva muito emconta o jato intermediário.

33Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002

beiro”.O adulto aproxima os cilindros

encostando os dois canudos paramostrar que eles tinham a mesmaprofundidade. Mesmo assim a men-sagem não chega a criança.. As crian-ças continuam firmes na idéia ligadaà forma dos cilindros.

A - “O que as torneiras têm deigual além da cor?”

Apenas uma criança percebeu “Es-tão na mesma posição”

O adulto insiste:A - “O tanque largo tem muito

mais água do que o tanque fino. Va-mos olhar de novo, que jato de águachega mais longe?”

C - “Empatou”.O adulto posicionou as crianças

em frente ao tanque do bombeiro emostrou com duas réguas a profun-didade dos furos nos dois recipientes,mas as crianças não se convencem,ou melhor não relacionam. Apenasuma criança afirmou que as torneiras“estão na mesma posição”.

As respostas das crianças mos-tram que, neste caso, elas não seencontram em condições de “aceitar”um resultado que contraria a condi-ção altamente enraizada de que o jatode água de um cilindro ‘gordo’ é maisforte do que o ‘magro’.

A resistência das crianças mostraque a ansiedade dos adultos em nadaajuda o aprendizado. As crianças re-sistem. No máximo uma delas “con-cilia”, ao dizer que “empatou”. Elaconcede ao cilindro ‘magro’ que talvezseu esforço possa ter resultado numempate, o que não significa que eleseja capaz de jorrar água com tantaforça quanto o mais ‘gordo’.

Nesta segunda atividade fica claraa relação entre quantidade e forma,já evidenciada na primeira atividade.A relação é tão forte que não se con-segue abalar a crença de que os doisalcances são diferentes.

Princípio de PascalNa ultima atividade fizemos uma

aplicação do princípio de Pascal(Halliday et al., 1996; Gaspar, 2000).De acordo com este princípio, oaumento da pressão aplicada a um lí-quido confinado transmite-se igual-mente para todos os pontos do líquidoe para as paredes do recipiente. As cri-

anças pressionaram uma bomba dear que foi acoplada à tampa do reci-piente e observaram um aumento nadistância atingida pelo jato de água.O aumento da pressão na superfícieda água provocado pela bomba pro-duz um aumento do alcance. Esse au-mento é prontamente percebido emuito apreciado pelas crianças.

Esta terceira atividade, embora de-monstrando um princípio mais com-plexo, teve o mais alto índice de com-preensão por parte das crianças, talvezporque tenha um caráter ainda maislúdico expresso em três importantesaspectos essenciais a aprendizagem:impacto, manuseio e imprevisto.Transcrevemos abaixo alguns diá-logos com as crianças:

A - “O que o ar fez para a águasair mais forte?”

C - “Vento”A - “O que o vento fez na água?”C - “Ele vai espirrar água.”Neste momento a tampa do reci-

piente foi descolada permanecendoapenas pousada sobre o mesmo. Ascrianças colocaram a mão sobre orecipiente enquanto uma delas acio-nava bomba. Elas sentiram o ar em-purrando a tampa para cima.

A- “E se ninguém segura a tam-pa? O que acontece?”

C- “A tampa voa.”O adulto segura a tampa que não

esta colada no recipiente.A - “O que acontece com o jato

agora?”C- “O ar empurrou a água.”As frases abaixo foram formuladas

pelas crianças logo após a atividade eapareceram escritas nos desenhos queelas fizeram junto da professora. Emtodas elas relaciona-se o aumento doalcance do jato com o aumento dapressão.

“Está pegando fogo eles aperta-ram com uma coisa de encher bicicletae a tampa pulou. O ar é muito forte”,5 anos. Nesta frase a criança constataa existência do ar.

“Quando eu bombeava a bombaa água ia mais forte porque o ar em-purra a água.”, 5 anos.

“Quando a gente tirava a tampi-nha a água saia. Daí o homem aper-tou o negócio e a água saiu mais.”, 5anos.

“A bomba empurra o ar, o ar em-

purra a água e a água sai mais forte.”,5 anos.

Aqui foi o momento de maior al-voroço das crianças durante esta ex-periência. O súbito aumento do jatodeixou-as empolgadas, o que nos su-gere que o entusiasmo provocado peloimprevisto alargou a percepção dascrianças levando-as a inesperadas abs-trações reflexivantes expressas nasfrases acima.

ConclusõesO estudo em questão procura

observar como a criança apreendefenômenos físicos em sua complexi-dade. Enfrenta portanto uma questãoepistemológica ligada à maneira comoa criança usa seus esquemas de assi-milação e sua imaginação para des-crever e desenhar os fenômenos que élevada a observar de forma lúdica.Não se trata portanto de uma pesqui-sa em Ensino de Física, embora possaser aproveitado para tal. Trata-se dedescobrir aqui até aonde vai a apre-ensão das crianças quando estimu-ladas a observar fenômenos físicos, ouseja, quais os recursos mentais aosquais apelam na fase pré-operatóriapara alcançar a compreensão de fenô-menos extremamente abstratos. En-fim, como a criança desenvolve seu“conhecimento” desses fenômenos.

Os dados colhidos até agora su-gerem que:

• As crianças ficaram encantadasdiante dos fenômenos apresentados econtemplaram-nos de forma curiosae imaginativa.

• Elas interagiram com a situaçãoexperimental e entusiasmaram-secom o fato de poder manipular osobjetos utilizados na atividade.

• Elas se alvoroçaram e por issoperceberam melhor os aspectos demaior impacto, como por exemplo oaumento súbito do jato de água pro-vocado pela bomba de ar.

• A percepção caracterizou-se poracentuado dualismo, que levou emconta o “sucesso” ou o “não sucesso”do objetivo esperado.

• Tanto os discursos como os dese-nhos (Figuras 2, 3 e 4) concentraram-se mais na representação do fato de“sucesso”, ou seja, do jato que conseguealcançar o alvo. A explicação para issoreside talvez na forma pela qual a ativi-

O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola

34 Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002

dade foi proposta: tratava-se de atingiro alvo, o que indica interiorização de umdos objetivos da atividade.

• Em vários momentos as crian-ças tangenciaram abstrações reflexi-vantes, o que indica possibilidades deavanço para o nível de desenvolvi-mento proximal. A experiência sugereque o modo de apresentar um proble-ma pode aproximar ou não a criança

Referências BibliográficasKamii, C., Devries, R. Piaget para a educa-

ção pré-escolar. Ed. Artes Médicas, 1992.Marti, E., Inteligência Pré-Operatória, em

Coll, C., Palacius, J., Marchesi, A., orgs.,Desenvolvimento Psicológico e Educação v.1, Ed.Artes Médicas, 1995.

Rego, T. Vygotsky - Uma perspectivahistórico- cultural da Educação. 6.ed. Ed.Vozes, 1998.

Halliday, D., Resnik, R., Walker, J.Fundamentos de Física v. 2. Livros Técnicos eCientíficos Editora, 1996.

Gaspar, A. Física - Mecânica v. 1 Ed. Ática,2000.

Freitag, B. Sociedade e Consciência: Um estudopiagetiano na favela e na escola. Ed. Cortez,1993.

7. Nicolau M.L.M. Um estudo das potencia-lidades e habilidades no nível da pré-escolaridadee sua possível interferência na concepção que acriança constrói sobre a escrita. Rev. Fac. Educ.,v. 23, n. 1, São Paulo Jan./Dez., 1997.

Notas1. Piaget considera o desenvolvimento infantil

através de etapas engendradas na maturaçãobiológica e também como o produto da interaçãocom o meio. O estágio pré-operatório é um delese divide-se em dois subestágios: o pré-conceitual

e o intuitivo. Estamos trabalhando com esteúltimo, que se caracteriza por julgamentosimediatos e pela “incapacidade de conservar namente mais de uma relação de cada vez”.

2. Das restantes, algumas não se manifes-taram, enquanto outras falaram com mais de-mora, o que não foi considerado porque elasrepetiam um fato já mencionado. Não foi pos-sível controlar a variável demora. Estamos pro-curando uma metodologia mais adequada.

3. “As crianças pensam, levantam as suashipóteses sobre os estímulos que lhes sãopropostos e mantêm coerência nas respostasque oferecem, as quais refletem o seu desen-volvimento.” Nicolau, 1997.

para a zona de desenvolvimento pro-ximal, como sugere Vygotsky (1998)que propôs superar a idéia de que oensino deve se ater a etapa de desen-volvimento já consolidada. Nessa ex-periência exploratória foi possívelcriar situações propícias para a emer-gência de abstrações que anunciamavanços das crianças na direção da zo-na de desenvolvimento proximal.

Agradecimentos

O trabalho contou com a valiosacolaboração dos bolsistas F. de A.Santana, D.D. da Silva e A.P. Maciel,do técnico F. Peixoto e da professorade Educação Infantil L. Chaves.Agência Financiadora: FUNDUNESP.Apoio PROGRAD-Núcleo de Ensino/UNESP.

Neste número de FnE estaremoscomentando alguns sítios queabordam a tabela periódica e

explicam o funcionamento de diversascriações humanas.

http://www.webelements.com

Este é um sítio sobre tabela perió-dica e diversas informações úteis sobreo tema. Ao se escolher um elemento databela periódica, obtém-se dele outrasinformações, como por exemplo oscompostos mais comuns por ele for-mados. Além disso, encontramos tam-bém algumas de suas propriedades fí-sicas, estruturais e químicas. Há aindaum vínculo para a ‘Scholar Edition’,onde pode-se obter outras informaçõesalém das usuais, como a história do

elemento, como ele pode ser obtido eisolado, onde ele é usado, dados bioló-gicos, geológicos etc. É uma tabela pe-riódica excepcional.

http://www.howstuffworks.com

Os curiosos que desejam sabercomo as “coisas” funcionam não po-dem deixar de visitar o endereço aci-ma. São milhares de tópicos explican-do como funciona uma máquina, umóculos solar, uma reação nuclear,transplante de órgãos e muito mais.Há também as “coisas do dia”, os 40assuntos mais procurados. Sem dú-vida um enderço a ser visitado.

http://howthingswork.virginia.edu/

Nesta página encontra-se outra

alternativa para saber como as “coi-sas” funcionam. É mantida por LouBloomfield, professor da Universidadeda Virginia, USA, estando mais vol-tada para a discussão das propriedadesfísicas da matéria. Na verdade ela é aversão eletrônica, ampliada, de seufamoso livro que tem o mesmo título.

http://es.rice.edu/ES/humsoc/Galileo

Para quem quer saber mais sobreGalileo Galilei, esta pagina preparadapor Albert van Helden, professor deHistória da Universidade de Rice, éuma boa referência. Além de fatos bio-gráficos, pode-se ter acesso a umacrônica de sua vida, mapas do mundoconhecido naquela época, informa-ções sobre artes e mais...

http://www.psrc-online.org

Physical Sciences Resource Center, ouCentro de Recursos para as CiênciasFísicas, é um projeto da AssociaçãoAmericana dos Professores de Física –AAPT – que proporciona uma coleçãoenorme de material para o Ensino deFísica. Aqui também há uma seção de“como funciona”, “demonstração domês”, “brinquedo do mês”, “proble-mas do mês”, e muito mais. Sem dú-vida, outro site a se visitar.

O Tanque do Bombeiro: Abstrações Reflexivantes em Crianças da Pré-Escola