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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
2017
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O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
quesito para a obtenção do Título de Doutor(a) em
Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção
Literatura Italiana).
Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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Ferreira, Linda Salette Miceli
O Sagrado e o Profano na Divina Comédia: uma releitura das
ilustrações de Alberto Martini no século XX/ Linda Salette Miceli
Ferreira. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2017.
150f.: Il.: 1cm.
Orientadora: Sonia Cristina Reis
Coorientador: Fabiano Dalla Bona
Tese (Doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas, 2017.
Referências Bibliográficas: f. 120-123.
1. Dante Alighieri e a época da escrita da Divina Comédia. 2.
A Divina Comédia e a sua relação com as artes do século XX. 3.
Sobre o Sagrado e o Profano na Divina Comédia. I. Reis, Sonia
Cristina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III.
Título.
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O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a
obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção
Literatura Italiana).
Examinada por:
______________________________
Presidente, Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
______________________________
Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
______________________________ ______________________________
Profª. Drª. Flora Di Paoli Faria Prof. Dr. Mauro Porru
______________________________ ______________________________
Profª. Drª. Geysa Silva Profª. Drª. Maria Lizete dos Santos (Suplente)
______________________________ ______________________________
Profª. Drª. Cláudia Fátima M. Martins Prof. Dr. Frederico Liberal de Goes (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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DEDICATÓRIA
Esta Tese de Doutorado é dedicada a todos aqueles que permaneceram
incansavelmente ao meu lado. Foram tempos muito difíceis em que tudo me fazia
escapar deste término, porém, nestes últimos momentos, a força veio.
Deus, sempre em primeiro lugar, me carregou com seu braço forte me
amparando. Meus Guias me incentivaram a levantar a cabeça e seguir em frente, mesmo
com minhas fraquezas e dores. Nunca terei palavras para agradecê-los, isto vem do
coração.
Pai e Mãe, vocês sempre foram a minha base, minha fortaleza. Dedico também a
vocês este caminho lindo que segui, muitas vezes doloroso, mas o mais belo que
poderia ter escolhido.
Eric, meu companheiro, meu amigo, meu amor! Agradeço cada dia de
compreensão, cada incentivo, cada bronca, porque me fizeram seguir sempre em frente,
mostrando meu valor como profissional e como pessoa.
Agradeço aos meus orientadores espirituais Celso e Thalita, por cada palavra de
incentivo, de carinho e de paciência que tiveram comigo durante essa caminhada.
Obrigada pela presença constante em minha vida, vocês me ensinam a ser melhor e a
entender que jamais estarei sozinha, que tenho uma infinidade de amor ao meu redor!
Gisele, mais uma vez tenho que te agradecer por ter me apontado o caminho
certo a seguir. Hoje não somos mais aluna e professora, mas colegas de profissão e
amigas. O meu muito obrigada por tudo!
Gostaria de agradecer ainda ao Professor Doutor Fabiano Dalla Bona por todo
apoio acadêmico que tive em relação ao meu estudo de imagens e pelo seu carinho
comigo.
E como não agradecer a esta pessoa que me apoia desde sempre na Faculdade de
Letras, minha orientadora Professora Doutora Sonia Cristina Reis! Obrigada por estar
ao meu lado em cada momento da minha vida acadêmica, sabendo entender cada
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fraqueza e cada ponto forte meu. Nestes últimos momentos você foi maravilhosa, pois
quando achei que estava tudo acabado, você me amparou e me deu forças para
continuar. Não tenho palavras para te agradecer!
Enfim, termino esta dedicatória agradecendo ao meu filho de quatro patas, Tom,
aquele que permaneceu fiel ao meu lado e, mesmo sem saber falar, ele falava comigo,
me dava o apoio que necessitava e não saiu do meu lado nem um minuto sequer. Meu
companheiro, meu anjo e como digo: “meu primeiro filho”. Amor e gratidão eternos a
você!
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus e aos meus Guias pela minha vida e por tudo o
que Ele me concede juntamente com a espiritualidade.
Agradeço também aos meus queridos professores, mas, em especial, aos de
Italiano, com os quais sempre aprendo muito. E, em particular, meu agradecimento à
professora Sonia Cristina Reis, minha orientadora, ao meu Coorientador professor
Fabiano Dalla Bona e à professora Flora De Paoli Faria.
Segue, ainda, o agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas e à CAPES, por financiar meus estudos no Doutorado como bolsista.
Meus sinceros agradecimentos aos meus familiares, ao meu noivo, meus amigos
Celso e Thalita, a minha primeira professora de Italiano Gisele e ao meu gatinho, Tom.
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RESUMO
O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
Resumo da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a
obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção
Literatura Italiana).
Estudo do Sagrado e do Profano no texto poético e na ilustração (Santaella e
Nöth: 2008) da Divina Comédia (1321) de Dante Alighieri (1265 – 1321), realizada na
edição (2008) da obra dantesca, por Alberto Martini (1876 – 1954). Como aporte
teórico para a construção discursiva é utilizado Maingueneau (2006) e para as questões
sobre a ilustração Barthes (1990) e Aumont (2008). O corpus se refere às três Cânticas
da Divina Comédia (as do livro Inferno, as do Purgatório e do Paraíso).
Especificamente, serão estudados os Cantos XXXIV do Inferno, XII do Purgatório, XI
e XXXIII do Paraíso. Nestes cantos serão verificados os pecados (luxúria, soberba e
avareza) e as beatitudes (castidade, humildade e generosidade).
Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,
ilustração.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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ABSTRACT
O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
Abstract da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a
obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção
Literatura Italiana).
A study of the Sacred and the Profane in poetic texts and illustrations (Santaella
and Nöth: 2008) from Divine Comedy (1321) by Dante Alighieri (1265 – 1321),
performed in the Dante’s work edition (2008), by Alberto Martini (1876 – 1954). As a
theoretical subsidy for the discursive construction, it was used Maingueneau (2006), and
for the matters about illustration, Barthes (1990) and Aumont (2008). The corpus refers
to the three Canticles from Divine Comedy (from the
canticas Inferno, Purgatorio and Paradiso). More specifically, the cantos XXXIV from
Inferno, XII from Purgatorio, XI and XXXIII from Paradiso will be studied. In these
cantos the sins lust, pride and greed will be analyzed, and the beatitudes (castity,
humility and generosity).
Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,
ilustração.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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RIASSUNTO
O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS
ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX
Linda Salette Miceli Ferreira
Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis
Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona
Riassunto da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a
obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção
Literatura Italiana).
Studio del Sacro e del Profano nel testo poetico e nell’illustrazione (Santaella e
Nöth: 2008) della Divina Comédia (1321) di Dante Alighieri (1265 – 1321), fatta
nell’edizione (2008) dell’opera dantesca, da Alberto Martini (1876 – 1954). Come
appoggio teorico per la costruzione discorsiva viene usato Maingueneau (2006) e per le
questioni sulle illustrazioni Barthes (1990) e Aumont (2008). Il corpus si riferisce alle
tre Cantiche della Divina Comédia (quelle del libro Inferno, quelle del Purgatorio e
quelle del Paradiso). Specificamente, verranno studiati i Canti XXXIV do Inferno, XII
do Purgatorio, XI e XXXIII do Pardiso. In questi canti verranno controllati i peccati
(lussuria, superbia e avarizia) e le beatitudini (castità, humiltà e generosità).
Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,
ilustração.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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Na Tese serão utilizadas algumas siglas para facilitar a leitura, para evitar a
repetição de títulos e nomenclaturas, a saber:
DA Dante Alighieri
DC Divina Comédia (edição com as ilustrações de Alberto Martini)
Inf Inferno
Purg Purgatório
Par Paraíso
VN Vita Nova
DVE De vulgari eloquentia
AM Alberto Martini
TP Tradução própria
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SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 18
1. DANTE ALIGHIERI E A ÉPOCA DA ESCRITA DA COMÉDIA ___________ 25
1.1. Dante Alighieri e a Divina Comédia _______________________________ 35
1.2. A arquitetura da Divina Comédia __________________________________ 43
2. A DIVINA COMÉDIA E SUA RELAÇÃO COM AS ARTES DO SÉCULO XX _64
2.1. A produção de Alberto Martini ___________________________________ 65
2.2. A Divina Comédia ilustrada por Alberto Martini _____________________ 78
3. SOBRE O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA ____________ 84
3.1. A ilustração do Sagrado e do Profano do poema dantesco na visão de Alberto
Martini _____________________________________________________ 91
3.2. As cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia ________________ 99
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ________________________________________ 118
5. REFERÊNCIAS __________________________________________________ 120
6. ANEXOS _______________________________________________________ 124
6.1. Produções artísticas de Alberto Martini _____________________________ 124
6.2. Cânticas da Divina Comédia de Dante Alighieri ______________________ 126
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INTRODUÇÃO
A presente Tese tem como objeto de interesse o estudo do sagrado e do profano
na edição ilustrada da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), com
desenhos de Alberto Martini (1876 – 1954). Tal temática justifica-se pelo fato de o texto
dantesco trazer, além de tantas outras questões históricas, filosóficas, teológicas, a
possibilidade de discutir a relação entre os discursos escrito e imagético.
Como pesquisadora, oriunda da área de Letras, sinto-me motivada a discutir as
ilustrações de Alberto Martini feitas para a edição ALIGHIERI, Dante. La Divina
Commedia. Illustrata da Alberto Martini. Milano: Mondadori Electa, 2008, tendo sido
publicada a primeira edição ilustrada em 1949. Como aporte teórico para a construção
discursiva é utilizado Maingueneau (2006) e para as questões sobre a memória Weinrich
(2001). Como corpus de pesquisa, será utilizada a Divina Comédia ilustrada por Alberto
Martini.
Esta investigação sobre a Divina Comédia ilustrada busca dar continuidade à
pesquisa sobre as relações imagéticas entre o texto poético e o texto imagético, visando
o aprofundamento da investigação realizada para a Dissertação de Mestrado
(FERREIRA: 2013)1, em que foram discutidas as cenas dos cantos I, III e VIII, da
cântica Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, no século XV, período
correspondente ao Renascimento italiano, por meio das ilustrações de Sandro Botticelli
(1445-1510).
O corpus se refere às três Cânticas da Divina Comédia (as do livro Inferno, as do
Purgatório e do Paraíso). Especificamente, serão estudados os Cantos XXXIV do
Inferno, XII do Purgatório, XI e XXXIII do Paraíso.
Vale acrescentar que a escolha por este artista, Alberto Martini, foi feita a partir
do fato de que o mesmo era italiano e de uma época em que a DC estava sendo
1 Dissertação de Mestrado defendida em 2013, disponível em:
http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/lindaferreiramestrado.pdf
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revisitada por muitos artistas não só italianos, como o francês Gustave Doré (1832 –
1883).
A Divina Comédia, obra prima da Literatura Ocidental, mereceu, por esse
motivo, muitas traduções em vários idiomas, inclusive para o português do Brasil, e, foi
também motivo para uma série de revisitações artísticas. Uma obra que atravessou
séculos desde a sua escrita na Idade Média, merecendo leitores ilustres como é o caso de
Giovanni Boccaccio, tendo tido outros leitores menos célebres até o século XX.
No decorrer da historiografia literária, essa e outras obras dantescas caíram em
ostracismo, particularmente nos séculos XVI e XVII, tendo sido retomada no XVIII, por
GiambattistaVico (esta discussão será apresentada no capítulo 1).
A principal obra dantesca é estudada nesta Tese como um arquitexto, já que,
segundo Genette (1982), o objetivo da poética não é o texto por si só, mas sim o
arquitexto, quer dizer, tudo aquilo que ele possui, os tipos de discurso, os gêneros
dentro dele etc. Assim, é possível perceber que, dentro desse poema dantesco, existem
situações de enunciação, que toda obra literária possui que, segundo Maingueneau
(2006), permite uma análise em três cenas distintas (cena englobante, cena genérica e a
cenografia), que permitirá observar o discurso de Dante nas ilustrações de Alberto
Martini para a Divina Comédia com base na construção das cenas de enunciação
presentes na obra em análise, pois é essa construção enunciativa que possibilita o
entendimento das cenas em estudo.
É importante aqui retomar o fato de a obra dantesca ser uma produção do século
XIV e a mesma obra, com ilustração de Alberto Martini, ser do século XX. Isso
evidencia que várias cenas descritas na Divina Comédia recebem uma representação
ilustrativa diferente da concepção estética como, por exemplo, a concepção de pecado
(profano) e de beatitude (sagrado).
Por esse motivo, são problematizadas, em meu estudo, questões que investigam
como o discurso dantesco na Divina Comédia impõe uma cenografia quer profana quer
sagrada, tendo presente os distanciamentos no campo artístico de Dante Alighieri e
Alberto Martini; tratam de discutir como identificar as noções de memória e
esquecimento, respectivamente, para o pecado (profano) e a beatitude (sagrado), nas
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obras dos corpora (poema e ilustração), a partir dos discursos ligados ao
pecado/profano (luxúria, soberba e avareza) e dos discursos ligados ao
sagrado/beatitude (castidade, humildade e generosidade); e ainda apresentam a leitura
da obra dantesca, realizada pelo artista Alberto Martini em sua Divina Comédia
ilustrada, que me permite ver a sua ilustração como a criação de um texto de autoria
própria; indicando o tipo de ruptura estética que Alberto Martini constrói em sua edição
ilustrada em relação ao arquitexto da Divina Comédia.
A partir das questões propostas apresentadas no parágrafo anterior para a
investigação nesta Tese, hipotiza-se que a força do texto de Dante Alighieri imprimiria
um dado discurso nas ilustrações de Alberto Martini para a representação do profano e
do sagrado.
Martini, ao retomar as mesmas figuras retratadas por Dante em sua obra-prima
para referir-se diretamente às questões sagradas e profanas, trataria do pecado (profano)
e da beatitude (sagrado), bastante próximo dos discursos ligados ao pecado/profano
(luxúria, soberba e avareza) e dos discursos ligados ao sagrado/beatitude (castidade,
humildade e generosidade) na obra da Idade Média.
As ilustrações de Alberto Martini, no entanto, trazem uma interpretação que
paradoxalmente gera um texto autoral em relação à principal obra dantesca, devido ao
rompimento com a estética da sua época que havia sido construída em relação à Divina
Comédia, pois as suas ilustrações promoveriam um diálogo com a obra poética,
configurando-se como um texto visual a partir de um arquitexto.
No estudo realizado para esta Tese foi necessário rever outras obras de Dante
com relevância para o estudo dos modelos poéticos, a partir da era medieval, que são a
Vita Nuova e De vulgari eloquentia. Isso porque estas duas obras auxiliam bastante na
compreensão da Comédia dantesca, já que foram anteriores a grande obra do poeta,
onde ele pode tratar outras questões, como o amor, na primeira, dando prosseguimento
ao amor por Beatriz na DC.
Sendo assim, o autor dividiu sua principal obra, a Divina Comédia, em três
partes, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. A sua primeira cântica, o Inferno, foi
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concluída, em 1308, quatro anos depois, em 1312, o Purgatório e, em 1321, ano de sua
morte, a última Cântica, a do Paraíso.
O interesse de artistas por ilustrar a obra dantesca ocorreu muito antes do século
XX, como por exemplo, as ilustrações de Alessandro Vellutello (1515 – 1544) para a
Divina Comédia, na Itália, no século XVI, de Francesco Scaramuzza (1803 – 1886),
sempre na Itália no século XIX e, na França, Paul Gustave Doré (1832 – 1883), ainda
no século XIX. As ilustrações para a cântica do Inferno da obra dantesca, feitas pelo
artista francês, foram objeto de minha pesquisa durante a Iniciação Científica. Tal fato
conduz para uma inquietação, que é, justamente, a motivação desses artistas, e aqui me
refiro ao interesse de ilustradores e pintores que realizaram trabalhos sob a temática da
obra-prima de Dante Alighieri.
A motivação dos artistas, nem sempre, era própria, uma vez que, até meados do
século XIX, se tem notícias de que os mecenas tinham um papel fundamental na arte, já
que eram eles que ditavam as regras de como as pinturas deveriam ser realizadas. O
estudioso de Literatura Italiana, Asor Rosa, afirma sobre o mecenato que:
Grande e crescente importância assume, portanto, neste quadro, o fenômeno
do mecenato, isto é a disponibilidade do príncipe a financiar a execução ou a
impressão de obras de arte ou literárias e a sustentar ao redor de si com
donativos e salários letrados, pintores, escultores, arquitetos, cientistas (Asor
Rosa: 1987, p. 108)2 (TP)
Distante da época dos principados na Itália, a Divina Comédia continua a
inspirar artistas, como é o caso de Alberto Martini. Por esse motivo, a presente
investigação se move em direção a averiguar as cenas do século XX, que favoreceram a
publicação dessa obra para poder então verificar como se deu a motivação da
revisitação e ilustração da obra de Dante.
2 “Grande e crescente importanza assume perciò in questo quadro il fenomeno del mecenatismo, cioè la
disponibilità del principe a finanziare l’esecuzione o la stampa di opere d’arte o letterarie e a sostentare
intorno a sé con donativi e stipendi letterati, pittori, scultori, architetti, scienziati. (Asor Rosa: 1987, p.
108)
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O método de estudo para tratar desse objeto se debruçará sobre a noção de
memória (WEINRICH: 2001), objetivando mostrar como esta é importante para os três
universos da Comédia. Serão revisitadas concepções de memória, a partir dos diálogos
entre Dante (figura ficcional na Divina Comédia) e as almas do inferno, do purgatório e
do paraíso, representados nas ilustrações de Alberto Martini.
Já a discussão sobre texto e texto poético, no caso, específico da Divina
Comédia, de Dante Alighieri, será discutido o conceito de texto com base em Genette
(1982), uma vez que, para o estudioso, o objeto da poética não é o texto em si,
considerado dentro de uma singularidade, mas um arquitexto, um arquivo textual para
outras obras, ou seja, por meio do texto serão estudadas as suas partes, como já
mencionado.
Tratando do percurso metodológico, a relação texto poético e ilustração encontra
na teoria da cena de enunciação, descrita no Discurso Literário (2006), de Maingueneau
sua base, uma vez que a leitura ou interpretação de um texto passa por três cenas: a
englobante, a genérica e a cenografia, sendo a primeira necessária para o entendimento
global do texto, a segunda a divide em gêneros de discursos particulares e a terceira é
construída pelo próprio texto.
A cena de enunciação, no caso, reduz-se apenas às duas primeiras cenas, porém,
o discurso irá impor a sua cenografia de alguma maneira por meio de sua enunciação. É
importante ressaltar que a cena de enunciação de cada época em especial consegue fazer
com que o leitor entenda o que se passa por um específico modelo cultural.
Ainda relacionado à ilustração, será estudada a obra de Santaella e Nöth (2008),
os quais ajudam no entendimento da leitura que se pode fazer a partir da ilustração em
sua totalidade e em suas seções.
Já referente ao estudo da Divina Comédia, não são menos importante as questões
relativas à noção de profano/pecado – livros Inferno/ Purgatório e sagrado/beatitude -
livro Paraíso da Divina Comédia, e de memória e esquecimento, uma vez que, dentro
do Paraíso, as almas perdem a memória de vida negativas, permanecendo com as
positivas, e para a lembrança é importante a obra de Weinrich (2001), que trata dessa
memória que permanece com as almas.
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Uma das questões que intrigam nas ilustrações de Alberto Martini para a Divina
Comédia é o seu caráter de criação autoral. Nesse sentido, busco entender esse aspecto
da obra martiniana a partir de seu campo artístico, para poder encaminhar a discussão
do entendimento do espaço social de interação entre artistas no século XX, e análise das
influências recebidas por Alberto Martini em relação às escolhas ou tendências de
períodos artísticos diferentes, como no caso do corpus da Tese de Dante e de Martini.
Naturalmente, será necessário buscar uma compreensão da época da Divina
Comédia, nesse sentido, com a obra de Eco (1989), que traz um estudo sobre modos de
ver a Idade Média, já que esse estudo possibilitará a aproximação ao texto dantesco.
A obra de Barthes (1990), O óbvio e o obtuso, também ajudará, no sentido da
leitura da imagem, visto que, a partir dela, será possível averiguar o sentido simbólico
que a imagem proporciona. Além disto, Aumont (2008), em A imagem, auxiliará a
verificar como é a relação entre o espectador e a ilustração e como a imagem da Divina
Comédia representa o mundo, tanto quando se trata da obra de Dante como para a
Divina Comédia de Alberto Martini.
Para o desenvolvimento deste trabalho, propomos uma organização em três
capítulos. Iniciando a discussão, trazemos, no primeiro deles, intitulado Dante Alighieri
e a época da escrita da Comédia, um estudo sobre as questões relativas ao poeta e a sua
grande obra literária, tendo como subcapítulos Dante Alighieri e a Divina Comédia e A
arquitetura da Divina Comédia. Será realizada uma biografia dantesca e também um
estudo sobre como, ainda hoje, a obra do poeta florentino é atual.
No segundo capítulo, A Divina Comédia e a sua relação com as artes do século
XX, apresentamos a relação do poema dantesco com as artes do século XX, no qual está
inserido o artista (ilustrador e pintor) que é o foco desta pesquisa, Alberto Martini. Tem-
se como subcapítulos A produção de Alberto Martini e A Divina Comédia ilustrada por
Alberto Martini. Será realizada uma biografia do artista, juntamente com suas obras, até
o momento em que ele fez sua edição ilustrada da Divina Comédia.
O terceiro capítulo dedica-se às questões do sagrado e do profano, com base em
Eliade, na obra poética de Dante, capítulo este, intitulado Sobre o sagrado e o profano
na Divina Comédia. Este capítulo subdivide-se em outros dois, sendo o primeiro A
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ilustração do sagrado e do profano do poema dantesco na visão de Alberto Martini, e o
segundo As cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia.
Para este capítulo serão utilizadas: a obra de Barthes (1990) que ajudará, no
sentido da leitura da imagem, visto que, a partir dela, será possível averiguar o sentido
simbólico que a imagem proporciona; além disto, Aumont (2008), que auxiliará a
verificar como é a relação entre o espectador e a ilustração e como a imagem representa
o mundo.
Posteriormente a isto, apresenta-se ainda uma lista com as principais obras de
Alberto Martini e também as cânticas completas dos cantos da DC aqui estudados.
Delineadas as considerações iniciais desta pesquisa, começamos, no primeiro
capítulo, a discutir as questões entorno de Dante Alighieri, sua principal obra, a Divina
Comédia e o encanto desta obra sobre outros escritores e artistas.
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1. DANTE ALIGHIERI E A ÉPOCA DA ESCRITA DA COMÉDIA
Esse capítulo faz-se necessário para oferecer um percurso biográfico referente ao
período anterior à escrita da Comédia, uma vez que neste trajeto, Dante Alighieri
desenvolveu trabalhos literários e teve contato com intelectuais de sua época que foram
importantes para o seu crescimento como artista, fato que aponta diretamente para a
realização de sua maior obra literária que foi a Divina Comédia.
Os estudos de formação educacional de DA foram no Trivium e no Quadrivium,
cujos cursos eram compostos pela gramática (latim), lógica e retórica, seguidos pela
aritmética, geometria, astronomia e música. Após estes anos, ele prosseguiu seus
estudos frequentando palestras em escolas de franciscanos, em Santa Croce, e de
dominicanos, em Santa Maria Novella, em Florença, sua cidade natal. Esta formação foi
de grande importância para as futuras obras de DA, visto que, graças a esses estudos, ele
teve as bases para escrever um tratado inteiramente em latim, o De vulgare eloquentia,
como será tratado mais adiante neste capítulo.
Ainda jovem, depois da morte de seu pai (entre 1281 e 1283), por ser menor de
idade, foi-lhe imposto um tutor, e o escolhido foi Brunetto Latini (1220- 1294), que foi
um dos personagens de grande importância no século XIV italiano, responsável pela
criação da figura do intelectual civil. Provavelmente, Brunetto transmitiu alguns de seus
ensinamentos ao seu tutorando, DA, pois ele, assim como muitos de seus pares da
época, trabalhava como civil, ocupando um cargo administrativo na administração da
cidade de Florença, além de exercer a atividade que realmente lhe agradava, que era a
poesia. A esse respeito Ferroni afirma:
Brunetto cria a figura do intelectual «civil», que faz convergir o próprio fazer
literário (para o qual é essencial o apelo aos modelos dos antigos escritores)
com a existência individual e a atividade política. O homem culto se
reconhece assim no modo em que aplica o seu saber a um juízo e a uma
intervenção moral sobre o mundo: nisto consiste o senso do ensinamento
transmitido por Brunetto a Dante (que o recorda no canto XV do Inferno)3.
(FERRONI: 1992, p. 57) (TP)
3 “Brunetto crea la figura dell’intellettuale «civile», che fa convergere il proprio fare letterario (per il
quale è essenziale il richiamo ai modelli degli antichi scrittori) con l’esistenza individuale e l’attività
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Desse contato de DA com seu tutor, pode ser notado o encontro do poeta de
Florença com a arte e também com a política, já que Brunetto mostrou-se um intelectual
que reunia em si a literatura e a política, ensinando-o que um intelectual devia possuir
um conhecimento global, amplo, não somente em relação à literatura, mas também à
sociedade. Esse fato ajudou ainda mais nas relações políticas e sociais que DA tinha
dentro de seu Comune, que era uma forma de governo autônomo existente na Península
Itálica naquele período.
Nesses comuni, os cargos administrativos eram fundamentais para o bom
desenvolvimento da cidade, e, portanto, eram os próprios cidadãos que os
administravam, é o que declara Ferroni (1992: p. 57) em: “Na sociedade comunal, a
administração pública requer uma direta participação dos cidadãos e as relações civis
são determinadas essencialmente pelo correto uso da palavra no interior das
instituições4”. (TP)
Ocupavam cargos nesses comuni, intelectuais formados e que tinham ideais que
superavam a simples função administrativa que exerciam. Florença, no século XIV, já
era uma cidade-estado livre e uma de suas principais atividades era a indústria têxtil, a
qual fornecia os manufaturados para vários locais da Europa.
Assim sendo, DA, mesmo ocupando um cargo administrativo no comune, aos 30
anos de idade, já tinha seus poemas lidos e recitados, e suas cópias eram realizadas até
externamente à Florença. Isto fez com que ele se associasse ao grêmio dos médicos,
farmacêuticos e pintores, fato muito comum entre os homens da sociedade da época que
tinham como objetivo trocar experiências intelectuais, visando à divulgação do próprio
trabalho. Associou-se a este grêmio devido ao estilo de trabalho que desenvolviam,
sendo esses trabalhos vendidos em lojas de farmacêuticos.
politica. L’uomo colto si riconosce così nel mondo in cui applica il suo sapere a un giudizio e a un
intervento morale sul mondo: in ciò consiste il senso dell’insegnamento trasmesso da Brunetto a Dante
(che lo ricorda nel canto XV dell’Inferno)”. (FERRONI: 1992, p. 57) 4 “Nella società comunale, l’amministrazione pubblica richiede una diretta partecipazione dei cittadini e i
rapporti civili sono determinati essenzialmente dal corretto uso della parola all’interno delle istituzioni”.
(FERRONI: 1992, p. 57)
27
Quando DA ainda estava principiando seu trabalho como poeta, uma figura teve
uma função muito importante para a sua formação artístico-literária que foi Guido
Cavalcanti (1255 – 1300), com quem estabeleceu uma relação estreita de amizade e
aprendizado, ou seja, relacionavam-se como mestre e aprendiz. Ele surgiu para DA, no
momento em que ele estava tentando entrar para um grupo de poetas e, nesta época,
esses intelectuais ainda escreviam como a tradição dos trovadores, de acordo com
Reynolds (2011: p. 46). A poesia de Cavalcanti era conflituosa, demonstrando um
embate entre idealismo e desejo, traços bem diversos da escritura dantesca. Cavalcanti o
ajudou inúmeras vezes, lendo e criticando seus poemas, auxiliando-o sempre na escrita.
DA, a princípio, sempre se opôs aos poetas que se enquadravam no perfil dos
Fedeli d’amore, uma vez que tinha uma visão mais terrena, ou seja, menos emocional,
menos sensível em relação ao amor. Esses fiéis de amor eram poetas que cultivavam o
Amor e rendiam obediência a ele. Em Florença, esses poetas constituíam um grupo de
alto nível cultural e social que trocavam experiências literárias; porém os mesmos não
eram bem aceitos pelos outros poetas, que eram contra esse modelo literário dos fiéis de
amor. DA, contudo que possuía um modelo de escrita diverso do deste grupo, queria
fazer parte desse grupo seleto, decidindo, portanto, colocar alguns de seus sonetos em
circulação, anonimamente, e, de acordo com a aceitação dos leitores, o poeta
conseguiria saber se se tornaria integrante desse grupo, uma vez que seu trabalho era
anônimo.
Conforme recebia retornos positivos relacionados a sua poesia, DA escrevia
poemas mais audaciosos e enviava-os para um grupo ainda maior de poetas, que os
interpretaram, sendo que, um desses sonetos foi o que DA incorporou como primeiro
poema de seu livro a Vita Nuova. Logo, aos 17 anos de idade, ele já pertencia a este
grupo que, com o passar do tempo e das trocas de experiências, o fez alcançar sua
maturidade literária.
O peso de seguir os modelos de seu mestre moveu DA a escrever textos
poéticos, muitas vezes, distantes de seu espelho que era Cavalcanti, conforme pode ser
observado na fase inicial dos trabalhos do poeta. Desta forma, com a finalidade de
28
mostrar um pouco de como era essa fase, ainda jovem, em relação aos seus trabalhos
literários, Reynolds declara:
O contraste entre a alegria e o horror se reflete nos aspectos contraditórios de
sua personalidade: por um lado, realista, terreno e sensual, por outro íntegro,
idealista e visionário. Sua formação responde por ele até certo ponto, mas não
pode explicar como, partilhando essas influências com seus contemporâneos,
ele foi capaz de superá-las, tornando-se um dos maiores poetas do mundo
ocidental. Não há nenhuma explicação para a sua genialidade, mas algumas
pistas da razão pela qual Dante se desenvolveu desta forma podem ser
encontradas nos eventos políticos em sua vida e em suas obras.
(REYNOLDS: 2011, p. 42)
De acordo com Reynolds, o poeta, ainda jovem, era uma pessoa complexa, com
ideais sempre além dos pensados normalmente pela sociedade do século XIV,
principalmente nas questões políticas. Possuía ainda um alto amadurecimento poético
em relação aos seus contemporâneos.
DA, no início de sua atividade como poeta, teve apoio ainda de um dos
principais poetas da época, Guido Guinizelli5, (1230 – 1276). Porém, ao longo do
tempo, devido aos posicionamentos políticos de cada um desses poetas, começaram a
haver rupturas, não literárias, mas sim políticas, posto que era impossível que pessoas
de diferentes partidos políticos pudessem permanecer juntas. Isso quer dizer que, ainda
que pertencessem a partidos diferentes, o que na época era muito comum, a experiência
poética continuava ocorrendo, mesmo porque, ainda que não pudessem se reunir, eles
tinha a possibilidade de trocar informações por meio de cartas, a respeito de seus
trabalhos poéticos. No caso de DA com seu amigo Guido Cavalcanti, houve essa
separação, porém eles continuaram trocando experiências relacionadas à poesia por
correspondência, uma vez que cada um era pertencente a um grupo político diverso.
Tendo presente um pouco da biografia social e política de DA, vale acrescentar
ainda um breve panorama sobre seus trabalhos literários, evidenciando seu percurso até
a realização da DC. Seguem abaixo algumas dessas obras.
5 Guido Guinizelli (1235 - 1276) foi um importante poeta italiano que foi o iniciador e o teorizador do
Dolce Stil Novo, a corrente literária do século XIII italiano.
29
O primeiro livro de DA, intitulado Vita Nuova, foi escrito, no período de 1292 a
1293, dois anos após a morte de Beatriz Portinari, em 1290, figura de mulher que
frequenta toda a obra de DA, representando a mulher-anjo, ou seja, a visão de mulher do
Dolce Stil Nuovo6, que é a figura de uma mulher contemplada, amada, intocada pelo
poeta, sublime. Ele tratou do amor, em sua obra, fazendo uma ligação entre ele e o
coração gentil que via na mulher, ou seja, a mulher era a dona da graça, da doçura e da
humildade, sendo esta uma visão idealizada do amor. Esta mulher encarna a figura de
anjo, sendo uma intermediária entre a terra e o céu, fazendo com que o homem se eleve,
aproximando-se de Deus.
DA dividiu esta obra em duas partes, sendo a primeira dedicada à narração dos
acontecimentos e dos sentimentos que motivaram a composição dos poemas e, a
segunda, a análise de cada um deles. A obra compõe-se de rimas (canções e sonetos) e
de 39 capítulos, em prosa, e seu título remete a uma experiência absoluta que modificou
sua vida. Ele dá início à obra narrando seu encontro, aos nove anos de idade, com
Beatriz, sua amada, e prossegue expondo os acontecimentos até encontrar-se novamente
com ela, nove anos depois.
Essa obra mostra a trajetória percorrida por DA na sua formação literária,
trazendo consigo elementos novos, de experimentações nunca antes feitas em textos
poéticos, optando pela escrita em vulgar florentino e não em latim, tendo em vista que
ele queria que sua obra pudesse atingir o público e não somente as altas camadas da
sociedade. Nota-se que a difusão da VN deu-se por meio das cópias manuscritas de
Giovanni Boccaccio, cuja primeira edição data de 1576.
Em 1290, aproximadamente, DA já era conhecido em Florença como um
competente poeta, tendo seus poemas cantados, decorados e recitados e, consciente
disto, começou a ousar em sua escritura. Primeiramente, ele escrevia como os
trovadores, sendo seus temas: o amor não correspondido, a personificação da morte, o
amor oculto, os desentendimentos com a mulher amada, entre outros.
6 Escola literária que se difundiu na Toscana e teve como precursor Guido Guinizelli. Dentre seus
principais poetas observamos DA e Guido Cavalcanti. A novidade desse movimento está justamente na
consciência filosófico-existencial e literária, ou seja, é um movimento que não é limitado culturalmente, o
que gera uma concepção existencial original. Mais informações sobre esta temática do amor, ver
CAVALCANTI, Guido. Rime.
30
Juntamente com Guinizelli, DA e Guido Cavalcanti foram os maiores expoentes
do Dolce stil novo, que foi uma tendência literária nascida na primeira metade do século
XIII italiano e que concebia o amor como uma experiência global do espírito. À medida
que DA amadurecia sua escritura, o já citado Guido Guinizelli criou um novo conceito
de cor gentile7, cuja temática referia-se a uma qualidade mental que possibilitava a
experimentação unicamente do efeito mais elevado do amor, ou seja, um amor sublime.
Em seu soneto presente em seu livro Rime, Dante mostra que esse amor se estendia não
somente à mulher amada, mas também aos amigos, é o que se observa em: “Guido,
queria que você, Lapo e eu/ fôssemos postos por encantamento,/ todos em um barco e
que todo vento/ nos levasse ao bel-prazer, vosso e meu. [...]”8 (Rime LII) (Reynolds:
2011, p. 37).
Naquela época, DA escreveu inúmeros poemas sobre Beatriz e sobre seu amor
sublime e oculto por ela. Deste modo, a partir desses poemas pode ser percebida a
importância que ela tinha para ele transcendia a sua própria imaginação. Em sua
concepção, Beatriz havia se tornado um ideal, um ser paradisíaco e de uma beleza
extraordinária. A partir dessa compreensão, por parte dele, Reynolds afirma:
Este foi o primeiro passo de Dante em direção a uma nova forma de alegoria:
não uma personificação, nem um simbolismo, mas a percepção de que as
pessoas reais podiam ser imagens de qualidades que estão além delas
mesmas, não só em festas de máscaras e cortejos, mas na vida real.
(REYNOLDS: 2011, p. 52)
De acordo com Reynolds, infere-se que DA superou a personificação do amor
por Beatriz, marcado desde a sua infância pela impossibilidade de ser concretizado, pois
os dois não poderiam se casar, visto que ambos eram, desde muito jovens, prometidos
em casamento para outros cônjuges. Porém, este amor tornou-se poesia, ou seja,
personificou-se para o poeta que se aproveitou deste seu amor sublimado para ir em
direção a uma nova forma de escrita.
7 “coração nobre”, “gentil”.
8 “Guido, i’vorrei che tu e Lapo ed io/ fossimo presi per incantimento/ messe in un vasel, ch’ad ogni
vento/ per mare andasse al voler vostro e mio, [...]”(Rime LII) (Reynolds: 2011, p. 36).
31
Posteriormente ao término da obra, DA ainda envolvido na política de Florença,
percebia o quanto seu comune era importante e sabia o quanto a cidade de Florença,
naquele momento histórico, era uma das cidades de grande poder em oposição ao Papa9.
Existia, naquela época, uma dicotomia política intensa: um partido a favor do
Papa, na época Bonifácio VIII (1235 – 1303), e outro em oposição à Igreja, a favor do
Império. O quadro político daquele momento em Florença dividia-se entre os Guelfos e
os Gibelinos, que, respectivamente, apoiavam a Igreja e o Império. Suas lutas eram
constantes e, na batalha de Montaperti, travada em 1260, na qual os Gibelinos,
comandados por Farinata degli Uberti (1212 – 1264) foram derrotados e todo o poder de
Florença passou, então, para as mãos dos Guelfos. Desta forma, o poder da cidade
permaneceu com os Guelfos a partir de 1266. Dante trata da questão desses grupos
políticos em:
À insígnia comum lírios amarelos/ um opõe, e outro a traz à sua parte:/ mal
se vê quem mais peca em tais duelos./ Façam os Gibelinos pois sua arte/ sob
outra insígnia; mal a segue quem/ dela sempre a justiça ora departe;/ e não a
abata o Carlos que lá vem/ cos Guelfos, mas que tema unhas hostis/ que
esfolado maior leão já tem.10
(Par VI, v. 100 – 108)
Entretanto, posteriormente a este fato político, o partido dos Guelfos dividiu-se
em Guelfos Negros e Guelfos Brancos. Novamente essa divisão política envolveu a
Igreja Católica, uma vez que os Negros eram seus partidários e os Brancos não. Os
comandantes dos Brancos eram da família dos Cerchi, os quais defendiam os interesses
do popolo grasso (financiadores e ricos mercantes); já quem comandava os Negros era a
família dos Donati, que fortaleciam o restabelecimento do poder da nobreza e apoiavam
incondicionalmente o Papa.
Dentre os Brancos estava DA, que era contrário à dominação do Papa/ Igreja
Católica, defendendo a autonomia da sua cidade. Devido às lutas ocorridas entre esses
9 Papa Bonifácio VIII, o então Papa na época de DA, foi responsável por seu exílio, já que era seu
inimigo político declarado, fato que impediu o retorno de DA à Florença até a sua morte em Ravena. 10
“L’uno al pubblico segno i gigli gialli/ oppone, e l’altro appropria quello a parte,/ sí ch’è forte a veder
chi piú si falli./ Faccian li Ghibellin, faccian lor arte/ sott’altro segno; ché mal segue quello/ sempre chi la
giustizia e lui diparte;/ e non l’abbatta esto Carlo novello/ coi Guelfi suoi; ma tema de li artigli/ ch’a piú
alto leon lo vello”. (Par VI, v. 100 – 108)
32
partidos políticos, a cidade de Florença foi palco de muitas execuções e exílios,
incluindo o exílio do próprio poeta italiano que foi banido juntamente com todos do seu
partido após perder uma de suas batalhas contra os Negros. A esse respeito Asor Rosa
declara:
[...] Dante, [...], não devia mais ter a possibilidade de retornar a sua pátria. O
exílio representa uma pausa clara e dolorosa na vida de Dante. Mudam
completamente as condições da sua existência: a férvida participação na vida
do Comune se modifica em um vagar difícil e atormentado (do qual é
possível seguir todos os traços) de cidade em cidade, a procura de
hospitalidade e de sustento.11
(ASOR ROSA: 1985, p. 51) (TP)
No exílio, DA permaneceu até sua morte em 1321. O poeta não pôde retornar a
sua cidade natal, passando por várias necessidades materiais, pois não tinha uma
residência, tinha de se mudar frequentemente e pedir hospitalidade nas regiões central e
setentrional da Itália. Devido a essa dificuldade, o poeta não tinha como levar consigo
seus livros; contudo não parou de exercer seu trabalho como poeta, continuando-o como
um ideal de justiça a ser alcançado, uma vez que já havia perdido tudo, inclusive a sua
família, com a qual não tinha mais contato. É o que pode confirmar a declaração de
Walter Mauro em:
«Deixados, então, a esposa e os pequenos filhos nas mãos da sorte, e saindo
daquela cidade, na qual nunca ele poderia voltar»: o doloroso testemunho de
Boccaccio esclarece em termos de magra nudez expressiva a condição do
exilado, já barco sem vela e sem governo, em dificuldades econômicas
sempre mais duras, depois que a sua casa florentina e os seus bens tinham
sido saqueados pelos Negros senhores da cidade. Começam assim as duras
humilhações do exilado: bater às ilustres duras portas, sofrer a amargura do
pão da esmola, ajudado num primeiro momento somente pelo meio-irmão
Francesco, não comprometido politicamente, e por isso, capaz de continuar o
seu comércio em Florença e de manter os contatos com o marginalizado12
.
(MAURO: 1990, p. 35-36) (TP)
11
“[...] Dante, [...], non doveva avere più la possibilità di tornare nella sua patria. L’esilio rappresenta una
cesura netta e dolorosa nella vita di Dante. Cambiano completamente le condizioni della sua esistenza: la
fervida partecipazione alla vita del Comune si muta in un girovagare difficile e tormentato (di cui è
possibile seguire tutte le tracce) di città in città, alla ricerca di ospitalità e di sostentamento”. (ASOR
ROSA: 1985, p. 51) 12
“« Lasciati adunque la moglie e i piccoli figliuoli nelle mani della fortuna, et uscito di quella città, nella
qual mai tornare non doveva »: la dolorosa testimonianza di Boccaccio chiarisce in termini di scarna
nudità espressiva la condizione dell’esule, già legno senza vela e senza governo, in ristrettezze
economiche sempre piú pesanti, dopo che la sua casa fiorentina e i suoi beni erano stati saccheggiati dai
Neri padroni della città. Cominciano cosí le dure umiliazioni dell’esiliato: battere le dure illustre porte,
subire l’amarezza del pane dell’elemosina, aiutato in un primo tempo solo dal fratellastro Francesco, non
33
Distante de Florença, DA passou longos períodos em várias cidades italianas e
estas estadas duravam muito ou pouco tempo; por exemplo, em 1306 ele permaneceu
em Lunigiana, região situada entre as regiões da Toscana e da Ligúria; de 1307 a 1311,
em Poppi, na região do Casentino, que se localiza na parte norte oriental da Toscana; de
1312 a 1318-20 esteve em Verona, como hóspede de Cangrande della Scala (1291 –
1329); e, em 1321, foi para Ravena, como hóspede de Guido Novello da Polenta (1275
– 1333), onde faleceu. Além dessas cidades, ele passou ainda por Treviso e Pádua.
Todavia, o exílio foi o período mais produtivo da vida de DA, marcando o seu
ingresso em outra etapa de sua vida, que acarretou a realização de sua maior obra
poética. É o que afirma Asor Rosa em:
[...] sem dúvida que o exílio representa o fato mais importante na vida de
Dante. Não queremos dizer que sem isso ele não teria escrito as suas obras
maiores. Certo, porém, a forçosa ruptura da carreira política e o afastamento
de Florença forçaram-no a exercitar o seu gênio em estradas diversas
daquelas cujo destino parecia tê-lo inicialmente encaminhado e o forçaram-
no a uma concentração intelectual absoluta em que permanecia aberto
somente o crescimento do compromisso literário e cultural.13
(ASOR ROSA:
1985, p. 52) (TP)
Logo, no início de sua peregrinação, DA deu início à composição do livro De
vulgari eloquentia (1303 – 1304). Escrito em latim, sobre o vulgar ‘ilustre’, esse
trabalho foi o seu primeiro tratado sobre a retórica e poesia, dentro da tradição católico-
filosófico medieval. Esse tratado é considerado pelos autores do século XX como sendo
o primeiro importante estudo linguístico e filosófico das línguas faladas na península
italiana na época. A intenção política e literária do autor foi a de apresentar a
superioridade do vulgar sobre o latim, com o intuito de estimular a sua regularização.
Além disto, ele a escreveu em latim para os eruditos da época, enfatizando a
expressividade do florentino por intermédio da recente poesia toscana.
compromesso politicamente, e perciò in grado di prosseguire il suo commercio a Firenze e di mantenere i
contatti con l’emarginato”. (MAURO: 1990, p. 35-36) 13
“[...] non v’è dubbio che l’esilio rappresenti il fatto più importante nella vita di Dante. Non vogliamo
dire che senza di esso egli non avrebbe scritto le sue opere pìù grandi. Certo, però, la forzata rottura della
carriera politica e l’allontanamento da Firenze lo costrinsero as esercitare il suo genio su strade diverse da
quelle cui il destino sembrava averlo inizialmente avviato e lo impegnarono ad una concentrazione
intellettuale assoluta cui restava aperto soltanto lo sfogo dell’impegno letterario e culturale.” (ASOR
ROSA: 1985, p. 52)
34
Asor Rosa (1985: p. 56) declara que a principal distinção do tratado do vulgar
ilustre dantesco é entre o vulgar e a gramática, uma vez que o primeiro é a língua em si,
e a segunda é a língua reduzida ao domínio de regras fixas. DA acreditava que a língua
falada era totalmente variável e, a depender das condições de tempo e de lugar, seria
improvável o entendimento da fala dos habitantes de um mesmo lugar que tivessem
vivido em períodos diferentes da história. A gramática, nesse sentido, é uma identidade
“inalterável” da língua, ou seja, ela serve como base para uma língua comum.
O projeto inicial, para a redação de DVE, foi o de compor quatro livros,
analisando os vários níveis estilísticos e as possíveis formas de uso literário da língua
vulgar. Entretanto, essa obra também foi interrompida, exatamente, no capítulo XIV, do
segundo livro, para que ele iniciasse sua maior obra, a DC.
Esse tratado não teve tanta notoriedade como as outras obras de DA, tendo sido
redescoberta na primeira metade do século XVI e publicada em tradução italiana.
Ainda que não tivesse obtido tanto sucesso e ter sido criticado, DA deu o passo
principal, através de vários estudos linguísticos, para a composição de sua obra maior
que foi a DC. Desta forma, pode-se afirmar que ele foi um escritor além de seu tempo.
Sua obra seguinte foi Convivio, escrita em língua vulgar, entre 1303 e 1304, ou
seja, essas duas obras foram realizadas praticamente no mesmo período. Esta última, em
seu projeto inicial, deveria conter quinze tratados e um capítulo introdutório; todavia,
DA interrompeu a sua composição no quarto tratado. Cabe observar que o quarto
tratado foi escrito anos mais tarde, entre 1306 e 1308.
No Convivio, DA, diversamente do que fez na VN, modificou novamente seu
estilo, dessa vez, em prol de outro mais argumentativo e expositivo, utilizando-se de
alguns dos temas da cultura filosófica do seu tempo, como, por exemplo, a vida do
homem, a juventude, etc. Deste modo, inaugurou uma prosa filosófica totalmente
diversificada, coerente e lúcida, em língua vulgar.
DA trata de um banquete de sabedoria, oferecido aos mais pobres e miseráveis.
No primeiro tratado, ele tem por foco seu amor por Beatriz e também seu pensamento
filosófico. No segundo tratado, discorre sobre a filosofia na vida do homem. Já no
35
terceiro, escreve sobre a nobreza e, finalmente, no último trata de amizade, felicidade,
fidelidade, velhice, juventude, ética etc. É importante evidenciar que DA interrompeu a
escritura desse livro para dar início à DC.
Posteriormente a esses três livros acima mencionados, escreveu a Monarchia,
entre 1311 e 1313. Esta é um tratado em latim, dividido em três livros, nos quais deixa
transparecer seus conhecimentos de filosofia e política. No primeiro livro, ele defende a
necessidade de se ter um único monarca para o governo mundial. No segundo, mostra a
origem divina do Império Romano e, no terceiro, trata da relação entre o Papado e o
Império.
DA escreveu ainda outras obras, igualmente importantes para o conhecimento de
seu estilo, porém não tão conhecidas, a saber: Rime, Il Fiore, Detto d’Amore, Egloghe,
Epistole e Quaestio de aqua et de terra.
Este capítulo delineou basicamente o principal percurso feito por DA até a
escrita de sua maior obra, a Commedia, que será estudada na primeira subseção deste
capítulo.
1.1. Dante Alighieri e a Divina Comédia
A Divina Comédia é uma das principais obras da Literatura Italiana. Esse é um
dos motivos que nos levam a tratar de sua estrutura nesta subseção. Outra motivação é o
fato de esta obra ter sido revisitada por Alberto Martini, no século XX.
Assim, iniciamos essa apresentação da estrutura da DC observando que DA a
organizou de uma forma muito minuciosa. Para o poeta, o número três tinha uma grande
importância, já que é o número da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) e, assim,
escreveu três cânticas (Inferno, Purgatório e Paraíso), cada uma com 33 cantos, tendo
cada Canto entre 115 e 160 versos, havendo a cântica do Inferno um canto a mais,
36
introdutório, pois, no somatório das três cânticas, obtêm-se um total de cem cantos, que
representa o número perfeito para aquela época.
Além disto, existe ainda a terza rima (terzina) ou rima tripla, construída em três
estrofes, já utilizada desde a época da Escola Siciliana14
. Em sua obra, a terzina torna-se
uma unidade rítmica e também sintática. Deste modo, a rima composta por DA segue o
esquema ABA, BCB, CDC etc., que dará a principal rima no final da estrofe. Cada
verso possui 11 sílabas, ou seja, ele utilizava-se do hendecassílabo, recurso muito
utilizado na literatura italiana desde a Escola Siciliana, que elaboraram este modelo das
líricas provençal e francesa. No total, a DC foi formada por 14.233 hendecassílabos. A
respeito desta grande variedade utilizada na escrita de Dante, Cataldi e Luperini
declaram:
Ele conseguiu conferir (à Commedia) uma extraordinária variedade rítmica,
desfrutando assim ao máximo uma situação de liberdade, que, da li a pouco,
teria vindo a faltar, devido à institucionalização métrica do modelo
petrarchesco.15
(CATALDI E LUPERINI, 1994, p. VIII) (TP)
O fato de a obra dantesca ter sido divulgada em ambientes muito diversificados,
fez com que ela tivesse vários copistas, após a morte de seu autor. O principal
divulgador do poema dantesco, no século XIV foi Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), o
qual realizou três cópias da mesma. A DC intitulada por DA como Commedia (em sua
forma mais antiga Comedía), teve acrescentado ao seu título o adjetivo Divina por
Boccaccio, que só foi integrado ao título oficial a partir do Cinquecento italiano.
Observa-se que no poema o título dantesco aparece somente duas vezes, de acordo com
Ferroni (1992: p. 110).
Boccaccio iniciou o processo de divulgação da obra, sendo principalmente oral,
tendo em vista que ele comentava cada Canto do poema, ainda hoje chamada Lectura
14
É um movimento literário cortês surgido, aproximadamente, nos anos 30 do século XIII, na corte de
Federico II. Era escrita em vulgar siciliano e sua poesia tinha uma função social. A temática amorosa se
transfere a um plano mais abstrato, tendo sua forma comunicativa mais nobre e elevada. Tal movimento
teve como maior expoente Giacomo da Lentini, chamado por Dante de “Il notaio” (Purg. XXXIV, v. 56). 15
“Egli riuscì a conferirgli una straordinaria varietà ritmica, sfruttando così al massimo una situazione di
libertà, che, di lì a poco, sarebbe venuta a mancare, in seguito alla istituzionalizzazione metrica del
modello petrarchesco”. (CATALDI E LUPERINI, 1994, p. VIII)
37
Dantis, fazendo suas considerações a respeito e, além disso, escreveu a primeira
biografia de Dante e também tratados sobre a DC. É possível afiirmar que graças à
iniciativa de Boccaccio, o público leitor da obra dantesca teve um grande incremento,
fato que fez com que se iniciasse um processo grande de análise e estudos da DC.
Essa estrutura da obra poética é de grande importância, uma vez que ela é
construída com base em modelos da realidade, em relação à imitação alegórica feita por
DA da criação de Deus, e, tendo por modelo a Bíblia, como livro de Deus, segundo
Cataldi e Luperini (1994, XXXI). O modelo estrutural de escrita poética, apoiado e
reelaborado por DA a partir do texto bíblico evidencia, primeiramente, o pensamento da
Filosofia Medieval pelo fato de Deus se revelar aos homens por meio da realidade, e
depois porque Ele, também, se revela por meio das Sagradas Escrituras. É, então, por
isso que o poeta segue esse arquétipo de representação da realidade.
A viagem realizada por DA ao outro mundo, o dos mortos, traduz,
alegoricamente, a viagem da humanidade na Terra, já que estruturalmente o mundo dos
mortos é similar ao terreno. Cataldi e Luperini afirmam que:
[...] Dante imita, na Commedia, a estrutura do mundo, no qual cada dado é ao
mesmo tempo real e simbólico. O realismo da Commedia está nesta dupla
mimese, pela qual representar o mundo realisticamente na sua objetividade
significa também representá-lo no seu significado, isto é no seu sistema de
signos e de símbolos.16
(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. XXX)
(TP)
Assim, ao longo do estudo que se faz da obra do poeta florentino, observa-se que
ele se utiliza muito dos recursos dos símbolos e das alegorias para dar vida a seus
personagens. Até mesmo para a leitura são indicados quatro níveis, indicados pelo
próprio DA em carta enviada a Cangrande della Scala, conhecida como a Epístola XIII.
São eles o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. O nível literal refere-se ao êxodo
do povo de Israel do Egito, na época de Moisés, de acordo com os preceitos de São
Tomás de Aquino. O alegórico mostra nossa redenção até o encontro com Cristo. É
16
“[...] Dante imita, nella Commedia, la struttura del mondo, in cui ogni dato è insieme reale e simbolico.
Il realismo della Commedia sta in questa doppia mimesi, per cui rappresentare il mondo realisticamente
nella sua oggettività significa anche rappresentarlo nel suo significato, cioè nel suo sistema di segni e di
simboli”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. XXX)
38
observado que, é por meio deste artifício que o poeta vai esconder sua verdadeira
intenção, segundo Malato (2015: p. 273). O moral é verificado na passagem do pecado à
Graça Divina e, por fim, o anagógico indica a liberação da alma da servidão da
corrupção terrena até a sua chegada à Glória eterna.
DA estruturou e subdividiu este outro mundo de acordo com a tradição da
Filosofia Escolástica medieval, a qual surgiu da necessidade de responder às exigências
da fé transmitidas pela Igreja. Pode-se afirmar, basicamente, que seu pensamento era o
de harmonizar a razão e a fé, principio fundamental da Escolástica que procurava,
exatamente, conciliar a fé cristã a um sistema de pensamento racional como era aquele
da filosofia grega.
A DC, apesar de tratar de reinos ultraterrenos, trata também de histórias de
personalidades que realmente viveram, ou seja, ela retrata um pouco do mundo
histórico, político e social desses personagens; vários estudiosos, como Gianfranco
Contini (1912 – 1990) e Charles S. Singleton (1909 – 1985), por exemplo, concluíram
que a obra possui um certo “realismo”. A esse respeito Sterzi afirma:
Tal força de convencimento de Dante sobre o leitor - a ficção de que não se
trata de ficção, conforme já se disse – é uma das bases daquilo que diversos
estudiosos chamaram de “realismo” de Dante: não apenas a capacidade de
capturar imagens vivas do mundo dos homens, do mundo histórico, ainda que
lidando, à primeira vista, com cenários ultraterrenos; mas também a
capacidade de transmitir essas imagens em toda a sua vivacidade para os
leitores. (STERZI: 2008, p. 107)
Inserido neste campo de realismo, como representação da realidade, Sterzi cita
Auerbach dizendo que ele:
[...] vê, aí, a realização mais plena do choque de duas tradições de
representação da realidade: a antiga (de origem grega, e depois latina),
baseada na separação dos estilos, e a cristã (de origem bíblica), baseada na
mistura dos estilos. Em nenhum outro autor, como em Dante, “a mistura de
estilos chega tão perto da ruptura dos estilos”. (STERZI: 2008, p. 110)
Essa ruptura de estilos, de acordo com Sterzi, criada por Dante na DC, gerou um
novo olhar sobre a poesia da época, visto que, enquanto escrevia o poema, Dante ia
publicando-o e assim fez com que houvesse um primeiro contato da obra, ainda
39
inacabada com o público. Sabe-se que a obra foi totalmente reunida depois da morte de
Dante, por um de seus filhos e que, somente depois da ênfase dada por Boccaccio à obra
dantesca, é que ela começou a ser realmente propagada.
Após tecer algumas informações gerais acerca da estrutura externa do poema
dantesco, é necessário ainda considerar a estrutura interna da DC. Logo, o poema
dantesco trata da viagem de Dante personagem ao além-túmulo, ou seja, ao mundo dos
mortos, onde ele viaja por três reinos: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Essa viagem
tem a duração de aproximadamente uma semana, com início no dia 8 de abril do ano de
1300, uma Sexta-feira Santa. Este foi o ano do Jubileu, instituído pelo então Papa
Bonifácio VIII, inimigo particular de DA. Tal viagem permite que DA conheça a
verdadeira condição das almas depois da morte, mas também permite que ele
compreenda melhor a estrutura do universo.
Quando entra neste outro mundo, o dos mortos, DA personagem passa
primeiramente pelo Anti-inferno, onde se encontram os indolentes e segue para o
primeiro círculo, o Limbo, local onde residem as almas dos não batizados na fé cristã e
também dos infiéis, aqueles que, principalmente, não acreditam em Deus. A partir deste
primeiro círculo, DA é acompanhado por seu guia Virgílio pelo Inferno e pelo
Purgatório, até a sua chegada ao Paraíso, onde é Beatriz quem o guiará pelos céus.
Virgílio (nascido na cidade italiana de Andes, atual Borgo Virgilio em 70 a.C. e falecido
em Brindisi em 19 a. C.) tem um papel fundamental nesta jornada de DA, uma vez que
simboliza, para ele, a razão humana. O poeta latino não pode guiá-lo pelo Paraíso
porque, segundo as regras daquele reino, uma alma que não foi batizada na fé cristã não
pode ter acesso a tal esfera celeste, portanto, Beatriz, que se encontra no Paraíso é quem
será sua guia pelos céus.
Nesta viagem, DA tem a possibilidade de deparar-se com almas em todas as
condições, ou seja, desde aquelas muito sofridas até as mais santificadas, de todas as
épocas e oriundas de todo o mundo. A ordem estabelecida no além-túmulo é dada por
Deus, que é o maior símbolo de justiça de acordo com a concepção cristã. Assim, esse
além-túmulo nada mais é do que uma imagem do que se vivia na Terra, naquela época
mediévica. Asor Rosa, a respeito desta viagem ao mundo dos mortos afirma:
40
[...] a estrutura tem uma enorme importância. Tal estrutura corresponde
exatamente, em linhas de máxima, à estrutura do mundo do além-túmulo na
visão cristã medieval: este mundo se divide em três reinos, aquele da eterna
perdição, aquele do arrependimento e da purificação e aquele da salvação
eterna.17
(ASOR ROSA: 1985, p. 58) (TP)
Na D.C., o personagem Dante, em sua peregrinação pelo mundo dos mortos,
adverte e oferece exemplos para a responsabilidade de uma vida terrena, ou seja, o que
se vive na Terra, refletirá sempre no além-túmulo, uma vez que os atos em vida têm
espelhamento naqueles do além. Isso significa que, a depender dos comportamentos
tidos em vida, as almas irão sofrer ou não. Portanto, no destino eterno é revelado o
sentido mais profundo e essencial da experiência humana. Ou seja, em vida as pessoas
podem encobrir as próprias ações; no mundo dos mortos, os atos são revelados e seus
autores submetidos à justiça divina.
Asor Rosa, a esse respeito acrescenta ainda que: “A profecia consiste em indicar
à humanidade a completa estrada da sua possível redenção (concretamente mostrando-
lhe a possibilidade através da sugestiva experiência de uma única alma, que é aquela
de Dante)”.18
(ASOR ROSA: 1985, p. 63) (TP). Ou seja, Dante personagem tem um
papel fundamental para o significado global da obra, haja vista sua missão de apresentar
e percorrer o mundo dos mortos, posto que essa obra mostra o caminho que se deve
seguir para a salvação, apontando para cada um dos pecados que qualquer ser humano
pode ter e de sua respectiva punição no além-túmulo.
O protagonista do livro, ou seja, Dante personagem, coloca-se como um cristão
exemplar que segue este longo caminho com o intuito de alcançar a salvação de sua
alma; isto quer dizer que ele, neste sentido, não representa somente o personagem, mas
a ele mesmo como pessoa, um ser pecador, mas que crê em sua salvação.
17
“[...] la struttura ha un’enorme importanza. Tale struttura corrisponde esattamente, nelle grandi linee,
alla struttura del mondo dell’oltretomba nella visione cristiana medievale: questo mondo si divide in tre
regni, quello dellla eterna perdizione, quello del pentimento e della purificazione e quello dellla
salvazione eterna”. (ASOR ROSA: 1985, p. 58) 18
“La profezia consiste nell’additare all’umanità tutta la strada della sua possibile redenzione
(concretamente mostrandone la possibilità attraverso la suggestiva esperienza di una singola anima, che è
quella di Dante)”. (ASOR ROSA: 1985, p. 63)
41
Dante personagem desempenha ainda duas funções específicas, sendo a primeira
a de “acordar” as almas, isto é, de fazê-las interagir com ele, e a segunda é que, por
meio da visão das almas, e de seus sofrimentos, Dante vai conseguindo, pouco a pouco,
livrar-se dos seus pecados e conforme vai mudando de reino, vai se aproximando mais
da salvação.
O fato de DA ser autor e personagem de sua obra auxilia no sentido dela ter um
sentido de maior realismo. É ele mesmo, personagem, que vai dialogar com os mortos,
uma vez que ele entra em contato com eles e, por vezes, sendo o portador das notícias
do outro mundo aos vivos. É o que Asor Rosa declara em:
[...] a presença de Dante em primeira pessoa, em função de protagonista
inclusive, dentro da obra, serve não apenas para assegurar-lhe uma unidade
estrutural, colocando-se como fio condutor entre episódio e episódio, mas dá
vida e força de persuasão e de autenticidade humana naquilo que nela se
desenvolve.19
(ASOR ROSA: 1985, p. 58) (TP)
Essa ideia é reforçada em sua obra, conforme afirmam Cataldi e Luperini, na
representação de uma história que contém um certo realismo:
O fato é que Dante apresenta a Commedia como uma história verídica. O
grande realismo da sua arte se liga antes de tudo a este fato. Dante apresenta
a história como verídica em um duplo sentido: como história de uma viagem
verdadeira realizada por Dante (por isso são verdadeiras as coisas as que ele
se cita quanto as condição do além) e como história alegórica de um
itinerário espiritual realizado por Dante, do pecado e da perdição ao
arrependimento e à salvação.20
(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 3) (TP)
Dante, autor da DC faz seu personagem homônimo observar, no Inferno,
circunstâncias que ultrapassaram em muito a sua própria experiência humana. Isso
19
“[...] la presenza di Dante in prima persona, in funzione di protagonista addirittura, dentro l’opera,
serve non soltanto ad assicurarle una unità strutturale, ponendosi come filo conduttore tra episodio e
episodio, ma dà vita e forza di persuasione e di autenticità umana a quanto in essa si svolge”. (ASOR
ROSA: 1985, p. 58) 20
“Il fatto è che Dante presenta la Commedia come un racconto veritiero. Il grande realismo della sua arte
si lega innanzitutto a questo fatto. Dante presenta il racconto come veritiero in un duplice senso: come
racconto di un viaggio vero compiuto da Dante (per cui sono vere le cose che egli riferisce quanto alle
condizioni dell’aldilà) e come racconto allegorico di un itinerario spirituale compiuto da Dante, dal
peccato e dalla perdizione al pentimento e alla salvezza”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 3)
42
auxilia na compreensão de que o poema dantesco não se trata apenas de uma obra
autobiográfica, conforme afirmam Cataldi e Luperini a esse respeito:
Portanto o personagem-Dante é carregado de um sentido que vai além do seu
caráter biográfico ou autobiográfico. A Commedia não é, então, somente uma
obra autobiográfica: é também (e principalmente) a epopeia da humanidade
em marcha na direção da árdua meta da Graça e da Salvação.21
(CATALDI
E LUPERINI: 1994, p. 4) (TP)
A composição de cada uma dessas partes internas do poema dantesco é exposta a
seguir visando à reflexão sobre os elementos do enredo poético tecido por DA. Assim,
como dito anteriormente, Dante personagem é guiado por Virgílio e Beatriz, o poeta
latino simbolizando a razão e a sabedoria terrenas e a mulher-anjo de obras dantescas
anteriores à D.C. como, por exemplo, Vita Nuova simbolizando a fé. Virgílio é o guia
até seu ingresso para a salvação, ou seja, até o Paraíso, impedido de salvar a si próprio,
por não ser cristão, como mencionado anteriormente nesta subseção. Beatriz o
acompanha até o céu mais alto, ou seja, até seu encontro com Deus.
Deste modo, a trama tem seu início em uma selva escura, onde DA se vê
sozinho, tendo aproximadamente 35 anos de idade: “Nel mezzo del cammin di nostra
vita [...]”22
(Inf I, v. 1). Fato que se deve salientar é que até o Canto 3 do livro Inferno,
DA ainda não se concebe como um personagem.
Ele entra nessa selva, depara-se com três feras, a onça, o leão e a loba, as quais
representam, respectivamente, os símbolos da luxúria, da soberba, da avareza e da
inveja, que o estão olhando. Posteriormente, DA desmaia, enquanto passa pelo rio
Aqueronte: “e caddi come l’uom cui sonno piglia.”23
(Inf III, v. 136). Pode-se afirmar
que este desmaio sofrido por ele não foi somente um simples desmaio, mas sim um
desmaio moral, ou seja, o poeta percebe a semelhança entre seus próprios pecados e os
que ele está observando por onde passa; ele só pode encontrar a salvação para seus
21
“Il personaggio-Dante è dunque caricato di un senso che va al di là del suo carattere biografico o
autobiografico. La Commedia non è, allora, solo un’opera autobiografica: è anche (e soprattutto) l’epopea
dell’umanità in cammino verso la faticosa meta della Grazia e della Salvezza”. (CATALDI E LUPERINI:
1994, p. 4) 22
“No meio do caminho em nossa vida” (Inf I, v. 1) 23
“e caí como alguém que o sono apanha.” (Inf III, v. 136)
43
pecados se seguir por esse caminho desconhecido, passando pelos três reinos, o do Inf,
o do Purg e o do Par. Nesses reinos, ele pode observar: quais são as consequências dos
atos pecaminosos, no Inf, onde não se tem a possibilidade de redenção; de que modo
ocorre a purificação das almas que estão no Purg; e finalmente, como se dá a salvação
das almas do Paraíso.
Retornando ao desmaio de DA, o poeta romano Virgílio vem em seu socorro,
que é o guia da razão, que inicia junto ao poeta florentino o percurso pelo Inf. Visando
auxiliar o estudo, que será apresentado mais adiante, quando serão tratadas as
ilustrações e pinturas de Alberto Martini para a edição da DC, é oportuno explicar a
passagem de Dante pelos reinos representados nesse poema. Assim, explicarei como é a
viagem do personagem Dante, a estrutura do reino e também as punições às almas
condenadas; a purificação das almas no Purg, e, ainda, a bem-aventurança das almas no
Par. Assim, seguem abaixo as descrições do tema de cada um dos cantos dos reinos da
DC: Inf, Purg e Par, respectivamente.
1.2. A arquitetura da Divina Comédia
[...] Dante acredita firmemente, o valor exemplar de uma extraordinária
experiência humana imaginada e proposta como altíssimo testemunho de fé e
rigor moral, capaz de compreender os temores, as expectativas, as
inquietudes profundas do homem (não somente da Idade Média) e de sugerir
respostas que somente em uma primeira leitura podem parecer ligadas a uma
metafísica e a uma mística já distanciadas de nós. «O milagre da Comédia –
escreve Siro Chimenz -, único entre todas as obras poéticas de qualquer
literatura, é de ter dado voz e unidade poética a uma esfera de interesse
humano que parece imensurável». (MALATO: 2015, p. 255 - 256)24
(TP)
24
“[...] Dante fermamente crede, il valore esemplare di una straordinaria esperienza umana viene
immaginata e proposta come altissima testimonianza di fede e di rigore morale, capace di cogliere i
timori, le attese, le inquietudini profonde dell’uomo (non soltanto del Medioevo) e di suggerire risposte
che solo in prima lettura possono apparire legate a una metafisica e a una mistica ormai lontane da noi. «Il
miracolo della Commedia – scrive Siro Chimenz -, unico fra tutte le opere poetiche di qualsiasi
letteratura, è di aver dato voce e unità poetica a una sfera d’interessi umani che pare immensurabile»”.
(MALATO: 2015, p. 255 - 256)
44
É a partir desta epígrafe, que esta subseção inicia, apresentando como é a
estrutura arquitetônica desta obra poética de Dante Alighieri. Tal estrutura foi
extremamente pensada e vinculada com rigor em todas as suas partes. Por meio da
simbologia dos números, o poeta realizou uma simetria formal dentro desta estrutura,
onde o número 1 simboliza Deus, em sua unidade; indicando o sacro, o número 3
corresponde à Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo; o 7 refere-se aos dias da criação; e
ainda o número 10, com os múltiplos do primeiro e do terceiro, mas também o 4, o qual
somado ao 3 dá 7.
As três cânticas, Inferno, Purgatório e Paraíso, são divididas em 33 cantos,
somando um total de 99 completos, todavia, à primeira cântica foi adicionado um canto
introdutório, o que faz com que a obra inteira some 100 cantos, ou seja, o número
perfeito. Sabe-se que os versos de cada canto variam entre 130 e 151 versos, podendo
haver um mínimo de 115 e um máximo de 160 versos totais em cada canto, que cifrados
somam 7. Deste modo, a cântica do Inf possui 4720 versos, a do Purg 4755 e a do Par
4758, isto significa que a obra completa possui um total de 14.233 hendecassílabos.
A estrutura métrica desses hendecassílabos se dá da seguinte maneira: ABA
BCB CDC DED E..., forma esta que faz com que cada rima seja repetida três vezes em
cada canto, exceto com a primeira e a última, as quais são repetidas somente duas vezes.
Esta estrutura métrica é a terzina, inventada por DA e que assume, deste modo o
número sacro. Já de acordo com a simetria, o canto VI de cada cântica trata de uma
temática política com uma progressão, sendo a cidade de Florença no Inf, a Itália no
Purg e o Império no Par, onde cada uma dessas três cânticas terminam com a palavra
stelle (estrelas).
A estrutura da DC é composta por três sistemas que se incorporam e são
entendidos no modelo da ordem divina, que são os sistemas: físico, ético e histórico-
político. O sistema físico baseia-se na ordem do universo depois de Ptolomeu, a qual foi
adaptada aos dogmas da Igreja Católica por meio do aristotelismo. Deste modo, Dante
bebeu de várias fontes para inspirar-se e estruturar sua obra. O sistema ético mostra que
o homem possui o livre-arbítrio para fazer o que entende como certo ou errado em sua
45
vida, a opção é somente dele, e DA segue esta ética de acordo com Aristóteles, segundo
São Tomás de Aquino. Para um maior entendimento, Auerbach afirma:
Porque embora o homem como corpo, e aí entram também os poderes da
alma, está sujeito a inclinações por influência das estrelas, ele tem, na porção
racional da sua alma, a capacidade de orientar e limitar essa influência. E essa
capacidade é o seu livre-arbítrio. (AUERBACH: 1997, p. 132)
Isto posto, é possível compreender que este é um dos principais sistemas
utilizados por DA em seu poema, uma vez que é por meio desta ética que ele vai
organizar e dividir os pecados e as beatitudes de acordo com o que seus personagens
realizaram em vida. Já o terceiro sistema, o histórico-político será visto mais tarde nesta
subseção, quando Adão, no Par, relata a DA personagem o começo de seu drama.
Assim, os três reinos estruturam-se da seguinte maneira: o globo terrestre é
imóvel e circundado por uma esfera de fogo e ao seu redor giram nove círculos
concêntricos, constituídos de sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e
Saturno), onde existe ainda o Empíreo, ou seja, a morada de Deus, mais o céus das
estrelas fixas e o Primo mobile.
Este globo terrestre é dividido em dois hemisférios, o Norte e o Sul, quer dizer, o
boreal ou ártico, onde habitam os homens, e o austral ou antártico, desabitado e
submerso em água. No centro do hemisfério Norte, especificamente entre o rio Ganges
e as colunas de Hércules (Gibraltar), encontra-se Jerusalém, o centro do mundo. Abaixo
dela encontra-se o Inf, onde fica Lúcifer, o anjo caído, que quando caiu do céu, após a
Criação, enfiou-se no fundo da terra, em uma voragem em forma de cone, empurrando
para a superfície uma grande quantidade de terra, que é montanha do Purg. Já no cume
desta montanha fica o Paraíso Terrestre e o Par está nas esferas celestes que se
organizam nele.
A viagem dantesca pelo Inf, ainda, relacionada à questão estrutural da DC,
permite observar que Dante autor utiliza um estilo e um léxico que mudam de registro,
ou seja, se alternam entre o cômico e o trágico. Com isso, ele passa a ser um dos
maiores poetas experimentalistas, quer dizer, passa a fazer tentativas, experimentos
46
novos em sua poesia, mostrando, além disso, recursos de registro baixo, para poder
expressar a violência.
No Inf, DA fez a classificação dos pecados e de suas punições de acordo com a
ética de Aristóteles. Além disto, a lei do contrappasso é aplicada no Inf e, segundo
Auerbach (1997: 138) “[...] As punições são escolhidas com uma horripilante
inventividade [...]”. Esta lei implica que o pecador sofrerá punição com a mesma pena
que realizou ao próximo. A esse respeito Cataldi e Luperini afirmam que:
Em todo o caso o contrapasso e quanto outro determina a posição e a punição
dos danados coopera para definir a específica característica dramática dos
personagens e das situações infernais: os danados estão inteiramente
absorvidos na dimensão do próprio pecado, bloqueados naquele único
sentimento e naquela única disposição psicológica, em uma repetição infinita
(como em um mecanismo de coação reptícia) daquele único ato. Esta
petrificação das consciências constitui exatamente o modo substancial da
punição, a qual nas suas formas exteriores serve apenas para vincular, para a
eternidade, o pecador ao próprio pecado, retorcendo-o contra infinitamente e
mostrando-lhe o significado profundo da sua culpa.25
(CATALDI E
LUPERINI: 1994, p. 6) (TP)
A partir deste momento, serão tratados cada reino em particular, a fim de
evidenciar a estrutura e mostrar como são as punições de cada parte do Inf e do Purg e
as beatitudes do Par.
Conforme observado no poema, têm-se indícios de que o início desta viagem
deu-se em uma Sexta-feira Santa, dia 8 de abril do ano de 1300, como dito
anteriormente, ano do jubileu proclamado pelo então Papa Bonifácio VIII, tendo essa
jornada a duração de 7 dias. Tal data é compatível com os 35 anos de idade do poeta, ou
seja, a metade de sua vida, já que a expectativa de vida naquela época era de 70 anos,
“Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura,/ ché la diritta
25
“In ogni caso il contrappasso e quanto altro determina la posizione e la punizione dei dannati coopera a
definire la specifica carattistica drammatica dei personaggi e delle situazioni infernali: i dannati sono
interamente assorbiti nella dimensione del proprio peccato, bloccati in quell’unico sentimento e in
quell’unica disposizione psicologica, in una ripetizione infinita (come in un meccanismo di coazione a
ripetere) di quell’unico atto. Questa pietrificazione delle coscienze costituisce per l’appunto il modo
sostanziale della punizione, la quale nelle sue forme esteriori serve solo a vincolare per l’eternità il
peccatore al proprio peccato, ritorcendoglielo contro infinitamente e mostrandogliene il colpevole
significato profondo”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 6)
47
via era smarrita.”26
(Inf I, v. 1-3). DA, por meio de seu poema, apresenta a história de
todos os homens e o seu desmaio simboliza o de toda a humanidade que sofre até
conseguir ter a visão de Deus, que é a maior das bênçãos na vida do além-túmulo.
Deste modo, o Inf é dividido em 9 círculos, sendo que, a medida que se desce
esta cratera, os pecados tornam-se mais hediondos e os castigos mais severos. Enquanto
ainda está na selva escura, símbolo do pecado, DA depare-se com três feras, a onça,
símbolo da luxúria, o leão, símbolo da soberba, e a loba, símbolo da inveja ou da
avareza, que impedem a subida dele em direção ao “dilettoso monte” e que são os três
principais vícios do homem. A ameaça sofrida pelas feras quase fez com que o poeta
retornasse à selva, uma vez que as feras estavam na saída da mesma. Porém, um evento
o salvou, seu encontro com Virgílio, que será seu guia pelo Inf e pelo Purg, já que ele
pediu seu socorro para livra-se da loba, “Vedi la bestia per cu’io mi volsi;/ aiutami da
lei, famoso saggio,/ ch’ella mi fa tremar le vene e i polsi.»”27
(Inf I, v. 88-90). Assim,
DA e Virgílio seguem o caminho e adentram a porta do Inf, onde se lê uma escritura
ameaçadora e atravessam o vestíbulo, chegando ao outro lado, deparando-se com
Caronte, um demônio que atravessa as almas para o outro lado do rio Aqueronte. Ocorre
um terremoto e DA desmaia, como se estivesse em um sono profundo, enquanto eles
atravessam o rio, chegando ao primeiro círculo.
No primeiro círculo, o Limbo, é onde habitam os pagãos, ou seja, aqueles que
não foram batizados na fé cristã e os virtuosos, como Virgílio. Pode-se observar tal
explicação por meio da citação abaixo:
E o bom mestre me disse: «Nem demandes/ que espíritos são estes que tu
vês?/ Quero que saiba, antes que mais andes,/ que não pecaram e, se têm
mercês,/ não basta, pois ficaram sem baptismo,/ que é a porta da fé em que tu
crês./ E vindos antes do cristianismo,/ não prestaram a Deus devido rito,/ e eu
mesmo sou um deles neste abismo./ Por tais defeitos, não outro delito,/ sendo
perdidos, temos por ofensa,/ sem esperar, viver desejo aflito.28
(Inf IV, v. 31-
42)
26
“No meio do caminho em nossa vida,/ eu me encontrei por uma selva escura/ porque a direita via era
perdida.” (Inf I, v. 1-3) 27
“Olha esta fera por que me voltei;/ e me projete, ó sábia personagem,/ que em veias e em pulsos
vacilei.»” (Inf I, v. 88-90) 28
“ Lo buon maestro a me: «Tu non dimandi/ che spiriti son questi che tu vedi?/ Or vo' che sappi, innanzi
che piú andi,/ ch'ei non peccaro; e s'elli hanno mercedi,/ non basta, perché non ebber battesmo,/ ch'è porta
della fede che tu credi;/ E se furon dinanzi al cristianesmo,/ non adorar debitamente a Dio:/ e di questi
48
Além destes mencionados, estão presentes lá ainda aqueles que não tiveram coragem de
tomar partido da rebelião de Lúcifer, “che visser sanza ’nfamia e sanza lodo.” (Inf III,
v. 36)29
. É necessário frisar que nem o inferno os quis, uma vez que eles não tinham
comprometimento com nada.
A partir do segundo círculo tem início o reino do pecado propriamente dito e, até
o quinto círculo, estão as almas que pecaram por incontinência. No segundo círculo
estão presentes as almas dos luxuriosos, os das paixões terrenas, entre os quais estão
Paolo e Francesca, “Intesi ch'a cosí fatto tormento/ enno dannati i peccator carnali,/
che la ragion sommettono al talento.”30
(Inf V, 37-39). Lá também reside Minos, o juiz
infernal, o qual aplica a pena que cada alma merece, de acordo com o número de voltas
que sua cauda dá, como se nota em:
Minos lá era horrível que rangia:/ a examinar as culpas logo à entrada;/
conforme julga e manda, a cauda o estria./ Digo que a alma à desventura
nada,/ ante ele surge e toda se confessa;/ sabedor dos pecados a degrada/ e a
um lugar no inferno a arremessa;/ tantas voltas da cauda em si gravitam/
quantos graus mais abaixo a endereça.31
(Inf V, v. 4-12).
No terceiro círculo estão os gulosos, atingidos por uma chuva eterna e maldita,
“Io sono al terzo cerchio, della piova/ etterna, maladetta, fredda e greve;/ regola e
qualità mai non l'è nova./ Grandine grossa, acqua tinta e neve/ per l'aere tenebroso si
riversa;/ pute la terra che questo riceve.”32
(Inf VI, v. 7-12). Aqui se encontra ainda
outro demônio, Cérbero, encarregado de guardar o inferno, era um cão que possuía
cinco cabeças e uma cauda de dragão, e seu nome significa devorador de carne. No
quarto círculo estão os avaros e pródigos, colocados juntos pela sua oposição, assistidos
pelo demônio Pluto e condenados a carregar pesos enormes, “Questi fuor cherci, che
non han coperchio/ piloso al capo, e papi e cardinali,/ in cui usa avarizia il suo
cotai son io medesmo./ Per tai difetti, non per altro rio,/ semo perduti, e sol di tanto offesi,/ che sanza
speme vivemo in disio.»” (Inf IV, v. 31-42) 29
“que foram sem infâmia e sem louvor” (Inf III, V. 36) 30
“Entendi que a um assim feito tormento,/ pecadores danados são carnais,/ pois que a razão sometem ao
talento.” (Inf V, 37-39) 31
“ Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia:/ essamina le colpe nell'intrata;/ giudica e manda secondo
ch'avvinghia./ Dico che quando l'anima mal nata/ li vien dinanzi, tutta si confessa;/ e quel conoscitor delle
peccata/ vede qual luogo d'inferno è da essa;/ cignesi con la coda tante volte/ quantunque gradi vuol che
giú sia messa.” (Inf V, v. 4-12). 32
“Sou no terceiro círculo, onde chove a/ eterna chuva, fria e nunca leve;/ sem regra ou qualidade nunca
nova./ Grosso granizo, água suja e neve,/ pelo ar tenebroso se dispersa;/ fede a terra que dentro em si a
teve.”32
(Inf VI, v. 7-12)
49
soperchio».”33
(Inf VII, 46-48). No quinto círculo residem os iracundos, “Lo buon
maestro disse: «Figlio, or vedi/ l'anime di color cui vinse l'ira;”34
(Inf VII, v. 115-116),
imersos na lama do rio Estige, o rio do inferno, e, em seu fundo, as almas preguiçosas
fazem com que a água lamacenta borbulhe na superfície.
DA e Virgílio atravessam o pântano na barca de Flégias, chegando na cidade de
Dite, a cidade do demônio (civitas diaboli). Encontram Filippo Argenti, e descem da
barca. Assim, entram no sexto círculo, onde é o cemitério dos hereges, “E io: «Maestro,
quai son quelle genti/ che, seppellite dentro da quell'arche,/ si fan sentir con li sospir
dolenti?»/ Ed elli a me: «Qui son li eresïarche”35
(Inf IX, v. 124-127), aqueles que não
acreditam na imortalidade do espírito, encontrando lá a alma de Farinata degli Uberti.
Na passagem para o sétimo círculo eles deparam-se com o Minotauro e também
com os Centauros. Neste círculo estão os violentos:
«Meu filho, nestas pedras dentro estamos»,/ começou, «em três círculos
pequenos/ de grau em grau, como os que já deixamos./ [...]/ De todo o mal a
que ódio em céu assista,/ a injúria é o fim, e todo o fim que é tal,/ ou com
força ou com fraude outrem contrista./ Mas porque a fraude é do homem
próprio mal,/ mas desagrada a Deus; e ao baixo hão ido/ os fraudulentos e
mais dor lhes val’.36
(Inf XI, v. 16-18; 22-27).
E são observadas três classes de violência: aquela contra o próximo, que são os
tiranos e homicidas, e que ficam imersos em água com sangue fervente do rio
Flegetonte; contra si mesmo, os suicidas, transformados em plantas laceradas pelas
harpias; e contra Deus, na pessoa, os blasfemadores, atingidos pela chuva de fogo que
recai sobre eles, na natureza os sodomitas, que correm sem pausa debaixo desta chuva, e
na arte, os usurários que ficam sentados debaixo da chuva.
33
“São clérigos os que o texto já não têm/ piloso em cima, e em papas e cardeais,/ usa avareza o seu
supérfluo bem».”33
(Inf VII, 46-48) 34
“O bom mestre me disse: «Filho, vês/ a alma dos que já venceu a ira;”34
(Inf VII, v. 115-116) 35
“E eu: «Mestre, quem são aquelas gentes/ que amortalhadas dentro dessas arcas,/ fazem ouvir suspiros
tão dolentes?»/ E ele a mim: «São os heresiarcas”35
(Inf IX, v. 124-127) 36
“ «Figliuol mio, dentro da cotesti sassi»,/ cominciò poi a dir «son tre cerchietti/ di grado in grado, come
que' che lassi./ [...]/ D'ogne malizia, ch'odio in cielo acquista,/ ingiuria è 'l fine, ed ogni fin cotale/ o con
forza o con frode altrui contrista./ Ma perché frode è dell'uom proprio male,/ piú spiace a Dio; e però stan
di sutto/ li frodolenti e piú dolor li assale.” (Inf XI, v. 16-18; 22-27).
50
DA e Virgílio descem ainda mais, chegando ao oitavo círculo, aonde chegam
montados nas costas de Gerião, um monstro alado. Neste círculo fica o Malebolge,
formado por dez valas:
Malebolge no inferno se nomeia/ lugar todo de pedra em tom ferrino,/ como a
cerca em seu torno que o rodeia./ No justo meio a tal campo malino/ há o vão
de um poço assaz largo e profundo,/ que em seu lugar direi como imagino./ O
cincho que ali fica é bem rotundo,/ entre o poço e o sopé da margem dura,/ e
em dez valas se lhe divide o fundo.37
(Inf XVIII, v. 1-9).
Lá é onde estão as almas dos impostores, como: os proxenetas que são os
sedutores constantemente atingidos por demônios com chifres; os aduladores que
permanecem imersos no esterco; os simoníacos que ficam com suas cabeças enterradas
em buracos circulares no solo; os adivinhos e magos que caminham com suas cabeças
viradas para trás; os trapaceiros que ficam imersos em água fervente e são massacrados
pelos demônios; os hipócritas que caminham lentamente, chorando, usando pesadas
capas de chumbo e douradas pelo lado de fora; os ladrões que correm entre serpentes,
sendo mordidos e transformando-se ora em serpentes ora em homens novamente; os
maus conselheiros que ficam envolvidos por uma chama de fogo em forma de língua,
dentre os quais estão presentes Guido da Montefeltro e Ulisses; os desordeiros, que são
dilacerados e mutilados pelos demônios; e os falsários que que sofrem de uma febre
ardente.
Deixando para trás o oitavo círculo, com suas dez valas, DA e seu guia chegam
finalmente ao último círculo do inferno, o nono, onde passa o último rio infernal
originário das lágrimas do Velho de Creta, o Cocito. Lá estão presentes os traidores, “Se
vuoi saper chi son cotesti due,/ la valle onde Bisenzo si dichina/ del padre loro Alberto
e di lor fue./ D'un corpo usciro; e tutta la Caina”38
(Inf XXXII, v. 55-58), divididos em
quatro zonas, a saber: Caína, onde se localizam os traidores de parentes (chamada assim
por causa de Caim, que traiu e matou seu irmão Abel); Antenora, onde estão os
37
“ Luogo è in inferno detto Malebolge,/ tutto di pietra di color ferrigno,/ come la cerchia che dintorno il
volge./ Nel dritto mezzo del campo maligno/ vaneggia un pozzo assai largo e profondo,/ di cui suo loco
dicerò l'ordigno./ Quel cinghio che rimane adunque è tondo/ tra 'l pozzo e 'l piè dell'alta ripa dura,/ e ha
distinto in dieci valli il fondo.” (Inf XVIII, v. 1-9). 38
“E se queres saber quem estes são,/ foi o vale onde o Bisenzo declina,/ do pai Alberto e deles
possessão./ Saíram de um só corpo; e a Caína” (Inf XXXII, v. 55-58)
51
traidores da pátria (possui essa nomenclatura devido ao troiano Antenor, que gerou a
ruína de Troia); Tolomeia, onde ficam os traidores dos amigos (nome este vindo de
Tolomeu, rei do Egito que traiu e matou Pompeu); e Judeca, onde estão os traidores dos
benfeitores (nome advindo de Judas, traidor de Cristo). Neste círculo encontra-se
Lúcifer imerso, do seu peito para baixo no gelo, sendo monstruoso e tendo três faces e
seis asas de morcego: “Con sei occhi piangëa, e per tre menti/ gocciava ‘l pianto e
sanguinosa bava./ Da ogni boca dirompea co’ denti/ un peccatore, a guisa di maciulla,/
sí che tre ne facea cosí dolenti.”39
(Inf XXXIV, v. 53-57). Dentre esses três pecadores
estão: Brutos, que matou César, Cássio, que traiu o Império, e Judas, o traidor de Cristo.
Judas é o que se encontra na boca central de Lúcifer, enquanto os outros dois estão nas
suas laterais. Posteriormente a esta terrível visão, DA e Virgílio completam toda a
descida e chega, finalmente, o momento de subir para o Purgatório.
Para a construção do Purg, DA utilizou-se da ordem ética tomista-aristotélica, ou
seja, os vícios são tidos como perversões do amor, além disto, tem-se que as
transgressões pessoais não são julgadas.
É no Purg que as almas têm a possibilidade de se arrepender e poder chegar, um
dia, a salvação, tendo purgado, primeiramente, seus pecados. Desta maneira, percebe-se
que o Purg é um local provisório, mas que faz parte de um sistema que interliga esses
três reinos, assemelhando-se muito com o mundo terreno.
A estrutura do Purg é a de um cone, virado para cima, elevando-se acima da
superfície terrestre. A constituição do Purg é antagônica a do Inferno, e isso se justifica
pelo fato de que no Inf se deve descer até a chegada em Lúcifer, porém, no Purg se deve
subir sempre mais em direção ao Par, em consonância com a estrutura harmoniosa da
DC.
No Purg, diferentemente do Inf, Dante personagem não é mais um observador,
ele tem uma história de purificações para seguir, e estas são lentas, para que pouco a
pouco as almas se purifiquem e possam ir subindo em direção à verdadeira luz. Nesse
espaço do poema, o poeta florentino não só observa, mas ele próprio vive esse momento
39
“Com seis olhos chorava e aos mentos rente/ baba sangrenta e ranho gotejava./ De cada boca esfacelava
a dente/ um pecador, ripando-lhe a medula,/ e a cada um de três punha dolente” (Inf XXXIV, v. 53-57)
52
de purificação da própria alma, já que realiza todos os percursos até a chegada ao Par.
Ou seja, primeiramente observou como é o sofrimento das almas desesperançadas do
Inf e agora, no Purg, tem a possibilidade de vivenciar as purgações. Assim, existem
jornadas diurnas e noturnas, como na jornada terrestre. Nesse reino, Dante, em
companhia de Virgílio, permanece por quatro manhãs e três noites.
Outra diferença a ser evidenciada entre o Purg e o Inf é que o primeiro possui
paisagens, enquanto o segundo somente apresentava locais trevosos e obscuros, sem
uma forma muito concreta. De tal diferença nos falam também Cataldi e Luperini em:
No Purgatório Dante nos apresenta um mundo mais semelhante àquele
terreno; e esta observação vale tanto para o aspecto físico da paisagem e do
transcorrer do tempo, quanto pela atmosfera psicológica e emotiva das almas
encontradas e do próprio Dante.40
(CATALDI E LUPERINI: 1994. p. 208)
(TP)
Isto é, aquele local onde a escuridão e as trevas faziam com que Dante,
personagem, se sentisse muito mal, desmaiasse, por ver o sofrimento daquelas almas, dá
lugar a um local onde ele consegue se sentir mais próximo da humanidade, tendo em
vista que o ambiente do Purg é similar ao terreno. Assim, ele consegue seguir seu
percurso com mais tranquilidade, uma vez que é como se os próprios pecados mais
graves que ele pudesse ter cometido, tivessem ficado para trás. Enquanto ele segue essa
caminhada, com a intenção de purificar ainda mais sua alma cristã, DA sente-se muito
próximo de sua vida, neste reino onde se pode errar e, assim como na Terra, é possível
corrigir as falhas.
Já as almas, presentes no Purg, possuem uma particularidade, uma vez que para
libertarem-se de seus próprios pecados, elas compreendem, primeiramente, os próprios
limites para, a partir disto, ir aos poucos se desvencilhando de suas culpas. Isso,
obviamente, é um processo lento, mas importante, já que faz com que as próprias almas
avaliem as próprias culpas, as compreendam e tentem modifica-las, esforçando-se para
não errar mais.
40
“Nel Purgatorio Dante ci presenta un mondo più simile a quello terreno; e questa osservazione vale
tanto per l’aspetto fisico del paesaggio e del trascorrere del tempo, quanto per l’atmosfera psicologica ed
emotiva delle anime incontrate e di Dante stesso”. (CATALDI E LUPERINI: 1994. p. 208)
53
Deste modo, quando DA e Virgílio chegam à praia da ilha onde fica a montanha
do Purg, deparam-se com Catão, cuja função é a de ser guardião deste reino em que se
cumpre a libertação do pecado. A manhã está chegando e vê-se o planeta Vênus, que é o
símbolo do amor divino, o qual anuncia a chegada do Sol que, com sua luz, ilumina a
constelação de Peixes. Nota-se ainda, “a l’altro polo, quattro stelle/ non viste mai fuor
ch’a la prima gente.”41
(Purg I, v. 23-24), que são astros invisíveis, visíveis somente
para Adão e Eva, quando estavam no Paraíso Terrestre. Tais estrelas simbolizam as
quatro virtudes cardiais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.
Os poetas seguem seu caminho nesta praia, quando avistam um pequeno barco
conduzido por um anjo, cuja função é a de transportar as almas da foz do Tibre e levá-
las para purgar seus pecados. Assim, já na entrada do Purg faz-se necessário uma
purificação, como nota-se em:
Quando chegámos lá onde a geada/ luta co sol e, por estar em parte / batida
ao vento, pouco se degrada,/ as mãos por essa ervinha já reparte/ suavemente
o mestre meu e as pousa:/ onde eu, apercebido de sua arte,/ lhe volvo minha
face lacrimosa:/ e ele aí pôs de todo a descoberto/ a cor que a infernal tapou
danosa.42
(Purg I, v. 121-129)
Ao entrar neste novo reino, DA, ao passar pelo portão de entrada e encontrar-se
com o anjo que abre essa porta, recebe, simbolicamente o sacramento da confissão.
Todavia, as almas somente se libertam da culpa terrena quando terminam de atravessar
este portão.
Igualmente ao Inf, o Purg também possui geograficamente suas divisões, que são
seis, a saber: o rio Tibre, o Anti-Purgatório, o Baixo Purgatório, o Médio Purgatório, o
Alto Purgatório e o Paraíso Terrestre, ou Éden. Dante então subiu para o Anti-
Purgatório que antecede o Purg propriamente dito. Nele estão as almas que se
arrependeram de seus pecados momentos antes de suas mortes: “Noi fummo tutti già per
forza morti,/ e peccatori infino all'ultima ora:/ quivi lume del ciel ne fece accorti,/ sí
41
“no outro pólo, e aí vi quatro estrelas,/ vistas apenas da primeira gente.” (Purg I, v. 23-24) 42
“Quando noi fummo là 've la rugiada/ pugna col sole, e, per essere in parte/ dove adorezza, poco si
dirada,/ ambo le mani in su l'erbetta sparte/ soavemente 'l mio maestro pose:/ ond'io, che fui accorto di
sua arte,/ porsi ver lui le guance lacrimose:/ ivi mi fece tutto discoverto/ quel color che l'inferno mi
nascose.” (Purg I, v. 121-129)
54
che, pentendo e perdonando, fora/ di vita uscimmo a Dio pacificati,/ che del disio di sé
veder n'accora».”43
(Purg V, v. 52-57).
DA e Virgílio vão, aos poucos, aproximando-se do monte, deparando-se com
almas, que estão divididas em quatro grupos: os excomungados, ou seja, os excluídos
pela Igreja, dentre os quais está Manfredi, filho de Federico II, que conseguiu se
arrepender verdadeiramente no seu último segundo de vida, sendo condenado a ficar no
Anti-purgatório; os negligentes, presentes na primeira balsa são os de morte natural; na
segunda balsa estão os mortos por violência; e os preguiçosos para fazer o bem. Passada
esta caminhada, anoitece e sem a luz divina não se consegue continuar o caminho,
sendo assim, os poetas esperam o outro dia para prosseguir e, enquanto isso não
acontece, DA adormece, sonhando com uma águia com penas de ouro, que representa a
graça divina e também a justiça imperial, símbolo utilizado por Santa Luzia.
No dia seguinte, Dante chegou ao Purg propriamente dito. Ele e seu guia
passaram pelo anjo porteiro, que guarda esta porta e que incide na testa de Dante as sete
letras P, que indicam os sete pecados capitais pelos quais ele passará no Purg, como
visto em: “Sette P ne la fronte mi descrisse/ col punton de la spada, e «Fa che lavi,/
quando se’ dentro, queste piaghe» disse.”44
(Purg IX, v. 112 -114). Este espaço do Purg
é dividido em sete cornijas, com seus pátios circulares, que diminuem de tamanho à
medida que se ascende sempre mais. As sete cornijas obedecem à seguinte ordem:
soberba, inveja e ira, que representam os amores a objetos errados; preguiça, que é o
amor abaixo do bem; avareza, gula e luxúria, que são os amores excessivos aos bens
relativos.
As penas, no Purg, são diferenciadas daquelas do Inf, pois não sofrem a punição
divina, uma vez que as almas têm a possibilidade de redenção dos pecados, por meio da
purificação. Tal fato ocorre porque Deus concedeu o perdão a essas almas que se
arrependeram antes da morte, todavia, é necessário que elas se arrependam
sinceramente. Este período de arrependimento é preciso para que as almas se
43
“Todos tivemos violentas mortes/ tendo pecado até a última hora;/ aí a luz do céu nos fez mais fortes,/
arrependendo e perdoando, fora/ da vida vindo a Deus pacificados,/ que o desejo de vê-lo em nós
demora».” (Purg V, v. 52-57) 44
“vezes. E como sete P sentisse/ marcar-me a fronte a espada, «Depois laves,/ sendo lá dentro, as
chagas», ele disse.”(Purg IX, v. 112-114).
55
purifiquem e possam ascender tranquilamente aos céus. DA afirma que: “e canterò di
quel secondo regno,/ dove l'umano spirito si purga/ e di salire al ciel diventa degno.”45
(Purg I, v. 4-6)
As penas a serem cumpridas neste reino não são simples, porém, também não
são terríveis como as do Inf. Assim, existem três maneiras para que a alma possa se
arrepender, a saber: as penas, a oração e os exempla. Como demonstração para os
exempla, temos: “Era intagliato lí nel marmo stesso/ lo carro e' buoi, traendo l'arca
santa,/ per che si teme officio non commesso.”46
(Purg X, v. 55-57)47
As penas são baseadas na lei do contrapasso:
Eu fiz que filho e pai revel se torne:/ Aquitófel não faz mais, que Absalão/ e
o pai David com más punções adorne./ Pois separei pessoas que eram tão/
juntas, oh dor!, oh cérebro deslaço/ de seu princípio que é neste troncão./
Assim se observa em mim o contrapasso.»48
(Inf XXVIII, v. 136-142)
Contudo, no Purg a lei do contrapasso atua de forma diferente que no Inf., jáá
que, no Purg a alma deve esforçar-se contrariamente a natureza de seu pecado, até o
momento dela poder se livrar completamente dele. Acrescenta-se que as almas do Purg
recebem suas penas com alegria, porque é através delas, ou melhor, do cumprimento
delas, que elas chegarão perto da Graça de Deus, por meio de uma espécie de
reabilitação. Cataldi e Luperini afirmam que:
A pena, no Purgatório, não atinge a alma por vontade divina a fim de puni-la
(como no Inferno), mas nasce, digamos, da própria alma como expressão de
sua vontade de reabilitação: as penas infernais desmascaram a alma do
pecador revelando a sua culpa, aquelas do Purgatório mostram as forças
positivas das almas, o esforço delas (insuficiente na Terra e aqui suficiente
45
“e do segundo reino cantar venho/ em que a alma humana purga e se habilite/ por digna de ir ao céu no
seu empenho.” (Purg I, v. 4-6) 46
“E na pedra talhada reconheço/ o carro e os bois trazendo essa arca santa/ porque encargo se teme não
expresso.” (Purg X, v. 55-57) 47
Exempla baseado na passagem de David e a Arca da aliança, narrado no livro de Samuel (II Livro dos
Reis, VI) e no primeiro livro Paralipômenos (XIII; XV; XVI). 48
“ Io feci il padre e 'l figlio in sé ribelli:/Achitofèl non fe' piú d'Absalone/ e di Davíd coi malvagi
punzelli./ Perch'io parti' cosí giunte persone,/ partito porto il mio cerebro, lasso!,/ dal suo principio ch'è in
questo troncone./ Cosí s'osserva in me lo contrapasso».”(Inf XXVIII, v. 136-142)
56
porque é assistido pela Graça) de liberar-se do pecado.49
(CATALDI E
LUPERINI: 1994, p. 209) (TP)
Já as orações recitadas por e para todas as almas: “Io mi rivolsi attento al primo
tuono,/ e 'Te Deum laudamus' mi parea/ udire in voce mista al dolce suono.”50
(Purg IX,
v.139 -141). Essas orações tem o intuito de invocar o socorro da Graça divina, não só
para elas mesmas, mas também para os vivos que vivem em pecado.
Os exempla são almas exemplares que se mostram as almas do Purg:
[...] lá entalhado num fazer suave,/ nem se diria imagem não loquaz./ Jurado
se teria se dissesse «Ave!»/ porque ali era imaginada aquela/ que a abrir o
alto amor rodou a chave;/ e no seu gesto impresso se revela/ «Ecce ancilla
Dei», propriamente/ como figura em cera se modela. 51
(Purg X, v. 38-45).
Os exempla são sempre de dois tipos, uma da virtude, oposta ao vício e outra que
sofre do mesmo pecado tolhido no momento da punição divina. Enfim, eles se mostram
para essas almas para que sirvam de exemplo e para que continuem a sua jornada
sempre em direção ao Par. Diferentemente do Inf, onde as almas permaneciam fixas em
seus círculos sem poder sair de lá, no Purg as almas, conforme a necessidade, deslocam-
se de cornija em cornija para se libertar de seus pecados.
Deste modo, na primeira cornija estão presentes os soberbos, curvados,
carregando pesos muito grandes enquanto recitam o pater noster, sendo obrigados a
verem exemplos de humildade esculpidos nas paredes do monte e os de soberba no
chão. Na segunda cornija estão os invejosos, com roupas esgarçadas, obrigados a
ouvirem exemplos de amor ao próximo e de inveja punida. Na terceira cornija estão os
49
“La pena, nel Purgatorio, non colpisce l’anima per volontà divina al fine di punirla (come nell’Inferno),
ma nasce, per così dire, dall’anima stessa come espressione della sua volontà di riabilitazione: le pene
infernali smascherano l’anima del peccatore rivelandone la colpa, quelle del Purgatorio mostrano le forze
positive delle anime, il loro sforzo (insufficiente sulla Terra e qui bastevole perché assistito dalla Grazia)
di liberarsi dal peccato”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 209) 50
“Voltei-me a escutar aquele trom,/ e «Te Deum laudamus» se diria/ ouvir em voz conjunta ao doce
som.”50
(Purg IX, v.139-141) 51
“ [...] quivi intagliato in un atto soave,/ che non sembiava imagine che tace./ Giurato si saría ch'el
dicesse 'Ave!';/ perché iv'era imaginata quella/ ch'ad aprir l'alto amor volse la chiave;/ e avea in atto
impressa esta favella/ 'Ecce ancilla Dei', propriamente/ come figura in cera si suggella.”51
(Purg X, v. 38-
45)
57
iracundos envoltos em uma nuvem de fumaça, cantando o Agnus Dei e tendo visões de
mansidão e de ira punida. Na quarta veem-se os preguiçosos que correm sem parar,
gritando exemplos de solicitude e de preguiça punida. Na quinta cornija estão os avaros
e pródigos que repetem sempre exemplos de liberdade, de dia, e de noite, de avareza.
Ao subirem em direção à sexta cornija, sentem um terremoto, acompanhado do
canto Gloria in excelsis Deo, fato que anuncia que uma alma conseguiu cumprir sua
purgação e seguirá para o Par. Esta alma era a do poeta romano Estácio.Passam, então,
à sexta cornija, a dos gulosos, enfraquecidos pela fome e pela sede, condenados a ficar
em meio a árvores frondosas e carregadas de frutos, enquanto uma alma grita exemplos
de temperança e de gula punida, entre as quais está Bonagiunta Orbicciani. Na sétima
cornija estão os luxuriosos, divididos em duas partes, a dos pecadores contra a natureza
e segundo a natureza, dentre os quais nota-se Guido Guinizzelli e Arnault Daniel, os
quais caminham entre chamas cantando hinos religiosos e exemplos de castidade. Vale
acrescentar que, a cada cornija superada, o anjo retira um P da testa de DA, absolvendo-
o do pecado relativo à cada uma das cornijas.
Os poetas, juntamente com Beatriz, passam por um muro de fogo e chegam ao
Paraíso Terrestre, local onde DA e Virgílio se despedem. E Virgílio diz a ele: “veduto
hai, figlio;e se’ venuto in parte/ dov’io per me piú oltre non discerno.”52
(Purg XXVII,
v. 128-129). A partir deste momento, DA continua seu caminho, já sem seu guia,
passando por um rio de águas límpidas, que corre a sua esquerda: é o Lete, o rio do
esquecimento, de grande importância para as almas que adentrarão ao Paraíso. Na
despedida de DA e Virgílio ele diz: “Ma Virgilio n’avea lasciati scemi/ di sé, Virgilio
dolcissimo patre,/ Virgilio a cui mia salute die’mi;”53
(Purg XXX, v. 49-51), e se
encontra com Beatriz: “continüò, come colui che dice/ e ’l piú caldo parlar dietro
reserva:/ «Guardaci ben! Ben son, ben son Beatrice.”54
(Purg XXX, v. 71-73), que,
junto dele, iniciará a jornada através do Par.
52
“filho, tu viste; e já chegaste a parte/ onde eu por mim mais longe não discerno.” (Purg XXVII, v. 128-
129) 53
“Mas já Virgílio em mingua nos pusera/ de si, Virgílio dulcíssimo padre,/ Virgílio a quem por salvação
me dera;” (Purg XXX, v. 49-51) 54
“ali continuou com quem diz/ e o mais quente falar ao fim reserva:/ «Olha-me bem! Sou bem, sou bem
Beatriz.” (Purg XXX, v. 71-73)
58
Do outro lado do rio está Matelda, que é uma figura misteriosa que precede todo
o rito de purificação das almas que irão para o Paraíso, pois simboliza a vida ativa
perfeita. Dando prosseguimento, o poeta florentino passa por uma procissão mística,
com candelabros de ouro e, em cujo centro, desfila uma carroça triunfal, puxada por um
grifo. Esta visão de DA representa alegoricamente a Igreja, enquanto os símbolos
misteriosos representam a fé. Neste momento, ele encontra-se com Beatriz: “sanza de li
occhi aver piú conoscenza/ per occulta virtú che da lei mosse/ d’antico amor sentí la
gran potenza.” (Purg XXX, v. 37-39), fato mágico para ele, todavia, ela não o recebe
com sentimentalismos. Beatriz que, para DA era uma mulher-anjo, mostra-se
exatamente desta maneira: “isplendor di viva luce etterna” (Purg XXXI, v. 139). É
importante salientar que para que DA possa ingressar no Par, deixando todas as suas
culpas para trás, Beatriz o faz confessar suas próprias culpas e pecados para que assim
eles pudessem ascender: “«dí, dí se questo è vero; a tanta accusa/ tua confession
conviene esser congiunta.»”55
(Purg XXXI, v. 5-6).
DA bebe da água do rio Lete e posteriormente do Eunoé, que lhe fornece a
purificação necessária para que possa ingressar ao Paraíso: “disposto a salire a le stelle”
(Purg XXXIII, v. 145). Do Paraíso Terrestre passam aos céus, chegando ao Céu da Lua.
Na parte mais alta da montanha do Purg, ou seja, em seu cume, fica o
nobilíssimo loco totius terrae, quer dizer, o mais nobre local da terra, onde é o Paraíso
Terrestre, lugar onde viveram Adão e Eva anteriormente a sua expulsão.
O Par é a cidade celeste, ou seja, um local perfeito, harmonioso, onde se
encontra a paz. Encontram-se nessa esfera celestial aqueles que morreram, mas que
eram justos, porém, o número de almas que podem estar neste lugar da DC é fixado por
Deus.
Entre outras coisas, o Par possui certa similaridade com o Inf devido a sua
divisão, e com o Purg pela divisão dos beatos, ou seja, apesar de serem tão diferentes,
os três reinos têm algo em comum uns com os outros, conforme informado
anteriormente, em conformidade com a estrutura das três cânticas da DC.
55
“«diz, diz se isto é verdade: e ao que te acusa/ a tua confissão já se confronta!»” (Purg XXXI, v. 5-6).
59
Pode-se afirmar que a ordem ética deste reino é mais complexa, do ponto de
vista que as almas aparecem sempre duas vezes, em hierarquias diversas, primeiramente
em uma esfera giratória e posteriormente na rosácea do Empíreo. Segundo Auerbach:
As esferas do Céu através das quais ele se eleva até a presença de Deus não
são, como os círculos do Inferno ou a gradação do Purgatório, a morada das
almas que Dante encontra pelo caminho. Elas se mostram aqui e ali em uma
das esferas apenas para dar a Dante uma idéia clara da posição que ocupam
na hierarquia celestial; o lugar onde efetivamente assistem, seu destino
último, está além, na congregação dos bem-aventurados, na rosa branca do
Empíreo. (AUERBACH: 1997: p. 146)
Essa ordem ética é representada por sete graus, a saber: Maria e João Batista;
Eva e Francisco de Assis; Beatriz, Raquel e São Bento; Sara e Santo Agostinho;
Rebeca; Judite e Rute. Deve-se atentar para o fato de que é comum a todas essas almas a
visio Dei, a visão de Deus, variada em grau, a depender da Graça Divina, ou seja, de seu
mérito.
É interessante notar que o número de almas que são salvas não é aleatório: as
almas precisam ser do mesmo número de anjos que se rebelaram contra Deus. Vale
acrescentar que esses anjos rebeldes somavam um décimo do total de anjos; isso leva a
intuir que o Par é composto por um décimo de homens e o restante, os nove décimos,
são constituídos de anjos.
A estrutura física do Par é dividida em nove céus, ou esferas concêntricas, todos
estão no Empíreo, que é como se fosse outro céu, contudo imóvel. É no Empíreo que
Deus reside:
[...] recomeçou: «Nós vamos do maior/ corpo saindo ao céu que é pura luz:/
luz intelectual, cheia de amor;/ amor do vero bem, cheia de letícia;/ letícia
que transcende o mais dulçor./ Aqui verás a uma e outra milícia/ do paraíso, e
uma nos aspectos/ de que o final juízo dá notícia.»56
(Par XXX, v. 38-45).
56
“ ricominciò: «Noi siamo usciti fore/ del maggior corpo al ciel ch'è pura luce:/ luce intellettüal, piena
d'amore;/ amor di vero ben, pien di letizia;/ letizia che trascende ogni dolzore./ Qui vederai l'una e l'altra
milizia/ di paradiso, e l'una in quelli aspetti/ che tu vedrai all'ultima giustizia».”(Par XXX, v. 38-45)
60
Obviamente, tem-se em mente que esta não é uma residência fixa, já que Deus é
onipresente.
O nono céu, chamado Primum Mobile fica dentro do Empíreo, e é ele que
transmite a potência divina através de movimentos rápidos. Esses movimentos se
irradiam pelos outros céus sempre comunicando algo, por meio da influência dos astros:
«A natura do mundo, que aquieta/ o centro e todo o resto em torno move,/
daqui começa como em sua meta;/ e um outro onde a este céu não prove/
mais que a mente divina, em que se acende/ o amor que o roda e tal virtude
chove./ Amor e luz de um círculo o compreende,/ tal como este os outros; e o
precinto/ esse que o cinge é que somente entende./ não é seu moto por outro
distinto,/ por ele se medindo os mais, de resto,/ tal como dez pela metade e
quinto;57
(Par XXVII, v. 106-117)
Fato importante é que todas as almas ficam em uma única parte do Par, no
Empíreo.
Estruturalmente, quando Dante passa do Paraíso Terrestre para o Par em si,
acompanhado por Beatriz, ele entra na esfera do foco e, logo depois, no primeiro Céu, o
da Lua, a mais baixa das esferas, porque é úmida, fria e sofre influências, por exemplo,
das águas; pode-se dizer que é um tipo de antecâmara do Par. Lá estão os espíritos que
faltaram com seus votos, como Piccarda Donati e Costanza d’Altavilla, mãe de Federico
II, os quais aparecem evanescentes: “per vetri trasparenti e tersi/ o ver per acque nitide
e tranquille,”58
(Par III, v. 10-11).
O segundo céu, o de Mercúrio, pode ser concebido como uma espécie de
antessala do Par. Este é um planeta que simboliza a fama e a influência e estão aqui os
espíritos que operam para a glória terrena, que aparecem como esplendores flamejantes,
dentre os quais está o imperador Justiniano.
57
“ La natura del mondo, che quïeta/ il mezzo e tutto l'altro intorno move,/ quinci comincia come da sua
meta;/ e questo cielo non ha altro dove/ che la mente divina, in che s'accende/ l'amor che il volge e la virtú
ch'ei piove./ Luce ed amor d'un cerchio lui comprende,/ sí come questo li altri; e quel precinto/ colui che 'l
cinge solamente intende./ Non è suo moto per altro distinto,/ ma li altri son misurati da questo,/ sí come
diece da mezzo e da quinto;”(Par XXVII, v. 106-117) 58
“Como por vidro transparente, ou cerce/ por águas assim nítidas, tranquilas,” (Par III, v. 10-11)
61
No terceiro céu, o de Vênus, que representa a temperança, estão os espíritos
amantes, que aparecem como luzes que se movem rapidamente em giro. Dentre essas
almas está Raab, a meretriz de Jericó. Vale acrescentar que do terceiro ao sexto céu são
representadas as formas de caritas, ou seja, das virtudes cardeais, mencionadas
anteriormente.
No quarto céu, o do Sol, estão os espíritos sábios, dos padres da Igreja e dos
teólogos, representando a sabedoria e a prudência. Aparecem dispostos em forma de
coroa, cantando e dançando em círculo, entre eles está São Tomás de Aquino, que irá
narrar a vida de São Francisco de Assis a DA.
No quinto céu, o de Marte, estão os espíritos militantes pela fé, guerreiros e
mártires, que aparecem como luz em forma de cruz grega. Dentre eles nota-se a
presença do trisavô de DA, Cacciaguida degli Elisei. Esse Céu simboliza a virtude da
fortaleza.
No sexto céu, o de Júpiter, estão os espíritos dos sábios príncipes e dos justos, os
quais voam cantando e formando a frase do livro da Sabedoria: Diligente iustitiam qui
iudicatis terram, quer dizer, Amais a justiça vós que a julgais na terra.
No sétimo céu, o de Saturno, estão os espíritos contempladores. Este é o patamar
maior na hierarquia ética e suas almas ficam envoltas pelo seu esplendor. Entre eles está
São Bento.
No oitavo céu, o das Estrelas Fixas, estão o triunfo de Cristo e a apoteose de
Maria que se manifesta como a Rosa Mística, em torno ao qual gira o anjo Gabriel,
formando uma coroa e os apóstolos, Pedro, Tiago e João Evangelista, que respondem
pela Fé, Esperança e Caridade, respectivamente, dizem: “Quivi è la rosa’n che ‘l verbo
divino/ carne si fece; quivi son li gigli/ al cui odor si prese il buon cammino.»”59
(Par
XXIII, v. 73-75).
No nono céu, o Primum Mobile, está o triunfo dos anjos, também chamado de
Céu de Cristal. Aqui ele consegue ter a primeira visão de Deus e diz: “La bellezza ch’io
59
“Aí é a rosa em que o verbo divino/ carne se fez; lá são também os lílios/ a cujo odor se teve o bom
destino.»” (Par XXIII, v. 73-75)
62
vidi si trasmoda/ non pur di là da noi, ma certo io credo/ che solo il suo fattor tutta la
goda.” (Par XXX, v. 19-21).
Logo acima deles está o Empíreo, onde estão Deus e a rosa dos beatos. Aqui a
visão de DA fica ainda mais potencializada, caso contrário não seria capaz de ver tudo
que estava vendo. Ele entra em êxtase quando percebe que Beatriz já não se encontra
mais com ele e sim na rosa dos beatos. Vê ainda a glorificação de Maria e, finalmente,
vê Deus: “veder voleva come si convenne/ l’imago al cerchio e come vi s’indova/ma
non eran da ciò le proprie penne/ se non che la mia fu percossa/ da un fulgore in che
sua voglia venne.”60
(Par XXXIII, v. 137-141) e diz ainda que Deus é: “l’amor che
move il sole e l’altre stelle”61
(Par XXXIII, v. 145).
Tendo em vista que as outras cânticas são mais movimentadas, devido aos
conflitos, encontros bons, ruins, entre outras coisas, pode-se perceber que no Par essa
dramaticidade não existe.
Ocorre que, normalmente, é o pecado que encerra essa carga de dramaticidade, e
o fato de tentar vencer o pecado, de purificá-lo, sempre mostra essa agilidade, ou
movimentação dentro da obra. Entretanto, no Par, os pecados já foram purgados e
removidos da alma, ou seja, não existe nem mesmo a recordação deles.
Sabendo que existiria essa perda de continuidade de ações, às vezes, sufocante
até mesmo para o leitor, DA, contrabalançou esta problemática, colocando toda a sua
atenção para a conquista da beatitude de Dante personagem, ou seja, no fato de ele
deparar-se com Deus. Cataldi e Luperini tratam desta questão difícil para Dante e
declaram que:
[...] no Paraíso, antes de tudo, Dante alcança o máximo nível de sabedoria
formal, conquistando uma definitiva segurança de relação entre lucidez, vigor
lógico-sintático e versificação. A estrutura métrica (verso, estrofe, rima) é
submetida às exigências do pensamento ou, melhor, utilizada em todas as
suas valências expressivas. No giro do período, na construção das
demonstrações, dos episódios, dos cantos dominam a circularidade (sinal de
perfeição e de equilíbrio) e o ímpeto vertical à ascensão. Ao vigor plástico, à
60
“ver desejava como se conveio/ ao círculo a imagem e onde encova;/ mas minhas penas eram curto
meio:/ que então a mente me era percutida/ por um fulgor em que seu querer veio.” (Par XXXIII, v. 137-
141) 61
“o amor que move o sol e as mais estrelas.” (Par XXXIII, v. 145)
63
riqueza dissonante, ao estilo e ao léxico baixo e violento do Inferno aqui se
substituem por um vigor interior eminentemente intelectual por uma riqueza
harmoniosa e potente juntas; às meias-tintas e às variedades tonais do
Purgatório se contrapõem aqui as cores seguras e um desenho incisivo e
luminoso na sua clareza.62
(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 404) (TP)
62
“[...] nel Paradiso, innanzitutto, Dante raggiunge il massimo livello di sapienza formale, conquistando
una definitiva sicurezza di rapporto tra lucidità e vigore logico-sintattici e versificazione. La struttura
metrica (verso, strofe, rima) è piegata alle esigenze del pensiero o, meglio, utilizzata in tutte le sue
valenze espressive. Nel giro del periodo, nella costruzione delle dimostrazioni, degli episodi, dei canti
dominano da circolarità (segno di perfezione e di equilibrio) e lo slancio verticale all’innalzamento. Al
vigore plastico, alla dissonante ricchezza, allo stile e al lessico bassi e violenti dell’Inferno qui si
sostituiscono un vigore interiore eminentemente intellettuale ad una ricchezza armoniosa e potente
insieme; alle mezze-tinte e alla varietà tonale del Purgatorio si contrappongono qui i colori sicuri ed un
disegno incisivo e luminoso nella sua nettezza”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 404)
64
2. A DIVINA COMÉDIA E A SUA RELAÇÃO COM AS ARTES DO SÉCULO XX
A presente seção desta Tese de Doutorado apresenta os entrelaçamentos que
existem entre o poema dantesco e as artes figurativas do século XX, pois A Divina
Comédia foi não só relida por muitos intelectuais, como também recebeu
ressignificações em obras artísticas dentro e fora da Itália.
No arco do complexo século XX é possível observar um artista dentre tantos que
ilustrou com seus desenhos uma edição da DC no século XX. Trata-se de Alberto
Martini que, mesmo não tendo obtido reconhecimento da crítica italiana daquelas
primeiras décadas do século XX não recuou e ficou indiferente àquela avalição negativa
de seus desenhos para a obra dantesca, valorizando a herança artística familiar trazida
do século XIX.
É fato que o século XIX passou por muitas transformações que afetaram
sobremaneira a forma das representações artísticas para aquele século e para as
primeiras décadas do XX. Basta pensar, nesse sentido, no surgimento da fotografia e do
cinema, por exemplo. Isso fez com que os artistas modificassem o seu modo de
conceber o fazer artístico, uma prova disso é a participação de vários artistas nos
movimentos vanguardistas que abrem o século XX.
Dentre estes grupos de jovens artistas italianos, como eram reconhecidos em
Paris daqueles anos, está Alberto Martini, que pôde beber de muitos movimentos, como
o Futurismo, o Simbolismo, o Racionalismo e também do Surrealismo nas artes. AM,
como os demais artistas, atravessou esses movimentos vanguardistas e trouxe marcas
estéticas indeléveis na própria obra, sendo, por esse motivo, difícil ligar a produção a
um único movimento artístico de determinado artista. No caso de AM, mesmo tendo
tido experiências em várias estéticas ligadas às vanguardas, é possível verificar que ele
tem seu maior suporte no Simbolismo.
Talvez esse forte traço simbolista na produção de AM seja a herança do processo
pelo qual passou em sua formação artística. Primeiramente, ele atuou na pintura e
somente depois de já ter reconhecimento, ilustrador dedicou-se à ilustração, como seu
pai. Esse último traço da formação artística da AM é que motivou a escolha por este
artista italiano, ou seja, pela maneira como ele ressignificou a Divina Comédia.
65
Para um melhor encaminhamento da discussão desses traços ligados à produção
de AM, foi necessário subdividir essa segunda seção em duas subseções. Na primeira, é
apresentado um panorama da produção desse artista, com uma breve biografia que
aponta para as técnicas utilizadas por ele para a realização de obras, indicando os
lugares e países visitados ou habitados que influenciaram a sua produção, bem como os
campos artísticos por ele frequentados e ainda os artistas e intelectuais com os quais ele
manteve algum diálogo.
É válido acrescentar que no final da primeira subseção é explicado como a
Pinacoteca de Martini foi criada e qual a sua finalidades no que se refere à divulgação
da obra de AM.
Já, na segunda subseção, é apontado o processo utilizado por AM para a
realização da ilustração de A Divina Comédia, que se transformou, por fim, na obra de
sua vida, pois para a realização dos desenhos para essa obra dantesca,o artista levou
mais de quarenta anos.
2.1. A produção de Alberto Martini
Este subcapítulo traz um panorama da produção de Alberto Martini, sendo
deixado de lado, na presente subseção a dedicação desse artista à Divina Comédia.
AM nasceu em 24 de novembro de 1876, em Oderzo, Treviso, região do Vêneto,
no norte da Itália. Seu nome de batismo é Alberto Giacomo Spiridione e seus pais foram
Maria dei Conti Spineda de Cattaneis e Giorgio Martini (? – 1910). Ele teve ainda uma
irmã mais velha chamada Corinna, nascida em 20 de julho de 1870, da qual também não
se tem muitas notícias.
Martini, assim como seu pai, inclinou-se para as artes muito jovem, tendo em
vista que seu pai era pintor, ligado à estética naturalista e também professor de desenho.
Em 1879, a família transferiu-se para Treviso, local onde seu pai lecionara desenho, no
Instituto Técnico Riccati. Logo, AM teve como primeiro professor seu próprio pai, o
66
que favoreceu ao jovem AM a iniciação na pintura e no desenho, já a partir de 1890.
Vale acrescentar que a família paterna do artista tinha uma tradição na arte da decoração
e naquela dos mosaicos venezianos.
Nos anos de sua formação, que compreenderam o período de 1890 a 1895, AM
teve realizou inúmeros desenhos, o que já indiciava algumas de suas preferências
gráficas. Dedicou-se ainda a pinturas a óleo, desenhos a lápis, aquarelas etc. Apesar de
serem técnicas diversas, ele, neste período, tinha conseguido experimentar um pouco de
cada uma destas diferentes técnicas.
Neste período entre 1890 e 1895, os principais temas para seus trabalhos, ligados
a arte figurativa foram o campo de Treviso e também os camponeses que lá
trabalhavam. É possível citar, como exemplo ligado a essa temática, um de seus quadros
intitulado Antica gualchiera trevigiana (1895). Nessa obra, o artista apresenta a relação
entre o homem e a natureza. Ele, naquele momento, trabalhou com flores e conchas, o
que indicava o interesse voltado para a arte figurativa, não somente italiana, mas
europeia, de gosto tardo romântico e popular.
Nesta fase, é perceptível em sua produção artística a marca da estética
simbolista, evidenciando o seu pensamento em relação à representação da vida. Pode-se
ainda acrescentar que este foi para a sua produção um período caracterizado pela
ilustração de obras clássicas, realizadas até, aproximadamente, 1898. Ainda nos últimos
anos do século XIX,, deu início a realização de catorze nanquins aquarelados do Albo
della morte (1896 – 1897), onde é possível observar alguns de seus diálogos com a
estética nórdica.
Em 1895, AM iniciou a primeira série de ilustrações em nanquim para o
Morgante Maggiore63
di Luigi Pulci (1432 – 1484). Todavia, ele não chegou a terminar
esta série, pois resolveu dedicar-se as cento e trinta ilustrações para a Secchia rapita
(1895-1935) de Alessandro Tassoni, terminadas somente em 1903. Essa produção se
refere a:
63 Poema épico-cavalheiresco escrito em oitavas que retoma o ciclo carolíngio;
67
Os cento e trinta desenhos heroico-cômicos para La secchia rapita (1895 –
1935), em grande parte obra juvenil, [que] são ao invés um curioso desfile de
soldadinhos piolhentos e devorados pela fome e que blasfemavam, [...], e de
tremendos, grotescos e soberbos heróis cômicos cuja gesta fazem
empalidecer os mais audazes heróis cavaleirescos.64
(MARTINI: 1988, p.
144) (TP)
Em relação a essa obra, percebe-se a grande habilidade gráfica do artista
italiano, ainda muito jovem naquele momento. Nestes trabalhos, ele demostrou sua
influência nórdica e ainda aquela da gráfica maneirista alemã, com seu interesse pelas
obras de Dürer (1471 – 1528), Luca di Leida (1494 – 1533), Urs Graf (1485 – 1529) e
Baldung Grien (1485-1545). Tais influências foram estudadas a partir de uma releitura
simbolista realizada pelo próprio artista, segundo a qual é preciso retratar somente
aquilo que não se vê, seguindo exclusivamente a visão do próprio olho interior.
Entre os anos de 1896 e 1897, AM realizou uma outra série de desenhos em
nanquim, chamada La corte dei miracoli, onde mostrou figuras com detalhes grotescos.
Neste período, ilustrou também um ciclo gráfico para o Poema del lavoro, com um total
de nove desenhos em nanquim.
Em 1897, expôs de sua produção pela primeira vez na II Bienal de Veneza.
Nesse certame expôs suas obras durante muitos anos, até a XXVI edição em 1952.
Desta vez, apresentou catorze desenhos sobre La corte dei miracoli. E nos anos
seguintes apresentou-se em Munique e, em Turim. Na exposição internacional, expôs
seus desenhos sobre Il Poema del lavoro. Em Munique, trabalhou para as revistas
Dekorative Kunst (1897 – 1929) e Jugend (1896 – 1940).
Este período de mostras de arte foi de grande importância para Martini, pois na
Exposição Internacional de Turim, conheceu Vittorio Pica (1864 – 1930). A partir deste
encontro com o escritor e crítico de arte, AM passou a ser auxiliado na divulgação de
suas obras, não somente em ambiente nacional, mas, principalmente, europeu, tendo
recebido esse apoio até morte de Pica.
64“I centotrenta disegni eroicomici per La secchia rapita (1895 - 1935), in gran parte opera giovanile,
sono invece una curiosa sfilata di soldatacci mangiati dalla fame e pidocchiosi che bestemmiano, [...], e di
tremendi, grotteschi e superbi eroi comici le cui gesta fanno impallidire i più fieri eroi cavallereschi.”
(MARTINI: 1988, p. 144)
68
Uma dessas promoções foi a participação de AM na III Bienal de Veneza (1899)
com seus desenhos sobre Il poema del lavoro, que já tinham sido apresentados em
Berlim e Munique.
Seguindo seu percurso de se fazer conhecer, AM empreendeu o estudo nas
ilustrações, desta vez tendo sido realizada uma série de dezenove cromolitografias de
inspiração ‘liberty’ (art noveau), demonstrando seu gosto artístico pela arte pré-
rafaelista inglesa. Isso evidencia como Pica dialogou com AM a ponto de sugerir-lhe
como ilustrador para a revista Emporium (1895 – 1964) e para os fascículos Attraverso
gli Albi e le Cartelle. Esta foi a fase em que Martini trabalhou bastante com a
cromolitografia, basicamente até 1903.
O ano de 1901 foi de extrema acuidade, uma vez que AM deu início ao primeiro
ciclo de dezenove desenhos para a edição ilustrada da Divina Comédia, promovida pelo
concurso Alinari de Florença. Esta foi uma obra comissionada por Vittorio Alinari a
pedido de seu intercessor Vittorio Pica. Essas ilustrações foram apresentadas no
fascículo II de Attraverso gli Albi e le Cartelle.
Naquele mesmo ano, participou da IV Bienal de Veneza com os desenhos La
secchia rapita. Nessa mostra dentre as obras expostas trinta e oito delas foram
adquiridas pela Galeria de Arte Moderna de Roma. Dois anos mais tarde, havia
terminado as ilustrações para o poema de Tassoni apresentadas na IV Bienal,
perfazendo um total de cento e trinta desenhos, que foram expostos na V Bienal de
Veneza.
Entre os anos de 1904 a 1907, AM iniciou seu percurso pelas principais capitais
europeias. Em 1904, foi a Paris, onde começou seus desenhos para os ex libris para
Antonio Fogazzaro (1842 – 1911), Vittorio Pica, Gerolamo Rovetta (1851 – 1910) e
Tom Antongini (1877 – 1967), dedicando-se ainda a outro ciclo gráfico chamado La
lotta per l'amore, completado no ano seguinte, com um total de oitenta e seis desenhos.
Ainda no mesmo ano e, no seguinte, 1905, iniciou as ilustrações de La parabola
dei celibi, com as quais participou na VI Bienal de Veneza. Martini deu início ainda às
ilustrações para os contos de Edgar Allan Poe (1809 – 1849), tendo sido concluídas
somente em 1909. Contudo, neste ambiente artístico parisiense, conheceu o casal Cesare
69
(? – 1924) e Margherita Sarfatti65
(1883 – 1961), que atuavam no campo da crítica de
arte da época.
As ilustrações realizadas por Martini para os poemas de Poe foram elaboradas
com perfeição pelo artista. Nesses desenhos é possível perceber o simbolismo,
determinando, assim, os traços iconográficos da arte de Martini. Ele, leitor de Poe, criou
um poema gráfico de intensa escuridão, por meio da técnica do branco e preto.
Em 1907, foi para Londres, movido pela divulgação de sua obra em uma mostra
individual na Leicester Gallery. Naquela cidade, conheceu um grande editor da época,
chamado William Heinemann com quem, posteriormente, organizou outra mostra
individual na Galeria Goupil. Nesse mesmo ano, participou ainda da VII Bienal de
Veneza, na qual expôs suas obras pictóricas L’arte del sogno (duas telas em óleo, uma
chamada Notturno e outra Nel sonno; e alguns desenhos como La bellezza della donna)
e depois retornou a Paris, onde, por intermédio de Pica, pôde conhecer outros
intelectuais da época, como Gabriel Mourey (1865 – 1943), escritor e colaborador da
revista francesa Emporium.
Já no final da primeira década do século XX, (1908 e 1909), participou de uma
mostra de arte em Faenza, na sessão bianco e nero. Nessa exposição apresentou alguns
desenhos da Parabola dei celibi, algumas ilustrações para Edgar Allan Poe e ainda
outras obras com inspiração na cidade de Veneza. A partir desses dados apresentados,
pode-se observar que até 1911, Martini se dedicara regulamente ao desenho gráfico para
ilustrar obras literárias.
Na VIII Bienal de Veneza, em 1909, participou com seus desenhos referentes à
obra de Poe, tendo sido realizados outros desenhos para a obra Album de verse et de
prose (1887) de Mallarmé (1842 – 1898) e também para a obra Macbeth (1608) de
Shakespeare (1564 – 1616).
65 De origem judaica, aderiu ao fascismo em 1925, tendo sido citada no Manifesto degli intelletuali
fascisti. Apoiou Mussolini na primeira fase do fascismo, antes das campanhas étnicas, e foi sua primeira
biógrafa, tendo publicando originalmente na Inglaterra o trabalho intitulado The life of Benito Mussolini e
logo após na Itália com o nome Dux. Em 1937, com a promulgação das leis raciais, decidiu então ir para a
América do Sul, mais especificamente Argentina e Uruguai.
70
Entre 1910 e 1911 trabalhou ilustrando outra obra de Shakespeare, Hamlet
(1602); realizou também cinquenta e cinco desenhos (pena colorida e pastel) para
poesias de Paul Verlaine (1844 – 1896); e ainda uma série de pontas secas (La sirena
dormiente, Le figlie di Leda, La sirena e il mostro). Durante esses mesmos anos realizou
ilustrações para o poema trágico de E. A. Butti Il castello del sogno, de 1910, cuja
edição esteve a cargo dos irmãos Treves de Milão.
O ano seguinte 1910 foi complicado na vida pessoal de Martini. Esse ano é
marcado para o artista pelo falecimento de seu pai, fato que o fez retornar para Itália,
para viver com sua mãe em São Zeno, na província de Treviso.
Apenas dois anos mais tarde, 1912, retoma a vida de exposições, participando da
X Bienal de Veneza. Nessa mostra, AM expôs desenhos em nanquim, e, também, um
autorretrato. Nesse retorno, Martini fora incentivado por Pica a voltar a pintar, já que
havia passado por período extenso dedicando-se às gravuras e ilustrações. E assim, o
artista dedicou-se então à técnica do pastel nos dois anos que se seguiram, até 1914.
Durante esse tempo fez algumas obras como: Sinfonie del sole (L’Aurora, La notte, I
fiumi) e o pastel Farfalla gialla.
Em 1914, iniciada a Primeira Guerra Mundial, AM havia realizado cinquenta e
quatro litografias com tema bélico, intituladas Danza Macabra (1914 – 1916), com um
sentimento anti-alemão. A respeito deste trabalho, Martini escreveu:
Para a grande guerra mundial que estourou em 1914, desenhei sobre a pedra
La danza macabra europea, cinquenta e quatro pequenas litografias originais
que os Editores de Treviso preferiram lançar em cartões postais, algo que,
então, estava na grande moda. Uma primeira série de doze pequenas
impressões foi sequestrada por razões políticas e foram vendidas
posteriormente, não pelo autor, debaixo dos panos.66
(MARTINI: 1988, p.
144) (TP)
66
“Per la grande guerra mondiale che scoppiò nel 1914, disegnai sulla pietra La danza macabra europea,
cinquantaquattro piccole litografie originali che gli Editori trevisani preferirono lanciare su carte postali,
ciò che era allora di gran moda. Una prima serie di dodici piccole stampe fu sequestrata per ragioni
politiche e fu poi venduta, non dall’autore, sotto il mantello.” (MARTINI: 1988, p. 144)
71
Após ter realizado esse trabalho, ainda durante a guerra, Martini participou da
XI Bienal de Veneza, expondo os retratos da marquesa Luisa Casati e da condessa
Revedin e o pastel Arlecchino.
Entre os anos de 1915 e 1918, AM dedicou-se às litografias. Realizou a série
chamada Farfalle, tema com o qual já havia trabalhado anos anteriores, quando, em
1912, o artista fizera seis ilustrações para o poema gráfico Misteri (Amore, Morte,
Infinito, Follia, Sogno, Nascita).
Em 1916, retomou suas exposições no exterior, na Inglaterra. Esse momento do
artista foi considerado como sendo o período bélico martiniano que terminou em 1918,
com o fim da Primeira Guerra. Nessa ocasião, AM expôs quatro desenhos em Londres,
na Leicester Gallery, ocorrida em 1907, e mais seis outros desenhos para o poema de
Poe e as litografias Avanti Italia. Ainda em 1916, na mesma galeria de arte londrina,
expôs sua série de litografias intituladas Farfalle e Bocche.
Entre os anos de 1917 e 1918, começou a fazer nanquins aquarelados para a
balada Les Orientales (1829) de Victor Hugo (1802 – 1885), tendo realizado também
oitenta e quatro desenhos intitulados Il cuore di cera, em Bolonha.
O artista, após a série e exposições, passou a interessar-se pela ilustração para o
teatro. Essa motivação de AM teve início em 1919, quando ele realizou oitenta e quatro
desenhos à pena e em aquarelas coloridas. Esse fascínio pela ilustração teatral se
manteve até, aproximadamente, 1928.
Na década de 1920, teve início o ciclo gráfico de Trentun fantasie bizzarre e
crudeli. Essas obras foram expostas na XIII Bienal de Veneza (1922). Dois anos mais
tarde, essa produção de AM foi publicada pelas edições Bottega di Poesia, que fora
intermediada pelo conde Emanuele di Castelbarco (1884-1964). Foi ainda, por
intermédio deste conde, que o artista passou a fazer parte de grupos sociais ligados à
aristocracia, como aquele da princesa Paola d’Ostheim, por exemplo. Passou também a
frequentar um círculo de artistas de Veneza.
72
O ano de 1923 foi de grande importância para o artista, tendo em vista que teve a
ideia de criar o Tetiteatro, ou seja, um teatro sobre a água que fora dedicado à deusa do
mar Tetis. A este respeito, Martini declara:
Foi na primavera de 1923 que inventei o Tetiteatro, uma invenção teatral que
deu uma volta ao mundo permanecendo intacta, porque a volta ao mundo não
foi feita com o autor. Um arquitetônico teatro terráqueo, um instrumento
gigante pela ressonância de uma nova voz e pelas novas plásticas teatrais. [...]
O palco do Tetiteatro se compõe..., mas este é um segredo que, como as sete
notas e as cores se prestam a infinitas composições, e a minha nova
cenografia que chamei de Tetiscenografia, nasce deste mecanismo
transformador.67
(MARTINI: 1988, p. 151 – 152) (TP)
Esse mecanismo transformador, mencionado acima, é o que origina a grande
diferença das obras de Martini em relação às demais obras, de outros artistas de sua
época, uma vez que ele não se restringia a utilizar somente uma única técnica para a
realização de uma obra.
No ano seguinte, na XIV Bienal de Veneza (1924), apresentou o pastel A
Venezia, onde retrata sua futura esposa, Maria Petringa. Vale acrescentar que ela foi sua
musa inspiradora durante muito tempo, em muitos trabalhos. Na XV Bienal de Veneza
(1926) expôs retratos justamente dedicados à Maria.
Após ter realizado essa série de obras e ter participado de muitas exposições, em
1927, AM resolveu criar, junto de amigos artistas, uma comissão em homenagem a
Vittorio Pica. Para essa homenagem realizou desenhos e pinturas para ilustrar a revista
L’eroica, no número de novembro/dezembro daquele mesmo ano.
Em 1928, AM mostrou-se completamente desiludido com as avaliações
negativas feitas pelos críticos de arte italianos. Para ele, tais avaliações não entendiam a
originalidade e a autonomia estilística de sua obra, que apresentava uma grande
heterogeneidade criativa. Assim, após ter recebido tantas críticas contrárias na Itália,
67
“Fu nella primavera del 1923 che inventai i Tetiteatro, un’invenzione teatrale che ha fatto il giro del
mondo rimanendo intatta, perché il giro del mondo non l’ha fatto con l’autore. Un architettonico teatro
terracqueo, uno strumento gigante per le risonanze di una nuova voce e per nuove plastiche teatrali. [...] Il
palcoscenico de Tetiteatro si compone..., ma questo è un segreto che, come le sette note ed i colori si
presta ad infinite composizioni, e la mia nuova scenografia che ho chiamato Tetiscenografia, nasce da
questo meccanismo trasformatore.” (MARTINI: 1988, p. 151 – 152)
73
decidiu voltar a morar em Paris. Na capital francesa, encontrou amigos que valorizaram
suas obras. Permaneceu naquela cidade por seis anos, até 1934, encontrando-se por
vezes com sua esposa, que permanecera na Itália. Neste período, pôde aproveitar e
frequentar ambientes de críticos de arte e de literatura, bem como muitos artistas, como
Solito de Solis, musicista famoso na época. Tais artistas juraram a AM que apagariam a
obra dele da memória dos italianos. Em relação a este período em que retornou a Paris,
Martini declarou:
Quando sentia que o meu Eu artístico estava cansado, descia nos Bulevares,
nos barulhentos terraços frequentados por milhares de pequenos e grandes
artistas de todo o mundo. Montparnasse era a babel da arte, a moderna
bohème, herdeira daquelas do Quarteirão latino e de Montmartre. [...] Me
sentava, espectador apartado, para observar a interessante comédia da arte
que se desenvolvia ao redor. Os atores eram jovens artistas à espera do
sucesso, velhos célebres de uma expressão satisfeita ou agonizantes na
desilusão, no álcool, na loucura.68
(MARTINI: 1988, p. 164 – 165) (TP)
Esta citação explicita bem qual era a sensação vivida por este artista que não
fora compreendido em seu país, como tantos outros, mostrando um pouco de sua
amargura frente às críticas severas.
Neste interim, começou a pintar a maneira-negra, seguindo imposições
surrealistas em obras como Conversazione con i miei fantasmi, Fiore dello scoglio e La
prigione sotteranea.
Em 1930, realizou uma série de pinturas à maneira-clara, ou seja, contrária à
maneira que estava acostumado, que era a negra. Neste novo modo, segundo o artista,
os olhos tornam-se o espelho da alma. Ainda neste mesmo ano, ele voltou a se dedicar
às ilustrações em preto e branco para obras literárias, com desenhos a lápis aquarelados
como: Une saison en enfer (1873) de Rimbaud (1854 – 1891), Les fleurs du mal (1857)
de Baudelaire (1821 – 1867), Poèmes (1899) de Mallarmé, L'homme qui rit (1869) de
68
“Quando sentivo che il mio Io artistico era stanco, scendevo nei Boulevards, nelle rumorose terrazze
frequentate da migliaia di piccoli e grande artisti di tutto il mondo. Montparnasse era la babele dell’arte,
la moderna bohème, erede di quelle del Quartiere latino e di Montmartre. [...] Mi sedevo, spettatore
appartato, per osservare la interessante commedia dell’arte che si svolgeva intorno. Gli attori erano
giovani artisti in attesa del successo, vecchi celebri dall’espressione soddisfatta o agonizzanti nella
disillusione, nell’alcool, nella follia.” (MARTINI: 1988, p. 164 – 165)
74
Victor Hugo, La croix de bois (1919) de Dorgelès (1885 – 1973), La danse macabre de
M. Orland, Les destinées (1864) de Alfred de Vigny (1797 – 1863). Além disto,
participou da XVII Bienal de Veneza com L’uomo che crea.
Dois anos mais tarde, já em 1932, começou a trabalhar com as artes aplicadas,
ou seja, realizou projetos de escultura em vidro, cuja inspiração foi no estilo decorativo
art déco, ainda em voga naqueles anos. Essa obra de AM fora financiada pelo industrial
têxtil Adolfo Bogoncelli.
Em 1934, retornou à Itália, pois se encontrava em dificuldades financeiras,
estabelecendo-se em Milão, permanecendo ali até 1953. Nos dois anos seguintes a 1934,
Martini publicou desenhos, legendas e vinhetas satíricas, na revista Perseo. Neste meio
tempo, terminou sua série de ilustrações iniciada em Paris. Essas atividades foram
realizadas por AM até 1940, tendo ainda, nesse mesmo período, ilustrado o livro Cuore
(1936) de Edmondo De Amicis (1846 – 1908), e realizado um desenho em nanquim
para I Fioretti de São Francisco.
Entre os anos 1941 e 1952, Martini executou uma série de litografias coloridas
denominada La vita della Vergine e outras para as poesias de Rilke. Realizou ainda, em
1943, um ciclo gráfico conhecido como La vita di Cristo e, em dezembro de 1946,
participou da Exposição internacional de ex libris, onde recebeu um diploma em
homenagem à sua obra. No ano seguinte fez doze pontas secas intituladas Poema
mitografico, além de continuar as suas atividades como pintor.
Dentre suas últimas obras, vale recordar aquelas feitas a óleo: Anime gemelle,
Corteo di Venere e La valle di Cleopatra, respectivamente dos anos 1945, 1949 e 1950.
Dando prosseguimento a isto fez a sua última participação na XXVI Bienal de Veneza
em vida, onde apresentou desenhos feitos em pena e nanquim coloridos intitulados La
realtà e i sogni di gloria e La finestra di Psique nella casa del poeta.
Em um breve retorno no tempo cronológico, vale ressaltar que entre os anos de
1939-40, AM redigiu uma autobiografia, intitulada Vita d’artista. Este trabalho foi
realizado juntamente com seu primo, Alessandro Tischer.
75
Neste seu trabalho, ele mostra como se sentia invejado e temido pelos seus
adversários, porém era extremamente encorajado pelos seus amigos, uma vez que uma
batalha não pode ser vencida quando não se tem inimigos. Ele apresentou sua obra de
forma a alertar o leitor de que um artista se expõe tanto e que se presta a correr até
mesmo perigos na tentativa de defender a arte nacional.
A referida autobiografia, AM, fora escrita não por um homem das Letras, mas
sim por um artista que com seu pincel e seus lápis realizou seus desenhos e pinturas da
mesma forma que um cirurgião utiliza seu bisturi, ou seja, com a sutileza e com os
detalhes que são extremamente importantes.
Nas páginas dessa obra é possível observar como AM acreditava que o sono
fosse um sonho de olhos fechados, enquanto para ele a vida era um sonho de olhos
abertos. Isto porque a vida, na sua visão, era plena de contratempos, situações ruins,
mortificantes, tragédias, etc. Todavia, a Providência Divina, segundo AM lhe dera a
oportunidade de sonhar com os olhos abertos, já que no sonho, as pessoas podiam
consolar-se da triste realidade. Pode-se observar isto em:
A minha vida é um sonho a olhos abertos. O sono é um sonho a olhos
fechados falseado pelo pesadelo da realidade. [...] Quem vive no sonho é um
ser superior, quem vive na realidade, um escravo infeliz. Dante foi
certamente o maior poeta do sonho da vida, do sono e da morte.69
(MARTINI: 1988, p. 158) (TP)
A partir da citação anterior, pode-se observar como AM entendia o poema maior
de Dante Alighieri. Para ele, DA foi o maior poeta do sonho da vida, do sono e da
morte, tendo presente que, para Martini, aquele que vive no sonho é um ser superior e o
que vive na realidade é um escravo infeliz, dependente da mesma. Dante, na DC,
dormiu e seu sonho tornou-se uma realidade, era um sonho de vida, com personagens
reais para ele, porém este sonho era a própria morte, uma vez que todos estavam no
universo ultraterreno.
69
“La mia vita è un sogno ad occhi aperti. Il sonno è un sogno ad occhi chiusi falsato dall’incubo della
realtà. [...] Chi vive nel sogno è un essere superiore, chi vive nella realtà, uno schiavo infelice. Dante fu
certamente il maggiore poeta del sogno della vita, del sonno e della morte.” (MARTINI: 1988, p. 158)
76
Martini sentia-se muito atraído pela biografia de Dante, obviamente num sentido
mais psicológico. Ele por três vezes seguiu fielmente a partir de suas ilustrações o autor
do divino poema pelos três mundos (Inferno, Purgatório e Paraíso). Outras três vezes
ele desenhou aqueles mundos criados pelo grande poeta italiano do século XIV que foi
três vezes condenado à morte pela inveja e pela maldade dos homens. Com isto, ele
demonstra o quanto este poema sempre esteve muito presente na sua vida e foi para ele
de grande conforto.
Durante este período em que AM compôs sua autobiografia, estava ainda
realizando suas ilustrações para a Divina Comédia, que fora finalizada no ano de seu
falecimento, em 1954. Este ano foi complexo, devido à conclusão de sua edição
ilustrada da DC, pois fora um trabalho muito longo. Ele, infelizmente, faleceu no dia 8
de novembro daquele ano, no hospital Fatebenefratelli, em Milão.
Após a sua morte, o arquivo da produção artística e epistolar de AM foi
transferido para a casa de sua esposa Maria Petringa, em Milão, com exceção dos
trabalhos que tinham sido já vendidos. Maria deu início à organização dos trabalhos do
marido, com a finalidade de valorizar e promover a obra martiniana. Quando Maria
faleceu, anos depois, em 1971, o arquivo foi transferido para o sobrinho Luigi Tischer.
Atualmente, a obra de AM está reunida na Fundação Oderzo Cultura, que é uma
organização sem fins lucrativos, onde são mantidas grandes coleções de livros e a
Pinacoteca Alberto Martini, na qual ficam expostas suas obras de arte. Todos os
arquivos de Martini estão na pinacoteca, organizados em álbuns e suas publicações
inéditas também podem ser encontradas lá, como a correspondência dele com amigos,
familiares e críticos de arte, por exemplo.
Para exemplificar melhor as informações acima mencionadas, na pinacoteca de
Oderzo constam 458 obras realizadas por Martini, onde é possível ver em exposição um
total de 150 delas, sendo todas catalogadas, possibilitando aos estudiosos de acessá-las
sempre que possível, no banco de dados da instituição italiana.
Graças ao trabalho inicial de sua esposa e, posteriormente, de seus parentes, hoje
é possível conhecer e admirar a obra pictórica e gráfica deste artista que
77
incompreendido em vida pelos seus contemporâneos, é atualmente ainda pouco
conhecido e estudado.
Pode-se notar que a obra de Martini nunca foi extremamente conhecida e
divulgada, porém, principalmente fora da Itália, em Paris, na primeira metade do século
XX, ele foi mais compreendido e admirado. Os traços de seus desenhos, ilustrações e
pinturas foram sempre de grande sutileza, refinamento, e de muita expressividade.
AM foi considerado um dos melhores desenhistas da Itália nas três primeiras
décadas do século XX, sendo peculiar o seu estilo simbolista. Ele tinha por gosto
trabalhar com o nanquim, era um expert na técnica do branco e preto, com o qual
mostrava as nuances das sombras, realizava imagens cruéis, entre outras características.
Foi considerado ainda um dos precursores do Surrealismo, porém, como André
Breton (1896 – 1966) não o nomeou, tal fato ficou em suspenso, como se nota em:
Precursor do surrealismo Martini o é apenas simbolista e da mesma forma de
todos os outros simbolistas, ainda se como tal não foi reconhecido por
Breton, que não o nominou nas suas famosas listas; mas verdadeiro
surrealista ele nunca foi, foi ao contrário um fantástico iluminado e
perverso.70
(LA REPUBBLICA 01/09/1986) (TP)
De fato, AM realmente fora um simbolista e isto sim os críticos afirmam,
entretanto, o fato de ele ter sido surrealista é uma incógnita. Sabe-se que Martini
recusou fazer parte d grupo de surrealistas por não concordar inteiramente com suas
características, uma vez que nele havia um espírito religioso que não era uma marca do
surrealismo.
Depois de passar por esta grande trajetória artística de AM, será apresentada
nesta próxima subseção, seu trabalho sobre a Divina Comédia.
70
“Precursore del surrealismo Martini lo è solo in quanto simbolista e allo stesso modo di tutti gli altri
simbolisti, anche se come tale non viene riconosciuto da Breton, che non lo nomina nei suoi famosi
elenchi; ma vero surrealista non è mai stato, è stato invece un fantastico illuminato e perverso.” (LA
REPUBBLICA 01/09/1986)
78
2.2. A Divina Comédia por Alberto Martini
A presente subseção visa a apresentar os percursos realizados por Alberto
Martini durante a composição de sua edição ilustrada da Divina Comédia, apontando os
pontos cruciais vividos pelo artista enquanto ilustrava a referida obra literária.
Em 1900, Vittorio Alinari (1859 – 1932) promoveu um concurso, que levava o
seu nome, para uma nova versão da DC ilustrada; contudo, os artistas deveriam ser
italianos. Quando Vittorio Pica soube deste concurso, avisou AM para que ele
inscrevesse seus trabalhos no concurso Alinari.
Participaram do concurso e tiveram suas obras selecionadas para a edição de La
Divina Commedia di Dante Alighieri novamente illustrata da artisti italiani os
seguintes artistas: Pietro Senno (Inferno, Canto I), Alfredo De Karolis (Inferno, Canto
IV), Adolfo Magrini (Inferno, Canto V), Vincenzo La Bella (Inferno, Canto IX), Silvio
Bicchi (Inferno, Canto X), Pietro Senno (Inferno, Canto XIII), Alberto Martini (Inferno,
Canto XIX), Ernesto Bellandi (Inferno, Canto XXIII), Pietro Senno (Inferno, Canto
XXIV), Duilio Cambellotti (Inferno, Canto XXXI), Alberto Zardo (Inferno, Canto
XXXIV), Adolfo Magrini (Purgatorio, Canto III), Pietro Senno (Purgatorio, Canto
V), Alberto Zardo (Purgatorio, Canto VI), Plinio Nomellini (Purgatorio, Canto
VII), Giuseppe Miti-Zanetti (Purgatorio, Canto VIII), Duilio Cambellotti (Purgatorio,
Canto IX), Pietro Chiesa (Purgatorio, Canto XI), Silvio Bicchi (Purgatorio, Canto
XII), Ezio Marzi (Purgatorio, Canto XIII), Riccardo Galli e Adolfo Magrini (Purgatorio,
Canto XX), Pietro Senno (Purgatorio, Canto XXI), Lionello Balestrieri (Purgatorio,
Canto XXIX), Carlo Muccioli (Purgatorio, Canto XXX), Adolfo Magrini (Purgatorio,
Canto XXXI), Osvaldo Tofani (Purgatorio, Canto XXXI), Osvaldo Tofani (Paradiso,
Canto II), Cesare Laurenti (Paradiso, Canto III), Giorgio Kienerk (Paradiso, Canto
IV), Alberto Zardo (Paradiso, Canto VII), Giuseppe Mentessi (Paradiso, Canto
XI), Giovanni Fattori (Paradiso, Canto XV), Serafino Macchiati (Paradiso, Canto
XXVI), Carlo Muccioli (Paradiso, Canto XXXI), Pietro Chiosa (Paradiso, Canto
XXXII). (ALIGHIERI, 1902) Esta edição conta com texto criticamente reconstruído
pelo filólogo Giuseppe Vandelli (1865 – 1937) e com cem pranchas ao longo do texto e
outras trinta e seis, em colotipia, em anexo, ocupando páginas inteiras. Os originais das
79
ilustrações que compõem a referida edição foram expostos em mostra na Academia de
Belas Artes de Florença, em novembro de 1902 com a curadoria de Vittorio Alinari.
AM foi o vencedor do concurso. Alberto Sgarbi, no prefácio da edição Alinari
afirmou que Martini era um artista que havia nascido para ilustrar a DC.
O ciclo de desenhos para a primeira edição da DC, em 1902, que AM
apresentara era a sua primeira leitura, sob encomenda, da obra dantesca. Quarenta anos
separaram seus primeiros trabalhos comissionados daqueles realizados autonomamente.
A sua proposta de perseverar na produção de ilustrações das cânticas da DC veio
da semelhança que observou entre ele próprio e Dante como um personagem guerreiro,
humano, mas com valores morais. Além disso, AM identificou-se com as tristezas
vividas pelo poeta no exílio. A esse respeito, Bonifácio declara:
Escrevia Martini na sua autobiografia: «três vezes na minha vida segui
religiosamente o divino Poeta através dos três mundos. Três vezes desenhei
aqueles mundos, criados pelo gênio de um italiano, três vezes condenado à
morte, pela ambição e pela covardia dos homens. O Poema Sacro sempre me
foi de grande conforto, às vezes me acalmou e viveu paradisíaco ou infernal
nos meus sonhos».71
(BONIFACIO: 2008, p. 27) (TP)
Martini vivendo sua vida como um sonho, sabia que o sono era um sonho de
olhos abertos. Como mencionado na subseção anterior, AM afirmava que viver no
sonho evidenciava o ser superior, ao contrário daquele que vive na realidade, pois este
último é um escravo infeliz. Assim, cria ter sido Dante o maior poeta do sonho da vida,
do sono e da morte.
Passados muitos anos, o artista, entre dezembro de 1940 e janeiro de 1941,
enviou seus desenhos para o poema DC para o editor milanês Arnoldo Mondadori, o
qual apreciou bastante seu trabalho, tendo se interessado na sua publicação. Todavia,
como a situação financeira da editora não era estável, graças à crise gerada pela
Segunda Guerra Mundial, o editor italiano resolveu negar a publicação da obra de AM,
porém não deixou de incentivá-lo para que não desistisse deste trabalho tão valoroso.
Tal resposta fez com que AM ficasse bastante frustrado, uma vez que gostaria muito
71
“Scriveva Martini nella sua autobiografia: «Tre volte nella mia vita seguii religiosamente il divino
Poeta attraverso i tre mondi. Tre volte disegnai quei mondi, creati dal genio di un italiano, tre volte
condannato a morte, dalla cupidigia e dalla viltà degli uomini. Il Poema Sacro mi fu sempre di grande
conforto, a volte mi placò e visse paradisiaco o infernale nei miei sogni». (BONIFÁCIO: 2008, p. 27)
80
que a editora publicasse sua edição. É o que afirma Bonifácio em: “[...] o lamento de
não ter podido ver a minha obra por Vós realizada, pela vossa grande casa [...]”.72
(BONIFÁCIO: 2008, p. 25)
Após anos de trabalho, AM decidiu abandonar seu envolvimento psicológico e
emocional com a DC, resolvendo, então, produzir outras obras a partir de uma nova
perspectiva, mais abstrata e voltada para a poética surrealista.
Na Fundação Oderzo Cultura, em Oderzo, é possível encontrar também algumas
das ilustrações feitas por AM para a DC, parte das quais foram vendidas. Assim, dentre
todos os desenhos para a DC, 297 foram realizados a lápis, nanquim e guache. Sabe-se
que vinte nove desenhos foram realizados entre 1900 e 1901 e que as versões
definitivas, aquareladas em vinte e dois exemplares foram publicadas pela Alinari, na
edição de 1902 da DC. Acrescenta-se ainda que algumas imagens foram adicionadas e
outras modificadas em uma outra versão da DC de 1922.
Na primeira edição de 1902, devido problemas desconhecidos dos estudiosos da
obra de AM, foram perdidos alguns desenhos, porém, restaram: Le anime dei dannati
traghettate da Caronte (Inferno, III), Il messo celeste (Inferno, XI), I violenti contro Dio
(Inferno, XIV), Brunetto Latini profetizza l’esilio di Dante (Inferno, XV), Belacqua
(Inferno, IV).
Para cada canto da DC, Martini realizou de duas a cinco ilustrações. Com o
intuito de apresentar algumas dessas ilustrações, segue a lista preparada por Bonifácio
(2008), em que ela trata de alguns nanquins aquarelados, tendo sido seguido o critério
dentre os “mais belos” feitos por AM para a edição da DC, são eles: Acheronte (Inf, III),
Minòs (Inf, V), Cerbero (Inf, VI) o, ancora, Pape Satan, pape Satan Aleppe (Inf, VII),
Stecchi con tosco... (Inf, XIII), I demoni (Inf, XXII), Fui ladro a la sagrestia (Inf,
XXIV), Lucifero (Inf, XXXIV), Gerion (Inf, XVII), Il conte Ugolino e l’arcivescovo
Ruggieri (Inf, XXXII); e poi Manfredi (Purg, III), Belacqua (Purg, IV), Maria ora per
noi (Purg, XIII), Io sono Aglauro che divenni sasso (Purg, XIV), Imperio del buon
72
“[...] il rammarico di non aver potuto vedere la mia opera realizzata da Voi, dalla vostra grande casa
[...]”. (BONIFÁCIO: 2008, 25)
81
Barbarossa (Purg, XVIII), Cornice dei golosi (Purg, XXII), L’ultimo lavoro; enfim,
Paradiso, I, Cielo della luna – Piccarda Donati (Par, III), Ultima notte - Resurrezione
(Par, VII), Fiorenza (Par, XXV), Il maledetto (Par, XXIX).
Em suma, é possível perceber que a DC assumiu um papel importante na
produção artística de Martini. O artista se interessou sobremaneira na viagem ao mundo
dos mortos, e no personagem dessa viagem, Dante Alighieri. Assim, é possível notar
que esta viagem pelos três reinos não foi empreendida somente por Dante, mas por
Martini que também a realizou por intermédio de suas ilustrações, mostrando seu
próprio modo de observar a viagem de Dante, ou seja, sua ressignificação da obra
dantesca tantos séculos depois não distanciando o observador das ilustrações do poema
de Dante, mas AM buscou atualizar a visitação ao mundo dos sonhos que apresenta em
suas ilustrações.
Essas questões acima mencionadas sobre as ilustrações de AM para a DC serão
o tema da próxima seção, em que serão analisadas as ilustrações desse artista.
Dentre as ilustrações realizadas na obra ilustrada por Martini, foram
selecionadas quatro delas a serem analisadas nesta Tese, a saber: Inf. XXXIV, Purg.
XII, Par. XI e XXXIII. Tais análises serão apresentadas no próximo capítulo, entretanto,
nesta subseção eles também serão brevemente apresentadas.
No canto XXXIV do Inferno, Dante, personagem, na companhia de Virgílio
entra na quarta zona do nono círculo do inferno, chamada Giudecca. Lá é onde residem
as almas dos traidores dos benfeitores que são obrigados a ficar submersas no gelo e
privadas de qualquer contato com vida.
No centro deste poço infernal encontra-se Lúcifer, o qual vem anunciado e surge
do gelo. Ele se apresenta como um monstro gigantesco, com três cabeças e seis asas de
morcego e que, ao agitá-las gera um vento frio que gela o pântano do Cocito. Suas faces
são: uma amarelada, outra preta e outra vermelha, que é a da frente. Há um simbolismo
por trás destas cores que é de extrema relevância para o entendimento do poema, uma
vez que representam, respectivamente, a impotência, a ignorância e o ódio, sentimentos
contrários aqueles da Trindade, que são a divina Potestade, o supremo Saber e o
primeiro Amor.
82
Lúcifer, por sua vez, representa o rei do inferno, o anjo caído que se rebelou
contra Deus, sendo ele a encarnação do mal universal. A descrição de Lúcifer por DA
baseia-se na visão medieval do Catolicismo.
Alegoricamente, percebe-se que Lúcifer mastiga continuamente em cada uma de
suas três bocas, a cabeça de um traidor, são eles: Judas, o principal deles por ter sido o
traidor de Cristo, seguidos por Brutos e Cássio, traidores de César e do Império. Pode-se
observar neste momento, a concepção religiosa e política de DA, quando ele escolhe
tais traidores para estarem lado a lado.
Além desta figura gigantesca, não é possível identificar nenhuma outra alma,
pois elas encontram-se afundadas no gelo, sendo assim, Virgílio segue conduzindo
Dante às costas. Eles transpõem o centro da Terra e da gravidade, onde fica Lúcifer e
atravessam o buraco estreito formado pela queda do anjo, chegando a superfície da
terra, no hemisfério austral, de onde podem ver as estrelas.
Já no Purgatório, no canto XII, há a descrição da primeira cornija, aquela dos
soberbos, onde são mostrados vários exemplos de punição às almas que foram soberbas
na Terra. Dante e Virgílio continuam sua caminhada, porém Dante insiste em seguir o
miniaturista Oderisi da Gubbio, mas logo, Virgílio consegue convencê-lo a seguirem em
frente.
Desta maneira, antes de chegarem à segunda cornija, eles se deparam com um
anjo guardião que apaga da testa de Dante uma das sete letras P, referentes aos sete
pecados capitais, neste caso, aquela letra referente à soberba.
Neste momento, Dante sentiu imensa leveza, pois um dos pecados lhe foi
purgado, faltando-lhe outros seis a purgar. Este anjo é carregado de um grande
simbolismo, uma vez que é um enviado de Deus para cumprir seus desígnios, isto é,
somente pela graça divina, a primeira letra P pode ser removida da testa de Dante.
No paraíso, canto XI, Dante encontra-se acompanhado por Beatriz no céu do
Sol. Ele já está liberto de todos os pecados e goza de todas as sensações de bem-estar
que o paraíso lhe oferece.
Eles se deparam com São Tomás de Aquino, que logo percebe que Dante ainda
possui algumas dúvidas no que se refere a São Domingos e a Salomão. Entretanto,
primeiramente, ele narra a Dante a trajetória de vida de São Francisco de Assis e sobre
sua ordem, a dos Franciscanos. Depois, discorre ainda sobre São Domingos e a sua
83
ordem, a dos Dominicanos e, em relação a Salomão, ele somente o cita, pois somente
em cantos posteriores discorrerá sobre o rei judeu.
São Tomás afirma a Dante que a Providência divina enviou a Terra dois santos,
Francisco e Domingos, para que eles promovessem o bem pela Igreja. Porém, a ordem
dos Dominicanos afastou-se das regras principais da Igreja, diferenciando-se ainda mais
dos Franciscanos. Todavia, Dante mostra que no céu, estas diferenças já não existem
mais.
Dante descreve ainda a figura de São Francisco, como um heroico combatente,
enviado pela Providência divina. Sua luta foi contra a corrupção advinda das riquezas da
Igreja e dos homens e por isso tinha como principal voto a pobreza, que na realidade era
uma riqueza espiritual, com valor para Deus e não para o Homem.
Já o canto XXXIII do paraíso mostra São Bernardo finalizando sua oração em
louvor à Virgem Maria e, nesta oração, em um segundo momento, ele pede que Dante
consiga obter a graça da visão de Deus, ou seja, da Luz Divina.
Dante consegue alcançar tal graça e vê a Trindade santa. Neste meio tempo, ele
observa três círculos de cores diferentes, mas que ocupam o mesmo espaço, é a
Trindade. Esta se apresentou a ele e, depois de satisfeita a vontade de Dante, Deus passa
a controlar sua vontade de acordo com a lei universal do Amor.
84
3. SOBRE O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA
Neste capítulo será tratada a questão do sagrado no período medieval, ou seja, no
momento em que Dante Alighieri escreve seu poema, apontando para as diferenças
existentes entre esse período e o período no qual Alberto Martini realiza a sua edição
ilustrada da obra dantesca.
Este estudo faz-se importante, uma vez que, como há uma grande diferença entre
os séculos XIV e XX, DA, na composição de sua obra, estava impregnado de outros
modelos de moral a serem seguidos, obviamente, já bastante distintos no momento em
que AM ilustrou a obra. Sendo assim, observa-se a dificuldade no entendimento do
momento histórico vivido por DA, tendo em vista o avanço de leis e regras sociais.
A discussão acerca do que venha a ser o Sagrado e o Profano é bastante rica e
variada, interessando a uma série de saberes da teologia à antropologia. Corrobora ainda
para essa questão o fato de os conceitos ligados a estas palavras terem sofrido alterações
com o passar dos séculos, tendo em vista que, com o avançar das tecnologias e,
principalmente, do pensamento do Homem, o mundo passa sempre por um processo de
transformação. Logo aproximação dessa argumentação, a priori, não é nada fácil, tendo
em vista que o foco desta tese é tratar destes temas a partir da Divina Comédia.
Na época de DA, no século XIV, tinha-se uma Igreja extremamente rígida, com
sua moral e conduta, apesar de ser notório que nem sempre essa conduta moral era
seguida, mesmo dentro da Igreja. Deste modo, DA possuía uma forma particular em
relacionar pecados e beatitudes, advinda de sua educação dentro deste modelo Católico
daquela época.
Logo, percebe-se em seu poema, que a base de sua escrita é ligada à ciência
teológica ou jurídica daquela época, tendo como método a discussão e a argumentação
racional, com base na escolástica. Dante como indicado no capítulo segundo vivenciara
cada uma daquelas situações históricas descritas na DC, como, por exemplo, a
corrupção do então Papa Bonifácio XIII. Por isso, como autor conseguiu separar bem
aqueles personagens que para ele mereciam a salvação daqueles que mereciam
punições, como base nas noções de profano sagrado, sendo os pecados e as beatidudes
85
eternas, ou ainda, alguns pecados podendo ser purgados em prol de uma purificação da
alma.
A aproximação, de uma breve definição do que seria o Sagrado é encontrada em
Eliade (1992: 13) que informa que “Ora, a primeira definição que se pode dar ao
sagrado é que ele se opõe ao profano”. Logo, será por meio da oposição entre os dois
termos que se poderá chegar ao entendimento de um e outro termo. O profano, então,
tem por significado aquilo que transgride as regras sagradas, tornando-se contrário ao
respeito que deve ser dado aquilo que é sagrado. Deste modo, numa época medieval,
onde tudo que contradizia ou contrariava o que a Igreja tinha como dogma era pecado, é
possível entender porque tantos dos pecados, que nos dias atuais nem são considerados
pecados, eram punidos com tanta severidade anteriormente.
O sagrado é, então aquilo que tem um valor de importância para quem tem fé, e
DA, tendo sido criado dentro da fé Católica, apresenta, na sua visão, aquilo que para ele
era sagrado ou não. Desta maneira, colocou-se numa posição de juiz, ou de Deus, se é
possível fazer esta comparação, já que era ele, como poeta, a julgar cada personagem de
acordo com seus pecados, tendo em mente, ainda, que existiam diversos personagens
com suas histórias reais ali narradas e avaliadas.
Eliade acrescenta ainda sobre este assunto que
[...] os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que
o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao
filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões
possíveis da existência humana. [...] O homem das sociedades tradicionais é,
por assim dizer, um homo religiosus, mas seu comportamento enquadra-se no
comportamento geral do homem e, por conseguinte, interessa à antropologia
filosófica, à fenomenologia, à psicologia. (ELIADE: 1992, p. 15)
A esse propósito, pode ser observado que os termos sagrado e profano têm
bastante relação com os questionamentos da suposta essencialidade humana natural ou
cultural de a natureza humana estar ligada ou não às experiências religiosas e, portanto
ao sagrado, como é o caminho indicado na Divina Comédia desse ‘homo religiosus’.
86
DA mostrou, por meio dos pecados e das beatitudes descritos na DC, os
benefícios de se viver uma vida correta e os malefícios de seguir erroneamente, visto
que:
[...] o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o
sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando e o
tornando o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a
existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é
religiosa, ou seja, participa da realidade. [...] Reatualizando a história
sagrada, imitando o comportamento divino, o homem instala-se e mantém-se
junto dos deuses, quer dizer, no real e no significativo. (ELIADE: 1992, p.
97)
Logo, tem-se que essa realidade absoluta, para o homo religiosus é a busca pela
perfeição no seu caminho, tentando fugir das tentações e dos pecados para chegar o
mais próximo de Deus. Dante, como personagem de sua maior obra, é esse tipo de
homem, aquele que busca essa salvação para si e para a humanidade daquela época.
Percebe-se, então, que a questão do sagrado e do profano tem grande
importância na Divina Comédia: basicamente ela é fundamentada nestas questões, em
que, tudo que se faz em vida tem um reflexo no outro mundo, o dos mortos, conforme já
assinalado anteriormente nesta Tese.
O catecismo da Igreja Católica aponta que são sete pecados capitais: a soberba, a
gula, a avareza, a ira, a luxúria, a preguiça e a inveja. Entretanto, para esta investigação
serão estudados somente três deles, que são: a luxúria, a soberba e a avareza, contrários
diretamente às beatitudes da castidade, humildade e generosidade, que são três das
qualidades mais defendidas pela Igreja, além de serem aquelas pregadas por São
Francisco de Assis. Para um melhor entendimento, esses pecados e beatitudes possuem
relação direta com as ilustrações dos cantos a serem analisados mais adiante. A
luxúria é um dos pecados considerados dos mais tentadores e sua parte positiva é o
prazer. Não é que ela seja completamente um pecado: ela torna-se pecado quando se
transforma em vício, em excesso. De acordo com Savater:
[...] o limite da luxúria é o ponto em que causa dano a outro. Fazer sexo com
crianças é ruim pelo dano que lhes faz. Não é mau desfrutar, mas é, sim,
censurável causar mal a outro. Antes se condenava o prazer, e agora o dano e
87
a dor que são produzidos. É a visão progressista dos pecados. (SAVATER:
2005, p. 101)
Esta citação, até mesmo forte, aponta para um caso extremo, aquele do sexo
praticado com crianças. Contudo, se tal pecado for transportado para a época medieval
de DA, este fato seria absurdo, ademais como o é também hoje. Sabe-se que este pecado
foi apresentado por DA na DC, como um caso de traição, aliás, de suposta traição,
envolvendo Paolo e Francesca, no canto V do Inferno. Ou seja, o ato do adultério,
naquele momento histórico, era tão pecaminoso, sendo colocado no inferno, que quer
dizer que estas almas não teriam nem ao menos a possibilidade de se purgarem disso,
eram verdadeiros condenados.
Dentro dos limites da religião Católica, a qual DA professava, dizia-se, segundo
Savater (2005: 102) que “[...] a educação católica impunha a frase: “Isso não se faz
porque é pecado””. Então, não somente para este pecado, como para todos os outros, a
Igreja era muito rígida e DA seguia esses preceitos.
É preciso deixar claro ainda que este pecado foi subdividido em outros pela fé
cristã, e são eles: a polução voluntária, a sodomia, a fornicação, o rapto, o estupro, o
bestialismo, o incesto, o sacrilégio, e o adultério.
Mas, por que esse pecado é tão repudiado pela Igreja? A resposta é simples: a
cópula, para a Igreja, é a maneira de se reproduzir a espécie e nada mais e, portanto, os
atos de prazer relacionados ao sexo são extremamente condenáveis. Savater afirma a
esse respeito que:
Deve-se renunciar ao sexo como instrumento de dominação, imposição,
maus-tratos e exigência, mas não se abster dele como elemento prazeroso.
[...] A castidade só é boa por aquilo a que se renuncia, então não existe mais
virtude do que “ter deixado de...”. [...] a única coisa que dá prestígio à
castidade é aquilo que não se faz, quer dizer, a não-ação. (SAVATER: 2005,
p. 104)
Ou seja, no episódio mencionado anteriormente, os personagens Paolo e
Francesca, não teriam como ser julgados por DA de outra maneira, uma vez que eles,
supostamente, enquadravam-se nesta situação de adultério.
88
O segundo pecado estudado é a soberba, ou seja, aquele que “é, basicamente, o
desejo de colocar-se acima dos demais” (SAVATER: 2005, p. 35). A soberba é
considerada um pecado supra-capital, a escolástica o situava como o primeiro
na lista dos vícios capitais. Isso porque princípio básico do pecado é o desvio
da reta da apropriação do bem, que é a semelhança com a bondade divina.
Quando, ao contrário dessa semelhança, ocorre a busca da desordem, da
distorção da excelência divina é a soberba. Isso porque a soberba, é entendida
como a recusa da superioridade de Deus, que fornece uma norma, a sua
recusa é a projeção da soberba ou de qualquer outro pecado aliado a esta. A
soberba, conforme afirma (AQUINO, Santo Tomás de. Sobre o Mal. Tradução
Carlos Ancêde Nougué; Apresentação Paulo Faitanin. Rio de Janeiro: Sétimo Selo,
2005. Tomo I. ________. Suma de Teología. Tradução José Martorell Capó. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos, 2001. v. I.) é mais do que um pecado capital é a
matriz de todos os pecados.
Neste pecado também existem as gradações, que vão desde pequenos momentos
de soberba até os mais extremos, quando se humilha o outro. Uma das principais
características do soberbo na DC é exatamente aquela de sofrer aquilo que ele provocou,
ou seja, a vergonha. Eles têm profundo horror de passarem vergonha, no entanto,
adoram envergonhar.
A maneira mais simples de evitar a soberba é tentar, ao máximo, ser realista.
Comparar-se ao seu semelhante e ver que é igual a ele é demais para o soberbo, porém,
para aquele que quer vencer este vício, é um caminho, pois se está chegando perto do
que é a humildade, onde todos são iguais perante o ser maior que é Deus.
Já o terceiro pecado, a avareza, consiste em dar mais importância ao dinheiro do
que a qualquer outra coisa. Uma pessoa avara não consegue dar valor à relação humana,
pois só pensa em guardar seu dinheiro, como forma de acúmulo e não para usá-lo em
algum momento. Savater afirma que:
O avaro era aquele que levava a poupança a situações grotescas. Não atendia
bem a seus seres queridos, nem a si próprio. A única coisa que o interessava
89
era acumular um capital que não usava para nada. A característica do avaro é
a de esterilizar o dinheiro, que, em lugar de estar em movimento, fica parado.
Dessa maneira ele transforma um elemento fluido e útil em algo totalmente
inservível. (SAVATER: 2005, p. 59)
O termo avareza, de acordo com a significação originária, se refere a
uma desordenada ambição de dinheiro. Logo, por ser o dinheiro uma matéria
específica, a avareza é também um vício específico, conforme a imposição
originária dessa palavra. É ainda o vício da avareza tomado como
desordenada cobiça de quaisquer bens. Sendo assim se trata de um um pecado
genérico, pois todo pecado é um voltar-se desordenadamente a algum bem
passageiro, conforme em Agostinho (Super Gen. XI, 5), que afirma ser a
avareza um pecado ‘genérico’, visto que se deseja mais do que o devido
alguma coisa, ou ainda sendo avareza quando esse desejo se refere
especificamente usual amor ao dinheiro.
Pode-se afirmar também que a usura faz parte da avareza, uma vez que os
usurários são aqueles que usam do dinheiro para conseguir ainda mais dinheiro. Sabe-se
que a Igreja, desde sempre foi bastante rígida com os usurários, condenando-os. A usura
é um fator muito sério, visto que ela produz a miséria, que por sua vez ocasiona a fome
e até mortes.
O pecado da avareza é também reconhecido a partir de sue oposto, ou seja, da
beatitude da generosidade ou mais ainda à falta de justiça, em reter ou receber algo em
bens e dinheiro.
Assim, depois de apresentarmos o que é o sagrado e o profano na visão de DA e
quais são os pecados a serem estudados nesta tese, é imprescindível apresentar a forma
como DA, em seu poema, realiza o diálogo entre Dante personagem e seus outros
personagens. Esse diálogo ocorre por meio da memória deles.
Sabe-se que no inferno, todas as memórias de vida ainda estão preservadas na
mente das almas que residem lá e que, no purgatório, antes da chegada ao paraíso,
atravessam pelos rios Letes e Eunoé, onde são purificadas, preservando, apenas, aquelas
90
memórias positivas do que vivenciaram. Desta maneira, o personagem Dante fala com
várias almas trazendo à tona informações sobre eles. É o que declara Weinrich:
O poema trata de uma imaginária errância pelos três reinos do Além –
Inferno, Purgatório e Paraíso. Portanto, essa peregrinação é uma visita aos
mortos; o próprio Dante é o único vivo com acesso a esse outro mundo.
Consequentemente, é também o único a carregar todo o peso dessa lembrança
dos mortos, para que nós, os vivos deste mundo, sejamos informados de tudo.
(WEINRICH: 2001, p. 50)
Tal citação permite compreender a importância da questão da memória para esta
obra poética. Segundo Santo Agostinho (2011: 218) são nos “vastos palácios da
memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda
espécie”. Ou seja, a qualquer momento, é possível acessar esse palácio de memórias,
porém, como já mencionado, DA deixa isto bem claro enquanto as almas estão no
inferno e em parte do purgatório.
Este rio Letes é de grande importância para aquelas almas que já estão em um
estágio de evolução e necessitam esquecer-se de determinados momentos de suas vidas
terrestres, é o que afirma Weinrich:
[...] “Lete” (ele ou ela) é sobretudo nome de um rio do submundo, que
confere esquecimento às almas dos mortos. Nessa imagem e campo de
imagens o esquecimento está inteiramente mergulhado no elemento líquido
das águas. Há um profundo sentido no simbolismo dessas águas mágicas. Em
seu macio fluir desfazem-se os contornos duros da lembrança da realidade, e
assim são liquidados. (WEINRICH: 2001, p. 24)
Esta afirmação confirma o que foi mencionado anteriormente. Tal fato será
explicado, posteriormente, na análise do canto com a ilustração. Um fator de
relevância ainda é a questão da reevocação, que é o esforço realizado pelas almas para
lembrar o que ocorreu em suas vidas. De acordo com Rossi (2010: 16) isso é uma
escavação da memória, onde ela rememora o que viu ou experenciou.
Assim, é possível ter uma melhor compreensão em relação aos diálogos que irão
ocorrer entre Dante e os outros personagens de seu poema. Dando continuidade, segue a
visão de Alberto Martini sobre o sagrado e o profano na obra poética.
91
3.1. A ilustração do Sagrado e do Profano do poema dantesco na visão de Alberto
Martini
Nesta subseção será apresentada a visão de Alberto Martini sobre o sagrado e
profano no poema dantesco, já que sua técnica para a realização das ilustrações foi
apresentada no capítulo 2. Será mostrada ainda a questão teórica acerca da análise das
ilustrações, tema da próxima subseção.
Martini quando começou seu trabalho de ilustração da Divina Comédia, já no
início do século XX, tinha uma visão de mundo, obviamente, bastante diferenciada
daquela de Dante, tendo em vista o tempo que os separava, afinal, eram decorridos já
seis séculos.
Em todo esse tempo, a sociedade foi se modificando e muitos dos dogmas
católicos já haviam sido alterado ou não eram mais tratados com tanta rigidez. Logo,
para um pintor e ilustrador, ler aquele poema e conseguir se aproximar de um universo
tão distante era uma questão complexa.
Martini não era um homo religiosus, porém diferenciava-se da maioria dos seus
contemporâneos neste sentido, pois acreditava em Deus e, por este motivo, não se
enquadrava nos modelos do Surrealismo, como já mencionado anteriormente. O mundo
em que AM vivia era um mundo dessacralizado, como declara Eliade em:
[...] a dessacralização caracteriza a experiência total do homem não religioso
das sociedades modernas, o qual, por essa razão, sente uma dificuldade cada
vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das
sociedades arcaicas. (ELIADE: 1992, p. 14)
Com esta citação é possível confirmar a dificuldade do processo pelo qual AM
passou, para transporta-se do século XX para o XIV, haja vista tantas mudanças, não
somente no sentido religioso, mas da vida da sociedade em si. Na época de Martini, o
sagrado era um obstáculo, diferentemente do que se observava em Dante; já o profano
era o resultado desta dessacralização da existência.
Pode-se afirmar, de acordo com Eliade (1992: 98) que “em outras palavras, o
homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do
92
homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos”. É bastante clara esta
situação na época de Martini, tendo em vista que não se buscava a religião como na
Idade Média, e, portanto, afastava-se dela e de seus dogmas. Todavia, estes preceitos
não eram esquecidos: somente não faziam sentido para aqueles que não acreditavam.
Assim, tem-se um AM que, dentro de seu contexto histórico, diferenciava-se dos
demais, porque ainda se ligava a uma estrutura de dogmas que o auxiliaram na
compreensão do poema dantesco. E não somente isto. Como visto no segundo capítulo,
Martini se identificava bastante com a história de Dante, fato que os aproximou ainda
mais. Decorrente disto é que a questão do sagrado e do profano para AM foi
apresentada com as minúcias apresentadas por DA no poema.
Em sua versão da DC Alberto Martini utilizou-se da técnica do nanquim, que
consiste em um material corante preto, oriundo da China, composto por nanopartículas
de carvão suspensas em uma solução aquosa. Com esse material, ele preencheu o fundo
e, para a representação das formas, utilizou a ilustração com alguns pontos em
sombreado e outros onde há incidência da luz, fazendo com que o observador consiga
perceber a iluminação dentro do desenho.
Além desta técnica que, para a época de Martini, era considerada extremamente
difícil, ele utilizava-se ainda de um outro recurso: o da legenda, bastante explorado por
ele, e que aponta para a necessidade de uma explicação que ultrapassava os limites da
leitura visual (da ilustração). Assim, Santaella e Nöth (2008: 55), citam Moles (1978:
22), o qual afirma que “a legenda comenta a imagem que, sozinha, não é totalmente
entendida. A imagem ou a figura comenta o texto e, em alguns casos, a imagem até
comenta sua própria legenda.”.
Entende-se, desta maneira, que, a legenda usada por Martini comenta a
ilustração e, além disto, a completa, ou seja, elas estão estritamente vinculadas,
tornando possível para o observador, um primeiro entendimento global e um posterior
entendimento específico. A imagem vai revelar ao observador, primeiramente, uma
mensagem, cuja substância é linguística, mas que possui suportes, que são as legendas,
as etiquetas etc. Por meio da legenda, que direciona o observador para um determinado
ponto, o ilustrador não deixa prováveis dúvidas em relação à leitura imagística.
93
No século XIX, quando AM nasceu, havia já uma tradição na Itália, em que a
pintura ou a ilustração serviam como comentário à literatura; elas abriam o campo das
possibilidades de entendimento das imagens que, com a leitura dos textos, tornava-se
mais específica, de acordo com Eco (1989: 72).
Ao se juntar a ilustração e suas legendas ao poema, estes formam uma tríade que
se conecta à maior parte do poema, uma vez que ele não trata somente de uma questão
específica, porém, configurando-se como uma escolha do ilustrador. Santaella e Nöth
(2008: 54), citam a diferenciação feita por Kalverkämper (1993: 207) sobre a relação
texto-imagem, em que ele apresenta três casos diversos: o primeiro, quando a imagem é
inferior ao texto, somente sendo um complemento dela, ou seja, é uma imagem
redundante; a segunda, a imagem é superior ao texto, isto é, ela é uma imagem
informativa; e a terceira, a imagem e o texto possuem a mesma importância, quer dizer,
se completam, sendo chamada então de complementaridade.
Com base na citação de Santaella e Nöth (2008: 53) que indicam que “a relação
entre a imagem e seu conteúdo verbal é íntima e variada. A imagem pode ilustrar um
texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário”, é
possível inferir que, por vezes, o texto verbal e a imagem são independentes entre si;
porém, observa-se também que eles podem ser dependentes um do outro, no caso de
não ser possível o entendimento completo da imagem sem a leitura prévia do texto.
Sabe-se que muitos teóricos defendem a ideia de que a imagem visual depende
sempre daquela textual. Isso porque a abertura interpretativa da imagem pode ser
mutável, específica, mas pode ser ainda geral. Assim, a linguagem verbal por detrás da
imagem tem muita importância, haja vista a polissemia da própria imagem, como afirma
Barthes (1990: 32): “[...] toda imagem é polissêmica e pressupõe, subjacente a seus
significados, uma ‘cadeia flutuante’ de significados, podendo o leitor escolher alguns e
ignorar outros”. Para o leitor, ou o observador, é de extrema importância, para o
entendimento total, conhecer o texto escrito; porém, não é impossível o entendimento
sem uma leitura prévia do mesmo, sendo possível uma leitura da imagem diversificada
em relação ao texto, devido à citada polissemia da imagem.
94
Marin, citado por Santaella e Nöth (2008: 101), trata de uma questão de grande
relevância para a interconexão entre o texto visual e o escrito, que é o papel da
linguagem na análise pictorial. Para ele, “o abismo aparente entre o objeto visual de
estudo e sua articulação verbal, [...], tem como ponte seu axioma da ‘indissociabilidade
do visível e do nomeável como fonte de significado’.”. Nesta citação, em que ele afirma
que somente a verbalização possui um significado, observa-se que a ilustração também
é uma linguagem, porém, visual, e isso nos permite afirmar que ela também possui um
significado. Ou seja, apesar de não ser escrita, ela também possui seus significados por
meio da descrição visual. Ele ainda assevera que “[...] é o discurso verbal sobre a
pintura que ‘permite sua articulação e a constitui como um todo significante’.”.
Levando-se em consideração que as imagens são analisadas também como linguagem,
esta citação não procede desta forma, uma vez que a ilustração pode muito bem ser lida,
por meio de sua descrição pictórica sem nenhum tipo de linguagem verbal; neste
sentido, a linguagem verbal somente acrescenta um maior entendimento para o
observador.
Portanto, a verbalização é apenas um dos meios de linguagem que se pode
utilizar. Já em relação à indissociabilidade entre o visível e o nomeável, nota-se que
nem sempre isso ocorre, visto que nem toda imagem necessita estar associada a um
texto ou vice-versa. Assim tem-se que “o mundo dos significados não é nada além do
mundo da linguagem”(Santaella e Nöth, 2008: 101), e por linguagem, aqui, entendemos
também a linguagem visual.
Santaella e Nöth (2008: 57), em seu livro, citam Schapiro (1973), no momento
em que ele trata da questão da pintura medieval. Assim, ele assevera que “[...]
ilustrações de texto eram ou ‘reduções extremas de um conto complexo’, ou ‘uma
extensão do texto, através do qual detalhes, figuras e um contexto situativo, que faltam
no texto, são acrescentados’.” Afirma ainda que “a ilustração se refere tanto ao sentido
literal como ao sentido espiritual do texto”. Contudo não é possível concordar que a
visão que hoje se tem das ilustrações sejam a redução de um conto complexo, como
eram na Idade Média. A este ponto é verdadeiro afirmar que AM leva em consideração,
certas vezes, muito mais o sentido espiritual apontado por Schapiro que o próprio
sentido literal do texto dantesco.
95
Todavia, pode-se dizer sim que as ilustrações são uma extensão do conto, por
vezes complementando-o ou não, ou apenas referindo-se a ele, como escolhas
pessoais/autorais do artista. Um artista pode apenas selecionar parte daquiloo que
realmente deseja ilustrar ou que considera mais relevante para realizar seu trabalho,
levando em consideração os pontos descritos no texto, ou mesmo alterando-os em sua
totalidade, apresentando, deste modo, sua própria visão sobre a leitura. A esse respeito
Barthes declara que
[...] a imagem já não ilustra a palavra; é a palavra que, estruturalmente, é
parasita da imagem; essa inversão tem seu preço: nos moldes tradicionais de
“ilustração”, a imagem funcionava como uma volta episódica à denotação, a
partir de uma mensagem principal (o texto), que era sentido como conotado,
já que necessitava precisamente de uma ilustração. [...] Ontem, a imagem
ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto torna a imagem mais
pesada, impõe-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação; no passado,
havia redução do texto à imagem; no presente, há uma amplificação
recíproca. (BARTHES: 1990, p. 20)
Nesse sentido, percebe-se o que foi mencionado anteriormente, ou seja, a não
necessidade do texto escrito para o entendimento da imagem, mas sim de uma
integração entre ambas as linguagens.
No caso da Divina Comédia, seu texto, necessariamente não necessita ser
ilustrada para ser compreendida. Contudo, as ilustrações feitas sobre ela proporcionam
uma nova maneira de vê-la, e de lê-la, uma vez que, através da leitura formam-se
imagens mentais que podem ser completamente diversas daquelas que foram propostas
pelos artistas, já que cada um possui o seu próprio olhar e interpreta o texto a seu
próprio modo. Desta forma, as ilustrações ajudam sim em uma melhor maneira de
(re)interpretar, mas não são “necessárias” para este entendimento, já que realizamos
nossas próprias imagens quando lemos um texto.
Nota-se ainda que as ilustrações de Martini são muito simbólicas, tendo em vista
que o poema também é extremamente simbólico e alegórico. Em relação a isto Eco
afirma que
A alegoria transforma o fenômeno num conceito e o conceito numa imagem,
mas de tal modo que o conceito na imagem deva ser considerado sempre
circunscrito e completo na imagem, e deva ser dado e expresso através desta.
96
O simbolismo transforma o fenômeno em idéia, a idéia numa imagem, de tal
modo que a idéia na imagem permaneça sempre infinitamente eficaz e
inacessível e, ainda que pronunciada em todas as línguas, fique todavia
inexprimível. (ECO: 1989, p. 209)
Deste modo, ambos os recursos são utilizados, porém, o verdadeiro simbolismo
é verificado quando o elemento específico representa aquele mais geral. Por ele mesmo,
o símbolo não identifica as coisas às quais se refere, entretanto, a relação existente entre
o símbolo e o objeto a que se refere é estabelecida através de uma associação de ideias
que fazem com que ele seja interpretado.
Então, pode-se averiguar, de acordo com as definições de imagem de Santaella e
Nöth, que uma imagem simbólica, apesar de ter as características de uma imagem
figurativa, representa algo de caráter abstrato e geral ao mesmo tempo. (ANO, p. XX) A
imagem figurativa é aquela que se materializa no plano bidimensional ou que cria no
espaço tridimensional uma cópia fiel de objetos já existentes.
Sendo uma imagem simbólica, ainda de acordo com os autores, tem-se, na
questão do tempo, que as imagens figurativas e as simbólicas são fortemente e
fracamente marcadas pelo tempo, sendo esta última caracterizada até pela
atemporalidade.
Com isto, a imagem simbólica é marcada ainda com as características daquela
figurativa, ela é uma imagem que traz consigo um referencial que aponta para uma
situação existente e, tal situação, é marcada ainda por uma historicidade própria.
Para as representações, os artistas utilizam-se de dispositivos que, segundo
Santaella e Nöth (2008: 76) são “[...] o meio através do qual a imagem é produzida,
transmitida e apresentada ao receptor. Os dispositivos são históricos e se transformam
historicamente”. No caso das ilustrações aqui estudadas, seus dispositivos são uma
imagem registrada sobre um suporte fixo, diferentemente do cinema, do vídeo, etc., que
possuem um movimento e só podem se desenvolver no tempo.
A depender do dispositivo utilizado, o tempo irá agir de maneira diversificada. A
percepção do espaço/tempo na ilustração é notada por meio do tempo intrínseco, no
97
qual a imagem é produzida, transmitida e apresentada ao receptor; neste tempo, leva-se
em consideração o tempo da realização da imagem, de sua enunciação e da estrutura da
mesma, ou seja, é uma imagem constituída de tempo.
Já o tempo extrínseco leva em consideração o tempo exterior à imagem, ou seja,
o tempo que age sobre ela. Deste modo, as imagens ficam temporalmente marcadas
quando são figurativas ou não-marcadas quando são simbólicas ou abstratas.
Até o presente momento, foi descrita a ilustração e seus componentes técnicos
importantes para o entendimento da constituição da imagem. Todavia, parte
fundamental desta análise é o espectador, pois é através do olhar dele que tal descrição
será apreendida. Tem-se, deste modo, que a percepção visual deste
espectador/observador é um processo que, de acordo com Aumont
[...] é o processamento, em etapas sucessivas, de uma informação que nos
chega por intermédio da luz que entra em nossos olhos. Como toda
informação, esta é codificada [...]. Falar de codificação da informação visual
significa, pois, que nosso sistema visual é capaz de localizar e de interpretar
certas regularidades nos fenômenos luminosos que atingem nossos olhos.
(AUMONT: 2008, p. 22)
Esta citação aponta para o aquilo se consegue perceber e de que maneira é
percebido. Ou seja, é a luz que permite ativar nossos sistemas visuais para que se
consiga ver tais imagens e, posteriormente, analisá-las. Sabe-se, contudo, que além da
capacidade de percepção, outros fatores como religião, crenças, afetos, cultura, classe
social, entre outros, são muito importantes para o entendimento e a interpretação
imagética.
Nota-se que os elementos da percepção, que são bordas, cores e a luminosidade,
devem ser observados juntamente, uma vez que a percepção de alguns afeta a dos
outros. Sendo assim, quando se olha uma imagem, não se observa, primeiramente, o
global, mas são realizadas fixações sucessivas, que formam um todo. A esse respeito
Aumont (2008: 68) declara que “[...] a imagem é percebida, quase de modo automático,
por uma interpretação em termos espaciais e tridimensionais.”.
98
Entretanto, existe um problema em relação à percepção da forma da imagem,
uma vez que ela pode tornar-se bastante complexa quando é abstrata, e quanto mais
abstrata, mais simbólica; assim, o entendimento se processa de acordo com a bagagem
intelectual do observador. Retomando a questão da relação entre texto e imagem, para
que esta relação aconteça, são necessários alguns conceitos que facilitam o
entendimento dos mesmos. Sabe-se que uma obra literária possui, necessariamente, uma
situação de enunciação. Logo, a cena de enunciação é um processo interior a ela, sendo
dividida em cena englobante, cena genérica e cenografia. Dentro de um texto, têm-se as
três cenas.
A cena englobante é o tipo de discurso. Ela diz sobre o que trata a cena, situando
o leitor para interpretá-lo. Todo enunciado literário possui uma cena englobante
literária, segundo Maingueneau (2006: 251). Deste modo, a cena englobante não
consegue especificar as atividades verbais do texto, uma vez que somente o identifica
para o leitor, explicando se é, por exemplo, um texto político ou religioso.
Para uma melhor compreensão do texto é necessário entender o que é a cena
genérica, pois é ela que mostra quem são os participantes, o lugar, o tempo, ou seja, a
maioria as informações necessárias para a leitura do texto.
Já a cenografia é, segundo Maingueneau (2006: 252) “[...] a cena na qual o
leitor vê atribuído a si um lugar é uma cena narrativa construída pelo texto, uma
‘cenografia’.”. Isso quer dizer que, em muitas ocasiões, o texto chega ao leitor por meio
de sua cenografia e não de suas cenas englobante e genérica. Deste modo, a cenografia
não é somente uma base, uma forma de transmitir conteúdos, mas sim o fundamento da
enunciação.
Com isto, será possível averiguar todas as quatro ilustrações com base no poema
dantesco, relacionando as cenas e a imagens de autoria de AM. Dando prosseguimento
ao capítulo, segue a próxima subseção com as análises.
99
3.2. As cenas do Sagrado e do Profano na Divina Comédia
As análises realizadas abaixo apresentam a composição das ilustrações, ou seja,
tudo aquilo que o observador consegue ver. A técnica utilizada pelo ilustrador para a
realização delas já foi descrita no subcapítulo anterior, deste modo sendo dispensável
aqui. Posteriormente a isto, é feito um estudo mais minucioso, verificando os pontos em
que o artista retoma a obra literária, e, por último é analisada a representação da questão
religiosa na ilustração.
Inferno XXXIV
A ilustração do Canto XXXIV do Inferno apresenta Lúcifer ao centro da
imagem, com suas três cabeças e suas seis asas de morcego. Dentro da boca da sua face
principal, a do meio, está Judas, o traidor de Cristo e nas outras duas Brutos e Cássio,
traidores de César e do Império. Desta sua boca do meio, escorre muita secreção, que
desliza pelo seu peito até chegar ao gelo, onde ele está preso dos pés atéa cintura. Seu
corpo é forte, musculoso, suas mãos e pés são grandes e com unhas pontiagudas, em
forma de garras.
Observa-se abaixo de seus pés um outro caminho, que é a subida ao purgatório,
onde se vê o sol e uma subida e lê-se a legenda Saímos voltando a ver as estrelas73
,
escrita de cabeça para baixo. Este detalhe refere-se especificamente à arquitetura do
mundo ultraterreno na concepção medieval. Nota-se ainda, acima da figura de Lúcifer, a
legenda em italiano, Lucifero.
No campo exterior à ilustração, no quadro de papel lê-se uma outra legenda:
Judeca – Vexilla regis prodeunt inferni – há um moinho que ao longo ao vento gira – O
imperador do doloroso reino – Três faces – por seis olhos chorava e por três queixos
mastigava – Judas Iscariotes – Brutos e Cássio – De velo em velo desce – volta como
73
Uscimmo a riveder le stelle
100
quem escale – O guia e eu –
subimos e saímos voltando a
ver estrelas74
. E ainda uma
seta indicando o sentido da
localização do purgatório.
Essas legendas
resumem todo o canto,
oferecendo ao leitor uma
carga muito grande de
informações a respeito do
poema. Elas resumem todo o
canto, desde o início até seu
último verso. Portanto, para
maiores informações a
respeito do canto, ver nos
anexos.
A profundidade desta
ilustração pode ser percebida
através dos efeitos de
iluminação e da perspectiva da crosta de gelo e da subida da montanha do Purgatório e
do mar, com o sol no horizonte, ao fundo. O uso dos meio-tons e da superfície negra
chapada por detrás de Lúcifer conferem o ar de tenebrosidade necessário para a
representação de um demônio no inferno.
Observa-se a luz incidindo na figura do anjo caído, na parte superior da imagem,
e a luz do sol poenta na parte inferior, auxiliam o entendimento de ambas as cenas, fato
que, todavia, diferencia completamente as duas ambientações cenográficas. A luz
confere a eles níveis de dramaticidade diferentes: sobre a figura do demônio ela é
74
Giudecca – Vexilla regis prodeunt inferni – un molin che il vento gira parve – L’imperator del
doloroso regno – Tre facce – per sei occhi piangea e per tre menti maciulla – Giuda Scariotto – Bruto e
Cassio – Di vello in vello discese – Volse com uom che sale – Lo duca e io – Salimmo su e quindi uscimo
a riveder le stelle.
101
carregada da própria dramaticidade do inferno, e sobre a montanha do Purgatória se
atenua, indicando um local de mais serenidade em relação ao Inferno
Em relação aos simbolismos, além da figura central de Lúcifer, o anjo caído,
símbolo do mal por definição, vê-se a de Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos de
Cristo, que o traiu por dinheiro, de Brutos que por sua ambição matou seu benfeitor e de
Cássio, traidor maior do império.
Todos esses símbolos nos mostram que neste último patamar do inferno estão
aqueles cujos pecados são imperdoáveis e que simbolizam o mal do mundo, o mal para
a Igreja e para a sociedade.
A questão religiosa apresenta-se aqui de forma bastante clara, uma vez que
Dante coloca todos os traidores juntos, porém, a maior traição de todas é a aquela contra
Jesus, concretizada por Judas. Esta é a razão pela qual o apóstolo se encontra na boca
principal do demônio
Martini imprime nesta ilustração seu traço autoral, apesar de sua ilustração ser
bastante aderente ao texto poético de Dante. Na mesma imagem ele consegue mostrar
como se passa da escuridão à luz utilizando diferentes planos e invertendo-os, quase que
a convidar o expectador a girar a imagem e admirá-la em posições diferentes.
Purgatório XII
A ilustração do canto XII do Purgatório apresenta um anjo no centro da imagem;
com seu pé direito ele pisoteia uma serpente, símbolo do pecado, e seu pé esquerdo se
apoia sobre o primeiro degrau de uma escadaria talhada nas encostas de uma montanha,
sugerindo um movimento de ascensão, movimento este reforçado pela posição da mão
esquerda que aponta em direção ao alto da escadaria. Está vestido com uma túnica Está
coberto por uma túnica possuindo duas asas e uma auréola, sendo que dentro dela existe
uma letra P. seus dois braços estão abertos como os de Cristo na cruz.
102
Nota-se, dentro da moldura a
inscrição que diz Beati pauperes spiritu,
e ainda, fora da moldura: um anjo – Os
braços abriu e as asas afinal – disse: os
degraus são perto ora venhais – bateu-
me de asas pela fronte – e os P serão –
como um serão se apague o resto à
frase75
.
Estas legendas ajudam no
sentido de que, uma pessoa que não
conhece o texto poético, não consegue
entender o sentido de se ter um anjo
com um P escrito em sua auréola.
Observa-se que a incisão de luz
no purgatório já é bem mais utilizada,
devido a não estar mais nas trevas,
assim, além do anjo ser bastante
iluminado, a escada por onde ele sobe também é e a inscrição acima dele também.
Nesta ilustração Martini restringiu bastante sua imagem para caracterizar o canto
de Dante. Porém, pela legenda, é possível dimensionar o quanto ele trouxe do canto,
que é o referente aos versos 73 a 123.
75
Piú era già per noi del monte volto
e del cammin del sole assai piú speso
che non stimava l'animo non sciolto,
quando colui che sempre innanzi atteso
andava, cominciò: «Drizza la testa;
75
Mas do monte nos era desoculto
e o caminho do sol mais se estendia
que o ânimo pensava não estulto,
quando o que sempre à frente ali seguia
atento, começou: «Levanta a testa;
75
Un angel – le braccia aperse e indi aperse l’ale – disse: venite qui son presso i gradi – mi battè l’ali
per la fronte – e i P saranno – come l’un del tutto rasi.
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non è piú tempo di gir sí sospeso.
Vedi colà un angel che s'appresta
per venir verso noi; vedi che torna
dal servigio del dí l'ancella sesta.
Di reverenza il viso e li atti adorna,
sí che i diletti lo 'nviarci in suso;
pensa che questo dí mai non raggiorna!»
Io era ben del suo ammonir uso
pur di non perder tempo, sí che 'n quella
matera non potea parlarmi chiuso.
A noi venía la creatura bella,
bianco vestito e nella faccia quale
par tremolando mattutina stella.
Le braccia aperse, e indi aperse l'ale:
disse: «Venite: qui son presso i gradi,
e agevole-mente omai si sale.
A questo invito vegnon molto radi:
o gente umana, per volar su nata,
perché a poco vento cosí cadi?»
Menocci ove la roccia era tagliata:
quivi mi batté l'ali per la fronte;
poi mi promise sicura l'andata.
Come a man destra, per salire al monte
dove siede la chiesa che soggioga
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não é mais tempo de ir em fantasia.
Vês acolá um anjo que se apresta
para vir até nós; e vê que torna
do serviço do dia a serva sexta.
De reverência o acto e o gesto adorna,
que em mandar-nos acima tenha agrado;
e pensa que este dia não retorna!»
Era eu a tal aviso habituado
que tempo não perdesse, e assim naquela
materia o seu falar não é cerrado.
A nós já vinha a criatura bela,
de vestes brancas na face qual
tremeluzindo matutina estrela.
Braços abriu e as asas afinal;
disse: «Os degraus são perto: ora venhais,
que mais fácil subir agora val’.
A tal convite vêm mui poucos mais:
ó gente humana, ao voo ao céu fadada,
porque é que a pouco vento logo cais?»
Levou-nos onde a rocha era talhada;
aí bateu-me de asas pela fronte;
então me prometeu boa jornada.
Como à direita, por subir o monte
Lá onde assenta a igreja que domina
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la ben guidata sopra Rubaconte,
si rompe del montar l'ardita foga
per le scalee che si fero ad etade
ch'era sicuro il quaderno e la doga;
cosí s'allenta la ripa che cade
quivi ben ratta dall'altro girone;
ma quinci e quindi l'alta pietra rade.
Noi volgendo ivi le nostre persone,
'Beati pauperes spiritu!' voci
cantaron sí, che nol dir'ia sermone.
Ahi quanto son diverse quelle foci
dall'infernali! ché quivi per canti
s'entra, e là giú per lamenti feroci.
Già montavam su per li scaglion santi,
ed esser mi parea troppo piú leve
che per lo pian non mi parea davanti.
Ond'io: «Maestro, di', qual cosa greve
levata s'è da me, che nulla quasi
per me fatica, andando, si riceve?»
Rispuose: «Quando i P che son rimasi
ancor nel volto tuo presso che stinti,
saranno come l'un del tutto rasi,
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A bem guiada sobre Rubaconte,
se modera a falésia que se empina
por escada já feita nessa idade
que caderno e medida certa afina;
tal se atenua a escarpa que este invade
do outro giro e abrupta se amontoa,
e os lados da alta pedra rasar á-de.
E nós voltando ali nossa pessoa,
“Beati pauperes spiritu!” vozes
melhor cantam que a fala o apregoa.
Ah, como são diversas estas fozes
das infernais! cá nos acolhe o canto
e lá se têm lamentos só, ferozes.
Já nós subíamos o escadório santo,
e já se parecia ser bem mais leve
do que no chão em que eu fora entretanto.
E eu então: «Mestre, diz que cousa deve
perder o peso em mim, que é nula quase
a fadiga que em meu andar se inscreve?»
Respondeu: «Quando dos P de apraze,
que ainda tens no rosto, que delidos
como um serão, se apague o resto à frase;
105
Enfim, o simbolismo referente a este anjo é o fato de ele dar os P, que significam
os sete pecados capitais e tirá-los, conforme a alma for avançando e livrando-se deles.
Dante personagem, neste caso, sentiu-se bastante leve quando descobriu que esta leveza
era oriunda da retirada de um dos P, o do pecado da soberba.
A auréola vista nesta ilustração é um halo circular que simboliza o céu, um
atributo dos anjos e dos santos. Suas asas emplumadas simbolizam a natureza celestial,
mostrando-se como mensageiros de Deus.
Percebe-se, portanto, que a seleção de Martini, dentro da sua leitura deste canto,
foi bastante particular, apontando para o que ele considerava mais importante dentro do
mesmo. Todavia, esta é uma ilustração que depende inteiramente de seu complemento
textual para a compreensão de que aquele anjo não é um simples anjo, e sim o anjo
guardião da DC.
Paraíso XI
A ilustração do Canto XI76
do Paraíso apresenta São Francisco de Assis,
centralizado na cena e em seu lado inferior esquerdo há uma mulher em posição de
oração. Ele está com suas vestes talares franciscanas rasgadas, ascendendo aos céus,
sendo possível verificar em suas mãos e pés os estigmas, as chagas de Cristo que ele
recebeu após uma visão no Monte Alverne e o lado transpassado, como representado
habitualmente, segundo a iconografia canônica.
Observa-se que a ilustração apresenta traços da originalidade martiniana que
fogem à representação iconográfica canônica de Giotto di Bondone (1267 – 1337), a
partir do ciclo de afrescos na Basílica de São Francisco de Assis (século XIV) na cidade
natal do santo. Facchinetti assevera que além de Giotto
76
Neste Canto, Dante encontra-se no Céu do Sol. Neste Céu encontra-se São Tomás de Aquino (1225 –
1274), com quem Dante dialoga a respeito de São Francisco de Assis (1182 – 1226) e de São Domingos
(1170 – 1221). Primeiramente, São Tomás conta a Dante sobre a vida de São Francisco e sobre a
fundação da ordem franciscana e depois trata da grandeza de São Domingos, fundador da ordem dos
dominicanos.
106
o pintor franciscano por excelência – o qual, como já notamos, pintou com a
sua escola, nos vinte e oito afrescos da igreja superior, os principais episódios
da vida de Francisco, enquanto naquela inferior tornou-se imortal pelas três
alegorias, assim merecidamente famosas da Castidade, da Obediência e da
Pobreza, e o seu Franciscus gloriosus que triunfa na ábside da basílica,
superado porém, me parece, em beleza artística por aquele de Sassetta —
antes dele, digo, já haviam trabalhado em Assis Giunta Pisano, Mino da
Turrita e Cimabue, enquanto seguia depois dele uma plêiade de artistas, de
Simone Memmi e Pietro Cavallini até Puccio Capanna, Giottino, Taddeo
Gaddi, Bonamico Buffalmacco, Stefano Fiorentino, Giovanni da Milano,
Nicola e Pier Antonio da Foligno, Francesco Vannozzo, Martelli, Giorgetto,
Martinelli, os Sermei, Adoni Doni, estes dois últimos de Assis, Spagna,
Domenichino, Lamparelli di Spello, Benedetto Fargnoni d'Imola, Giulio
Danti de Perugia, todos assaz renomados no campo da pintura. (FACCHINETTI, 1921, p. 523-524)
77
Já na opinião de Germain “Giotto, dando continuidade ao trabalho de seu
mestre, finalmente conseguiu se livrar dos entraves bizantinos e de fazer nascer a arte
italiana. O genial debutante realizou, ao mesmo tempo, uma manifestação
verdadeiramente franciscana de arte religiosa.” (GERMAIN, 1903, p. 54)78
Seguindo o
raciocínio do crítico de arte francês parece natural pensar na escolha de AM em
representar o santo de Assis como figura principal da ilustração do Canto XI.
O franciscano Facchinetti registra, também, que além de pintores, escultores e
arquitetos, também a poesia “de modo especial com o autor anônimo da Legenda
Versificata, com Dante Alighieri e Jacopone da Todi, quis depor as suas coroas de
77
Il pittore francescano per eccellenza — il quale, come già abbiamo notato, dipinse con la sua scuola,
nei ventotto affreschi della chiesa superiore, i principali episodi della vita di Francesco, mentre in quella
inferiore si è reso immortale per le tre allegorie, così meritamente famose, della Castità, dell'Obbedienza e
della Povertà, e il suo Franciscus gloriosus che trionfa nell'abside della basilica, superato però, a me pare,
in bellezza artistica, da quello del Sassetta — prima di lui, dico, già ad Assisi avevano lavorato e Giunta
Pisano e Mino da Turrita e Cimabue, mentre seguiva dopo di lui una vera pleiade d'artisti, da Simone
Memmi e Pietro Cavallini fino a Puccio Capanna, al Giottino, a Taddeo Gaddi, a Bonamico Buffalmacco,
a Stefano Fiorentino, a Giovanni da Milano, a Nicola e Pier Antonio da Foligno, a Francesco Vannozzo,
al Martelli, al Giorgetto, al Martinelli, al Sermei, a Adoni Doni, questi due ultimi d'Assisi, allo Spagna, al
Domenichino, al Lamparelli di Spello, a Benedetto Fargnoni d'Imola, a Giulio Danti di Perugia, tutti assai
rinomati nel campo della pittura. 78
Giotto, en continuant l’oeuvre de son maître, réussit enfin à se débarrasser des entraves bizantines et à
donner naissance à l’art italien. Le génial débutant réalisait en même temps une manifestation vraiment
franciscaine d’art religieux.
107
louros sobre a tumba do místico saltimbanco do bom Deus”. (FACCHINETTI, 1921, p.
524)79
Sua cabeça está coroada por uma auréola luminosa e abaixo de seus pés observa-
se outro grande foco luminoso; dentro desse halo, nota-se a legenda Ascese80
. Ao seu
lado, a mulher nua e de mãos postas em oração representa a Pobreza, mencionada em
outra legenda, escrita no canto inferior direito da ilustração Francisco e Pobreza81
Observa-se ainda, outra legenda, fora da ilustração em si que diz: Nascera no
mundo um sol – Francisco e Pobreza – o esposo – a esposa – De Cristo tomara o
último sigilo – dirigira-se ao Seu reino82
. Nesta legenda, Martini utiliza trechos de
alguns versos do canto, os quais não são necessários para a compreensão da ilustração,
já que se sabe quem são os personagens ilustrados; contudo, em pouquíssimas palavras,
consegue apresentar a história de São Francisco de Assis, o que, sim, auxilia no
entendimento contextual da cena.
79
In modo speciale con l'autore anonimo della Legenda Versificata, con Dante Alighieri e Jacopone da
Todi, ha voluto deporre le sue corone d'alloro sulla tomba del mistico giullare del buon Dio. 80
Ascesi. 81
Francesco e Povertà. 82
Nacque al mondo un sole – Francesco e Povertà – lo sposo - la sposa – Da Cristo prese l’ultimo sigillo
– si volse al Suo regno.
108
Essa ilustração apresenta
profundidade, porém, como o
fundo é monocromático e
chapado, na cor negra, Martini
direciona toda a percepção
visual para as figuras principais,
dando maior relevo a São
Francisco e menor à Pobreza.
A iluminação observada
na cabeça e nos pés de São
Francisco também é de grande
importância: ambos os focos de
luz apontam para o alto,
sugerindo o movimento de sua
ascese. Esta auréola simboliza a
potência divina, o ser divino que
ele se tornou, e como é
composta de raios, denota a sua
condição de beatitude. Este halo
circular simboliza o céu, sendo
atribuído aos anjos e santos.
No canto XI do Paraíso, Dante Alighieri descreve a vida de São Francisco por
meio das memórias de São Tomás de Aquino, dos versos 40 a 117, como pode-se
observar:
42
Dell'un dirò, però che d'amendue
si dice l'un pregiando, quale uom prende,
perch'ad un fine fuor l'opere sue.
Intra Tupino e l'acqua che discende
del colle eletto dal beato Ubaldo,
42
De um já direi, mas de ambos dois porém
dando louvour a um, qualquer se intende
porque a só fim a obra sua vem.
Entre Tupino e a água que descende
do monte eleito do beato Ubaldo,
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fertile costa d'alto monte pende,
onde Perugia sente freddo e caldo
da Porta Sole; e di retro le piange
per grave giogo Nocera con Gualdo.
Di questa costa, là dov'ella frange
piú sua rattezza, nacque al mondo un sole,
come fa questo tal volta di Gange.
Però chi d'esso loco fa parole,
non dica Ascesi, ché direbbe corto,
ma Orïente, se proprio dir vole.
Non era ancor molto lontan dall'orto,
ch'el cominciò a far sentir la terra
della sua gran virtute alcun conforto;
ché per tal donna, giovinetto, in guerra
del padre corse, a cui, come alla morte,
la porta del piacer nessun diserra;
e dinanzi alla sua spirital corte
et coram patre le si fece unito;
poscia di dí in dí l'amò piú forte.
Questa, privata del primo marito,
millecent'anni e piú dispetta e scura
fino a costui si stette sanza invito;
né valse udir che la trovò sicura
con Amiclate, al suon della sua voce,
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fértil a costa de alto monte pende,
onde Perugia tem frio e rescaldo
de Porta Sole; e por detrás lhe plange
por grave jugo Noccera com Gualdo.
E desta costa, lá onde mais frange
a rispidez, nasceu ao mundo um sol,
como este faz alguma vez no Gange.
E assim desse lugar quem termo arrolhe,
não diga Ascesi, fora curto e torto,
mas Oriente, por dizer de escol.
Não era ainda mui longe do orto,
que começou e fez sentir a terra
de sua grã virtude algum conforto;
que por tal dama, rapazinho, em guerra
do pai incorre, à qual, tal como à morte,
a porta do prazer ninguém descerra;
e então perante a sua espritual corte
et coram patre se lhe fez unido;
depois de dia em dia a amou mais forte.
Esta privada do anterior marido,
mas de anos mil e cem, mesuqinha e escura,
até ele ficou sem prometido;
pouco valeu ouvir que a achou segura
com Amiclas, ao som da sua voz,
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colui ch'a tutto 'l mondo fe' paura;
né valse esser costante né feroce,
sí che, dove Maria rimase giuso,
ella con Cristo pianse in su la croce.
Ma perch'io non proceda troppo chiuso,
Francesco e Povertà per questi amanti
prendi oramai nel mio parlar diffuso.
La lor concordia e i lor lieti sembianti,
amore e maraviglia e dolce sguardo
facíeno esser cagion di pensier santi;
tanto che 'l venerabile Bernardo
si scalzò prima, e dietro a tanta pace
corse e, correndo, li parve esser tardo.
Oh ignota ricchezza! oh ben ferace!
Scalzasi Egidio, scalzasi Silvestro
dietro allo sposo, sí la sposa piace.
Indi sen va quel padre e quel maestro
con la sua donna e con quella famiglia
che già legava l'umile capestro.
Né li gravò viltà di cor le ciglia
per esser fi' di Pietro Bernardone,
né per parer dispetto a maraviglia;
ma regalmente sua dura intenzione
ad Innocenzio aperse, e da lui ebbe
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esse que o mundo em medo desfigura;
pouco valeu ser tão firme e feroz,
que onde Maria ao pés ficou, ou abuso
na cruz com Cristo ela a chorar se pois.
Mas por que eu não pareça assaz escuzo,
Francesco e a Pobreza por amantes
entendas ora em meu falar difuso.
Sua concórdia e seus ledos semblantes,
amor e maravilha e doce esguardo
de santos pensamentos são constantes;
tanto que um venerável qual Bernardo
antes se descalçou e atrás da paz
correu, e a correr, jugou ser tardo.
Oh ignota riqueza! oh bem feraz!
E descalça-se Egídio com Silvestre
atrás do esposo, tanto a esposa apraz.
Então se vai o pai e aquele mestre
co a dama e co a família que se humilha
ligada assim por quem silício a destre.
Nem peito vil seus olhos encarquilha
por ser de Bernardoni geração,
nem por ser desdenhado maravilha;
mas realmente assim dura intenção
a Inocêncio abriu, e este lhe deu
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primo sigillo a sua religïone.
Poi che la gente poverella crebbe
dietro a costui, la cui mirabil vita
meglio in gloria del ciel si canterebbe,
di seconda corona redimita
fu per Onorio dall'Etterno Spiro
la santa voglia d'esto archimandrita.
E poi che, per la sete del martiro,
nella presenza del Soldan superba
predicò Cristo e li altri che 'l seguiro,
e per trovare a conversione acerba
troppo la gente, per non stare indarno,
reddissi al frutto dell'italica erba,
nel crudo sasso intra Tevere e Arno
da Cristo prese l'ultimo sigillo,
che le sue membra due anni portarno.
Quando a colui ch'a tanto ben sortillo
piacque di trarlo suso alla mercede
ch'el meritò nel suo farsi pusillo,
a' frati suoi, sí com'a giuste rede,
raccomandò la donna sua piú cara,
e comandò che l'amassero a fede;
e del suo grembo l'anima preclara
mover si volse, tornando al suo regno,
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primeiro selo a sua religião.
Quando a pobrinha gente então cresceu
e o foi seguir, cuja vida bendita
cantaria melhor glória do céu,
a coroa redime e deposita
Honório, e o Esprito Santo inspire-o,
na ânsia santa deste arquimandrita.
E pois que pela sede de martírio,
pregou Cristo e os que o seguem à proterva
presença do Sultão em país sírio
porque de mais azeda já observa
a gente à fé, por não ficar em vão,
ao fruto regressou da ítala erva
e entre Arno e Tibre em cru penedo então
foi ter de Cristo o último sigilo,
que dois anos seus membros levarão.
Quando ao que em tanto bem quis investi-lo
Aprouve de trazê-lo a tal mercê,
por se fazer humilde, de alto asilo,
a tanto irmão, que herdeiro justo é,
recomendou a sua dama cara
e encomendou que lhe tivessem fé;
e de seu colo a alma assim preclara
de voltar ao seu reino teve empenho,
112
117 e al suo corpo non volse altra bara.
117
e ao corpo outra mortalha não tomara.
É possível notar, pela descrição da ilustração, que Martini abarcou algumas das
principais cenas descritas na obra literária, e que suas legendas completam o sentido da
imagem se as colocarmos uma diante da outra. Entretanto, o observador, aqui, tem um
papel importante, já que ele pode ser de três tipos distintos: como aquele observador que
desconhece tanto texto como imagem; aquele que desconhece a imagem, mas conhece o
texto e aquele que conhece ambas.
Assim, o observador que somente vê a ilustração, não tendo conhecimento nem
da imagem, nem do texto, consegue entender que se trata de São Francisco. Portanto é
difícil imaginar quem seria a mulher nua a seu lado, neste caso, levando em
consideração uma referência religiosa de quem seria o Santo. Desta maneira, Martini,
consciente disto, fornece pistas nas legendas que fazem com que a completude da
imagem seja entendida; ou seja, é como se o observador estivesse fazendo uma leitura,
só que imagística. Por inferência, mas esta não é uma qualidade de todos os tipos de
observador, poderia se pensar na mulher como a pobreza, pois ela está nua, numa alusão
ao total desprendimento dos bens materiais, em total consonância com o pensamento e
com a própria biografia de Francisco.
Logo, para o segundo tipo de observador, a leitura desta ilustração torna-se mais
facilmente compreensível, pois, se se possui uma leitura prévia da Divina Comédia, e
especificamente do Canto XI do Paraíso, a compreensão da leitura visual é completa,
uma vez que Martini retira do poema partes específicas e as transpassa ao texto visual,
ou seja, à ilustração.
Ao se juntar a ilustração e suas legendas ao poema, forma-se uma tríade de
significados, como mencionado anteriormente, que se conecta à maior parte do poema,
uma vez que ele não trata somente de São Francisco; aqui reside a escolha autoral do
ilustrador.
113
Deste modo, nota-se nesta ilustração que a imagem não pode ser considerada
inferior ao poema e nem superior a ele, mas sim que há uma relação de
complementaridade entre elas, pois, apesar de Martini não ter ilustrado todo o Canto, e
sim somente a parte referente a São Francisco, essas partes se completam quando se
coloca uma ao lado do outro, pois, como mencionado anteriormente, o espectador tem a
possibilidade de ter um entendimento global e mais específico da ilustração por meio da
leitura da legenda da imagem.
Essa ilustração traz consigo ainda o sentimento religioso ligado à figura de São
Francisco de Assis, que foi um exemplo para a humanidade de castidade, bondade,
generosidade e, principalmente, de humildade. Este sentimento religioso é retratado na
imagem, quando ele ilustra as suas vestes rasgadas com seus braços abertos seguindo na
direção de seu amor maior que era Deus e ainda com as marcas das chagas de Cristo, de
acordo com as representações icônicas e canônicas desse Santo. Tavares indica que
iconograficamente o santo pode ser representado
vestido de franciscano, crucifixo nas mãos, estigmas nas mãos e nos pés e,
ocasionalmente, um rasgão no hábito mostra-nos a chaga do lado. Por vezes
aparece com barba, outras imberbe. Umas vezes loiro, outras de cabelos
escuros. Outras vezes, ainda, aparece-nos vestido de capuchinho, com uma
caveira ao lado, ou então recebendo o Menino Jesus das mãos da Virgem
Maria. Também aparece a receber nos seus braços Cristo meio despregado da
cruz. (TAVARES, 1990, p. 60-61)
Um pequeno rasgo lateral na veste seria suficiente para demonstrar a presença da
chaga no dorso, mas a escolha martiniana de apresentar o santo com a veste dilacerada,
deixando todo o seu peito à mostra, denota a intenção de retratar o santo exatamente
com o peito aberto à sua religião, aos seus preceitos e ao seu Deus. Também, no fundo,
alude ao episódio biográfico do jovem Francisco que se despe das vestes aristocráticas
que costumava usar para abraçar a vida religiosa.
A linguagem verbal, neste caso, não é um elemento fundamental para a
construção da percepção das imagens de Martini; contudo, muitas vezes, ela é
necessária para um entendimento mais completo das mesmas, como por exemplo,
quando ele nos diz, por meio da legenda, quem é a mulher que está ajoelhada abaixo de
114
São Francisco de Assis, a Pobreza, cuja personificação é impossível, para não
especialistas em iconografia, de ser compreendida sem a legenda.
Observando a ilustração, a representação imagética de Martini não se faz auto-
suficiente destacada do texto poético, tendo em vista que a legenda, que é parte do texto
poético, e que auxilia na compreensão da imagem; porém o entendimento completo,
somente se dá com a leitura do poema dantesco. Isso ocorre, uma vez que essa
interconexão existente entre os textos é bastante significativa. Entendemos que seja
possível uma leitura superficial da ilustração sem a leitura prévia do texto, porém, sabe-
se que a leitura profunda necessita do auxílio do texto poético para dar a totalidade da
imagem.
Todavia, sua criação imagética traz traços autorais que não equivalem ao texto
completo, mas que o ressignifica de maneira bastante consistente, alguns deles já
apontados. Na sua interpretação, uma vez que ele trabalha elementos do texto que são
fundamentais para a sua criação, levando em consideração que ele retira de cada canto
da Divina Comédia aquelas partes que considera mais relevantes para sua composição.
A expressividade é de suma importância para a imagem, como para a literatura e para as
artes, em geral. Assim, a conjunção das palavras e também das imagens (ilustrações)
nos fornece a totalidade da arte, formando um todo de sentido.
No caso do Canto em análise, há uma descrição completa da vida de São
Francisco de Assis, compondo essa totalidade, que é observada na ilustração de maneira
subjetiva pelo artista, apontando para o que seria, para ele, a maior expressividade do
Canto.
Um artista pode apenas selecionar parte do que realmente deseja ilustrar ou que
considera mais relevante para realizar seu trabalho levando em consideração os pontos
descritos no texto, ou mesmo alterando-os em sua totalidade, apresentando, deste modo,
sua própria visão sobre a leitura.
Desta forma, as ilustrações ajudam sim em uma melhor maneira de
(re)interpretar, mas não são “necessárias” para este entendimento, já que realizamos
nossas próprias imagens quando lemos um texto.
115
Assim, na ilustração selecionada, o Santo é retratado com muitas características
biográficas e também daquelas de seu processo post-mortem. Tal representação aponta
para uma historicidade particular, ou seja, para a hagiografia e a iconografia canônica
do santo, o que caracteriza essa imagem como figurativa. Entretanto, ela também possui
um caráter abstrato em torno dela, pois São Francisco de Assis representa a humildade,
a caridade e a generosidade, o que faz dessa imagem também simbólica. Deste modo,
Santaella e Nöth (2008: p. 83) afirmam que “[...] ao representar o referente, a imagem
acaba inevitavelmente por trazer para dentro de si a historicidade que pertence ao
referente”; assim, é possível confirmar que nesta ilustração de Martini há uma
historicidade latente, tendo em vista que conseguimos perceber a ilustração e entender
sobre o que ela trata, fato que nos reporta, automaticamente, a esta historicidade,
obviamente, se se possui um conhecimento prévio e mínimo sobre o referente.
Em relação a isto, os autores asseveram ainda que “[...] as imagens figurativas
podem funcionar como documentos de época”. Neste caso, Martini realiza esta
ilustração de acordo com as informações do poema. Contudo, nota-se que a sua
tentativa é a de apresentar as vestimentas e o cenário da própria época do santo; sendo
assim, apesar de ter sido realizada no século XX, esta ilustração nos remete a um
documento de época do século XI, pois toda a composição da ilustração indica
inequivocamente a época do Santo.
Pode-se observar ainda a questão da atemporalidade deste símbolo que é
representado por São Francisco de Assis, pois não somente Martini, mas também outros
tantos artistas, como Giotto e os tantos outros enumerados por Facchinetti, por exemplo,
o representaram, mostrando suas virtudes.
Nesta imagem, em particular, não temos como tratar do aspecto extrínseco, uma
vez que trabalhamos com a ilustração da edição ilustrada da Divina Comédia, e não com
a imagem original, por ser irrelevante a essa pesquisa. É possível sim tratar do tempo
intrínseco a esta ilustração, já que ele fica bem marcado pela real existência de São
Francisco de Assis, ou seja, de sua época, o século XI.
Dentro deste tempo, temos ainda o estilo utilizado pelo artista. A esse respeito
Santaella e Nöth (2008: p. 81) afirmam que “aquilo que o artista recebe da tradição e o
116
modo como ele readaptar o usual ao não-familiar imprime à obra o sinal do estilo. É
em função disso que todo estilo já nasce inelutavelmente marcado pelo tempo”. Deste
modo, Martini emprega um estilo particular em sua ilustração apontando para rupturas
com os estilos de sua época e imprimindo a sua identidade a essa obra. Por exemplo,
Martini transitava pela estética Surrealista no momento em que realizava suas
ilustrações sobre a Divina Comédia. Todavia, não fez efetivamente uma ilustração
surrealista sobre o Canto estudado e sim uma imagem com o seu toque autoral, em que
mostra um São Francisco bastante diferente do canônico, com suas vestes rasgadas e
principalmente nos dando a personificação da pobreza em forma de mulher. Também
não optou pela representação do santo como um novo evangelista e com sua cabeça
coberta pelo capuz franciscano – como foi representado nas primeiras pinturas, em geral
de anônimos italianos do século XIII; tampouco optou por aqueles episódios biográficos
de Francisco, já presentes nas primeiras representações e eternizados por Giotto na
Basílica de Assis, como a prédica aos pássaros e a realização de milagres e de curas.
Finalmente, também não optou por um terceiro arquétipo de representação que é aquele
onde se vê o santo de joelhos aos pés da cruz e beija a chaga dos pés do Cristo.
O Francisco de AM é um Francisco do século XX e não um santo medieval, da
mesma forma que a sua Divina Comédia é uma obra de leitura contemporânea e não
uma obra impregnada de sentimentos sagrados da Idade Média.
Paraíso XXXIII
Na ilustração do canto XXXIII do Paraíso, Martini apresenta a figura de Dante,
de joelhos, com a face virada para cima, olhando para o alto. Uma forte luz incide sobre
ele que está vestido com uma túnica e seu gorro.
Acima dele é possível observar três figuras, a do lado esquerdo é São Bernardo,
com sua auréola e do lado direito a Virgem Maria sentada e um anjo na frente dela que
117
diz: Ave Maria gratia plena. Ao lado de São Bernardo nota-se ainda um olho iluminado
com a inscrição de Beatriz e,
abaixo de Dante lê-se: A alta
fantasia83
, em um livro.
Fora da moldura lê-se
ainda: Empíreo – Esta flor – Vê
Beatriz – A minha visita –
entrava pelo raio – de alta luz –
depois o sonho – minha visão –
luz eterna84
.
Neste canto, obviamente
que as legendas complementam
o sentido da imagem, porém,
não são extremamente
necessárias para o entendimento
da ilustração.
Nota-se aqui o
simbolismo deste livro, que
remete ao livro escrito por
Dante, a Divina Comédia. Diz que é uma alta fantasia, a qual realmente é, uma vez que
é uma viagem ao mundo dos mortos.
Pode-se dizer que esta posição em que se encontra Dante é uma posição de quem
está rezando e, neste caso, ele está vendo Deus, a pedido de São Bernardo. A presença
Virgem Maria simboliza aqui o amor divino. Neste caso, Martini não separou um trecho
do poema para ilustrar, mas utilizou-se de todo ele.
Deste modo, nota-se que a questão religiosa mostrada aqui é que, de acordo com
Dante, todos aqueles que seguirem um caminho reto, de virtudes, consegue ter esse
encontro com Deus. E Martini conseguiu abarcar este sentimento dando vida ao
abstrato, uma vez que não se sabe a forma de Deus.
83
L’alta fantasia 84
Empireo – Questo fiore – Vedi Beatrice – La mia visita – intrava per lo raggio –de l’alta luce – dopo il
sogno – mia visione – luce eterna.
118
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente Tese teve como objetivo o estudo do sagrado e do profano na edição
ilustrada da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), com desenhos de
Alberto Martini (1876 – 1954).
Por meio do estudo minucioso das cenas descritivas tanto do texto poético
quanto das ilustrações, foi possível averiguar as questões sagradas e profanas nas
ilustrações de Alberto Martini.
Para o desenvolvimento desta Tese, foram realizados três capítulos.
Primeiramente, no primeiro, Dante Alighieri e a época da escrita da Comédia, foi feito
um estudo sobre as questões relativas ao poeta florentino e a sua grande obra literária,
tendo tido como subcapítulos Dante Alighieri e a Divina Comédia e A arquitetura da
Divina Comédia. Com a finalidade de esclarecer um pouco sobre as obras e a vida do
poeta foi realizada uma breve biografia dantesca e também um estudo sobre a atualidade
da obra.
No segundo capítulo da presente Tese, A Divina Comédia e a sua relação com
as artes do século XX, foi feita uma relação do poema dantesco com as artes do século
XX, período este no qual está inserido o artista (ilustrador e pintor) que foi o foco desta
pesquisa, Alberto Martini. Como subcapítulos foram realizados A produção de Alberto
Martini e A Divina Comédia ilustrada por Alberto Martini. Assim como no primeiro
capítulo, neste segundo também foi feita uma breve biografia do artista, juntamente com
algumas de suas principais obras, até o momento em que ele fez sua edição ilustrada da
Divina Comédia.
O terceiro capítulo foi dedicado às questões sobre o sagrado e o profano, com
base em Eliade, na obra poética de Dante. Intitulado Sobre o sagrado e o profano na
Divina Comédia, este capítulo subdividiu-se em outros dois, o primeiro A ilustração do
sagrado e do profano do poema dantesco na visão de Alberto Martini, e o segundo As
cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia.
Para o desenvolvimento deste capítulo foram utilizadas a obra de Barthes
(1990) que embasou esta Tese no sentido da leitura da imagem, uma vez que, a partir
119
dela, foi possível averiguar o sentido simbólico que a imagem proporciona. Outro
teórico utilizado foi Aumont (2008), o qual auxiliou a verificar como é a relação entre o
espectador e a ilustração e como a imagem representa o mundo.
Posteriormente aos capítulos, foi realizada ainda uma lista com as principais
obras de Alberto Martini e também as cânticas completas dos cantos (Inf XXXIV; Purg
XII; Par XI; e Par XXXIII) estudados.
Nesse sentido, pode-se afirmar que em sua obra, Martini mostra que seu lado
autoral sempre está muito presente, oferecendo sempre uma questão particular em cada
um dos cantos. Em cada canto que o artista buscou ilustrar são vistas duas ou três
ilustrações, porém existe aquela de maior relevância para ele e que explicita melhor o
que quis demonstrar do canto selecionado.
Um dos recursos utilizados por Martini e que, sem dúvida, acrescenta um estilo
autoral a sua obra ilustrada é o recurso da legenda, onde ele passa a contar a história a
seu modo, utilizando ainda, nesse caso, os versos da Divina Comédia. Deste modo, ele
transforma o texto de Dante Alighieri em uma releitura própria, fazendo uma
ressignificação a partir imagética da obra prima de Dante Alighieri, que já passa a ser a
Divina Comédia de Alberto Martini.
120
5. REFERÊNCIAS
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www.accademiadellacrusca.it
www.oderzocultura.it
124
6. ANEXOS
6.1. Produções artísticas de Alberto Martini
Lista de volumes presentes na Pinacoteca:
1899 La bocca de la maschera, numero unico, edizione del Comitato di
Beneficienza, Treviso.
1904 I canti delle stagioni di Luigi Orsini, Libreria Editrice Lombarda, Milano s.d.
1905 Le commedie di Terenzio, maschere di Alberto Martini, Libreria Editrice
Lombarda A. De Mohr, Antongini e C., Milano, 3 voll.*
1906-07 Copertina per Poesia, rassegna internazionale diretta da F.T. Marinretti,
Milano, anno II, n. 9-10-11-12.
1907 Per la Rinascita, di Luigi Coletti, testate di Alberto Martini, Editrice Zoppelli,
Treviso.
1909 The Life of Edgar Poe di George E. Woodberry, vol. I, illustrazioni di Alberto
Martini, Houghton Mifflin Company, Boston e New York.
1910 Il castello del sogno di C.A. Butti poema tragico, illustrazioni di Alberto
Martini, Edizioni Treves, Milano 1910 Asse terrestre di Valerij Brjusov, Edizioni
Scorpion, Mosca. *
1915-16 Danza macabra europea, cinque serie di cartoline edite dallo Stabilimento
Longo, Treviso.*
1916 Carezze, cartella di otto litografie edita dallo stabilimento Longo, Treviso.
1920 Les Orientales di Victor Hugo, illustrazioni di Alberto Martini, Editore I.
Hetzel, Parigi.
1922 Eliodoro, romanzo d'Etiopia, versione italiana di Umberto Limentani,
frontespizio e copertina di Alberto Martini, A.F. Formiggini Editore, Roma. *
1923 I Misteri di Alberto Martini, cartella di sei litografie originali precedute da un
commento di Emanuele di Castelbarco, Edizioni Bottega di Poesia, Milano.*
1924 Trentun fantasie bizzarre e crudeli, precedute dalla diabolica immagine di
Niccolò Paganini e dall'autoritratto dell'Uomo pallido di Alberto Martini, Edizioni
125
Bottega di Poesia Milano. I primi 165 esemplari contengono la puntasecca
Paganini.*
1924 Il Tetiteatro ovvero il teatro sull'acqua di Alberto Martini, testo di Emanuele di
Castelbarco, Edizioni Bottega di Poesia, Milano.*
1935 La secchia rapita di Alessandro Tassoni, nella redazione più antica secondo la
lezione del codice Sassi, prefazione di Renato Simoni ai 52 disegni eroicomici di
Alberto Martini, testo curato da Cesare Angeli, Modena.
1936 Il Titano liberato di Guido Stacchini illustrazioni di Alberto Martini, Edizioni
de "L'Eroica", Milano. I primi 100 esemplari contengono la puntasecca ll Titano
liberato.*
1937 L'ora mattutina, antologia ad uso delle scuole medie, di Luigi Russo
illustrazioni di Alberto Martini, Editore Giuseppe Principato. Edizione numerata. *
1944 Alberto Martini di Mario Milani, Editore SADEL, Milano. Nel volume sono
inserite le litografie La famiglia del pescatore, Il conte Ugolino e l'arcivescovo
Ruggeri.
1945 La vita della Vergine e altre poesie di Rainer Maria Rilke, litografie originali a
colori di Alberto Martini. Editoriale Italiana, Milano.*
1945 Un mago del bianco e nero di Giorgio Balbi, Editoriale Italiana, Milano. I
primi 25 esemplari contengono l'acquaforte Il boscaiolo e le puntesecche Le figlie di
Leda, Banchetto e Ninfale.
1946 La vita di Cristo, poema grafico di Alberto Martini, Edizioni Cenobio, Milano.
I primi 250 esemplari contengono l'acquaforte Cristo prigione.*
1947 Miti, cartella di dodici puntesecche edita da Il Camino, Milano. * (non tutte)
1949 La Divina Commedia di Dante Alighieri, illustrazioni di Alberto Martini
presentazione di Ettore Cozzani, Edizioni Cenobio, Milano. Alcuni esemplari
contengono le acqueforti Il divino poeta, Vanni Fucci ladro, Pia dei Tolomei e Quel
che d'ogni colpa vince la bilancia. *
1954 Le avventure di Pinocchio, interpretazione di A. Negri, illustrazioni di Alberto
Martini, Edizioni Convivio Letterario, Bergamo.
15 Ex libris di Alberto Martini, cartella di ex libris, Editore Luigi Filippo Bolaffio,
Lenno. Nella cartella è inserita la puntasecca Ex libris Carlo d 'Alessio.
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6.2. Cânticas completas
Inferno XXXIV
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«Vexilla regis prodeunt inferni
verso di noi; però dinanzi mira»
disse 'l maestro mio «se tu 'l discerni».
Come quando una grossa nebbia spira,
o quando l'emisperio nostro annotta,
par di lungi un molin che 'l vento gira,
veder mi parve un tal dificio allotta;
poi per lo vento mi ristrinsi retro
al duca mio; ché non li era altra grotta.
Già era, e con paura il metto in metro,
là dove l'ombre tutte eran coperte,
e trasparíen come festuca in vetro.
Altre sono a giacere; altre stanno erte,
quella col capo e quella con le piante;
altra, com'arco, il volto a' piè rinverte.
Quando noi fummo fatti tanto avante,
ch'al mio maestro piacque di mostrarmi
la creatura ch'ebbe il bel sembiante,
d'innanzi mi si tolse e fe' restarmi,
«Ecco Dite» dicendo, «ed ecco il loco
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«Vexilla regis prodeunt inferni
a nós direitas; pois em frente mira»
disse o mestre «se o teu olhar discerne». E
qual quando espessa névoa se revira
ou, quando o hemisfério nosso anouta,
há moinho que ao longo ao vento gira,
cri de ver um edifício nessa rota;
de vento tal me refugio então
atrás do guia; nem vi outra grota.
Já estava, e o ponho a medo na canção,
lá onde tanta sombra era coberta,
e transparece qual palha em boião.
Muita que jaz; de pé muito se aperta,
esta do cabo, aquela em pé se plante;
outra, como arco, o rosto aos pés concerta.
Quando tínhamos ido tão avante
Que ao mestre meu aprouve de mostrar-me
A criatura que houve o bel semblante,
tirou-se-me da frente e foi parar-me,
«Esta é Dite», dizendo, «e eis o cabouco
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ove convien che di fortezza t'armi».
Com'io divenni allor gelato e fioco,
nol dimandar, lettor, ch'i' non lo scrivo,
però ch'ogni parlar sarebbe poco.
Io non mori', e non rimasi vivo:
pensa oggimai per te, s'hai fior d'ingegno,
qual io divenni, d'uno e d'altro privo.
Lo 'mperador del doloroso regno
da mezzo il petto uscía fuor della ghiaccia;
e piú con un gigante io mi convegno,
che giganti non fan con le sue braccia:
vedi oggimai quant'esser dee quel tutto
ch'a cosí fatta parte si confaccia.
S'el fu sí bello com'elli è or brutto,
e contra 'l suo fattore alzò le ciglia,
ben dee da lui procedere ogni lutto.
Oh quanto parve a me gran maraviglia
quand'io vidi tre facce alla sua testa!
L'una dinanzi, e quella era vermiglia;
l'altr'eran due, che s'aggiugníeno a questa
sovresso 'l mezzo di ciascuna spalla,
e sé giugníeno al luogo della cresta:
e la destra parea tra bianca e gialla;
la sinistra a vedere era tal, quali
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onde convém que a fortaleza te arme».
Como eu fiquei então gelado e rouco,
não perguntes, leitor, que o não derivo
de escrever, que falar seria pouco.
Eu não morri e não me fiquei vivo:
pensa agora por ti, à flor de engenho,
no que fiquei, disto e daquilo esquivo.
Imperador do reino em dor tamanho
saía a meio peito ao gelo baço;
e mais com um gigante eu me convenho
do que os gigantes co ele em cada braço:
já vês como era o todo no reduto
de parte assim formada a tal compasso.
Se belo foi como é agora bruto
e contra quem o fez olhar lhe brilha,
bem deve proceder só dele o luto.
Oh, quanto me pareceu grã maravilha
quando três faces vi em sua testa!
A da frente vermelha se encorrilha;
a cada uma das outras, junta a esta,
em meio a cada ombro se encavala,
e as três se vão juntar na crista em festa:
e amarelece a destra em branco rala;
a sinistra de ver era tal, quais
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vegnon di là onde 'l Nilo s'avvalla.
Sotto ciascuna uscivan due grand'ali,
quanto si convenía a tanto uccello:
vele di mar non vid'io mai cotali.
Non avean penne, ma di vispistrello
era lor modo; e quelle svolazzava,
sí che tre venti si movean da ello:
quindi Cocito tutto s'aggelava.
Con sei occhi piangea, e per tre menti
gocciava 'l pianto e sanguinosa bava.
Da ogni bocca dirompea co' denti
un peccatore, a guisa di maciulla,
sí che tre ne facea cosí dolenti.
A quel dinanzi il mordere era nulla
verso 'l graffiar, che tal volta la schiena
rimanea della pelle tutta brulla.
«Quell'anima là su c'ha maggior pena»
disse 'l maestro, «è Giuda Scarïotto,
che 'l capo ha dentro e fuor le gambe mena.
Delli altri due c'hanno il capo di sotto,
quel che pende dal nero ceffo è Bruto
- vedi come si storce! e non fa motto -!;
e l'altro è Cassio che par sí membruto.
Ma la notte risurge, e oramai
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os que o Nilo percorrem vala a vala.
De cada uma sai par de asas tais,
quanto o pássaro há-de carecê-lo:
velas do mar assim não vi jamais.
Não tinham penas, mas a modo o pêlo
seria de morcego; e as agitava,
do que três ventos dava em atropelo:
e já Cocito todo enregelava.
Com seis olhos chorava e aos mentos rente
baba sangrenta e ranho gotejava.
De cada boca esfacelava a dente
um pecador, ripando-lhe a medula,
e a cada um de três punha dolente.
Era ao da frente a mordedura nula
à esfola comparada, que acarena
sem pele em carne viva toda ondula.
«É a alma que há no cimo maior pena»
o mestre diz, «Judas Iscariote:
cabeça a dentro, as penas desordena.
Das duas que debaixo têm garrote,
Bruto pende do negro focinhudo
- vê como ele se estorce! e não dá morte! -;
e é Cássio o que parece tão membrudo.
Mas a noite regressa e a hora se faz
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è da partir, ché tutto avem veduto».
Com'a lui piacque, il collo li avvinghiai;
ed el prese di tempo e luogo poste;
e quando l'ali fuoro aperte assai,
appigliò sé alle vellute coste:
di vello in vello giú discese poscia
tra 'l folto pelo e le gelate croste.
Quando noi fummo là dove la coscia
si volge, a punto in sul grosso dell'anche,
lo duca, con fatica e con angoscia,
volse la testa ov'elli avea le zanche,
e aggrappossi al pel com'uom che sale,
sí che 'n inferno i' credea tornar anche.
«Attienti ben, ché per cotali scale»
disse 'l maestro, ansando com'uom lasso,
«conviensi dipartir da tanto male».
Poi uscí fuor per lo foro d'un sasso,
e puose me in su l'orlo a sedere;
appresso porse a me l'accorto passo.
Io levai li occhi, e credetti vedere
Lucifero com'io l'avea lasciato;
e vidili le gambe in su tenere;
e s'io divenni allora travagliato,
la gente grossa il pensi, che non vede
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de partirmos, porquanto vimos tudo.»
Seu colo abraço então como lhe apraz;
e ele em tempo e lugar as mãos têm postas;
e quando as asas vão abrindo assaz,
vai agarrar-se a tão felpudas costas:
de velo em velo desce e não afrouxa
por rodopelo e por geladas crostas.
E quando nós chegamos onde a coxa
vai encontrar o lado grosso da anca,
o guia, de fadiga e de congoxa
volta a cabeça onde a perna lhe estanca,
e o pelô agarra já como quem escale,
e eu creio que de novo ao inferno atranca.
«Bem te segures numa escada tal»,
me disse o mestre arfando de cansaço,
«é preciso partir de tanto mal».
E um buraco na pedra fez-lhe espaço
de sair e me foi na orla pousar;
e veio ter comigo a certo passo.
Alcançando os olhos, cri que ia avistar
Lucifer como o eu tinha deixado;
e então o vi de gâmbias para o ar;
e se eu fiquei um tanto perturbado,
a rude gente o pense, que não vê
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qual è quel punto ch'io avea passato.
«Lévati su» disse 'l maestro «in piede:
la via è lunga e 'l cammino è malvagio,
e già il sole a mezza terza riede».
Non era camminata di palagio
là 'v'eravam; ma natural burella
ch'avea mal suolo e di lume disagio.
«Prima ch'io dell'abisso mi divella,
maestro mio», diss'io quando fui dritto,
«a trarmi d'erro un poco mi favella:
ov'è la ghiaccia? e questi com'è fitto
sí sottosopra? e come, in sí poc'ora,
da sera a mane ha fatto il sol tragitto?»
Ed elli a me: «Tu imagini ancora
d'esser di là dal centro, ov'io mi presi
al pel del vermo reo che 'l mondo fora.
Di là fosti cotanto quant'io scesi;
quand'io mi volsi, tu passasti 'l punto
al qual si traggon d'ogni parte i pesi.
E se' or sotto l'emisperio giunto
ch'è opposito a quel che la gran secca
coverchia, e sotto 'l cui colmo consunto
fu l'uom che nacque e visse sanza pecca:
tu hai i piedi in su picciola spera
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que ponto é esse que eu tinha passado.
«Ergue-te», disse o mestre, «fica em pé:
a via é longa e o caminho estreito,
e já o sol na meia-terça é.»
Não era caminhada de preceito
a nossa ali, mas natural viela
de lume fraco e solo assaz desfeito.
«Antes que do abismo onde enregela
me tires», disse eu quando fui erecto,
«tirando-me erros ora me revelo:
o que é do gelo? e este em tal aspecto
posto ao invés? e como em pouca dura,
entre tarde e manhã fez seu tragecto
o sol?» E ele: «Pensas nesta altura
que estás além do centro onde eu prendia
a pele ao verme vil que o mundo fura.
De lá tu foste enquanto eu me descia;
mas quando me voltei tinhas passado
ponto que a todo o peso atrai a via.
E ao hemisfério ora te eis chegado
o oposto ao que recobre a grande seca,
sob o tecto da qual sacrificado,
foi quem nasceu, viveu e em nada peca:
os pés tem postos na pequena esfera
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che l'altra faccia fa della Giudecca.
Qui è da man, quando di là è sera:
e questi, che ne fe' scala col pelo,
fitto è ancora sí come prim'era.
Da questa parte cadde giú dal cielo;
e la terra, che pria di qua si sporse,
per paura di lui fe' del mar velo,
e venne all'emisperio nostro; e forse
per fuggir lui lasciò qui luogo voto
quella ch'appar di qua, e su ricorse».
Luogo è là giú da Belzebú remoto
tanto quanto la tomba si distende,
che non per vista, ma per suono è noto
d'un ruscelletto che quivi discende
per la buca d'un sasso, ch'elli ha roso,
col corso ch'elli avvolge, e poco pende.
Lo duca e io per quel cammino ascoso
intrammo a ritornar nel chiaro mondo;
e sanza cura aver d'alcun riposo
salimmo su, el primo e io secondo,
tanto ch'i' vidi delle cose belle
che porta 'l ciel, per un pertugio tondo;
e quindi uscimmo a riveder le stelle.
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que a outr face faz da vil Judeca.
Se é cá manhã, já lá anoitecera:
e este que a nós co pêlo escada deu,
tão cravado inda está como antes era.
Desta parte tombou vindo do céu;
e a terra que aqui antes se estendia,
do medo que lhe vem fez do mar véu,
vindo ao nosso hemisfério; e então seria
que fugindo, lhe esvaziou ignoto
lugar a que a que ali vês e que ascendia».
Há um lugar a Belzebu remoto
tanto quanto esta gruta já se estende,
que, não por vista, mas por som é noto
de um regato que por ali descende
da boca de um rebordo pedregoso,
rói o curso que faz e pouco pende.
Nesse caminho pouco luminoso
entrámos por voltar ao claro mundo;
e sem cuidar de ter algum repouso,
subimos, antes que ele e eu segundo,
tanto que eu vi enfim as cousas belas
que tem o céu, por um buraco ao fundo;
e saímos voltando a ver estrelas.
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Purgatório XII
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Di pari, come buoi che vanno a giogo,
m'andava io con quell'anima carca,
fin che 'l sofferse il dolce pedagogo;
ma quando disse: «Lascia loro e varca;
ché qui è buon con la vela e coi remi,
quantunque può, ciascun pinger sua barca»;
dritto sí come andar vuolsi rife' mi
con la persona, avvegna che i pensieri
mi rimanessero e chinati e scemi.
Io m'era mosso, e seguía volentieri
del mio maestro i passi, ed amendue
già mostravam com'eravam leggieri;
ed el mi disse: «Volgi li occhi in giúe:
buon ti sarà, per tranquillar la via,
veder lo letto delle piante tue».
Come, perché di lor memoria sia,
sovra i sepolti le tombe terragne
portan segnato quel ch'elli eran pria,
onde lí molte volte si ripiagne
per la puntura della rimembranza,
che solo a' pii dà delle calcagne;
sí vid'io lí, ma di miglior sembianza
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A par, como bois vão à canga, logo
co a alma vou que com tal fardo arca,
enquanto o sofre o doce pedagogo
mas quando ele diz: «Deixa-o, passa, embarca;
aqui é bom com asa e remo, a eito,
quanto pode, cada um levar a barca»;
já para andar o meu corpo endireito,
embora me ficasse o pensamento
vergado, a magicar em vário jeito.
De bom grado seguia em tal momento
os passos de meu mestre, os dois mostrando
como íamos em ágil movimento;
e ele me disse: «Ao solo vás olhando:
bom te será que a via se assegure
vendo o leito que aos pés tu vais pisando.»
Como, por que memória deles dure,
nas tumbas dos sepultos nos lugares
dizer quem foram antes se procure,
e lá regressam choros e pesares,
acicatados já pela lembrança
que só aos pios dá de calcanhares;
assim lá vi, melhor em semelhança
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secondo l'artificio, figurato
quanto per via di fuor del monte avanza.
Vedea colui che fu nobil creato
piú ch'altra creatura, giú dal cielo
folgoreggiando scender da un lato.
Vedea Brïareo, fitto dal telo
celestïal, giacer dall'altra parte,
grave alla terra per lo mortal gelo.
Vedea Timbreo, vedea Pallade e Marte,
armati ancora, intorno al padre loro,
mirar le membra de' Giganti sparte.
Vedea Nembròt a piè del gran lavoro
quasi smarrito, e riguardar le genti
che 'n Sennaàr con lui superbi foro.
O Niobè, con che occhi dolenti
vedea io te segnata in su la strada,
tra sette e sette tuoi figliuoli spenti!
O Saúl, come su la propria spada
quivi parevi morto in Gelboè,
che poi non sentí pioggia né rugiada!
O folle Aragne, sí vedea io te
già mezza ragna, trista in su li stracci
dell'opera che mal per te si fe'.
O Roboam, già non par che minacci
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de engenhoso artifício, figurado
quanto fora do monte a via avança.
Via aquele que foi nobre criado
mais que a outra criatura, vir do céu,
descendo fulgurante sobre um lado.
Via, a um dardo celeste, Briareu
atravessado, caído a outra parte,
do mortal gelo, em terra, que lhe deu.
Via Timbreu, vi Palas e vi Marte,
inda em armas, co pai, a ver o ror,
de membros que aos Gigantes se reparte.
Via Nemrod ao pé do grão lavor
em desvario e a fitar as gentes
soberbas que em Sennnar se lhe hão-de opor.
O Niobè, com que olhos tão dolentes
te via a imagem, a chorar, na estrada,
teus sete e sete mortos inocentes!
O Saul, como sobre a própria espada
aqui surgias morto em Gelboè,
que mais não teve chuva nem geada!
O louca Aracne, assim te via até
que meia aranha, triste se espedace
a obra que ao teu mal já feita é!
O Roboão, imagem que ameace,
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quivi 'l tuo segno; ma pien di spavento
nel porta un carro, sanza ch'altri il cacci.
Mostrava ancor lo duro pavimento
come Almeon a sua madre fe' caro
parer lo sventurato adornamento.
Mostrava come i figli si gettaro
sovra Sennacheríb dentro dal tempio,
e come morto lui quivi lasciaro.
Mostrava la ruina e 'l crudo scempio
che fe' Tamiri, quando disse a Ciro:
«Sangue sitisti, e io di sangue t'empio».
Mostrava come in rotta si fuggiro
li Assiri, poi che fu morto Oloferne,
e anche le reliquie del martiro.
Vedea Troia in cenere e in caverne:
o Ilïòn, come te basso e vile
mostrava il segno che lí si discerne!
Qual di pennel fu maestro o di stile
che ritraesse l'ombre e' tratti ch'ivi
mirar farieno uno ingegno sottile?
Morti li morti e i vivi parean vivi:
non vide mei di me chi vide il vero,
quant'io calcai, fin che chinato givi.
Or superbite, e via col viso altero,
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já não te creio; e cheia de spavento
a leva um carro sem que um outro a cace!
Mostrava ainda o duro pavimento
como Alcméon a sua mãe fez caro
pagar desventurado adornamento.
Mostrava como os filhos, caso raro,
matam Senaqueribe no templo, e o
seu corpo ali deixando ao desamparo.
Mostrava a queda e o massacre impio
de Ciro, a quem Tamira no delírio
diz: «Pedes sangue e dele eu te sacio.»
Mostrava que em derrota foge o Assírio,
depois que Holofernes se assassina,
e também as relíquias do martírio.
Eu via Tróia, em cinzas e ruína;
Ilíon, como tu eras baixa e vil,
vista ali no sinal que te imagina!
Qual de pincel foi mestre ou de buril,
sombras e traços retratando esquivos,
para espanto do engenho mais sutil?
Os mortos, mortos, e os vivos, quais vivos:
não viu mais que eu quem viu por verdadeiro
o que eu calquei a ir de olhos furtivos.
Enchei-vos de soberba, e ide, altaneiro
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figliuoli d'Eva, e non chinate il volto
sí che veggiate il vostro mal sentero!
Piú era già per noi del monte volto
e del cammin del sole assai piú speso
che non stimava l'animo non sciolto,
quando colui che sempre innanzi atteso
andava, cominciò: «Drizza la testa;
non è piú tempo di gir sí sospeso.
Vedi colà un angel che s'appresta
per venir verso noi; vedi che torna
dal servigio del dí l'ancella sesta.
Di reverenza il viso e li atti adorna,
sí che i diletti lo 'nviarci in suso;
pensa che questo dí mai non raggiorna!»
Io era ben del suo ammonir uso
pur di non perder tempo, sí che 'n quella
matera non potea parlarmi chiuso.
A noi venía la creatura bella,
bianco vestito e nella faccia quale
par tremolando mattutina stella.
Le braccia aperse, e indi aperse l'ale:
disse: «Venite: qui son presso i gradi,
e agevole-mente omai si sale.
A questo invito vegnon molto radi:
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o olhar, ó filhos de Eva, alçando o vulto,
para não verdes vosso mau roteiro!
Mas do monte nos era desoculto
e o caminho do sol mais se estendia
que o ânimo pensava não estulto,
quando o que sempre à frente ali seguia
atento, começou: «Levanta a testa;
não é mais tempo de ir em fantasia.
Vês acolá um anjo que se apresta
para vir até nós; e vê que torna
do serviço do dia a serva sexta.
De reverência o acto e o gesto adorna,
que em mandar-nos acima tenha agrado;
e pensa que este dia não retorna!»
Era eu a tal aviso habituado
que tempo não perdesse, e assim naquela
materia o seu falar não é cerrado.
A nós já vinha a criatura bela,
de vestes brancas na face qual
tremeluzindo matutina estrela.
Braços abriu e as asas afinal;
disse: «Os degraus são perto: ora venhais,
que mais fácil subir agora val’.
A tal convite vêm mui poucos mais:
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o gente umana, per volar su nata,
perché a poco vento cosí cadi?»
Menocci ove la roccia era tagliata:
quivi mi batté l'ali per la fronte;
poi mi promise sicura l'andata.
Come a man destra, per salire al monte
dove siede la chiesa che soggioga
la ben guidata sopra Rubaconte,
si rompe del montar l'ardita foga
per le scalee che si fero ad etade
ch'era sicuro il quaderno e la doga;
cosí s'allenta la ripa che cade
quivi ben ratta dall'altro girone;
ma quinci e quindi l'alta pietra rade.
Noi volgendo ivi le nostre persone,
'Beati pauperes spiritu!' voci
cantaron sí, che nol dir'ia sermone.
Ahi quanto son diverse quelle foci
dall'infernali! ché quivi per canti
s'entra, e là giú per lamenti feroci.
Già montavam su per li scaglion santi,
ed esser mi parea troppo piú leve
che per lo pian non mi parea davanti.
Ond'io: «Maestro, di', qual cosa greve
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ó gente humana, ao voo ao céu fadada,
porque é que a pouco vento logo cais?»
Levou-nos onde a rocha era talhada;
aí bateu-me de asas pela fronte;
então me prometeu boa jornada.
Como à direita, por subir o monte
Lá onde assenta a igreja que domina
A bem guiada sobre Rubaconte,
se modera a falésia que se empina
por escada já feita nessa idade
que caderno e medida certa afina;
tal se atenua a escarpa que este invade
do outro giro e abrupta se amontoa,
e os lados da alta pedra rasar á-de.
E nós voltando ali nossa pessoa,
“Beati pauperes spiritu!” vozes
melhor cantam que a fala o apregoa.
Ah, como são diversas estas fozes
das infernais! cá nos acolhe o canto
e lá se têm lamentos só, ferozes.
Já nós subíamos o escadório santo,
e já se parecia ser bem mais leve
do que no chão em que eu fora entretanto.
E eu então: «Mestre, diz que cousa deve
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levata s'è da me, che nulla quasi
per me fatica, andando, si riceve?»
Rispuose: «Quando i P che son rimasi
ancor nel volto tuo presso che stinti,
saranno come l'un del tutto rasi,
fier li tuoi piè dal buon voler sí vinti,
che non pur non fatica sentiranno,
ma fia diletto loro esser sospinti».
Allor fec'io come color che vanno
con cosa in capo non da lor saputa,
se non che cenni altrui sospecciar fanno;
per che la mano ad accertar s'aiuta,
e cerca e truova e quello officio adempie
che non si può fornir per la veduta;
e con le dita della destra scempie
trovai pur sei le lettere che 'ncise
quel dalle chiavi a me sovra le tempie:
a che guardando il mio duca sorrise.
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perder o peso em mim, que é nula quase
a fadiga que em meu andar se inscreve?»
Respondeu: «Quando dos P de apraze,
que ainda tens no rosto, que delidos
como um serão, se apague o resto à frase;
e os teus pés de bom querer vencidos,
não só nem a fadiga sentirão,
mas o deleitará serem movidos.»
Então eu fiz como alguns quando vão
com cousa na cabeça sem saber,
salvo pelos sinais que os outros lhes dão;
e que a mão tacteante vão meter
que busca e acha e cumpre aquele empenho
que não se conseguia por não ver;
e abrindo os dedos da mão destra estranho
achar seis letras só da que me abriu
nas fontes o das chaves, num desenho:
ao que o meu guia, olhando, então sorriu.
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Paraíso XI
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O insensata cura de' mortali,
quanto son difettivi sillogismi
quei che ti fanno in basso batter l'ali!
Chi dietro a iura, e chi ad aforismi
sen giva, e chi seguendo sacerdozio,
e chi regnar per forza o per sofismi,
e chi rubare, e chi civil negozio;
chi nel diletto della carne involto
s'affaticava, e chi si dava all'ozio,
quando, da tutte queste cose sciolto,
con Beatrice m'era suso in cielo
cotanto glorïosa-mente accolto.
Poi che ciascuno fu tornato ne lo
punto del cerchio in che avanti s'era,
fermossi, come a candellier candelo.
E io senti' dentro a quella lumera
che pria m'avea parlato, sorridendo
incominciar, faccendosi piú mera:
«Cosí com'io del suo raggio resplendo,
sí, riguardando nella luce etterna,
li tuoi pensieri onde cagioni apprendo.
Tu dubbi, e hai voler che si ricerna
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Ó cuidar insensato dos mortais,
por quantos defectivos silogismos
fazem que asas ao fundo a dar tu vais!
Quem já por jus e quem por aforismos
porfiava, quem seguiu por sacerdócio,
ou, por força ou sofisma, despotismos,
quem por roubar, quem por civil negócio;
quem no carnal deleite então envolto
se afadigava, e quem se dava ao ócio,
quando, de todas essas cousas solto,
eu acolhido em glória sou no céu,
que Beatriz em tal subida escolto.
Depois que foi cada um tornado a seu
Ponto do círculo em que antes já era,
candeio em candeeiro ali pendeu.
E eu escutei lá dentro essa lumera
que primeiro falara, ora dizendo
a sorrir, pela luz que mais se esmera:
«Assim como eu do raio seu resplendo,
também, olhando agora a luz eterna,
a causa aos pensamentos teus aprendo.
Tens dúvidas e em tal cousa é mister na
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in sí aperta e 'n sí distesa lingua
lo dicer mio, ch'al tuo sentir si sterna,
ove dinanzi dissi 'U' ben s'impingua ',
e là u' dissi 'Non surse il secondo';
e qui è uopo che ben si distingua.
La provedenza, che governa il mondo
con quel consiglio nel quale ogni aspetto
creato è vinto pria che vada al fondo,
però che andasse ver lo suo diletto
la sposa di colui ch'ad alte grida,
disposò lei col sangue benedetto,
in sé sicura e anche a lui piú fida,
due principi ordinò in suo favore,
che quinci e quindi le fosser per guida.
L'un fu tutto serafico in ardorel'altro
per sapïenza in terra fue
di cherubica luce uno splendore.
Dell'un dirò, però che d'amendue
si dice l'un pregiando, quale uom prende,
perch'ad un fine fuor l'opere sue.
Intra Tupino e l'acqua che discende
del colle eletto dal beato Ubaldo,
fertile costa d'alto monte pende,
onde Perugia sente freddo e caldo
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Tão aberta e tão extensa língua,
a teu sentir torná-la mais externa,
“Onde é bem pingue” de entender à mingua,
e onde antes disse “Não surgiu segundo”;
e por ser útil cousa, aqui distingo-a.
A providência, que governa o mundo
com conselho no qual é todo o aspecto
criado vencido antes de ir ao fundo,
por que já fosse ter com seu dilecto
a esposa de quem gritos alto envia
e em bento sangue a desposou de afecto,
segura em si, que dele mais se fia,
dois príncipes ordena em seu favor,
que daqui e dali lhe sejam guia.
Um foi todo seráfico em ardor;
outro por sapiência em terra tem
de querubinea luz um esplendor.
De um já direi, mas de ambos dois porém
dando louvour a um, qualquer se intende
porque a só fim a obra sua vem.
Entre Tupino e a água que descende
do monte eleito do beato Ubaldo,
fértil a costa de alto monte pende,
onde Perugia tem frio e rescaldo
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da Porta Sole; e di retro le piange
per grave giogo Nocera con Gualdo.
Di questa costa, là dov'ella frange
piú sua rattezza, nacque al mondo un sole,
come fa questo tal volta di Gange.
Però chi d'esso loco fa parole,
non dica Ascesi, ché direbbe corto,
ma Orïente, se proprio dir vole.
Non era ancor molto lontan dall'orto,
ch'el cominciò a far sentir la terra
della sua gran virtute alcun conforto;
ché per tal donna, giovinetto, in guerra
del padre corse, a cui, come alla morte,
la porta del piacer nessun diserra;
e dinanzi alla sua spirital corte
et coram patre le si fece unito;
poscia di dí in dí l'amò piú forte.
Questa, privata del primo marito,
millecent'anni e piú dispetta e scura
fino a costui si stette sanza invito;
né valse udir che la trovò sicura
con Amiclate, al suon della sua voce,
colui ch'a tutto 'l mondo fe' paura;
né valse esser costante né feroce,
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de Porta Sole; e por detrás lhe plange
por grave jugo Noccera com Gualdo.
E desta costa, lá onde mais frange
a rispidez, nasceu ao mundo um sol,
como este faz alguma vez no Gange.
E assim desse lugar quem termo arrolhe,
não diga Ascesi, fora curto e torto,
mas Oriente, por dizer de escol.
Não era ainda mui longe do orto,
que começou e fez sentir a terra
de sua grã virtude algum conforto;
que por tal dama, rapazinho, em guerra
do pai incorre, à qual, tal como à morte,
a porta do prazer ninguém descerra;
e então perante a sua espritual corte
et coram patre se lhe fez unido;
depois de dia em dia a amou mais forte.
Esta privada do anterior marido,
mas de anos mil e cem, mesuqinha e escura,
até ele ficou sem prometido;
pouco valeu ouvir que a achou segura
com Amiclas, ao som da sua voz,
esse que o mundo em medo desfigura;
pouco valeu ser tão firme e feroz,
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sí che, dove Maria rimase giuso,
ella con Cristo pianse in su la croce.
Ma perch'io non proceda troppo chiuso,
Francesco e Povertà per questi amanti
prendi oramai nel mio parlar diffuso.
La lor concordia e i lor lieti sembianti,
amore e maraviglia e dolce sguardo
facíeno esser cagion di pensier santi;
tanto che 'l venerabile Bernardo
si scalzò prima, e dietro a tanta pace
corse e, correndo, li parve esser tardo.
Oh ignota ricchezza! oh ben ferace!
Scalzasi Egidio, scalzasi Silvestro
dietro allo sposo, sí la sposa piace.
Indi sen va quel padre e quel maestro
con la sua donna e con quella famiglia
che già legava l'umile capestro.
Né li gravò viltà di cor le ciglia
per esser fi' di Pietro Bernardone,
né per parer dispetto a maraviglia;
ma regalmente sua dura intenzione
ad Innocenzio aperse, e da lui ebbe
primo sigillo a sua religïone.
Poi che la gente poverella crebbe
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que onde Maria ao pés ficou, ou abuso
na cruz com Cristo ela a chorar se pois.
Mas por que eu não pareça assaz escuzo,
Francesco e a Pobreza por amantes
entendas ora em meu falar difuso.
Sua concórdia e seus ledos semblantes,
amor e maravilha e doce esguardo
de santos pensamentos são constantes;
tanto que um venerável qual Bernardo
antes se descalçou e atrás da paz
correu, e a correr, jugou ser tardo.
Oh ignota riqueza! oh bem feraz!
E descalça-se Egídio com Silvestre
atrás do esposo, tanto a esposa apraz.
Então se vai o pai e aquele mestre
co a dama e co a família que se humilha
ligada assim por quem silício a destre.
Nem peito vil seus olhos encarquilha
por ser de Bernardoni geração,
nem por ser desdenhado maravilha;
mas realmente assim dura intenção
a Inocêncio abriu, e este lhe deu
primeiro selo a sua religião.
Quando a pobrinha gente então cresceu
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dietro a costui, la cui mirabil vita
meglio in gloria del ciel si canterebbe,
di seconda corona redimita
fu per Onorio dall'Etterno Spiro
la santa voglia d'esto archimandrita.
E poi che, per la sete del martiro,
nella presenza del Soldan superba
predicò Cristo e li altri che 'l seguiro,
e per trovare a conversione acerba
troppo la gente, per non stare indarno,
reddissi al frutto dell'italica erba,
nel crudo sasso intra Tevere e Arno
da Cristo prese l'ultimo sigillo,
che le sue membra due anni portarno.
Quando a colui ch'a tanto ben sortillo
piacque di trarlo suso alla mercede
ch'el meritò nel suo farsi pusillo,
a' frati suoi, sí com'a giuste rede,
raccomandò la donna sua piú cara,
e comandò che l'amassero a fede;
e del suo grembo l'anima preclara
mover si volse, tornando al suo regno,
e al suo corpo non volse altra bara.
Pensa oramai qual fu colui che degno
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e o foi seguir, cuja vida bendita
cantaria melhor glória do céu,
a coroa redime e deposita
Honório, e o Esprito Santo inspire-o,
na ânsia santa deste arquimandrita.
E pois que pela sede de martírio,
pregou Cristo e os que o seguem à proterva
presença do Sultão em país sírio
porque de mais azeda já observa
a gente à fé, por não ficar em vão,
ao fruto regressou da ítala erva
e entre Arno e Tibre em cru penedo então
foi ter de Cristo o último sigilo,
que dois anos seus membros levarão.
Quando ao que em tanto bem quis investi-lo
Aprouve de trazê-lo a tal mercê,
por se fazer humilde, de alto asilo,
a tanto irmão, que herdeiro justo é,
recomendou a sua dama cara
e encomendou que lhe tivessem fé;
e de seu colo a alma assim preclara
de voltar ao seu reino teve empenho,
e ao corpo outra mortalha não tomara.
Pensarás quem lhe foi por seu engenho
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collega fu a mantener la barca
di Pietro in alto mar per dritto segno;
e questo fu il nostro patrïarca;
per che, qual segue lui com'el comanda,
discerner puoi che buone merce carca.
Ma 'l suo peculio di nova vivanda
è fatto ghiotto, sí ch'esser non puote
che per diversi salti non si spanda;
e quanto le sue pecore remote
e vagabunde piú da esso vanno,
piú tornano all'ovil di latte vote.
Ben son di quelle che temono 'l danno
e stringonsi al pastor; ma son sí poche,
che le cappe fornisce poco panno.
Or se le mie parole non son fioche
e se la tua audienza è stata attenta,
se ciò ch'è detto alla mente rivoche,
in parte fia la tua voglia contenta,
perché vedrai la pianta onde si scheggia,
e vedra' il corregger che argomenta
'U' ben s'impingua, se non si vaneggia'».
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Digno colega no manter da barca
de Pedro em alto mar qual recto lenho;
e esse foi o nosso patriarca,
do que, quem o seguir como comanda,
poderás ver quão boas mercês arca.
Mas seu rebanho já de outra vianda
se fez guloso, assim que não se enjeite
que por diversos saltos não se expanda;
e quanto mais ovelhas dele deite,
e a ir mais longe vagabundas, há no
ovil quando elas voltam menos leite.
Bem dessas há porém que temem dano
e chegam-se ao pastor; mas são tão poucas,
que capa se lhes faz de pouco pano.
E se as minhas palavras não são roucas
e se tua audição há sido atenta,
se quanto dito foi à mente evocas,
tua vontade em parte se contenta,
pois verás onde a planta se ilaqueie
e o corrigir verás porque argumenta:
“Onde é bem pingue quem não devaneie”.»
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Paraíso XXXIII
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«Vergine madre, figlia del tuo figlio,
umile e alta piú che creatura,
termine fisso d'etterno consiglio,
tu se' colei che l'umana natura
nobilitasti sí, che 'l suo fattore
non disdegnò di farsi sua fattura.
Nel ventre tuo si raccese l'amore
per lo cui caldo nell'etterna pace
cosí è germinato questo fiore.
Qui se' a noi meridiana face
di caritate, e giuso, intra i mortali,
se' di speranza fontana vivace.
Donna, se' tanto grande e tanto vali,
che qual vuol grazia ed a te non ricorre,
sua disïanza vuol volar sanz'ali.
La tua benignità non pur soccorre
a chi domanda, ma molte fiate
liberamente al dimandar precorre.
In te misericordia, in te pietate,
in te magnificenza, in te s'aduna
quantunque in creatura è di bontate.
Or questi, che dall'infima lacuna
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«Virgem e mãe, que és filha de teu filho,
humilde e alta mais que criatura,
de eterno querer termo fixo e brilho,
aquela és que a humanal natura
tanto nobilitasse, que o factor
não desdenhou fazer de si feitura.
No ventre teu reacendeu-se amor
e em paz eterna fez que germinasse
a seu calor assim tão bela flor.
Aqui nos és meridiana face
de caridade, e lá, entre os mortais,
és de esperança a fonte mais vivace.
Dona, és tão grande e tanto sobressais,
que quem a ti por graça não recorre,
sua ânsia quer voar sem asas tais.
Benignidade em ti não só socorre
quem pede, e quantas vezes na verdade
liberalmente antes da prece acorre.
Em ti misericórdia, em ti piedade,
em ti magnificência, em ti se aduna
quanto em criatura exista de bondade.
Ora este que dá ínfima lacuna
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dell'universo infin qui ha vedute
le vite spiritali ad una ad una,
supplica a te, per grazia, di virtute
tanto, che possa con li occhi levarsi
piú alto verso l'ultima salute.
E io, che mai per mio veder non arsi
piú ch'i' fo per lo suo, tutti miei preghi
ti porgo, e priego che non sieno scarsi,
perché tu ogni nube li disleghi
di sua mortalità co' prieghi tuoi,
sí che 'l sommo piacer li si dispieghi.
Ancor ti priego, regina, che puoi
ciò che tu vuoli, che conservi sani,
dopo tanto veder, li affetti suoi.
Vinca tua guardia i movimenti umani:
vedi Beatrice con quanti beati
per li miei preghi ti chiudon le mani!»
Li occhi da Dio diletti e venerati,
fissi nell'orator, ne dimostraro
quanto i devoti prieghi le son grati;
indi all'etterno lume si drizzaro,
nel qual non si dee creder che s'invii
per creatura l'occhio tanto chiaro.
E io ch'al fine di tutt'i disii
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do universo viu nesta altitude
cada vida espritual como se auna,
te suplica, por graça, de virtude
tanto, que com os olhos se elevara
mais alto até a última saúde.
E eu peço, e por meu ver não me incendiara
mais do que pelo seu, que não esqueças
a minha prece, e que ela lhe bastara,
por que tu toda a nuvem desvaneças
de tal mortalidade com a prece,
e assim sumo prazer lhe ofereças.
Inda peço, rainha, por benesse,
pois podes o que queres, guardes sãos,
se tanto viu, afectos que professe.
Venças na guarda humanos gestos vãos:
vê Beatriz ali com tanto beato
por minha prece a ti erguendo as mãos!»
Fitando o orador em seu recato,
o olhar que Deus venera e lhe é tão caro
mostra o rogo devoto quão lhe é grato;
então o ergueu a luz do eterno amparo,
ao qual crer não se pode que se envie
por criatura olhar assim tão claro.
E eu que ao termo da ânsia toda vi
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appropinquava, sí com'io dovea,
l'ardor del desiderio in me finii.
Bernardo m'accennava e sorridea
perch'io guardassi suso; ma io era
già per me stesso tal qual ei volea;
ché la mia vista, venendo sincera,
e piú e piú intrava per lo raggio
dell'alta luce che da sé è vera.
Da quinci innanzi il mio veder fu maggio
che 'l parlar nostro, ch'a tal vista cede,
e cede la memoria a tanto oltraggio.
Qual è colui che somnïando vede,
che dopo il sogno la passione impressa
rimane, e l'altro alla mente non riede,
cotal son io, ché quasi tutta cessa
mia visione, ed ancor mi distilla
nel core il dolce che nacque da essa.
Cosí la neve al sol si disigilla;
cosí al vento nelle foglie levi
si perdea la sentenza di Sibilla.
O somma luce che tanto ti levi
da' concetti mortali, alla mia mente
ripresta un poco di quel che parevi,
e fa la lingua mia tanto possente,
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me aproximava, tal como devia,
o fim de tal ardor em mi senti.
Bernardo me acenava e me sorria
por que eu olhasse ao alto; mas eu era
já por mim mesmo como ele queria;
que minha vista vinha assim sincera,
e mais e mais no raio se entranhava
da alta luz que só por si é vera.
Desde então o meu ver mais aumentava
que o falar nosso, que a tal vista cede;
como à memória tal excesso agrava.
Como a quem vê sonhando então sucede
após sonho ficar paixão impressa
e à mente já mais nada retrocede,
assim sou eu que quase toda cessa
minha visão, e ainda me distila
ao coração dulçor que lhe começa;
Assim a neve ao sol se dessigila;
assim ao vento pelas folhas leves
se perdia a sentença de Sibila.
Ó suma luz que já tanto te eleves
dos conceitos mortais, à minha mente
um pouco dês do que mostraste, e a atreves,
língua lhe dando mais eloquente,
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ch'una favilla sol della tua gloria
possa lasciare alla futura gente;
ché, per tornare alquanto a mia memoria
e per sonare un poco in questi versi,
piú si conceperà di tua vittoria.
Io credo, per l'acume ch'io soffersi
del vivo raggio, ch'i' sarei smarrito,
se li occhi miei da lui fossero aversi.
E' mi ricorda ch'io fui piú ardito
per questo a sostener, tanto ch'i' giunsi
l'aspetto mio col valore infinito.
Oh abbondante grazia ond'io presunsi
ficcar lo viso per la luce etterna,
tanto che la veduta vi consunsi!
Nel suo profondo vidi che s'interna
legato con amore in un volume,
ciò che per l'universo si squaderna;
sustanze e accidenti e lor costume,
quasi conflati insieme, per tal modo
che ciò ch'i' dico è un semplice lume.
La forma universal di questo nodo
credo ch'i' vidi, perché piú di largo,
dicendo questo, mi sento ch'i' godo.
Un punto solo m'è maggior letargo
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que uma centelha só da tua glória
possa ficar para a futura gente;
que, por um pouco a ter minha memória,
e por soar um pouco nestes versos,
mais se conceberá tua vitória!
E creio, pois vivi transes imersos
no vivo raio, me perdera assim,
se dele os olhos meus fossem dispersos.
E me recordo mais audaz em mim
ao sustê-los por isso, que acresci
o aspecto meu com o valor sem fim.
Ó abundante graça, presumi
fitar meu viso em tua luz eterna,
enquanto nela a vista consumi!
No seu profundo vi como se interna,
ligado com amor num só volume,
o que no mundo se desencaderna;
substâncias, acidentes, seu costume,
quase em fusão conjunta, e em tal feição
que quanto eu digo é só um simples lume.
A forma universal desta união
creio ter visto assim, porque em mais largos
voos, dizendo-o, gozo a sensação.
Um ponto só me causa mais letargos
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che venticinque secoli alla 'mpresa,
che fe' Nettuno ammirar l'ombra d'Argo.
Cosí la mente mia, tutta sospesa,
mirava fissa, immobile e attenta,
e sempre di mirar facíesi accesa.
A quella luce cotal si diventa,
che volgersi da lei per altro aspetto
è impossibil che mai si consenta;
però che 'l ben, ch'è del volere obietto,
tutto s'accoglie in lei, e fuor di quella
è defettivo ciò ch'è lí perfetto.
Omai sarà piú corta mia favella,
pur a quel ch'io ricordo, che d'un fante
che bagni ancor la lingua alla mammella.
Non perché piú ch'un semplice sembiante
fosse nel vivo lume ch'io mirava,
che tal è sempre qual s'era davante;
ma per la vista che s'avvalorava
in me guardando, una sola parvenza,
mutandom'io, a me si travagliava.
Nella profonda e chiara sussistenza
dell'alto lume parvermi tre giri
di tre colori e d'una contenenza;
e l'un dall'altro come iri da iri
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que vinte e cinco séculos à empresa
em que admirou Neptuno a sombra de Argos.
Assim a mente minha, já represa,
mirava fixa, imóvel e atenta
e sempre de mirar se punha acesa.
Aquela luz assim tanto acrescenta,
que dela desviar por outro aspeito
consenti-lo impossível se apresenta;
porque sendo o querer ao bem sujeito,
todo se acolhe a ela, e fora dela
é defectivo o que aí é perfeito.
Ora mais curta a fala se modela,
só a quanto eu recordo, que a de infante
que na mama da mãe co a língua anela.
Não porque mais do que um simples semblante
fosse no vivo lume que eu mirava,
que tal foi antes qual será adiante;
mas pela vista que, se valorava,
em mim olhando, uma única aparência,
mudando-me eu, em mim se trabalhava.
E na profunda e clara subsistência
do alto lume três círculos vi vir
de três cores e de uma continência;
tal como íris a íris reflectir
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parea reflesso, e 'l terzo parea foco
che quinci e quindi igualmente si spiri.
Oh quanto è corto il dire e come fioco
al mio concetto! e questo, a quel ch'i' vidi,
è tanto, che non basta a dicer 'poco'.
O luce etterna che sola in te sidi,
sola t'intendi, e da te intelletta
e intendente te ami e arridi!
Quella cinculazion che sí concetta
pareva in te come lume reflesso,
dalli occhi miei alquanto circunspetta,
dentro da sé, del suo colore stesso,
mi parve pinta della nostra effige;
per che 'l mio viso in lei tutto era messo.
Qual è 'l geomètra che tutto s'affige
per misurar lo cerchio, e non ritrova,
pensando, quel principio ond'elli indige,
tal era io a quella vista nova:
veder volea come si convenne
l'imago al cerchio e come vi s'indova;
ma non eran da ciò le proprie penne:
se non che la mia mente fu percossa
da un fulgore in che sua voglia venne.
All'alta fantasia qui mancò possa;
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dois eram, e o terceiro era qual foco
que de um e de outro por igual respire.
Como é curto o dizer e como é rouco
a meu conceito! e este, a quanto vi,
é tanto que não basta a dizer «pouco».
Luz eterna que só tens sede em ti,
e a ti entendes, e por ti intelecta
e entendente, te amas, ris assi!
Nessa circulação que assim concepta
parecia em ti lume reflectido,
dos olhos meus um pouco circunspecta,
dentro de si, do próprio colorido,
me apareceu pintada nossa efígie;
do que meu viso nela era embebido.
Qual geómatra todo se corrige
um círculo a medir, e não comprova,
pensando, esse princípio que se exige,
tal era eu naquela vista nova:
ver desejava como se conveio
ao círculo a imagem e onde encova;
mas minhas penas eram curto meio:
que então a mente me era percutida
por um fulgor em que seu querer veio.
Foi a alta fantasia aqui tolhida;