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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES URICÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA O RIO GRANDE DO SUL EM CANTO E CONTO: A VERTENTE REGIONALISTA Mestranda: Vanice Hermel Orientadora: Profª. Dra. Denise Almeida Silva Frederico Westphalen- RS Outubro de 2014

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO

URUGUAI E DAS MISSÕES URI– CÂMPUS DE

FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

O RIO GRANDE DO SUL EM CANTO E CONTO: A VERTENTE REGIONALISTA

Mestranda: Vanice Hermel

Orientadora: Profª. Dra. Denise Almeida Silva

Frederico Westphalen- RS

Outubro de 2014

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Vanice Hermel

O RIO GRANDE DO SUL EM CANTO E CONTO: A VERTENTE REGIONALISTA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de

concentração em Literatura Comparada, como requisito parcial

para a obtenção de Título de Mestre em Letras, sob a orientação

da Profª Drª Denise Almeida Silva.

Frederico Westphalen- RS

Outubro de 2014

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Dedico este trabalho aos meus alunos, os quais eu

reconheço como principais inspiradores da minha

formação profissional.

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Agradecimentos

A Deus, pelo presente da Vida e por tudo o que tem me

proporcionado através dela.

À minha mãe, presença constante em todas as etapas dos meus

estudos.

À família linda que Deus me deu, pelo apoio incondicional. Sou

muito grata, Rodrigo e Antonella, pelos momentos de cumplicidade e

felicidade!

Também agradeço às pessoas que de alguma forma ou de outra

vivenciaram comigo esse momento de escrita, de aprendizado, de

alegrias, de angústias. Lembro, neste momento, dos meus sogros José e

Vera, os quais eu agradeço pelo apoio, pela compreensão e por

entenderem a companhia do computador em nossas férias. Não posso

deixar de agradecer pelos cuidados da Carmem comigo, com a casa e

com a Antonella em todo o período do mestrado.

À professora Denise Almeida da Silva agradeço carinhosamente,

pela atenção, confiança, carinho, palavras, incentivo, sabedoria, pelos

ensinamentos, pela dedicação, pela luz e energia transmitidas durante

todo o percurso da pesquisa. Serei sempre grata, professora!

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras pelo

carinho, pela dedicação e pelos valiosos ensinamentos dispensados a

mim e às minhas colegas.

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De todas as literaturas regionais do Brasil, tenho a

impressão que a gaúcha é a que mais apresenta uma

identidade de princípios, uma normalidade geral

dentro do que é bom, uma consciência de cultura, uma

igualdade intelectual e psicológica, que a tornam

fortemente unida e louvável.

Mário de Andrade (1939).

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RESUMO

Esta dissertação intenta investigar a persistência da vertente regionalista na

literatura gaúcha em dois gêneros literários, o conto e a canção. Propomo-nos a

analisar a função do território - o pampa, na formação da identidade do povo

gaúcho, e a sua representação no conto de vertente gauchesca e na canção regional

produzida no Rio Grande do Sul. O percurso analítico inicia com o registro

da literatura oral, representada pelo Cancioneiro; enfoca o desenvolvimento do

conto na literatura gaúcha, ressaltando sempre a vertente regionalista, e,

especialmente, a visão mitificada do gaúcho e de sua terra. Encerra, novamente,

com a literatura oral, como representada pela canção de vertente regionalista. O

contato estabelecido entre o conto e a canção se justifica porque entendemos que

este segundo gênero, a partir do momento em que se evidencia, no conto, uma

diminuição gradativa da tematização regionalista, constitui-se, na

contemporaneidade, como veículo de manutenção e exploração dos temas antes

explorados pelo conto. O estudo do percurso da evolução da vertente regionalista

no conto foi realizado tomando como base a pesquisa de Gilda Neves Bittencourt,

que distingue quatro nuances distintas no conto regionalista gaúcho; para o estudo

da canção recorremos à periodização da canção gauchesca proposta por Francisco

Cougo Júnior. Através da análise dos contos, comprovamos que, em boa parte de

sua história, conto e regionalismo foram indissociáveis. Desde as primeiras

manifestações românticas, houve uma duração prolongada do regionalismo nesse

gênero, embora tenha havido uma diminuição na prática do conto regionalista, no

que denominamos, seguindo ainda tipologia de Bittencourt, fase intervalar e de

revisionismo crítico. De outro lado, na análise das canções, verificamos a

persistência da vertente regional, porém não de modo uniforme, pois a canção

retoma, na contemporaneidade, desde o Rio Grande pastoril até o Rio Grande

heroico, oscilando motivos da guerra, da violência, êxodo rural, com a idealização

e revisionismo crítico da vida no pago, do próprio mito do centauro dos pampas e

do monarca das coxilhas. Entendemos que este estudo é uma das possibilidades de

leitura que o conto regionalista e a canção nos possibilitam percorrer e, que,

portanto, é uma discussão que não se esgota. Ressaltamos a contribuição desta

pesquisa para o estudo da canção regionalista gaúcha, uma vez que são

encontrados poucos estudos monográficos a respeito.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura gaúcha. Conto. Canção. Mito. Vertente

regionalista.

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RESUMEN

Esta disertación intenta investigar la persistencia de la temática

regionalista en dos géneros literarios, el cuento y la canción. Proponemos a

analizar la función del territorio – el campo, en la formación de la identidad del

pueblo gaucho, y su representación en el cuento de temática gaucha y en la

canción regional producida en el Rio Grande do Sul. El camino analítico de esta

disertación empieza con el registro de la literatura oral, representada por el

Cancioneiro; se centra en el desarrollo del cuento en la literatura gaucha,

resaltando siempre, con destaque, la temática regionalista. El contacto establecido

entre el cuento y la canción se justifica porque entendemos que este segundo

género, a partir del momento en que se evidencia, en el cuento, una disminución

gradual de la tematización regionalista, constituyéndose, en la contemporaneidad,

como vehículo de manutención y exploración de los temas antes explorados por el

cuento. El estudio del camino de la evolución de la temática regionalista en el

cuento fue realizado tomando como base la pesquisa de Gilda Neves Bittencourt,

que distingue cuatro matices distintas en el cuento regionalista gaucho; para el

estudio de la canción recorrimos a la periodización de la canción gaucha

propuesta por Francisco Cougo Júnior. A través del análisis de los cuentos,

comprobamos que, en buena parte de su estória, cuento y regionalismo fueron

indisociables. Desde las primeras manifestaciones románticas, hubo una duración

prolongada del regionalismo en el género, mismo que tenga ocurrido una

disminución en la práctica del cuento regionalista, en el que denominamos, de

acuerdo aún con la determinación de Bittencourt, fase intervalar y de revisionismo

crítico. De otro lado, en el análisis de las canciones verificamos si la persistencia

de la temática regional, no de modo unánime, pues la canción retoma, en la

contemporaneidad, desde el Rio Grande pastoril hasta el Rio Grande Heroico,

mesclando motivos de la guerra, de la violencia en el campo, éxodo rural, con la

idealización y revisionismo crítico de la vida en el ambiente campesino, del

propio mito del centauro de los pampas y del monarca de las coxilhas.

Entendemos que este estudio es una de las posibilidades de lectura que el cuento

regionalista nos posibilita seguir y, que, por lo tanto, es una discusión que no se

agota. De la misma forma, resaltamos la contribución de esta pesquisa en el

estudio específico de la canción regionalista gaucha, una vez que son encontrados

pocos estudios al respecto de la misma.

PALAVRAS-CLAVE: Literatura gaucha. Cuento. Canción. Mito. Vertente

regionalista.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................10

1 A NARRATIVA DO RIO GRANDE PASTORIL E HEROICO: CULTURA,

REPRESENTAÇÃO, HISTÓRIA E MITO......................................................16

1.1 A vertente regionalista: cultura e representação.............................................16

1.2 O Rio Grande pastoril e heroico: uma perspectiva histórica...........................21

1.3 Mito: o gaúcho monarca das coxilhas e o centauro dos pampas.....................27

2. A VERTENTE REGIONALISTA NA LITERATURA GAÚCHA:

CANCIONEIRO, CONTO, CANÇÃO..............................................................32

2.1 A literatura oral: o cancioneiro rio-grandense.................................................32

2.2 O conto regionalista gaúcho.............................................:..............................36

2.2.1 A persistência do conto e o modelo regionalista .........................................36

2.2.2 Nuances regionalistas no conto gaúcho .......................................................38

2.2.3 Desenvolvimento histórico do conto regionalista: da fase transicional à de

renovação...............................................................................................................46

2.3 A canção regionalista gaúcha..........................................................................55

2.3.1 O resgate das tradições: o movimento tradicionalista..................................61

2.3.2 Os festivais: a explosão nativista no Rio Grande do Sul..............................67

2.3.3 De 1980 em diante: Memórias, produção acadêmica e revisionismo..........73

3. A VERTENTE REGIONALISTA EM CONTO E CANTO: O HOMEM, O

ESPAÇO E O TEMPO........................................................................................80

3.1 O CONTO REGIONALISTA.......................................................................80

3.1.1 A idealização do herói gaúcho: Apolinário Porto Alegre.............................81

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3.1.2 Influências real-naturalistas e desaparecimento do herói: Darcy

Azambuja...............................................................................................................90

3.1.3 Tradição e inovação sob o influxo do modernismo: João Simões Lopes

Neto....................................................................................................................... 96

3.1.4 O regionalismo crítico ou social: Cyro Martins..........................................102

3.1.5 A fase de transição: Luiz Carlos Barbosa Lessa........................................108

3.1.6 A nova vertente regionalista dos anos 70: Josué Guimarães......................117

3.2 A PERSISTÊNCIA DA VERTENTE REGIONAL NA CANÇÃO

GAÚCHA............................................................................................................125

3.2.1 Inventando as tradições...............................................................................125

3.2.1.1 Pedro Raymundo......................................................................................126

3.2.1.2 Vitor Mateus Teixeira..............................................................................131

3.2.1.3 Leovegildo de Freitas..............................................................................140

3.2.2 A era dos festivais.......................................................................................149

3.2.2.1 Sergio Napp..............................................................................................151

3.2.2.2 Cesar Escoto.............................................................................................158

3.2.2.3 José Claudio Machado.............................................................................164

3.2.3. A canção regionalista dos anos 1980 em diante........................................168

3.2.3.1Luiz Marenco............................................................................................168

3.2.3.2 Mano Lima...............................................................................................174

3.2.3.3 Jayme Caetano Braum..............................................................................181

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................189

REFERÊNCIAS................................................................................................197

ANEXO...............................................................................................................205

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação intenta delinear a persistência da vertente regionalista na

literatura gaúcha em dois gêneros literários, o conto e a canção. Assim proposta, a

análise atém-se ao estudo da vertente regionalista na literatura gaúcha. Tomamos,

aqui, o qualificativo regionalista como designando uma literatura que, além de

precursora de um tipo humano, o gaúcho do pampa, também marca um espaço

original, a Campanha, espécie de ―habitat‖ genuíno desse homem. O viver telúrico

do gaúcho, num espaço definido e demarcado com rigor, é a grande marca

caracterizadora do discurso regionalista sulino, que se revela empenhado na busca

do matiz regional, enquanto elemento reforçador de uma identidade.

Cientes da importância dessa definição para esse trabalho, alongamo-nos

mais acerca do assunto no capítulo 1; por ora, importa, ainda, ressaltar que a

vertente regionalista é uma das vertentes da literatura gaúcha. Como é sabido, é

possível evidenciar outras vertentes na literatura gaúcha, além da regionalista:

uma social, na qual avulta a prosa urbana, a partir de 1930, uma existencial-

intimista, além da memorialista ou de reminiscência, sem falar na vertente que

explora as memórias dos imigrantes, em narrativas de temática urbana, de feição

psicológica, de introspecção, umas caracterizadas pelo realismo cruel e trágico,

outras pelo fantástico (BITTENCOURT, 1999, p. 59). A lista, evidentemente, não

é exaustiva; cumpre apenas a função de ressaltar que a vertente escolhida não

esgota as possibilidades de realização da literatura gaúcha.

Partiremos do princípio de que o discurso literário é capaz de influenciar

atitudes, comportamentos e interferir na representação da vida político-cultural,

visto que pode ser compreendido como uma manifestação que tem a linguagem

como matéria principal. Afinal, a palavra é capaz de criar e modificar, além de

expressar uma postura, uma cultura, uma ideologia na qual o escritor se coloca em

relação à realidade, à humanidade e à sociedade ao escrever e reler o mundo, em

um processo contínuo de construção, leitura e transformação.

Neste sentido, o ato de produzir literariamente envolve a relação intrínseca

com a história, cultura, indivíduo e grupo social. Na perspectiva de Pozenato

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(1974, p. 22), a literatura é o resultado de uma feitura: é, por isso, um fato e uma

obra. Como fato, ela se alinha com todos os fatos que fazem a história; e, como

obra, é o resultado de um fazer individual e social e, assim, um fenômeno de

cultura. A história e a cultura são, pois, suas fronteiras.

Afirmamos, acima, que este trabalho intenta estudar a persistência da

vertente regionalista na literatura gaúcha; esta, caracteristicamente, abrange a

mitificação do homem e da terra do Rio Grande do Sul. Faz-se, pois, necessário o

esclarecimento desses dois termos. Com referência ao mito e sua percepção no

coletivo, recorremos trabalho a Boschi & Vieira (1986, p. 19) quando esta o

caracteriza como ―uma verdade insofismável que – ao lado dos códigos e

costumes – preside às relações interpessoais e comportamentos individuais de

determinado grupamento humano‖. Assim compreendido, o mito é uma

instituição social, história fundadora e explicativa do mundo. É expresso em única

linguagem possível de determinar as nuances da cultura que o elabora e que ele

representa, porque cada cultura só pode efetivamente se expressar em linguagem

própria.

A construção do mito do gaúcho, em que se dá a passagem do gaúcho-

pária ao gaúcho herói, é verificada no momento em que após a conquista da terra,

o estancieiro necessita do homem socialmente inferior, para defender e executar o

trabalho pastoril na sua propriedade. Assim, conforme Maria Eunice Moreira

(1979, p. 176) ―quando o marginal se torna útil para a classe dominante, é

consagrado como herói‖. Esse redimensionamento enfatiza, pois, a bravura do

soldado, de um lado, e do peão, do outro, consagrando o gaúcho em posição

superior, imprimindo à palavra um sentido de heroísmo e cavalheirismo.

Na literatura, a imagem do gaúcho só se transformou em mito devido à

influência romântica, momento em que a criação do imaginário passa por um

processo de idealização do qual a literatura se apropria, reconstruindo e

reforçando essa ideologia. Ao falarmos em mitificação na literatura,

apontamos para o processo que dá origem ao gaúcho ―centauro dos pampas,‖ e ao

gaúcho ―monarca das coxilhas‖.

O gaúcho centauro dos pampas acha expressão já na literatura oral: ―é

muito conhecido, de grande opinião. Possui traços vigorosos, viris, positivos,

altivo e indomável‖ (MAROBIN, 1985, p. 45). Vive livre, sem limites de tempo e

de espaço. Ao gaúcho monarca das coxilhas, estão associadas as características de

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heroísmo e valentia. Nesse sentido, o monarca representa a figura de um herói

―nobre e valente, arrogante e modesto, ativo e honrado, glória e orgulho do

Brasil‖ (BRASIL, apud MAROBIN, 1985, p. 49).

Julgamos, ainda, necessário afirmar a razão por que, neste trabalho,

utilizamos a denominação ―literatura gaúcha‖ em detrimento do uso da expressão

―literatura-sul-rio-grandense‖. Apoiamo-nos, para isso, no raciocínio de Fischer

(2004), para quem ―literatura gaúcha‖ remete a uma identidade que é autônoma e,

ao mesmo tempo simbólica; diferentemente do termo ―literatura sul-rio-

grandense‖, que designa, meramente, a coordenada espacial. A opção pelo termo

literatura gaúcha, portanto, ressalta o valor simbólico e o viés identitário e, assim,

nos encaminha-nos para a análise que almejamos.

O percurso analítico desta dissertação inicia com o registro da literatura

oral, representada pelo Cancioneiro; enfoca o desenvolvimento do conto na

literatura gaúcha, ressaltando sempre, a vertente regionalista, e, especialmente, a

visão mitificada do gaúcho e de sua terra. Encerra, novamente, com a literatura

oral, como representada pela canção de vertente regionalista.

A canção, considerada como gênero literário, será considerada a partir de

uma perspectiva sócio-histórica, uma arte através da qual o indivíduo reforça seus

laços identitários, ao mesmo tempo em que mantém viva a representação e

mitificação da terra e da gente gaúcha.

Era necessário delimitar um corpus analítico para o presente estudo. Uma

vez que ambicionávamos demonstrar a persistência da vertente analítica através

de sua sobrevivência na canção, era necessário que afirmássemos, inicialmente,

sua existência com clareza. Assim, partimos do conto, gênero no qual a existência

da vertente regionalista já está, reconhecidamente, registrada, em trabalhos como

os de Coutinho (1955), Leite (1978), Zilberman (1980), Cesar (1994), Fisher

(2004), Bittencourt (1999). No entanto, para a coerência lógica deste trabalho, era

necessário que retomássemos este fato; além disso, consideramos que este

trabalho oferece uma contribuição relevante ao registrar essa persistência –

embora não tão frequente, nem predominante, como o foi até os anos 1930 – até

nossos dias, como o atesta o conto de Josué Guimarães aqui analisado.

O estudo do percurso da evolução da vertente regionalista no conto foi

realizado tomando como base pesquisa de Gilda Bittencourt, a qual percebe a

existência de no mínimo quatro regionalismos, os quais, através de diferentes

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nuances, fizeram-se presentes, oferecendo um colorido diverso sem alterar,

contudo, o núcleo central representado pela figura do gaúcho e pelo espaço

ficcional da campanha. O primeiro regionalismo foi o romântico, embasado na

idealização do herói gaúcho, atrelado ao passado guerreiro; o segundo,

denominado de tradicional, com influência real-naturalista, narra as

transformações da sociedade e o desaparecimento do antigo gaúcho; o terceiro

visa transformar a tradição, através do influxo do modernismo baseado no modelo

de Simões Lopes e o quarto, e último, um regionalismo chamado de crítico ou

social que, ao mesmo tempo em que denuncia a decadência da vida campeira,

mostra a proletarização do gaúcho.

Seguindo essa tipologia, selecionamos um conto para ilustrar cada uma

dessas fases, e, portanto, quatro autores, aos quais acrescentamos, ainda, dois

outros, acompanhando o desenvolvimento histórico do conto regionalista no Rio

Grande do Sul. Uma vez que o período de prevalência do conto já fora

contemplado através dos contos selecionados para a análise das três primeiras

nuances regionalistas, selecionamos para análise ainda dois outros contos, através

dos quais evidenciamos o período de transição, em que perdura, na vertente

regionalista, a presença da velha tradição, à qual se ajunta renovação de

linguagem e/ou temática, e outro que demonstra o período de renovação

verificada a partir dos anos 1970. Dessa forma, buscamos acompanhar o percurso

da vertente regionalista no gênero em questão. Sob o olhar da primeira nuance

regionalista, escolhemos o conto ―Monarca das coxilhas‖, de Apolinário Porto

Alegre, dado o importante papel de Apolinário para a configuração da literatura

regionalista gaúcha, pois foi o autor que recuperou a figura do guasca herói já

inscrito no imaginário coletivo através do cancioneiro; como representante do

segundo regionalismo selecionamos o conto ―Velhos tempos‖, de Darcy

Azambuja, pois essa narrativa evidenciou a atualização do regionalismo gaúcho,

através da denúncia da transformação da Campanha diante do processo de

modernização e urbanização. Com relação ao terceiro regionalismo, escolhemos

―Trezentas onças‖, de João Simões Lopes Neto, pelo importante papel

desempenhado por Simões na literatura gaúcha; quanto ao quarto e último

regionalismo da tipologia de Bittencourt, selecionamos o conto ―Tempo de seca‖,

de Cyro Martins, pois nesse conto o herói vai assumir uma nova posição,

apresentando uma vida que ainda se associa ao campo, aos afazeres e lidas

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campeiras, porém em uma sociedade que está decadente frente a nova economia,

apontando para uma nova condição do antigo herói.

Incluímos, ainda, em nosso trabalho o conto ―O boi das aspas de ouro‖, de

Barbosa Lessa, publicado no ano de 1958, para demonstrar a permanência dos

traços regionalistas em meio aos elementos de ruptura, os quais demonstraremos

de modo específico, no capítulo analítico do conto. Por último, evidenciaremos a

renovação no conto regionalista através da leitura ―Cavalo cego‖, de Josué

Guimarães, um dos poucos autores que nos anos 1970 escreve narrativas

regionalistas, porém diferencia-se do modelo vigente no início do século ao narrar

à realidade do antes herói.

Na análise de todos os contos, nossa leitura foi pautada com vistas a

identificar a representação da paisagem campeira, os papeis sociais, a relação

entre patrão e peão, o meio rural e o urbano, os quais fornecem traços distintivos à

representação ficcional da identidade regional gaúcha.

Assim como foram escolhidos critérios para a seleção dos contos, fazia-se,

também, necessário critério para a ordenação de nossa exposição sobre o percurso

histórico do desenvolvimento do gênero canção no Rio Grande do Sul, bem como

para a seleção das canções analisadas. Utilizamos, aqui, a tipologia da canção rio-

grandense utilizada por Cougo (2012), que divide a historiografia da música

gauchesca em três principais fases: a primeira, denominada por ele de: Inventando

as tradições, a qual corresponde o período entre os anos 1948-1971; a segunda

fase, a da Ebulição nativista, que compreende os anos 1971-1980 e, a terceira à

que o autor se refere como Memórias, produção acadêmica e revisionismo, dos

anos 1980 em diante. A partir dessa tipologia, houvemos por bem selecionar

canções lançadas nos períodos indicados, escolhendo compositores (referimo-nos

aos autores das letras, que, em alguns casos, coincidiam com o da música)

representativos de cada fase.

Dessa forma, selecionamos, para a primeira fase, Pedro Raymundo, Vitor

Matheus Teixeirinha e Leovegildo José de Freitas, por considerarmos que foram

esses os poetas que fizeram nascer o estilo regionalista na canção gaúcha e, pela

simplicidade ao cantar o Rio Grande, são ainda fonte de inspiração para novas

gerações de músicos sulinos. Da segunda fase, destacamos justamente

compositores que surgiram em meio ao período dos festivais e que continuam, na

contemporaneidade, cantando a cultura gaúcha: Sérgio Napp, Cesar Escoto e José

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Claudio Machado. Com relação à terceira e última fase, buscamos exemplificar a

persistência da vertente regional nas canções de Luiz Marenco, Mano Lima e

Jayme Caetano Braun, cujas carreiras profissionais foram impulsionadas pelo

motivo regionalista de idealização romântica do gaúcho herói.

A dissertação foi estruturada em três seções. A primeira delas constitui-se

em introdução conceitual, e traz noções fundamentais para o embasamento das

ideias aqui construídas: discutimo conceito de representação, cultura e

regionalismo, bem como resenhamos brevemente o desenvolvimento histórico do

Rio Grande do Sul pastoril e ―heroico‖, visão a partir da qual se construíram os

mitos da monarquia e do centauro dos pampas, conceitos que são, também,

apresentados. No segundo capítulo, delineamos o percurso da vertente regionalista

na literatura gaúcha, iniciando com o registro da literatura oral, representada pelo

Cancioneiro; enfocamos, a seguir, o desenvolvimento do conto na literatura

gaúcha, e, novamente passamos à literatura oral, representada pela canção de

vertente regionalista.

Encerrando a dissertação, e antecedendo à conclusão, o terceiro capítulo

refere-se à proposta analítica, em que primeiramente demonstramos o

desenvolvimento da vertente regionalista no conto e, especialmente, a visão

mitificada do gaúcho e de sua terra até o momento em que observamos a

diminuição de tal tematização, para então, evidenciarmos a

permanência/predominância desta vertente na canção regionalista gaúcha até a

contemporaneidade. Assim organizada, pensamos ser possível investigar a

permanência de uma vertente regionalista na representação do homem e da terra

do Rio Grande do Sul em conto e canto.

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1 A NARRATIVA DO RIO GRANDE PASTORIL E HERÓICO:

CULTURA, REPRESENTAÇÃO, HISTÓRIA E MITO

1.1 A vertente regionalista: cultura e representação

Ao enfocar a vertente regionalista no conto e na canção gaúcha, este

estudo atém-se a uma das possíveis narrativas do Rio Grande do Sul – a do Rio

Grande pastoril e heroico, na qual sobressaem os mitos do gaúcho centauro dos

pampas e do monarca das coxilhas. Nessa narrativa, avulta em importância a

associação do estado do Rio Grande do Sul com a imagem do gaúcho e com um

território – o Pampa, o qual também recebe o nome de Campanha, em virtude de

sua extensão e da predominância das grandes extensões de terra, que se estendem

pelo Uruguai e Argentina. Evidentemente, não há um caráter determinístico entre

a paisagem e a representação de seu tipo humano; porém, como Marobin (1985)

observa, a paisagem externa de uma região, se não determina a paisagem interna,

com a sua temática, ideais, mitos e lendas, ao menos contribui para o seu

condicionamento.

A disposição dos elementos advindos da cor local, do tipo escolhido, da

linguagem e ideologia tem efeito significativo para uma criação literária,

constituindo um efeito de sentido particular, resultado de composição formal que

acaba por revelar o sentido da obra. Constatamos, da mesma forma, o

regionalismo enquanto fator primordial para o reconhecimento e projeção da

literatura gaúcha.

O regionalismo se caracteriza no Rio Grande do Sul a partir de três

elementos principais: o meio geográfico, o tipo – a personagem, e o tempo

histórico. O painel territorial dos campos abertos, sem limites, teve decisiva

influência na formação do imaginário gaúcho. A vinculação entre essa paisagem e

seu habitante é tão intensa que Zilberman assinala: ―a personagem na narrativa

regional confunde-se com o homem da Campanha. O privilégio atribuído a certo

tipo está de antemão associado à valorização de um espaço: o pampa (1980, p.

36)‖.

No percurso histórico deste Estado, emana uma tradição que revela seu

tempo de formação, povoamento e a relação do homem com a terra. O privilégio

do espaço na representação literária constitui-se em um dos fatores determinantes

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para a definição de uma literatura regional: para Lúcia Miguel-Pereira, da cor

local decorre as demais peculiaridades do regionalismo: tipo humano, linguagem e

costumes representados. A autora enfatiza elementos primordiais na formação do

conceito:

Para estudar, pois, o regionalismo, é mister delimitar-lhe o alcance; só

lhe pertencem de pleno direito as obras cujo fim primordial for a

fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia

a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em

ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que

imprime a civilização niveladora (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179).

Também Afrânio Coutinho (1955) enfatiza o valor da ―cor local‖, sem a

constituir, contudo, como o elemento predominantemente distintivo de uma

literatura regional. Coutinho concebe esta última a partir de duas feições: a

primeira, ampla, diz que toda obra de arte é regional quando apresenta como pano

de fundo um lugar ou quando parece brotar desse local particular. Nessa situação,

ressalva, uma obra poderia ser localizada numa região, mas tratar de assunto

universal, de modo que essa particularidade local lhe seria apenas ficcional. Já a

segunda feição aborda o que considera o regionalismo em sentido autêntico: diz

ser regional uma obra que não somente é localizada numa região, como também

retira a sua ―substância real‖ das particularidades deste lugar:

Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural – clima,

topografia, flora, fauna, etc. – como elementos que afetam a vida

humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da

sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta

de qualquer outra. (COUTINHO, 1955, p. 146-147)

A concepção ampla de regionalismo é partilhada por Ligia Chiappini

Morais Leite (1978, p. 155), para quem a obra literária regionalista é ―qualquer

livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais‖, definição que

alguns tentam explicitar enumerando tais peculiaridades: ―costumes, crendices,

superstições, modismo‖ e vinculando-as a uma área do país: ―regionalismo

gaúcho‖, ―regionalismo nordestino‖, ―regionalismo paulista‖ etc. Assim sendo,

poder-se-ia falar tanto de um regionalismo rural quanto de um regionalismo

urbano. Essa mesma autora afirma que toda obra literária seria regionalista,

enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito

ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar. Desse modo, para a

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autora, um regionalismo mais estrito se daria apenas em função da gradação de

intensidade e relevância que o momento e o lugar ocupam em uma obra.

Adotando uma visão menos flexível e, portanto, mais específica, Zilberman

(1980, p. 32) pensa o regionalismo a partir de dois aspectos: um primeiro

denominado a ―cor local‖, o qual denota a insistência de um povo em um espaço,

determinando um tipo humano, desde sua linguagem aos costumes; um segundo,

que se refere à natureza ideológica e enfatiza a influência do meio sobre o

indivíduo, entendendo este como resultado do próprio espaço:

Somente ao cenário é permitida a individualização [...]. Deste modo,

se no coração da totalidade brasileira cabia destacar certo tipo

humano, era porque o local onde vivia tinha acabado por se imprimir

nele, determinando seus hábitos e modos de ser‖ (ZILBERMAN,

1980, p. 32).

Como se vê, a compreensão do regionalismo em uma obra literária está ora

ligada à representação de uma realidade regional, ora à intenção de realizar esta

representação. No primeiro sentido, está evidenciada a presença do elemento

local, mesmo que situado, ou ainda datado; na outra perspectiva, existiria uma

deliberação quanto ao ato de representar literariamente determinada região,

marcada por pressupostos estéticos e ideológicos. Assim a entende, também,

Pozenato (1974, p. 15), que, ao se posicionar sobre o regionalismo, menciona que

―chamar-se-á, pois regionalismo aquela representação do regional que obedece a

um programa, a uma vontade de fazer, a um projeto elaborado segundo as

convenções e a ideologia do que se pode denominar um movimento literário‖. Ao

mencionar a vertente regionalista do conto e da canção, este trabalho alia-se à

visão dos teóricos que compreendem uma intencionalidade no uso da paisagem

regional, à qual se alia um posicionamento ideológico.

Pozenato salienta a importância do relacionamento entre uma peculiar

formação cultural e sua representação literária: ―o fazer que dá origem à cultura

vai impor sua marca também no fazer literário. E todo fazer importa num modus

faciendi, isto é, traz estigma daquele que o constrói. O modo de fazer gaúcho é

que vai caracterizar o modo de cultura e da literatura regionais‖.

Ora, a noção de cultura pode ser interpretada de modos diversos. Roberto

DaMatta (1997) entende que a cultura é a maneira de viver total de um grupo,

sociedade, país ou pessoa. Nessa ―maneira de viver‖ está embutida uma vivência

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comum, que implica regras que foram definidas coletivamente, através de suas

relações sociais. Como estas são cambiantes, ao longo do tempo a construção de

uma cultura corre paralela a sua própria transformação.

Já Martins (2007) ressalta a complexa imbricação entre o individual e o

social e a esfera hegemônica de uma comunidade, ressaltando a função do poder

na formação cultural de um povo. Para o autor, a cultura subdivide-se em três

esferas: a individual, que determina o sujeito enquanto língua, espaço, religião,

liames particulares– ou seja, aquilo que é processado e incorporado, de modo mais

ou menos involuntário, por cada individuo; a coletiva, intimamente associada à

individual, dado que um indivíduo compartilha seus referentes individualizantes

(língua, espaço, etc.) com os demais; ambas, a individual e a coletiva, estão

vinculadas e dependem da configuração elaborada pelo poder, o qual pode ser

visualizado através da cultura pública ou estatal que, por sua vez, organiza a

sociedade, gerenciando o sistema de produção e circulação de ideias.

Outra visão, ainda, é trazida por Silva (2000), a partir do ângulo dos

Estudos Culturais, uma noção que entende cultura como estando intimamente

atrelada à produção de significados: essa visão enfatiza as relações entre

representação e cultura. Hall (2003c), afirma que é a representação que faz a

ligação entre cultura, linguagem e significado, já que cultura poderia ser definida

como o modo pelo qual a linguagem é usada para dizer algo significativo sobre

algo ou alguém, ou para representá-los. Nesse sentido, a representação é parte

essencial do processo pelo qual o significado é produzido entre os membros de

uma cultura, e envolve o uso da linguagem, e os signos e imagens usados para

representar objetos, situações e indivíduos.

A representação envolve dois processos intimamente associados: um

―sistema‖, pelo qual todos os objetos, pessoas e eventos são associados a um

conjunto de conceitos, ou representações mentais, que permitem com que um

indivíduo interprete significativamente o mundo a seu redor; um segundo sistema,

a ele associado, que consiste na constituição de correspondências entre nosso

mapa conceitual e um conjunto de signos, organizados em várias linguagens, que

os representam. Nesse processo, indivíduos que pertencem à mesma cultura

interpretam, de maneira geral, um mapa conceitual semelhante, de forma que

tendem a compartilhar o modo de compreender os signos linguísticos, o que

forma um substrato que permite sua comunicação. Por esse motivo, Hall propõe

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que uma das maneiras de se pensar cultura seja em termos dos mapas conceituais

e sistemas linguísticos compartidos, e dos códigos que governam as relações de

tradutiblidade entre eles. Fala-se, aqui, em tradutibilidade porque os códigos não

são atributos essenciais, mas produtos de convenções socialmente fixadas em uma

dada cultura.

Assim pensada, a cultura é o local de significação em que os grupos

sociais, ainda que em posições diferentes de poder, buscam impor sua

singularidade para a sociedade: ―a cultura é, nesta concepção, um campo

contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a

definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos‖ (SILVA, 2000, p.

133-134).

A cultura fornece um sistema classificatório que estabelece fronteiras

simbólicas entre o que está incluído e o que está excluído; esses processos advêm

da necessidade humana de pertencer a determinado grupo, e seu pertencimento ou

não é resultado de análises comparativas e valorativas. Percebe-se, aqui, mais uma

vez a relação entre língua, cultura e poder, visto que, como descreve Guareschi

(2006) são os discursos, ou seja, as práticas culturais que produzem uma dada

identidade, as quais tomam certos padrões como absolutos, gerando marcadores

excludentes que passam a serem definidos enquanto relevantes:

Ao delimitar comportamentos, modos de ser e agir, os discursos

estabelecem normas, padrões, e, ao mesmo tempo, afirmam e

constituem aquilo que é diferente a esta identidade, que não é apenas o

seu oposto, mas é tudo aquilo que não está incluído nesta referência.

(GUARESCHI, 2006, p. 84).

Dessa forma, ao analisarmos as representações do gaúcho no conto e

canção rio-grandense de vertente regionalista, estamos frente a construções de

pertencimento simbólicas, visões identitárias que afirmam um modo de pensar o

habitante do Rio Grande. Quando se considera a construção do discurso

regionalista do Rio Grande do Sul, é relevante ainda perceber a forma como a

referência ao espaço, enquanto matriz de uma identidade cultural regional, é

construída. De forma geral, não se dá apenas pela descrição física e característica

da paisagem, mas também como pela apresentação da região como espaço heroico

– voltamos, aqui, a considerar como os moradores de uma determinada

comunidade cultural constroem seus valores e significados.

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A vida dos habitantes do pampa – gaúcho primitivo e o colonizador – foi

alicerçada por, principalmente duas características: a definição da fronteira, a qual

fortalecia os sinônimos tanto de afastamento (do resto do país), como de

―bairrismo‖ no inconsciente coletivo dos rio-grandenses; e a sobrevivência no

pampa, que configurou, no gaúcho, as características de homem selvagem e

bárbaro, em virtude da caça bruta e do uso da natureza do pampa como única

fonte de sobrevivência.

Nesse contexto, a responsabilidade diante do território suscitou

posicionamento histórico frente às lutas políticas e às guerras. Ruben Oliven

(1992) descreve o gaúcho como um tipo formado pela inserção do sujeito com o

meio ambiente e pela sua experiência desde muito cedo com a guerra. Segundo

ele, ―o gaúcho é socialmente um produto do Pampa, como politicamente é um

produto da guerra [...]‖ (p.11). Cesar (1971) ressalta mesmo que o gaúcho usou

antes da enxada, a escopeta; antes do trigo, a pólvora. Contudo, se a formação da

identidade gaúcha evidencia, de um lado, a formação guerreira, de outro atrela-se

à vida pastoril como elemento primordial da constituição de sua gente.

A próxima seção resenha a narrativa histórica da formação do Rio Grande,

destacando, juntamente com a descrição da formação pastoril e das guerras que

impactaram no imaginário rio-grandense, bem como a etimologia do termo

gaúcho e sua ressignificação ao longo da história.

1.2. O Rio Grande pastoril e heroico: uma perspectiva histórica

A configuração espacial do território iniciou-se com os povos indígenas,

que foram ao longo do tempo expulsos da terra pelas reduções jesuíticas e pelos

tropeiros, seguidos pelo desenvolvimento das estâncias de criação de gado para

abastecimento da Região Sudeste do Brasil.

A influência dos tropeiros na configuração da história do Rio Grande do

Sul é bem documentada; Augusto Meyer (1957), evidenciando a autoridade dos

arquivos, afirma que, antes do vocábulo gaúcho, o que aparece nos documentos

para designar o habitante do estado é a palavra gaudério, aplicada, segundo ele,

―aos aventureiros paulistas que desertavam das tropas regulares, identificando-se

com a vida rude dos coureadores e ladrões de gado‖ (1957, p. 17).

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Essa atividade marginal exercida pelos gaudérios se estendeu por mais de

um século da história do pampa. Meyer sublinha este tempo narrando o esforço

dos guardas para a repressão: ―os campos, não obstante, continuavam cheio de

―vagabundos,‖ ―changadores‖ e outros desocupados, que viviam dos gados

alheios, do contrabando e da venda de couros e graxa aos portugueses‖ (1957, p.

19).

Ainda de acordo com Augusto Meyer (1957), o viajante Auguste Saint-

Hilaire, que esteve na província do Rio Grande do Sul em 1820, em diversos

trechos referiu-se ao gaúcho como bandido, marginal e pilhador, indivíduo sem

pátria que luta unicamente pelo saque. Da mesma forma, Nicolau Dreys (1839,

apud ZILBERMAN, 1985, p. 20), em sua descrição da província de São Pedro,

nomeou e definiu os tipos humanos por ele conhecidos apresentando uma

diferenciação entre a figura do rio-grandense e do gaúcho. Sobre o rio-grandense,

ele afirmou que ―este é preferencialmente um homem do campo, veste

indumentária característica e manifesta predileção pelo cavalo como meio de

locomoção e companheiro inseparável‖. Porém, segundo sua perspectiva, o

gaúcho era definido como um sujeito sem moral, sem conduta e pudor que se

diverte, sofre, mata e morre com a mesma promiscuidade:

Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm moral social,

senão as ideias vulgares, e, sobretudo uma sorte de probidade

condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz

benefício ou de quem os emprega, ou neles deposita confiança

(MEYER, 1957, p. 21).

Augusto Meyer assegura que o sentido pejorativo da palavra gaúcho

manteve-se quase sem alteração até meados do século XIX:

Azara, Saint-Hilaire, o anônimo de Cinco años em Buenos Aires,

Arsene Isabelle, Alcide D‘Orbigny, todos são concordes em

apresentá-los como homens sem lei nem rei, coureadores,

changadores, gaudérios; os campistas perturbadores da paz, a que se

refere Bettamio, os vagamundos que tanto alarmavam o governador

José Custódio, passados tantos anos, ainda não perderam de todo a

mobilidade espantosa, a insolência andarenga, o cunho abarbarado.

(MEYER, 1957, p. 21).

Meyer sinaliza a importância de se considerar a consciência histórica do

meio em sua relação com a fronteira aberta, ―sujeita a uma revisão de limites que

se prolonga por mais de cem anos, os campos abertos‖ (1957, p. 21). A formação

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do gaúcho de vida solta, de peão pobre em sua disponibilidade marginal, é fruto

de um círculo vicioso que compreende, segundo o autor, ―latifúndio, pastoreio

patriarcal, abundância de gado alçado, fronteira aberta‖ (1957, p. 26), de forma

que pode ser explicada a partir do fator econômico: ―entra na história como

decorrência daquele complexo cultural representado pelo cavalo, o gado alçado e

a valorização do couro, movendo-se num meio de pampas abertas, onde as raias

avançam e recuam‖ (MEYER, 1957, p. 28).

Os primeiros povoadores do território formam, desde o princípio, uma

complexa gama cultural. Cada grupo que aqui chegava trazia consigo a cultura de

origem para demonstrá-la na convivência com as outras. Eram guaranis,

espanhóis, paulistas, lagunistas, mineiros, açorianos, além de outros.

Desde a colonização, o Rio Grande do Sul apresentou uma integração lenta

e frágil. As disputas políticas entre Portugal e Espanha, referentes ao domínio da

região, dificultaram tanto a integração quanto a proximidade do território gaúcho

aos países de língua espanhola. Nesse sentido, a identidade cultural da sociedade

que se forma no sul do país se constituiu de modo paralelo à formação cultural

nacional. Guilhermino Cesar relembra que o Rio Grande do Sul viveu, no

primeiro século e durante o período colonial, momentos instáveis:

Portugal temia perdê-lo; os jesuítas, em primeiro lugar, e os soldados

castelhanos, logo depois, penetraram o pampa pelo Oeste e pelo Sul

dispostos a consolidar a posse da terra para o seu rei. (CESAR, 1971,

p. 29).

Por outro lado, podemos dizer que a localização fronteiriça do estado do

Rio Grande do Sul atribuiu a este espaço a configuração de guardião do

nacionalismo em face dos países vizinhos. Assim, em meio a interesses políticos

traçados pela atração dos povos pela terra de São Pedro em virtude da necessidade

de prover carne a animais de tração para as demais capitanias, a colonização foi

marcada por apreensão e lutas. A sociedade resultante de todos esses impasses foi

fortalecida internamente, e passou a buscar por uma identidade regional e nacional

distintiva, ainda que por isso tivesse que lutar.

O Brasil perdeu a Colônia do Sacramento, mas o Rio Grande do Sul se

tornou uma de nossas províncias; adotou com sacrifício os valores

portugueses comuns à formação nacional, e lutou de armas na mão

para se manter brasileiro.Entretanto, desaparecidos os fatores de

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ordem externa que perturbaram a fixação do seu arcabouço físico,

evoluiu sem deixar de ser o centro de um processo social dos mais

dramáticos, por isso mesmo dos mais ativos na caracterização do

Brasil contemporâneo.(CESAR, 1971, p. 29).

A posição geográfica e as fortes influências externas, frutos da

colonização, ocasionaram o que Maria da Glória Bordini aponta como

―isolamento histórico‖ no Rio Grande do Sul. Este, segundo Cesar (1971, p. 69),

não aconteceu simplesmente no âmbito geográfico e político: ―foi, sobretudo,

cultural‖. De fato, como Cesar observa, o isolamento influiu na formação de uma

identidade forte e autônoma:

A sociedade rio-grandense, acostumada ao sofrimento oriundo da luta

com os espanhóis e do clima ríspido e variável, adquiriu bem cedo,

isolada como se achava no extremo Sul, a certeza de que não podia

esperar grande coisa dos irmãos do Norte. Persuadiu-se de que só

devia contar com suas próprias forças. O isolamento enrijou-a, dando-

lhe energia interior paras superar deficiências e dificuldades. (CESAR,

1971, p. 69)

A relação da Campanha, enquanto lugar praticado, revela, de um lado, a

oscilação das fronteiras e, de outro, geograficamente, os tratados políticos. Diante

disso, a identidade que se forma a partir do espaço tem a influência de vários

aspectos: a paisagem campeira, a condição da fronteira, e as lutas reveladas no

entorno da história.

Foram, entretanto, como sinalizam Boschi & Vieira (1986), as fronteiras

movediças que perduraram por quase dois séculos, em virtude das lutas entre

castelhanos e portugueses, que fomentaram o espírito guerreiro daqueles que

ocuparam a terra: o indivíduo é responsabilizado a defender este espaço, forjando

o que viria a ser o estereótipo de herói. Os ―feitos heroicos‖ praticados na defesa

do pampa vão reafirmando a ideia de um indivíduo superior, e forjando a noção de

um gaúcho sem medo, que pela terra é capaz de superar obstáculos.

Esse primeiro momento, vivenciado desde as origens até por volta do ano

de 1834, demonstra o princípio da formação territorial do Rio Grande do Sul

representado pela luta pela defesa do território. O ano de 1835 marca o início de

uma das guerras mais demoradas do continente americano com duração de 10

anos, a Revolução Farroupilha ou a Guerra dos Farrapos, que ocorreu na província

de São Pedro do Rio Grande do Sul durante o período regencial, entre 1835 e

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1845. Esse foi um conflito regional que objetivava renovar o sistema federalista

através da substituição da monarquia por um regime republicano e, ainda

pretendia separar a província do resto do Brasil, em busca de mais liberdade

administrativa, por parte dos proprietários de terra para a sua província.

Mesmo tendo como nome Guerra dos Farrapos, essa guerra não foi feita

por camponeses ou escravos, mas sim, por grandes proprietários de terras,

estancieiros que lutavam por seu interesse específico sem apresentar, no entanto,

uma proposta de acabar com a escravidão ou melhorar a vida dos camponeses. Os

estancieiros queriam garantir o lucro das grandes fazendas pecuárias e exercer o

poder político do Rio Grande do Sul com mais autonomia. Uma das causas para o

descontentamento de estancieiros eram os altos impostos cobrados no comércio de

couro e charque e, reclamavam ao governo imperial sobre os impostos cobrados a

concorrência Uruguai e Argentina, países onde também se produzia charque e que

pagavam menos impostos do que o próprio Rio Grande do Sul.

Depois de um ano do início da Guerra, as tropas farroupilhas já tinham

registrado diversas vitórias diante das tropas imperiais e, em 11 de setembro do

mesmo ano é proclamada, pelos revoltosos, a República Rio-Grandense. Poucos

anos depois, em 1845, após diversos ataques militares severos, os farroupilhas, já

enfraquecidos e desgastados, firmaram um acordo com o Duque de Caxias em

março de 1845, o tratado do Ponche Verde, que garantiu os interesses dos

revolucionários gaúchos e a hegemonia territorial do império. Com o término da

Guerra dos Farrapos, a recém-proclamada República Rio-Grandense foi

novamente integrada ao Império do Brasil.

A participação do gaúcho nas revoltas alterou sua percepção por parte das

autoridades militares. Como Meyer comenta, enquanto para os capitães-generais,

autoridades e proprietários de terras, o gaúcho não passava de um ladrão e

coureador, para os capitães de milícia e comandantes de tropas empenhados em

guerras de fronteira o gaúcho era sinônimo de bombeiro, alvo para inimigo, e bom

auxiliar. Nas guerras de independência do Prata ou nas campanhas do sul, atuou

como lanceiro, miliciano.

Mais tarde, a palavra ganhou sentidos adicionais: em certo tempo, no Rio

Grande do Sul, para o homem da cidade, ―gaúcho‖ denominava o trabalhador

rural, o peão da estância, o habitante da campanha; na poesia representava o bom

ginete, campeiro destro que se identificava relativamente com o termo guasca,

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monarca. Finalmente, tornou-se nome gentílico que designa todos os nativos do

sul-rio-grandense. Ocorreu, assim, a ressemantização do termo, através da qual

um tipo social que era considerado desviante e marginal foi apropriado,

reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em

símbolo de identidade do Estado (OLIVEN, 1989).

Para Gonzaga, esta mudança de representação no reconhecimento do

gaúcho deu-se por motivos ideológicos. Eram precisos homens para a guerra em

1835. Então, ressaltar suas virtudes e fazê-los acreditar nelas era fundamental para

encorajá-los a servir destemidamente. Assim, ―[...] o peão seria insuflado através

de ‗injeções‘ ideológicas. Absorviam-se os valores da rude vida campeira:

destemor, força, astúcia [...]‖ (GONZAGA, 1980, p. 119).

Boschi & Vieira (1986, p. 25), ao se posicionarem sobre a ressignificação

do termo gaúcho, apresentam uma leitura sobre o nascimento do herói,

relacionando-o também à constituição ideológica advinda do meio. Segundo a

autora, o sinônimo de valentia atribuído ao herói gaúcho fora determinado pelo

meio físico-social; desse modo, a valentia é aceita como condição e, inclusive,

como meio de sobreviver em uma região exposta com frequência a conflitos.

Ainda assim, Boschi & Vieira asseguram que o protótipo fora construído pela

classe dominante com vistas a manter vivo o interesse de muitos pela terra que era

de poucos.

Dessa forma, o gaúcho peão, sem questionar sua função e ainda sentindo-

se devedor de gratidão ao patrão pelo espaço na terra, aceitou o emprego da

violência. No dizer das autoras ―o gaúcho ‗nascido para herói‘, cumpre o destino

de boi, na canga do soberano‖ (1986, p. 25). Boschi & Vieira ressaltam a

ideologia relacionada à terra e à formação do gaúcho através do seguinte

argumento: ―O valente não nasceu da terra; fez-se por ela‖ (p. 25). Segundo elas,

o apelo em favor de uma unidade coletiva elevou o gaúcho do protótipo ao mito.

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1.3 Mito: o gaúcho monarca das coxilhas e o centauro dos pampas

Hall (2003b, p. 62) observa que todas as identidades se localizam em um

determinado espaço e em um tempo simbólico, produzindo ―geografias

imaginárias‖, ―paisagens‖ características, a partir tanto de seu senso de ―lugar‖,

como também de suas localizações no tempo em tradições inventadas que ligam o

passado e o presente: mitos e narrativas de nação que conectam o indivíduo a

eventos históricos no plano nacional.

As primeiras representações do gaúcho na literatura datam entre 1737 e

1896, tendo um forte impulso principalmente a partir de 1835, com a Revolução

Farroupilha. O aproveitamento do homem do campo no plano ficcional – o peão,

o campeiro, e, depois o gaúcho – vai nortear as produções dessa vertente literária.

Este momento vai corresponder a um regionalismo romântico –

retomamos, aqui, a classificação de Pozenato (1974, p. 43), que distingue três

momentos no regionalismo: regionalismo romântico, regionalismo realista e

regionalismo modernista. O regionalismo romântico funda-se através de uma

relação mítica e documentária que visa ao mesmo tempo responder a uma carga

ideológica e a uma convenção estética. A realidade observada aos olhos de um

regionalista romântico – paisagem, tipos, costumes – recebe uma visualização

mítica que a leva para um ―plano de idealidade‖ (p. 43).

É assim que, por exemplo, evidencia-se a representação de uma

democracia no campo, expressa pela relação entre peão e fazendeiros. Tal

harmonia existencial fortalece a idealização e frutifica as matrizes ideológicas da

formação no imaginário popular do Rio Grande do Sul. Nesses textos

regionalistas, há divisão social (fazendeiro e peão), mas não desigualdade, nem

conflito. Acima de tudo, há que valorizar um espaço, e os seres que nele

convivem:

A personagem na narrativa regional confunde-se com o homem da

campanha. O privilégio atribuído a um certo tipo está de antemão

associado a valorização de um espaço: o pampa. Com isto, assumem

importância capital ainda um conjunto de valores e uma estrutura

social. [...] Entre estes dois setores da vida social não há antagonismo,

mas solidariedade, não porque compartilhem as posses materiais – a

estância, o gado – mas porque todos devem demonstrar as mesmas

virtudes humanas. (ZILBERMAN, 1980, p. 36)

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Zilberman ainda salienta (1985, p. 21) que o regionalismo na literatura

encampa a visão do gaúcho, tornando-se uma das facetas de um processo de

valorização da cultura local que se enraizou no Sul e se expressou, de maneira

variada, em diferentes modalidades artísticas, como a música, a dança, as artes

plásticas.

A imagem do gaúcho, guerreiro e peão, é evidenciada primeiramente na

literatura oral, através do cancioneiro popular, no momento em que homem rural é

enobrecido a partir do elogio de suas qualidades como trabalhador, amante e

soldado. Guilhermino Cesar (1971, p. 103) comenta esse processo de mitificação

da imagem do gaúcho no âmbito histórico afirmando que tudo ―conspirou para

conferir ao viver pampeiro expressão e colorido de nobreza patrícia‖. Nos

cancioneiros, o gaúcho apresenta as seguintes características: a revolta; a

solidariedade; a simplicidade; a força; o cavalo como companheiro inseparável, o

gosto pela liberdade, a obstinação à sua sina, a coragem, a valentia, a aversão a

estrangeiros, a honra, a dignidade e a solidão. (1971, p. 103).

A configuração da imagem do gaúcho como representativo do Rio Grande

do Sul deu-se a partir de duas principais esferas: uma, de procedência popular, que

levava em consideração a indumentária e os hábitos e modos de falar, e a outra, de

natureza erudita, que se vincula a associação do gaúcho à figura mítica e a os

fatores históricos integrados a personalidade do gaúcho, como a índole guerreira e

livre constituída em virtude da formação de sociedade pastoril.

Na literatura regionalista gaúcha, a narrativa de uma relação harmônica

entre o homem e o seu espaço corresponde a um processo de mitificação; para

Zilberman (1980, p. 41) ―essa mitificação do espaço e dos objetos que fazem parte

dele explica a universalidade atribuída ao lugar da ação‖, promovendo ao mesmo

tempo a superioridade do homem rio-grandense.

O herói guerreiro é constituído a partir de dois símbolos: ―centauro das

coxilhas‖ e, mais tarde, pelo ―monarca das coxilhas‖. O centauro é reconhecido

pela sua bravura, considerado o gigante destemido. A descrição que faz Oliven do

centauro das coxilhas é exemplar:

Mas o habitante da campanha, o ―índio‖, o ―chiru‖, com que ele

próprio arrogantemente se acoima [...] abrange horizontes mais

amplos; não vacila, não teme, não titubeia Em todas as suas atitudes é

destro, é ágil, é decisivo. A planura, a guerra, o cavalo ensinaram-lhe a

andar, a agir, a correr. Dir-se-ia mesmo que entre ele e o pingo se

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firmou uma aliança de marcha precipitada, para frente. Essas

características incisivas, a surgir em relevos de legenda, elevaram até

bem pouco o homem, na mitologia americana, a altura dos Centauros.

(OLIVEN, 1920, apud ZILBERMAN, 1985, p. 27)

Já ao monarca é conotada a imagem de um mundo positivo, sem males,

plenamente livre. Marobin (1985, p. 46), ao se referir a ambos, centauro e

monarca, afirma que estes ―dominavam altivos, livres, valentes, ciosos de seu

espaço aberto em que exercitavam, dia e noite, a sua robustez, sua monarquia e

sua liberdade‖.

Tão enraizado se tornou esse modo de pensar que, quando da chegada de

imigrantes em 1824 e 1875, é a cultura do gaúcho que vai predominar:

A tradição local possuía suficiente unidade para se impor como padrão

principal de cultura. Depois de um marginalismo inicial, em que as

duas colônias permaneceram com sua vida própria, inclusive a língua

de origem, o processo de integração começa a dar-se pela assimilação,

por parte dos imigrantes, dos valores culturais dos primeiros

povoadores do território. De um modo geral, salvo as peculiaridades

facilmente observáveis, é a cultura do gaúcho que vai servir de

elemento aglutinador dos novos habitantes. (POZENATO, 1974, p.

24)

A predominância da cultura rio-grandense diante das demais não se

justifica apenas por esta ser a mais antiga, mas, segundo Pozenato, também pelo

prestígio já evidenciado e também ―forjado‖ pelos fundadores do território: ―todos

os fundadores de povos acabam se tornando modelo exemplar, padrão de cultura,

para os pósteros‖ (1974, p. 25). Forja-se, assim, um mito de origem.

De fato, não apenas os elementos conscientes, teorizados, são os

responsáveis pela organização da vida social, pois esta depende também de fatores

míticos, mais ou menos difusos, que subjazem a sua elaboração e manifestação

concretas. Para tanto, deve ser conferida atenção especial aos mitos de origem,

como observa Eliade (2006), os quais adquirem força de modelo exemplar quando

referentes a um acontecimento primordial, que teve lugar no começo do tempo.

Como Barthes chama a atenção, o mito efetua uma essencialização dos

fatos, passando da história à natureza:

O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas;

simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e

em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de

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constatação [...] Passando da história à natureza, o mito faz uma

economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a

simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética,

qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo

sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se

ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem

significar sozinhas, por elas próprias. (BARTHES, 1982, p. 163-164).

A constituição de heróis pode ser vista como a forma de obter um espaço

organizado em que é possível viver. De certa forma, é conferida ao fator mítico a

constituição de uma identificação coletiva, motivo pelo qual, o mito pode ser

considerado, de certa, forma uma invenção e uma captura. (POZENATO, 1974,

p. 25). Como Pozenato ainda resenha, uma conjunção de fatores contribuiu para a

formação do mito do gaúcho heroico:

Quando os gaúchos aderem ao ideário romântico brasileiro, que

propunha a criação de uma literatura autônoma, encontram no

passado local, sem indecisões, a fonte da exaltação nativa. Era na

figura do guasca, cercada da grandeza e da imaginação coletiva, e já

―trabalhada‖ pelo cancioneiro popular. Verificou-se, pois o que se

chama de uma feliz convergência de propósitos. Os românticos

tomaram essa figura como receberam, isto é, já idealizada, já dotada

de conteúdo romântico, e a engrandeceram segundo convenções da

escola. Mas, transferiram ao peão da estância as qualidades heróicas

do gaúcho primitivo. (POZENATO, 1974, p. 43)

Por outro lado, Chaves relembra como o interesse dos grandes

proprietários, que precisavam de homens para servir duplamente aos negócios da

estância e à atividade guerreira em defesa da fronteira, sempre ameaçada,

contribuiu para a formação do mito:

[...] nobilitaram o antigo guasca, salteador marginal das planícies

abertas e travestiram-no na imagem idealizada de campeador e

guerreiro. Nasceu assim, mais na imaginação do que na realidade, o

vulto de um herói coletivo: másculo, forte, viril, mulherengo,

destemido diante do invasor, sempre acompanhado de sua montaria

inseparável. (CHAVES, 1994, p. 38).

Assim, pode-se inferir que o gaúcho – centauro dos pampas ou monarca

das coxilhas – é uma invenção construída a partir da ideologia. Eram necessários

muitos homens para trabalhar nas estâncias e defender as fronteiras sulinas: ao

garantir que eles acreditassem na sua força e heroísmo, tornava-se mais fácil fazê-

los zelar pela estância, pelo gado, pelas fronteiras. A partir de uma

supervalorização dos peões, de um heroísmo elevado e inventado, fazia-se com

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que houvesse mão de obra para as estâncias e que os trabalhadores se sentissem

importantes. Criou-se, assim, um tipo humano que até hoje identifica a literatura

no Rio Grande do Sul e os moradores do estado.

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2. A VERTENTE REGIONALISTA NA LITERATURA GAÚCHA:

CANCIONEIRO, CONTO, CANÇÃO.

2.1 A literatura oral: o cancioneiro rio-grandense

A literatura oral, segundo Guilhermino Cesar (1971), foi produzida antes

da chegada dos imigrantes. A maioria das peças do cancioneiro gaúcho remontam

aos primeiros tempos da colonização. Recordemos que os alemães chegaram em

1824, e os italianos em 1875; o período antes dessas datas é apontado pelo autor

como sendo o momento em que a oralidade era manifestação predominante. Sobre

a literatura oral, Cesar (1971) afirma que ela ―mereceu de cada um dos

componentes contribuição muito variável, mas as lendas conhecidas versam na

maioria assuntos da campanha‖ (p. 43), assinalando, desse modo, a preeminência

do pastoreio como fator concorrente na formação da nova sociedade.

A produção do cancioneiro gaúcho está reunida em três importantes

coletâneas: Cancioneiro guasca (1910), organizado por Simões Lopes Neto,

Cancioneiro da revolução de 1835 (1935), documentado por Apolinário Porto

Alegre, e Cancioneiro gaúcho (1952), coletado por Augusto Meyer. A obra

Cancioneiro Guasca foi compilada por Simões Lopes Neto, que utilizou três

fontes principais para a sua elaboração: Anuário da Província do Rio Grande

do Sul, Almanaque literário e estatístico do Rio Grande do Sul e Almanaque

popular brasileiro. Segundo Augusto Meyer (1959, p. 3), além do cuidado de

buscar referencial em vários escritores, Simões consultou a tradição oral, que foi

por ele transformada num ―admirável instrumento de estilo‖.

Guilhermino Cesar (1971) assegura que havia certo ―tratamento‖ poético

que configurava a marca iniludível dos pagos; segundo o autor, havia uma forma

original de acentuar foneticamente imagens advindas da paisagem,

São formas originais de exprimir, acentos fonéticos particulares,

imagens tiradas da paisagem, da flora, da toponímia, dos

acontecimentos locais, e eis aí o relevo particular que nos interessa,

como índice de uma preferência que irá condicionar, de certa maneira,

a produção literária e até mesmo as tendências da maioria dos leitores. (CESAR, 1971, p. 45)

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A produção do cancioneiro ilustra, de modo significativo, a cultura

gaúcha, seja pelos costumes relembrados, seja pela imagem do guasca e sua

postura – Cesar (1971) registra que ―o guasca é sempre positivo e viril‖. Esse

mesmo gaúcho, vencedor de touros, enérgico, leal, não é avesso à confissão de

amor, mas mesmo aí preserva a afirmação da masculinidade, como se pode

observar na quadra de Múcio Teixeira citada por Guilhermino Cesar (1971, p. 47)

em Os Gaúchos: ―Não mandes mais o moleque/ Trazer tanto recadinho/ Põe o

xale na cabeça/ Vai me esperar no caminho‖. Há, também, no Cancioneiro, a

participação do negro, do escravo, o que se explica pelo desprezo, pelo descaso

com que é tratado pelo branco: nos versos, encontravam veículo para a expressão

de suas amargas vivências. Por outro lado, a mulata, na pena de seus outros, é

vista como fonte de desejo, e se constituiu em um dos grandes temas do folclore

gaúcho; o platino, ao contrário, pouco aparece e jamais é exaltado.

Uma das temáticas do cancioneiro é o motivo da monarquia, que expressa

o canto da vida ―semibárbara‖ do gaúcho primitivo: ―o individualismo, o

nomadismo, a liberdade sem peias, a exaltação da coragem pessoal, o amor à

aventura, o culto da monarquia transbordam de cada quadra com vigor

inimitável‖. (p.48) Augusto Meyer (1959, p. 212) afirma que é antigo o motivo da

monarquia como sugestão literária, como se pode perceber no soneto Monarca, de

antes da revolução de 1835, enviado por José Gabriel Teixeira, do Rio do Pardo, à

redação do Anuário de Graciano A. de Azambuja, em 1891, que foi documentado

por Augusto Meyer:

Nos meus pagos sou moço conhecido

Por monarca de grande opinião;

Tenho fama em todo este rincão

E por Deus que sou quebra destemido.

E se houver algum mais presumido.

Que apareça esse grande quebralhão,

Que lhe hei de pisotear no seu garrão

E a rebenque levar esse atrevido.

Sou torena e meio abarbarado

Se me pisam no poncho, já me esquento

E puxo do facão enferrujado

(MEYER, 1959, p. 212)

Para Augusto Meyer (1959), tanto o soneto Monarca quanto o Gaúcho

Forte são documentos que comprovam a persistência do romantismo gauchesco

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no regionalismo gaúcho evidenciando a nostalgia romântica da vida dos

monarcas,

Gauchadas destas tenho feito muitas,

Por isso ela me chamou um dia:

Rei dos monarcas, gauchito em regra,

Por Deus! Eu digo: Que ela não mentia.

(MEYER, 1959, p. 213)

Vemos, através das quadras, a imagem de um gaúcho altivo. No soneto

Monarcas é possível perceber a necessidade do gaúcho se diferenciar dos demais,

expressando, para isto sua força e virilidade, que se opõe, inclusive, à figura de

Deus. No segundo, Gaúcho forte, a personagem é ainda o rei, o sublime mesmo

que desregrado.

Assim como a monarquia, outro tema de fundamental importância para o

cancioneiro é a celebração do cavalo – tema predileto do gaúcho, que, aos olhos

do autor Augusto Meyer (1957, p. 10), está disposto ao lado da mulher e da

coragem pessoal: ―Estou velho, tive bom-gosto/Morro quando Deus quiser/Duas

penas levo comigo: Cavalo bom e mulher‖. Ao cavalo também está associada a

liberdade, independência e convite ao deslocamento para um novo lugar,: ―Ao

botar o pé no estribo/ Meu cavalo estremeceu/ Adeus, morena que ficas/ Quem

vai-se embora sou eu!‖

Até o início da Revolução Farroupilha, na primeira metade do século XIX,

o tipo antropológico do gaúcho havia adquirido feição bem característica, que o

distingue dos demais, na zona fronteiriça, do resto da população. Segundo

Guilhermino Cesar (1971, p. 50), ―quem percorra o cancioneiro gaúcho perceberá

bem viva as pegadas do heroísmo farrapo‖. O cancioneiro preferiu a louvação dos

nomes e feitos, ainda que para isto precisasse exaltar os rebeldes. Para

Guilhermino Cesar, ―a poesia popular, encarando temas e situações pelo prisma

dos sentimentos elementares, não podia, com sobradas razões, ter afinidades com

os defensores da monarquia. Foi toda para Bento Gonçalves, Canabarro,

Garibaldi, Neto, para os gloriosos imprudentes de Piratini, a admiração

enternecida dos cantores. (1971, p. 50)

O poeta anônimo, mesmo depois da derrota ―dos rebeldes‖, fixou junto ao

coletivo a reação afetiva da população. Sobre este fato, Cesar considera que o

cancioneiro exerceu ―seu ofício de bardo‖, ou seja, buscar na sociedade as

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motivações, as grandes paixões, crenças e também desilusões para cantar (1971, p.

50). Assim sendo, considera-se que os cancioneiros recolheram as grandes

paixões, esperanças, crenças e desilusões da coletividade. O lirismo anônimo,

como é denominado por Cesar (1971, p. 62), influenciou a poesia culta através do

valor documental da força genuinamente gaúcha. Cesar afirma que ―a nostalgia do

campo, entre os gaúchos é fator de permanente sugestão lírica‖, acrescentando

ainda que ―não é a nostalgia da paisagem física, mas dos seres humanos, bravos e

fortes, que humanizaram este pago e são recordados com ternura embevecida‖. (p.

62)

Marobin (1985, p. 42), ao analisar a fase da oralidade, considera-a como

de formação do substrato literário; segundo ele o ―mérito‖ desta fase se instala na

atitude de incorporar as estórias populares, de lendas com fundo literário. Segundo

ele, esse substrato literário recebeu contribuições lusas, africanas e indígenas. A

lusa estaria composta pelos elementos do ―amor, alegria, luto, sofrimento, morte;

mescla do sacro e do profano; temática de nostalgia, tristeza pelos que estão

ausentes; mescla e superposição de elementos históricos lusos, árabes e

divagações da fantasia popular‖. De outro lado, as contribuições africanas estão

contidas nas temáticas de ―submissão e desprezo com que era tratado o negro pelo

branco, como se verifica na lenda do ―Negrinho do Pastoreio‖, ―O Negro

Bonifácio‖ e outros‖. Por fim, Marobin (1985) considera que ―a contribuição

guasca marca presença na exuberância animal; espírito positivo e viril; beleza

física; vida andeja e semibárbara; campo aberto, sem fronteiras, sem estradas e

sem cerca de arame farpado‖. (1985, p. 41) Essas fontes continuam, na

perspectiva do mesmo autor, a sustentar as temáticas dos romances e poemas de

cunho regional,

Os escritores fiéis às suas origens voltam-se, constantemente, para

esse subconsciente coletivo do povo simples, e refrontalizam as suas

inspirações, as suas narrativas de fundo regional e universal. Essas

estórias, de forte enraizamento popular, são depositárias de símbolos

das lutas entre o bem e o mal, a felicidade e a desgraça‖. (MAROBIN,

1985, p. 42)

Zilberman também ressalta a contribuição dos núcleos primitivos e,

portanto, populares na tradição poética das primeiras manifestações literárias no

Rio Grande do Sul. Segundo ela, o verso, até o início do século XX, teve maior

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preferência em detrimento da prosa, isto porque haveria no verso maior facilidade

de divulgação. Para a autora, a Província sulina, diferentemente das demais

regiões, cultivou a relação com o ―cancioneiro folclórico‖. A valorização do

mundo gauchesco sempre esteve presente na temática, ocupando-se ―dos motivos

populares e da ideologia da classe latifundiária‖ (1980, p. 11).

Augusto Meyer considera que a formação tumultuada do Rio Grande do

Sul só foi revivida através da simplicidade obtida na tradição da poesia anônima.

Para ele, ―os gritos de peleia devorados pela vastidão das coxilhas, como o sangue

bebido pela terra‖ só foram revividos pela simplicidade disposta pela tradição da

poesia anônima. O autor ainda sublinha que ―a grande revolução, mal esfriaram os

ânimos, entrou logo para o domínio da história‖ (1959, p. 29).

Como se vê, diante das afirmações de Augusto Meyer (1959), Guilhermino

Cesar (1971), Luiz Marobin (1985) e Regina Zilberman (1980), a literatura oral,

através do cancioneiro popular, marca a fase inicial da literatura gaúcha,

fortalecida pelo emprego e valorização de lendas, e anuncia o regionalismo

através da utilização do espaço e da caracterização do tipo sulino.

2.2 O conto regionalista gaúcho

2.2.1 A persistência do conto e o modelo regionalista

Considerado como a forma literária mais praticada nas letras gaúchas

desde o Partenon Literário, o conto teve papel primordial na formação cultural do

Estado do Rio Grande do Sul, fazendo-se presente em todas as etapas do

desenvolvimento literário rio-grandense sem apresentar, inclusive, modificações

cruciais relativas à antiga tradição regionalista até meados do século XX.

Segundo Bittencourt, existem motivos específicos que justificam não só a

preferência pela narrativa curta, mas também a duração mais prolongada do

modelo regionalista no conto rio-grandense. Dentre os motivos mencionados pela

autora, está o fato de o conto ter sua origem na tradição oral e, assim, ser

considerado uma ―forma simples‖, que permanece, sendo narrado através dos

tempos, do mesmo modo que outras narrativas curtas, como a lenda, o mito.

Segundo Bittencourt,

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O aproveitamento do material folclórico e mítico em grande parte dos

contos e o emprego de procedimentos usuais na tradição oral – como a

existência de um narrador que relata a própria experiência, ou o

processo de remeter a história a um espaço atemporal ou mítico –

comprovam essa aproximação tanto com o folclore como com as

chamadas ‗formas simples‘ de André Jolles (1976) (BITTENCOURT,

1999, p. 35).

Ainda com relação à origem do conto na tradição oral, Bittencourt (1999,

p. 35), cita Gotlib (1985), que entende o conto como ―uma forma que permanece

através dos tempos, recontada por vários, sem perder sua forma e opondo-se, pois,

à forma artística, elaborada por um autor, única, portanto, e impossível de ser

recontada sem que perca sua peculiaridade‖.

A capacidade do conto de ser recontado e repassado oralmente sem perder

sua característica original fez com que se tornasse um dos substitutos mais

importantes da tradição oral. Nas comunidades em que circulava, era transmitido

por detentores da experiência e do saber coletivos, os quais funcionavam como

verdadeiros elos condutores na rede de comunicação cultural. Assim foi, também,

na primitiva sociedade sul-rio-grandense, na qual o principal meio de ligação

cultural entre as várias estâncias que formavam o núcleo populacional era o velho

peão:

Uma das características mais notáveis do peão itinerante, dentro de

toda ficção gauchesca, é justamente o seu poder de contar histórias,

sua memória impressionante, capaz de reter os mínimos detalhes, e o

dom de prender a atenção da gurizada e da peonada nos serões

noturnos à beira do fogo nos galpões. (BITTENCOURT, 1999, p. 34-

35)

É justamente da figura do contador oral, que exerceu um papel

fundamental tanto para a gênese do conto quanto para a fixação temática de cunho

regionalista, que provêm os contistas que, através da linguagem literária,

ocuparam-se do viver gaúcho e da construção de suas raízes e singularidades.

Também é a proximidade e a identificação com os casos de galpão outro motivo

que justifica a preferência pelo gênero conto.

Tal preferência, como já assinalado ao início deste capítulo, verifica-se

desde o Partenon Literário, ao qual Guilhermino Cesar credita o nascimento da

primeira geração de escritores regionalistas do Estado, que se deixaram atrair pelo

passado gaúcho. Como Marobin (1985, p. 44) descreve, ―a literatura que

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cultivavam era a regionalista, gauchesca, viril, combativa, de exaltação do herói‖.

Já nessa época, a representação do peão da estância como personagem de

distintiva altivez e coragem corresponde a uma construção ideológica:

O peão de estância, herdeiro do monarca das coxilhas, dos heróis dos

tempos inteiros, o peão já era agora uma desbotada imagem da

liberdade e ousadia do outro, passou a representar para os escritores,

por efeito de uma transposição perdoável, o brio, a altivez, a coragem

pessoal do antigo senhor das savanas. Ocupou aqui o lugar que

coubera ao índio e ao negro na literatura liberal que desde Macedo

enfartava as letras do centro e do norte do país. Para o seu sofrimento,

para a sua resignação de pátria em decadência, caminhou célebre a

imaginação dos nossos artistas. (CESAR, 1971, p.173-174).

Essa geração, a da metade do século XIX, vai descobrir o Rio Grande para

a vida literária, explorar o rico filão de seus costumes, hábitos e tradições, atuando

de modo fecundo no processo para a formação de uma cultura gauchesca: então

aparecem os primeiros textos mitificando o gaúcho e o seu passado campeiro.

Cesar assegura que a escolha pela temática da campanha e manutenção da língua

do peão nas obras não tem apenas a intenção de definir o grupo e a si mesmo: ―a

razão das razões‖ apontada pelo autor é que o artista do Rio Grande ―procurou,

explicando-se, explicar-se ao Brasil‖. (1971, p. 174).

2.2.2 Nuances regionalistas no conto gaúcho

Os primeiros contistas gaúchos regionalistas desenvolveram em seus

escritos uma temática marcada pela valorização das situações de vida da

população na campanha, até porque esta é a fundamentação da literatura dos

pampas. Bittencourt (1999) considera problemático o estabelecimento de uma

periodização do conto gaúcho, uma vez que ela se reduz praticamente a duas

grandes fases: a primeira, essencialmente regionalista, que vai das origens da

literatura sul-rio-grandense até o final da década de 50 do século XX, e a segunda,

contemporânea, que começa com a década de 1960 e se estende até os nossos

dias.

Sabe-se, no entanto, que neste percurso, o regionalismo não se consolidou

como um tipo de representação uniforme, pois, como acentua Bittencourt (1999,

p. 21-22), podem ser observados no mínimo quatro regionalismos, os quais,

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através de diferentes nuances, fizeram-se presentes, oferecendo um colorido

diverso sem alterar, contudo, o núcleo central representado pela figura do gaúcho

e pelo espaço ficcional da campanha. O primeiro regionalismo foi o romântico,

embasado na idealização do herói gaúcho, atrelado ao passado guerreiro; o

segundo, denominado de tradicional, com influência real-naturalista, narra as

transformações da sociedade e o desaparecimento do antigo gaúcho; o terceiro,

que visa transformar a tradição, através do influxo do modernismo baseado no

modelo de Simões Lopes e o quarto, e último, um regionalismo chamado de

crítico ou social que, ao mesmo tempo em que denunciou a decadência da vida

campeira, mostrou a proletarização do gaúcho.

O livro de contos Paisagens (1874), de Apolinário Porto Alegre, assinalou

o início de uma contística regionalista, arraigada à cor local, que se desenrolava

em um espaço restrito, com a pretensão de mostrar os usos, costumes e linguagem

de um tipo humano. Bittencourt (1999, p. 23) afirma que, na leitura desses

primeiros textos, fica evidente a representação de um universo fechado em uma

única região, constituída por dois segmentos principais: os fazendeiros,

proprietários das terras, e os seus subordinados os peões, os quais se mantinham

envolvidos em uma ideologia democrática, uma relação fraterna e igualitária,

[...] patrão e empregado igualavam-se ao tomarem chimarrão na

mesma cuia e ao vestirem-se com as mesmas indumentárias, trazendo

dividendos aos proprietários rurais que ficava, assim, bem-vistos na

sociedade sulina. Da mesma forma, introjetou-se no imaginário

popular do Rio Grande uma imagem de harmonia e unidade que

interessava a essa classe dirigente manter, não só como forma de

controlar as tensões sociais, mas também para obter a coesão e a força

de que necessitava para fazer frente aos inimigos externos.

(BITTENCOURT, 1999, p. 23)

Essa fase inicial, de influência romântica, se empenhou na busca do matiz

regional enquanto elemento reforçador de uma identidade sul-rio-grandense ante o

centro do país. Guilhermino Cesar (1994, p. 29) afirma que ―os primeiros

regionalistas foram impressionados principalmente pelo gaúcho solitário,

marginalizado, entregue a uma atividade aventurosa, numa fronteira agitada pelas

rivalidades entre Portugal e Espanha. A poesia e o romance, o conto e o teatro,

desde o romantismo viram nele a sua ‗matéria‘‖. Ao desenvolver tal argumento, o

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autor narra a idealização do gaúcho através da caracterização do ―monarca das

coxilhas‖ e do ―centauro dos pampas‖.

A segunda fase, apontada por Bittencourt (1999) como momento de

influência do realismo-naturalismo, se instala no conto sul-rio-grandense já nos

primórdios do século XX. Neste regionalismo depurado dos ornamentos e da

idealização romântica, surge o nome de Darcy Azambuja que, ainda que mantenha

o caráter regionalista, passa a apontar para as situações vividas pelo homem do

campo e a crise na terra. Ao lado dele, também está LAF- Luís de Araújo Filho,

com a obra Recordações gaúchas (1905), na qual podemos evidenciar um

registro objetivo da paisagem e dos costumes, em que o gaúcho aparece despido

da ―tralha romântica‖, da ―aura mítica‖ e do ―monarca das coxilhas‖

(BITTENCOURT, 1999, p. 24). O narrador da obra de LAF é considerado por

Chaves (1994) como o antecedente de Blau Nunes, dos Contos gauchescos de

Simões Lopes, cuja primeira publicação foi no ano de 1912.

A obra de Simões, que obteve reconhecimento apenas na sua segunda

edição publicada pela Editora Globo em 1926, fez com que o conto regionalista

rio-grandense atingisse a sua maioridade, servindo de modelo para toda uma

corrente da gauchesca brasileira que se desenvolveu no Rio Grande do Sul ao

longo dos anos 20 e início dos 30. A apreciação da obra de Simões, quatorze anos

após sua publicação inicial, fez-se sob o impacto da influência modernista,

sinalizada por Bittencourt como a terceira fase do regionalismo sulino.

Essa fase, para Bittencourt, com relação ao nível de regionalismo, reforçou

o gosto pelos temas locais, o culto pelas raízes culturais e também pelo patrimônio

histórico: constata-se que tanto Recordações Gaúchas, quanto os Contos

Gauchescos rememoram casos do passado. Bittencourt delineia os principais

traços que inscrevem Lopes Neto dentro de uma tradição regionalista:

O que se constata, inicialmente, é que Simões Lopes não é original na

escolha da temática básica de seus textos, uma vez que eles são ainda

expressões genuínas do regionalismo tradicional, por haver ali uma

intenção explícita de mostrar um espaço físico, particularizado, por

meio de uma prosa mimética. [...] Desta forma, a obra de Simões

conserva a mesma matriz regionalista [...] (BITTENCOURT, 1999, p.

25).

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41

Junto à escolha temática, tem-se, por outro lado, na escrita de Lopes Neto,

―uma confluência de elementos culturais‖, nos quais é possível perceber desde a

herança de Alencar, como a presença do estilo cancioneiro de cantar o

regionalismo até a influência do Partenon e a renovação obtida no naturalismo de

LAF. Essa heterogeneidade, ora nostálgica, ora idealizadora e, ainda, certo cunho

realista na abordagem da causalidade entre os fatos e a sucessão cronológica do

tempo, além da descrição de paisagens e indivíduos, assumem um caráter

diferenciado à literatura do autor:

[...] a utilização do mito do gaúcho ganha um tratamento poético,

diverso de um emprego puramente ideológico; da mesma forma, a

presença de quadros descritivos aparentemente naturalistas está

sempre relacionada a um destino individual, do personagem ou

mesmo do narrador Blau Nunes, ou seja, a ―mancha‖ descritiva não

vale por si só, mas desempenha uma função específica dentro da

narrativa. Por outro lado, o uso de uma voz narrativa interior ao

mundo representado e a consequente perspectiva subjetiva com que a

realidade é narrada, contraria, de certa forma, os padrões do realismo.

(BITTENCOURT, 1999, p. 26)

Lopes Neto conseguiu transferir para suas obras literárias, com

naturalidade, os feitos do típico homem do pampa. Conhecendo o universo das

charqueadas, o escritor pelotense recolheu diretamente de peões, vaqueanos e

estancieiros o material para a sua narrativa. Naturalmente, enlaçou as temáticas à

linguagem popular numa proposta realista de usos e costumes vivenciados pela

população. Bosi (1974, p. 214) menciona que Simões Lopes é o caso ―limite de

uma tradição ou cultura que se encarna em uma sensibilidade riquíssima sem

perder nem desfigurar (ao contrário, sublinhando) seus traços específicos. É o

exemplo mais feliz da prosa regionalista no Brasil antes do Modernismo‖.

A função ideológica da representação mítica do gaúcho e de seu passado

por Lopes Neto foi analisada, ainda, por Leite (1978). Segundo a autora, embora

Simões esteja associado ideologicamente à classe dominante, ele não evidencia

em sua produção os valores e a visão de seu mundo, nem mesmo atribui a este o

poder, pois para ele é sempre o simples peão que recebe a aura heroica. Ao contar

a história a partir da figura do velho e pobre peão e, relativizando o caráter

guerreiro do gaúcho, é possível evidenciarmos na produção de Simões Lopes

Neto, como postula Bittencourt (1999, p. 27), a história do gaúcho a pé que

apareceria mais tarde, nos anos 30. De certa maneira, compreendemos que a obra

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simoniana sugere algo da modernidade ficcional do século 20, pois o tratamento

literário depositado ao elemento local ressalta aspectos regionais e universais,

mantendo, segundo Bittencourt, o seu diferencial regional em seu ―status

literário‖, na sua autonomia estética.

É importante mencionar, no entanto, que antes dessa releitura modernista

de Simões Lopes, mencionada anteriormente, Alcides Maya se destacava por sua

postura crítica, sendo apreciado pela atuação intelectual no panorama cultural

gaúcho. Maya, que desde 1902 pertencia à Academia Rio-Grandense de Letras,

foi o primeiro autor rio-grandense a ser eleito pela Academia Brasileira de Letras,

em 1913. Com sua obra ficcional composta de um romance e dois livros de

contos, esse autor segundo Bittencourt (1999, p. 28) ―de certa forma, antevê a

nova forma regionalista que vigoraria a partir do terceiro decênio do século,

particularmente no romance‖.

No livro de contos Tapera, de 1911, sob o prisma de Bosi (1974, p. 214),

Maya serviu-se da matéria regional para projetar uma preocupação de estilo

―elegante‖ e frondoso, caro à literatura da época: Maya era um caso extremo de

mistura parnasiano-regionalista, incapaz de abrir caminhos para sua escrita, ao

contrário de Simões Lopes Neto. Embora seus escritos centralizem o gaúcho

decadente, despreparado para a nova realidade advinda do progresso, o autor

continua romântico ao narrar, com nostalgia, a deterioração do homem do campo

outrora mitificado. Bittencourt (1999, p. 28) considera que, nessa nostalgia e

nesse saudosismo, o autor ―continua prestando tributo ao mito primitivo‖.

Diferentemente de uma postura realista, pontes são lançadas em direção ao

passado, as quais tornam viva a essência inicial do regionalismo em busca ―de um

tempo perecido‖.

No entanto, a melancolia narrada por Maya não agradou à nova geração de

intelectuais, já influenciada pelas ideias modernistas, que propunham o modelo de

Simões para a superação da realidade gaúcha. Bittencourt adverte que:

Na verdade, a intenção de modernização do regionalismo gaúcho,

inerente a essa ―geração de novos‖ dos anos 20, não seguia um projeto

específico e bem fundamentado, obedecendo muito mais ao desejo,

difundido igualmente pela Semana de 22, de romper com tudo que

representasse o passadismo. (BITTENCOURT, 1999, p. 29)

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O reconhecimento da permanência do viés regionalista tradicional, de

motivo idealizador, em ambos os autores, imbuído de descrições detalhadas e

linguagem ornamentada, denota que a renovação buscada ocorreu muito mais no

plano intencional do que na prática. Mesmo o grande modelo dessa onda

regionalista dos anos 20, Simões Lopes Neto, manifesta-se ―naquilo que nele era

comum ao regionalismo anterior - a idealização do passado heróico, o telurismo e

a visão mítica do gaúcho.‖ (BITTENCOURT, 1999, p. 29). Assim, a pretendida

adesão ao modernismo, resultou na retomada do tom exaltatório e da essência

regionalista presentes desde a literatura produzida pelo grupo do Partenon

Literário no século XIX.

A vertente regionalista na prosa de ficção de Apolinário Porto Alegre,

Alcides Maya e João Simões Lopes Neto recebeu de Guilhermino Cesar a

definição de ―Idade de Ouro‖, pois, para esse autor, a prosa de ficção gaúcha deste

tempo fixou, pela primeira vez, sua identidade dentro do quadro mais amplo da

literatura brasileira. Bittencourt lembra a opinião de Lígia Leite (1978, apud

BITTENCOURT, 1999, p. 30), segundo a qual havia um propósito ideológico

nesta ―revivescência‖ do regionalismo, pois os contos dos anos 20 apresentavam

―um misto de função doutrinária, utilitária e imediatista‖ e pretendiam ―divulgar‖

os valores gaúchos, ocupando-se da mitologia regional, com vistas a projetar

política e economicamente o estado do Rio Grande do Sul junto ao poder central.

Esse fundo ideológico que permeia o regionalismo é observado não somente na

literatura, como também na cultura de um modo geral.

Essa utilização ideológica, imbricada igualmente no folclore e no

cancioneiro popular, introjetou, desde cedo, o imaginário rio-

grandense, um conjunto de valores e ideias que interessava à classe

dominante manter, como forma de preservar a sua hegemonia. Assim,

uma literatura autenticamente gaúcha seria aquela fundamentada nos

valores que representassem, na memória popular rio-grandense,

determinados arquétipos culturais já enraizados na sua tradição.

(BITTENCOURT, 1999, p. 33).

O fortalecimento da cultura regional é reflexo, também, do isolamento do

Rio Grande, que fez com que acreditassem que a única literatura autenticamente

gaúcha seria a que abordasse as questões regionalistas, que já a essa época não

predominavam, dada a nova realidade sócio-econômica. Porém, até o início do

século 20, faziam parte do acervo cultural rio-grandense todos os elementos

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inerentes à vida no campo, o que vinha a caracterizar a região da campanha como

a fatia mais importante da vida sulina, pois, à época, o urbano ainda era precoce e

pouco representativo.

Distante das influências urbanas e, consolidada como cultura dominante

nos dois primeiros séculos, a civilização rio-grandense, envolta pelo seu passado

heroico das lutas de fronteiras, contribui para solidificar os mitos e as tradições.

Nesse contexto, era natural, também, como postula Pozenato (1974, p. 40), ―que a

gauchesca fosse a representação artística daquela cultura mais amplamente

estabelecida e reconhecida no Estado‖.

Ainda com relação à persistência da vertente regional na contística sulina,

soma-se, segundo Bittencourt (1999, p. 36) a ordem editorial, que contribui em

grande escala para prolongar tal tradição. Até a metade do século 20, no Rio

Grande do Sul, o mercado editorial era bastante restrito, uma vez que se resumia à

atuação da Livraria do Globo. Em Porto Alegre, desde a década de 1920, a livraria

do Globo vinha desenvolvendo um trabalho importante, funcionando,

praticamente, como um centro cultural.

A partir da década de 1930, contudo, a Globo, já consolidada enquanto

editora, substituiu a produção local pela tradução de obras da literatura mundial.

Na linhagem ficcional, apenas as narrativas curtas (novela ou conto) dos autores

gaúchos, na sua grande maioria de temática regional, eram publicadas. Isto

porque, tanto o poder quanto o setor intelectual formavam um bloco homogêneo

que dominava a produção literária também em seu processo de transmissão,

gerando, praticamente, um monopólio da literatura regionalista, praticada pela

maioria do ―Grupo da Globo‖. Esse grupo, de acordo com Bittencourt (1999, p.

37) era formado pela elite intelectual, muitos deles comprometidos com o setor

dominante, em virtude, de suas próprias origens e de suas ligações com a política

do estado.

Ressaltamos, no entanto, que diferentemente do conto, a poesia e o

romance romperam com a antiga tradição literária, sob a influência do movimento

modernista a partir do final dos anos 20. Ainda assim, há que se mencionar que

essa adesão à nova corrente não foi imediata, nem mesmo houve uma quebra

radical com os antigos propósitos devido ao enraizamento do simbolismo na

poesia e do regionalismo na ficção. A poesia, segundo Gilda Bittencourt (1999),

por meio de um processo evolutivo contínuo, acompanhou as mudanças vindas de

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outros países, as quais podem ser visualizadas pela consistência na adesão do

movimento simbolista e, depois, pela adoção dos princípios modernistas

sinalizados pela Semana de 22. A ficção romântica, por sua vez, apresentou

também a fuga do localismo através de produções diversificadas que passaram a

evidenciar narrativas urbanas, sentimentais e de costumes, a luz de modelos

europeus.

À medida que a relação campo/cidade aflora, tem-se no conto sul-rio-

grandense uma modificação do tipo humano. O antes peão ou estancieiro é agora

um morador da cidade, que discute a sua classe social, não tem a terra a sua

disposição para subsistência e se submete a um patrão mais exigente. O homem,

nesse espaço, será visualizado numa relação problemática de perda e

despertencimento. Os pobres-diabos, imigrantes, o proletariado urbano e sua luta

pela sobrevivência e permanência são parte do painel humano das narrativas

seguintes.

Esse momento é evidenciado por Bittencourt como o quarto e último

regionalismo, o qual registra uma escrita de denúncia com relação à sociedade

campeira, narrando a proletarização do gaúcho. Se a anterior literatura gaúcha de

vertente regionalista caracterizara-se pela temática associada à terra, com a nova

narrativa as formas e as abordagens foram diversificadas e ampliadas, como

sinaliza Zilberman:

O Rio Grande do Sul, em processo de modernização e urbanização

paulatina, mas irreversível, assiste ao aparecimento de nova geração

de escritores, que atua sob condições diferentes: as cidades prosperam,

a instrução pública se expande, a literatura tem oportunidades

crescentes de difusão. Os temas se generalizam, rompendo-se o

monopólio do veio gauchesco. E o Regionalismo dispõe-se a

responder aos novos tempos. (ZILBERMAN, 1985, p. 31)

Os escritores sul-rio-grandenses, ao enveredarem para esta linha, passam a

refletir sobre a situação social, ideológica e econômica do povo, tanto que, seis

décadas depois, isso ainda continua prevalecendo na obra sul-rio-grandense. O

papel da literatura, agora é criar um valor essencial à história. E nesse âmbito,

como propõe Zilberman (1985, p. 35), não existe mais uma ligação/convivência

entre a produção e o universo de que se fala. O ser mítico, neste momento, assume

nova significação: ―manifesta a cisão do indivíduo, os conflitos que o dividem e

que não alcançam conciliação senão no mito‖.

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2.2.3 Desenvolvimento histórico do conto regionalista: da fase transicional à

fase de renovação

Embora Bittencourt, perceptivamente, não julgue adequado estabelecer

uma periodização com relação ao conto gaúcho, distingue algumas fases em sua

evolução. A primeira, de prevalência do conto de viés regionalista, corresponde ao

que Guilhermino César chama de ―Fase de Ouro‖, e já foi enfocada, neste

trabalho, ao descrevermos as nuances do conto regionalista com relação aos

autores das primeiras décadas do século XX.

Especialmente a partir da década de 1930, porém, inúmeras

transformações nacionais produziriam efeitos no estado do Rio Grande do Sul.

Esse pano de fundo histórico desencadeou novas possibilidades temáticas,

discutindo os novos valores circundantes do universo gaúcho. A década de 1930

assinala, segundo Bittencourt (1999, p. 30), ―o decréscimo da participação do

conto na literatura gaúcha, após dois decênios de uma produção significativa do

gênero e suas variações. Essa hegemonia é substituída, nos anos 30, pelo

romance‖.

A nova configuração social, advinda do espaço representado pela cidade,

e, a emergência de assuntos apoiados no presente e em seus problemas, enfim, a

realidade de cunho urbano, fez com que novos escritores surgissem. Ao referir-se

à predominância do romance sobre o conto, Zilberman associa a emergência

romanesca no sul à que ocorre no panorama nacional:

O surto de romances na década de 30, no Sul, quando, nos anos

anteriores, dominara sobretudo o conto e suas variações (o caso, a

mancha, às vezes a crônica), não pode ser dissociado do fenômeno

nacional que coincide com a edição das primeiras obras de ficção de

Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Jorge Amado, José Lins do

Rego, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Marques Rebelo‖.

(ZILBERMAN, 1985, p. 31)

No entanto, ainda que tenha havido a ascensão do romance, notamos que o

conto não acompanhou o mesmo ritmo visualizado anteriormente, na poesia e na

ficção romanesca, uma vez que se mostrou praticamente insensível à renovação

modernista. Embora haja alguns contistas que, ao longo dos anos 30, 40 e 50, se

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afastaram do modelo regionalista, criando obras de temática urbana, intimista ou

social, a leitura de suas produções revela a permanência do passadismo, através de

uma visão de mundo conservadora que se firmara na estética anterior. Inicia-se,

assim, uma fase intervalar no gênero conto que durou cerca de três décadas e se

caracterizou pela alternância do regionalismo com um principiante conto urbano.

Os contistas dessa fase são considerados por Bittencourt (1999) como escritores

de transição, ou seja, escritores que apresentam em suas criações tanto elementos

renovados quanto tradicionais.

Bittencourt (1999, p. 38) entende que Dyonélio Machado, ao lançar, em

1927, o livro Um pobre homem, é o autor mais antigo que se propôs a escrever a

partir dos padrões do século 19, denotando a influência simbolista da

modernidade literária ao descrever temperamentos e personalidades; revela,

contudo, traços da antiga tradição. Juntamente com Dyonélio Machado, Erico

Verissimo também integrou o grupo de autores de transição. Embora tenha sido

consagrado como romancista, foi com um livro de contos que iniciou sua vida

literária. Sua participação nos autores de transição deve-se principalmente ao fato

de que, ainda que seus contos fujam da temática regionalista, não mostram

nenhum traço de modernidade sinalizado pela Semana de 22.

A autora cita ainda o nome de Ernani Fornari, mais conhecido como poeta,

como sendo outro escritor de transição. Fornari escreveu o livro de contos A

guerra das fechaduras (1931), apresentando uma dicção atualizada em uma

paisagem urbana que revela o modo de viver citadino da capital gaúcha nos anos

30. No entanto, perduram os traços novecentistas, visualizados na produção de

Dyonélio, além de simbolismo na construção do enredo, de uma reflexão

filosófica, à moda naturalista (BITTENCOURT, 1999, p. 41).

Nesses autores, não prevalece o conto, mas o romance em Erico e

Dyonélio, e a poesia em Fornari. Diferente destes, Bittencourt (1999, p. 43) cita

Telmo Vergara como contista urbano dessa época, o qual construiu sua obra

baseado em histórias curtas, apresentando certa regularidade, sobretudo na década

de 1930, quando escreveu cinco livros de contos. Sobre Vergara, Bittencourt

discorre que:

A preferência pelo gênero e a configuração literária de seus textos

fazem dele um dos importantes precursores do conto contemporâneo

no Rio Grande do Sul, pois, em sua obra, é possível perceber, bem

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mais frequentemente do que na dos autores anteriores, traços

modernizantes, tanto no trato da linguagem como na estrutura da

narrativa, identificando-o, assim, com um tipo de prosa que já se

praticava em alguns pontos do País, sob a inspiração reformista gerada

pela Semana de 22. (BITTENCOURT, 1999, p. 43)

Mesmo optando pela linha intimista, Vergara não deixou de se preocupar

também com o exterior, não só pelo espaço em que se movimentam as

personagens, como também pela fixação do espaço social, representado pela

precária e incipiente sociedade capitalista sulina. (BITTENCOURT, 1999, p. 44)

A obra de Cyro Martins – Campo fora (1978), mesmo que apresente

traços de transição (desaparecimento do confronto campo e cidade- abordagem da

marginalização e pobreza do homem do campo), ocupa-se, ainda, em retratar o

gaúcho apegado à terra e seu histórico de valentia.

Ainda cultivando o mesmo propósito regionalista, citamos Darcy

Azambuja, com seus contos gauchescos reunidos em Coxilhas, lançados em

1954, que seguem a mesma linhagem regionalista iniciada em No galpão, em

1925. Assim como Martins, Azambuja também mantém vivos os valores da

ideologia regionalista anterior, colocando, no entanto, no mesmo plano, as

transformações que vão denunciar não só o mito do gaúcho como a degradação da

sociedade campeira.

Nessa fase de transição, encontramos também, o nome de Ivan Pedro

Martins, que escreveu em 1955, o livro de contos Do campo e da cidade, o qual,

como o título sugere, apresenta uma síntese da vida na sociedade rio-grandense.

Seus contos se inscrevem tanto na tradição de ruptura, quanto no próprio

regionalismo. O gaúcho, nesses contos campeiros, está empobrecido, porém ganha

uma postura mais crítica sobre as desigualdades sociais associadas à relação entre

patrão e peão. Assim configurados, os contos acabam por desmitificar a chamada

democracia rural tão fortemente expressa pela antiga tradição.

A antiga visão nostálgica que embasou o regionalismo é substituída, em

sua ficção, pela descrença e pela falta de perspectivas no futuro. Bittencourt

(1999, p. 46) comenta que: ―a solução para o gaúcho é partir, abandonar

definitivamente a sua terra, ou então lutar por outro tipo de sociedade, sem

diferenças‖. A partir disso, Ivan Pedro Martins inverte a posição do gaúcho diante

de seu patrão, ao qual sempre foi aliado na defesa dos ideais comuns; agora,

representará a luta de classes. Todo esse conteúdo é trabalhado através de uma

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linguagem bastante coloquial, despida dos costumeiros ornamentos. Ainda assim,

Bittencourt (1999, p. 47) registra que se fossem analisados outros aspectos de

cunho literário, os contos de Ivan seriam considerados bastante tradicionais, pois

segundo a autora ―ele emprega com frequência os quadros descritivos, à moda

real-naturalista, para retratar o ambiente de pobreza e miserabilidade das

personagens [...]‖ ―da mesma forma, utiliza com certa regularidade os símiles e as

metáforas para expressar os sentimentos pessoais [...]‖

Barbosa Lessa, em 1958, também vai reproduzir em seus contos

gauchescos, reunidos na obra intitulada O boi das aspas de ouro, o culto aos

valores passados. Expressa, ainda, a concepção de uma sociedade fechada, com

valores próprios, sem deixar de apontar para a transformação da sociedade

campeira, para o empobrecimento do gaúcho, através de uma linguagem que

lembra a de Simões Lopes - permeada de metáforas e de comparações com o meio

circundante.

Essa fase intervalar se caracterizou pela coexistência de obras em que

perdura, na vertente regionalista, a presença da velha tradição, à qual agora se

propõem algumas transformações, tanto temáticas quanto de linguagem, o que

imprime certo ar de modernidade. A partir da abordagem temática dos escritores

de transição, percebe-se que não houve, no conto gaúcho, uma fase modernista

que coincidisse com o que se fazia nos demais gêneros da literatura gaúcha -

poesia e romance.

Para Bittencourt (1999, p. 21) ―a verdadeira renovação do conto rio-

grandense só vai ocorrer a partir da década de 1960, quando se dá, de fato, a sua

atualização em termos de linguagem e de temática‖. Surgiu, na década de 1960,

um novo tipo de narrativa curta no sul do País, com temas e formas inovadoras,

dicção coloquial e paisagem urbana. Este é o momento que assinala uma

sequência de transformações nos âmbitos político, social, econômico e cultural,

que além de modificarem a sociedade, acabaram por determinar o aparecimento

de uma nova fase na contística do estado do Rio Grande do Sul. Tal fato, porém,

não pode ser visto isoladamente já que, também em nível nacional, a situação do

conto se transformara substancialmente na segunda metade do século.

A partir daí, tanto cresce o número de autores e de livros publicados, como

desponta uma crítica especializada no gênero. Os críticos Herman Lima, Edgar

Cavalheiro, Afrânio Coutinho vão incluir em suas análises a história do conto

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brasileiro, acentuando a sua significação na formação do quadro literário nacional.

Faz-se interessante pontuar que a explosão do conto converge com a instauração

de uma nova ordem política. Frente à ditadura, a intelectualidade, em sua grande

maioria, manifestou seu repúdio ao acirramento da liberdade individual, visando

combater, para tanto, o regime militar.

A produção deste tempo adquiriu, segundo Bittencourt (1999, p. 60), ―um

caráter peculiar de conscientização e de denúncia‖. Os contistas dessa fase, além

de apresentarem essa postura crítica, buscaram formas de expressão singulares, a

fim de conferirem uma autenticidade fundada na cultura nacional. Mesmo diante

das influências europeias, o conto brasileiro procurava fixar sua identidade,

procurando, desde a linguagem, demonstrar uma expressão genuína, com um

vocabulário mais próximo da fala coloquial. Segundo Bittencourt (1999, p. 61)

Graciliano Ramos, teve um papel importante, pois inspirou muitos contistas

contemporâneos com seu ―coloquialismo e simplicidade‖.

Ao lado de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Rubião e do

próprio Mário de Andrade, que já haviam garantido seus espaços na contística

nacional, estão, segundo Bittencourt: Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan,

José J. Veiga, Rubem Fonseca, Autran Dourado, Luiz Vilela, Samuel Rawet e

João Antonio, que vão dar continuidade e, também, propor novos modos de

representação do real. Resumidamente, a temática assumida por esses autores

percorre: o veio psicológico em Lygia Fagundes Telles e Samuel Rawet; o

realismo cruel e trágico de Dalton Trevisan ao retratar o homem contemporâneo; a

vertente do fantástico de José J. Veiga; a violência através de uma narrativa

brutalista de Rubem Fonseca; o tempo – tanto o que passa inexoravelmente,

quanto o que permanece vivo na produção limiar entre o romance e o conto de

Autran Dourado; a infância retratada com simplicidade por Luiz Vilela; e, por

último, o trânsito entre o documental e o ficcional a partir de uma ambientação

urbana e marginal muito próxima de Rubem Fonseca, de João Antonio.

No Rio Grande do Sul, a geração de 1970 compreende, na perspectiva de

Bittencourt (1999, p. 70) ―contistas que iniciaram de fato a sua carreira nessa

década, mas é também formada por autores que já haviam publicado nos anos 60,

seja em obras individuais, seja em antologias coletivas‖. Entre os autores

representativos desta fase estão Moacyr Scliar, Sérgio Faraco, Caio Fernando

Abreu. Nessa época,

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A narrativa curta gaúcha adquiriu, com isso, uma nova face, seguindo

tendências diferenciadas e apresentando modos de composição

inusitados, enriquecendo sobremodo a nossa produção literária. O

contexto histórico, político e cultural havia igualmente colaborado

para a transformação do perfil do escritor gaúcho, produzindo outros

tipos de preocupações e problemas que redundaram naturalmente em

assuntos literários. (BITTENCOURT, 1999, p. 70-71)

Paulatinamente, a narrativa urbana passou a ser marca dominante do conto

na década de 1970. Os contos dos anos 70 seguiram o rumo das produções

evidenciadas em outros pontos do país e, portanto, se configuram mediante uma

proposta atualizada e moderna: ―A brevidade, a condensação e a instantaneidade‖

são, na ótica de Bittencourt (1999, p. 72), suas características mais evidentes.

Nessa década, a autora percebe quatro grandes vertentes, uma das quais

corresponde a um regionalismo renovado.

Uma primeira vertente, a vertente social, caracterizou-se pela análise da

sociedade e suas relações sendo considerada como a mais extensa e variada. As

condições históricas, culturais, bem como as transformações sociais evidenciadas

até a implantação do regime ditatorial originaram uma representação que variou

entre a essencialmente realista, verossímil e a expressão metafórica, mais tênue

com relação à realidade narrada. Os autores deste tempo são: Josué Guimarães,

Moacyr Scliar, Rubem Mauro Machado, Tânia Faillace, Caio Fernando Abreu,

Flavio Moreira da Costa, Laury Maciel e Flávio Aguiar.

A vertente existencial/intimista inclui textos com caráter individual, que

preconizam a relação do indivíduo consigo e com o mundo que o cerca. ―São

narrativas que enfatizam a perspectiva subjetiva, desnudando os mistérios que se

escondem no interior do ser humano, revelando seus desejos ocultos ou até

mesmo percorrendo os subterrâneos nebulosos, às vezes enigmáticos e

perturbados, da sua mente‖. (BITTENCOURT, 1999, p. 92). No Brasil, Clarice

Lispector é a pioneira desta vertente, entre os nomes destacados deste período

estão: Caio Fernando Abreu e Tânia Faillace que já foram mencionados na

vertente social e, Carlos Carvalho, Ieda Inda e João Gilberto Noll.

A vertente memorialista ou da reminiscência infantil contempla, de um

lado histórias ambientadas na infância – relatadas por um adulto que revive seu

passado e, de outro, contado por uma criança que vai relatar os fatos como os

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percebe. A diferença existente entre ambas é o tipo de narrador. Na primeira o

narrador recorre à memória, evocando uma lembrança, na segunda temos um

narrador que agrega a experiência ao seu eu e vivência passados através de um

ângulo infantil. Os contos desta vertente temática referem-se, basicamente, às

experiências traumáticas, sem deixar de tratar também dos costumes de uma

geração. Tem como principais contistas: Caio Fernando Abreu, Carlos Carvalho,

Tânia Faillace, Moacyr Scliar, Sérgio Faraco, Flávio Aguiar e Rubem Mauro

Machado.

Ainda que sejam raros os autores que na década de 1970 trabalham na

linha regionalista, estes, quando o fazem, partem para uma abordagem renovada,

pois os valores preconizados antigamente estão frágeis, tanto na imagem do

gaúcho, quanto na valorização da campanha enquanto espaço sagrado. No grupo

de contistas dos anos 70, as narrativas regionalistas são encontradas apenas em

Josué Guimarães e Sérgio Faraco; Tânia Faillace, em seu segundo livro, intitulado

Tradição, família e outras histórias, apresenta dois contos ambientados no

campo, porém localizados geograficamente no nordeste brasileiro.

Depois, Josué Guimarães, em suas obras Os ladrões (1970) e O cavalo

cego (1979), apresenta uma temática regionalista, porém sua linguagem, ainda que

coloquial, não faz uso de termos campeiros; o narrador figura apenas enquanto

observador ou interlocutor, pois nota-se o distanciamento do mesmo com relação

ao universo representado. Ainda, em Os ladrões, uma morte considerada inglória

para a gauchesca (inglória por não conferir um caráter honroso ao gaúcho) é

narrada. O conto vai revelar, ainda, as desigualdades que imperavam nas tropas

gaúchas, desfazendo, portanto, a ideia da democracia rural defendida antigamente.

Segundo Bittencourt:

Fica evidente a preocupação em focalizar a decadência das oligarquias

rurais, com seus desmandos e autoritarismo. Desmistificando as

qualidades identificadas com o gaúcho tradicional, como a valentia, a

honestidade e a dignidade, o autor desfaz alguns mitos da gauchesca e

mostra os estertores de uma classe que deteve o poder ao longo da

maior parte da história do Rio Grande do Sul, como já havia feito

Erico Verissimo em seus romances. (BITTENCOURT, 1999, p. 127)

Enquanto Josué Guimarães centraliza seu olhar nas classes dirigentes,

Sérgio Faraco ocupa-se dos menos favorecidos, dos empobrecidos mantendo,

contudo, a altivez em seus personagens que buscam preservar o seu mundo das

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influências alheias. Os contos focalizam as relações fronteiriças entre o Rio

Grande do Sul e a Argentina, portanto suas produções revelam a invasão de

estrangeiros no espaço rural. Bittencourt considera que Faraco aproxima-se de

Simões Lopes ao determinar o grupo dos de fora e dos de dentro. (1999, p. 127) A

campanha é um mundo decadente vivida apenas na esfera da lembrança que

desfaz o caráter glorioso expresso no regionalismo rio-grandense de outrora.

O regionalismo neste período passa a ser evidenciado, portanto, sem o

culto dos valores da nobreza e valentia da figura do gaúcho-herói e sem a

mitificação do espaço – a campanha, conforme é sinalizado por Gilda Bittencourt:

O herói de agora já não é mais aquela personagem altiva, associada ao

cavalo e conhecida como "o centauro dos pampas", mas o homem

empobrecido, proletarizado, que vive numa nova ordem econômica

que o expulsou do campo obrigando-o a procurar modos alternativos

de sobrevivência, nem sempre lícitos e honrosos, que se apresentam

como a única solução para continuar vivo. O sentimento que domina

esse gaúcho de agora é o da desterritorialização, já que perdeu todas as

suas ligações e referenciais: com a terra, com a cultura, com os

costumes, com o passado guerreiro. (BITTENCOURT, 1999, p. 123)

Há uma visão nostálgica de um tempo distante – o passado ficou para trás,

pois ele sabe que esse foi definitivamente suplantado pelo avanço do progresso

que introduziu novos hábitos e modificou completamente a vida campeira. A

impossibilidade de associar a terra com a cultura aparece como conflito

vivenciado pelas personagens. Permanece, nesse novo regionalismo do conto sul-

rio-grandense, segundo Bittencourt (1999, p. 123), ―a crítica às oligarquias rurais,

mostrando que a sua decadência e seu gradativo desaparecimento devem-se, em

grande parte, à desagregação moral e à degeneração dos costumes de seus

dirigentes, os antigos caudilhos‖.

O quadro literário dos anos 70 é bastante peculiar, pois nele são

contemplados tanto os elementos de tradição e de ruptura como manifestações

heterogêneas que incluem o romantismo, regionalismo, biografismo e

memorialismo. Em uma comparação histórica entre a geração de contistas dos

anos 20 com a geração dos anos 70, Bittencourt (1999, p. 229) observa profundas

diferenças. Para ela, na primeira, havia, entre a classe letrada e a estrutura de

poder, uma ligação intrínseca que obstava um posicionamento crítico verdadeiro,

juntamente com ―uma intenção implícita de reafirmar os valores regionais como

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forma de impor-se perante a União‖. Ou seja, ―a sua literatura privilegiava a

diferença para afirmar sua identidade diante da nação‖.

Ao contrário, na geração de 70, o que impera é um sentimento de

integração, pois, como afirma Bittencourt (p. 229), ―tanto os escritores se

afinavam com o novo padrão do intelectual brasileiro, ligado ao pensamento de

esquerda, como também a sua produção literária respondia às mesmas

inquietações‖. O conto deste tempo não revela nenhuma aproximação com o

modo regional de contar histórias, nem mesmo privilegia conteúdos locais.

Bittencourt considera que os contistas dos anos 70 tiveram êxito em suas

participações na literatura rio-grandense:

[...] revitalizaram um gênero que sempre teve um lugar relevante na

sua história, consolidando a sua importância e o seu papel e repetindo

fenômeno semelhante acontecido na década de 1920, período em que

o conto foi a forma literária mais praticada pelos nossos escritores [..]

A colaboração dos autores gaúchos fertilizou ainda mais a vitalidade

do conto brasileiro nos duros anos 70, que, expressando-se através das

―frestas‖, buscava consolidar uma manifestação literária de amplitude

nacional (BITTENCOURT, 1999, p. 242).

O conto pós-modernista vem ocupando um espaço significativo na

literatura rio-grandense. Integrantes de uma nova geração são, por exemplo, Jane

Tutikian e Tina Schumacher. Vários autores dedicaram-se, predominantemente,

ao gênero, como é o caso de Sérgio Faraco e Aldyr Garcia Schlee; ambos

cultivam, dentre outros, o viés regionalista. Por outro lado, nas últimas décadas,

em razão do florescimento das tradições gaúchas, alguns autores, como Antônio

Augusto Fagundes, voltaram-se para o conto galponeiro, apresentando

peculiaridades observadas na linguagem gauchesca, na temática ligada às lidas

campeiras, às tradições e aos costumes, tendo como personagem o peão, o

fazendeiro.

Como já assinalado na introdução, com o propósito de demonstrar a

persistência da vertente regional no conto sul-rio-grandense, escolhemos seis

autores e, de cada um deles, seis contos, os quais serão alvo de análise no capítulo

três. Nossa leitura será pautada com vistas a identificar a representação da

paisagem campeira, os papeis sociais, a relação entre patrão e peão, o meio rural e

o urbano, que fornecem traços distintivos à representação ficcional da identidade

regional gaúcha. Por ora, contudo, interessa-nos demonstrar, tal como fizemos

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com o conto, o percurso do desenvolvimento histórico da canção regionalista no

Rio Grande do Sul.

2.3 A canção regionalista gaúcha

Expusemos, até aqui, como o conto gaúcho inscreveu o imaginário da

mitificação de um tipo humano – o gaúcho heroicizado – e de seu território. As

sinalizações do passado, do antigo imaginário do campo, foram registradas, como

já observamos, mais intensamente até a mudança da temática da década de 30;

depois da opção pela vida na cidade, percebemos que os rastros da cultura, do

passado de glória e motivos gaúchos persistem, ainda, no conto, mas com muito

menor intensidade. No entanto, esse ideário vai sendo recuperado pela memória

coletiva através de outras instâncias artísticas e gêneros textuais. Lançaremos

nosso olhar para a continuidade e ou persistência desse imaginário mítico na

canção regionalista. Apresentamos, aqui, um panorama do desenvolvimento

histórico da canção gaúcha, suas vertentes e temáticas. Inicialmente, buscaremos

definir o conceito de canção enquanto gênero.

O gênero canção apresenta uma estrutura híbrida, articulando melodia e

letra para a construção de sentido. Essa é, de fato, sua característica primeira. Para

Tatit (2008), o que faz uma música ser considerada uma canção é a fala por trás da

melodia: ―Tanto a letra quanto a melodia devem passar a mesma mensagem, como

na época em que surgiram as primeiras canções, em que pareciam recados:

amorosos, uma bronca ou até uma exaltação‖. Da mesma forma, Tatit (2008)

demonstra em seu texto as relações inerentes entre a música e a poesia, pois em

sua acepção ―não adianta fazer poesia, porque, se ela não puder ser dita, não vira

canção. E você pode ter também uma música extremamente elaborada, mas se ela

não suscitar uma letra, não tiver entoação, também não é canção‖.

Wisnik, em seu livro Sem receitas – Ensaios e canções, de 2004, traz

excelente contribuição para a discussão a que ora nos propomos, pois, como

professor de literatura, ensaísta e músico, afirma que a canção ajudou resolver o

dilema entre música e literatura, no momento em que ela entrelaçou essas duas

artes em suas produções. Segundo esse autor, canção é ao mesmo tempo música e

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poesia. Assim sendo, podemos nos referir à canção como poesia cantada, ao

mesmo tempo em que podemos perceber a melodia em um texto. Dada a nossa

formação, e os objetivos desta pesquisa, analisaremos a canção enquanto poesia.

Morrigi e Bonoto (2004) ajudam-nos a pensar a canção como uma

mensagem portadora de significados que orienta, em um determinado momento

histórico, o grupo social ao qual ela é destinada. Do mesmo modo, Cyntrão

(2006) demonstra que, através da canção, são revelados os sujeitos de cada tempo,

identificando as relações sociais permeadas pela ideologia do discurso:

O cancionista produz um discurso que é sempre a dialética das práxis

sociais, na confluência de suas inspirações subjetivas. Buscar nas

letras poéticas o ser social e suas reflexões existenciais significa

identificar as estruturas de poder sinalizadas em sua semântica, já que,

se a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, os signos

emergem do processo de interação entre uma consciência individual e

outra, e o desvelamento da estrutura sígnica do objeto poético expõe a

verdade (real ou imaginária) do sujeito e do grupo (CYNTRÃO 2006,

p. 11).

Entendida como uma forma de cultura que amplia a compreensão da

atualidade no processo de significação e ressignificação da nacionalidade, a

canção atua como um elo entre a construção da representação social e cultural.

Cyntrão (2006, p. 10) sinaliza que o artista compositor que trabalha com a letra e a

melodia teve e tem papel fundamental nos processos de construção cultural, já que

a canção ocupou legitimamente um espaço muito amplo, pois se tornou um

veículo artístico por excelência da expressão do imaginário popular.

A canção é filha do seu tempo, carrega em si uma composição que se afina

ao grupo social e ao seu tempo histórico, retratando sentimentos, evocando

memórias, valores e anseios daqueles que a produziram. É justamente a

possibilidade de revelar o tempo histórico e cultural que nos anima ao estudo da

canção como texto literário para esse estudo, pois entendemos que a canção

constitui-se em um vasto material na qual se podem debruçar leituras que

possibilitem apreender as diversidades formadoras da cultura à qual pertencemos.

Pesavento (1985), ao mencionar a respeito da canção enquanto construção

cultural, afirma que a presentificação do passado não nos remete apenas para o

fato evocado, mas se instala no tempo e no espaço, interligando palavras e

imagens, correlacionando sentidos.

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Em O século da canção, Luiz Tatit estuda a canção popular brasileira

produzida no século XX. O autor ressalta a relevância e qualidade da canção

produzida no Brasil nos últimos cem anos:

Se o século XX tivesse proporcionado ao Brasil apenas a configuração

de sua canção popular poderia talvez ser criticado por sovinice, mas

nunca por mediocridade. Os cem anos foram suficientes para a

criação, consolidação e disseminação de uma prática artística que,

além de construir a identidade sonora do país, se pôs em sintonia com

a tendência mundial de traduzir os conteúdos humanos relevantes em

pequenas peças formadas de melodia e letra‖ (TATIT, 2008, p. 11).

Conforme Tatit registra, no Brasil a canção nasceu na década de 1920,

com a invenção do gravador. Até então, músicas eram muito improvisadas, e não

havia nada fixo para que todos decorassem e cantassem. Era até frequente os

compositores não decorarem a própria composição, apenas o refrão, o que Tatit

chama de ―gravador natural‖, por ser repetido muitas vezes.

No decorrer do século XX, a canção popular brasileira foi se tornando

uma das principais manifestações artísticas do país. O avanço tecnológico

possibilitou primeiro a gravação e, depois com a invasão do rádio permitiu, ainda,

a difusão para o público ouvinte. Os anos 30 consolidaram o samba como o

principal gênero musical brasileiro, entre a marchinha e a seresta. Tatit (2008)

afirma que essa importância dada ao samba privilegia sua flexibilidade enquanto

gênero possível de ser remodelado e, portanto, utilizado desde o carnaval até

momentos românticos.

A bossa nova, por sua vez, considerada, segundo Tatit (2008) como a

herdeira direta do samba, iniciou um processo de triagem, visando a eliminar os

excessos perceptíveis tanto na melodia, quanto na letra. Diferentemente do que a

bossa nova ofereceu à canção brasileira, o tropicalismo apresentou a ―mistura‖

assimilando numerosas dicções, passando pelos gêneros internacionais, pelo

folclore, pelo mundo pop, enfim o tropicalismo se relacionou com todas as

influencias que a música brasileira recebeu.

A heterogeneidade de gêneros e estilos marcou a última década do século

da canção brasileira. Nesse período, também ocorreu a predominância da música

cantada em português, o que segundo Tatit (2008), contrariou o que havia sido

pensado em termos de mercado, pois mesmo diante do avanço da produção de

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consumo norte-americana a canção, em língua portuguesa, continuou a se

perpetuar no cenário da música.

Voltando o olhar para o recorte da canção brasileira que nos propomos a

investigar de modo particular, passamos a apresentar o percurso histórico da

canção gaúcha através de suas fases, e principais compositores. Consideraremos,

que a canção, a partir da utilização de imagens simbólicas já cristalizadas no

imaginário social, resgata e atualiza o mito, recuperando os antigos valores

preconizados na sociedade sul-rio-grandense, os quais o gaúcho canta e glorifica

ainda nos dias atuais.

Antes de nos determos, especificamente, na historiografia da canção

gaúcha, faz-se importante mencionar que esse é um estudo ainda novo, se

observados os trabalhos acadêmicos que foram organizados com vistas a estudar a

história da canção; da mesma forma consideramos importante discutir, em um

primeiro momento, a terminologia atribuída à canção gaúcha.

Sabemos que já foram utilizadas várias nomenclaturas com referência à

música produzida no Rio Grande do Sul. Fonseca (1998) denomina canção gaúcha

de música popular rio-grandense; Ratner (2010) refere-se a essa produção como

música típica gaúcha, mas, no decorrer do texto, usa a nomenclatura música

regionalista gaúcha. Dentre as nomenclaturas mais utilizadas, a mais significativa

foi ―música regionalista gaúcha‖, porém o uso dessa definição foi questionado

quando, em 1970, João Carlos D‘Ávila Paixão Côrtes e Luiz Carlos Barbosa

Lessa propuseram dividir o gênero musical gaúcho em três subgêneros:

tradicionalismo, nativismo e regionalismo.

Cougo (2012), em estudo sobre a história da música gaúcha, afirma que a

expressão ―música gauchesca‖ sugere maior amplitude conceitual, por apontar

para uma trajetória sempre ascendente, que apresentaria, portanto, grande poder

de mobilização, tanto no sentido de resgate das tradições mais ancestrais, como no

de mesclar as tradições aos diversos elementos que vão se agregando à vida

cultural dos gaúchos. Assim, Cougo utiliza o termo ―música gauchesca‖ com o

intuito de:

[...] descrever a produção musical criada e/ou inspirada a partir dos

principais fatores identitários do Rio Grande do Sul, especificamente

aqueles ligados ao contexto rural/agropastoril que é, em termos

rítmico-harmônicos, fortemente influenciado pelo contato direto com

a cultura dos países platinos (Argentina e Uruguai) e pela imigração

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ítalo-germânica – além do estreito vínculo com as culturas indígena,

africana e portuguesa‖. (COUGO, 2012, p. 3)

Em nosso trabalho, utilizaremos a nomenclatura canção regionalista

gaúcha, por entendermos que, através dessa, incluiremos as manifestações

musicais que ocorreram em solo gaúcho, tanto pelo viés tradicionalista, quanto

pelo nativista. Essa opção terminológica ainda se justifica por considerarmos que

ambos os movimentos traduzem as peculiaridades locais, imbuídos pela recriação

poética da linguagem, da ambientação e dos tipos humanos, expressando traços

históricos que caracterizaram o regionalismo sulino.

As matrizes culturais nas quais se encontram a fundamentação da música

produzida em chão gaúcho, segundo Ratner (2010), foram sendo articuladas

pouco a pouco, mediante as fortes influências étnicas e culturais que se

assentaram na região e incrementadas, também, pela influência renovadora do

imigrante e migrante. Entre as influências culturais que estão diretamente

relacionadas com a produção musical gaúcha, Ratner salienta inicialmente o

elemento ibérico:

Em que pese a origem preponderante da população gaúcha seja

portuguesa, há, não apenas em face da proximidade geográfica, mas

também em torno da própria história da consolidação da fronteira sul

do país, um longo processo de mútuos intercâmbios com uruguaios e

argentinos, populações que correspondem a dois países dos mais

importantes da América espanhola. Neste ponto, é relevante destacar

que, em que pese a nossa historiografia geralmente acentue os

portugueses e os espanhóis como duas nacionalidades díspares, deve-

se ter em mente que Portugal, embora já conte com séculos de

independência como entidade estatal autônoma, de um modo geral

sempre esteve muito intimamente vinculada à vizinha Espanha,

ecoando, em significativa medida, o período em que constava como

apenas uma de suas regiões. (RATNER, 2010, p. 1).

Considerando o momento de ocupação ibérica, podemos estabelecer vários

pontos de contato identitário entre a cultura portuguesa e a hispânica, refletindo

certo parentesco entre as formas musicais vindas destes países. Por esse prisma, as

formas musicais advindas de Portugal aproximam-se das formas espanholas, as

quais forneceram subsídios à música típica da região do Prata, inclusive em suas

especificidades.

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Em sua exposição sobre as matrizes que originaram a música típica

gaúcha, o autor faz menção, ainda, ao elemento oriental, que perpassa a produção

musical da região europeia, advindo, especialmente, das influências árabes,

judaicas, góticas, ciganas, o que representa realmente um diferencial significativo

da música produzida naquela península europeia em relação a outras formas

musicais que se consolidaram no velho mundo. Ratner observa sua influência na

configuração da figura do gaúcho:

A própria figura mítica do ―gaúcho‖ brasileiro, enquanto o elemento

que, montado a cavalo, explora a atividade pastoril/pecuária, foi muito

influenciada, na sua configuração regional, pelas práticas e costumes

dos seus equivalentes uruguaios e argentinos, o que vem refletir

também, naturalmente, na música feita no RS, que tem grande

influência da produção musical daquela região (RATNER, 2010, p. 2).

Claro, é importante mencionar que a figura mítica do gaúcho brasileiro

está atrelada e relacionada também aos tropeiros peões, cavaleiros, vaqueiros do

resto do país, os quais, como já mencionamos em outra oportunidade em nosso

trabalho, tiveram sua importância devido a se constituírem em elos de

comunicação com o centro do país. Assim, a cultura gaúcha articulou e recebeu

diversas influências, as quais também estão expressas em sua forma de fazer

canção.

O jornalista Juarez Fonseca (1998) busca, em seu artigo intitulado ―Dos

gaudérios aos punks‖, registrar a história da música popular rio-grandense.

Segundo Fonseca (1998, p. 180), até fins do século passado a manifestação

musical no Rio Grande do Sul restringia-se praticamente à música de dança: ―nas

cidades reproduziam-se as danças europeias, como a valsa, a polca, a mazurca, o

schottish. No campo havia primeiro a chula, nascida em meados do século 18 em

meio as tropeadas [...] e logo, a música ‗fandagueira‘‖.

O período que envolve a passagem do século 19 para o século 20 viu o Rio

Grande do Sul importar música europeia. Embora a música popular brasileira já

estivesse consolidando suas formas a partir das gravações e das primeiras

emissoras de rádio o Rio Grande vinha assumindo a música dos imigrantes

italianos e alemães. A música negra passou praticamente despercebida em solo

gaúcho comparada a sua atuação em centros como Bahia e Rio de Janeiro. O

motivo disto, segundo Fonseca seria:

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As vastidões das estâncias pecuárias ‗empregavam‘ poucos escravos,

ao contrário das plantações de café e cana-de-açúcar em São Paulo e

no Nordeste. No Rio Grande, os negros só se reuniram como

coletividade em torno das (poucas) charqueadas (FONSECA, 1998, p.

181).

Se seguirmos a historiografia da música regionalista gaúcha sugerida por

Cougo (2012), evidenciamos três fases fundamentais: a primeira, denominada por

ele de ―Inventando as tradições‖, à qual corresponde o período entre os anos

1948-1971; a segunda fase, a de ebulição nativista, que compreende os anos 1971-

1980 e, a terceira, a que o autor se refere como ―Memórias, produção acadêmica e

revisionismo‖, dos anos 1980 em diante.

2.3.1. O resgate das tradições: o movimento tradicionalista

A participação nas constantes lutas mantidas para a demarcação e

manutenção de suas fronteiras, o esforço para ocupação do território e, em

especial, para a solução dos limites fronteiriços, a liberdade de que gozavam os

habitantes deste extremo Sul ao trotear pelos infindos horizontes de seus campos,

as lides do dia-a-dia, as conversas em torno da roda de mate são fatores que,

segundo Mariange (1976, apud Cirne, 2011, p. 265), contribuíram para o

fortalecimento do sentimento de apego ao torrão natal por parte do gaúcho.

Foi justamente esse apego à querência um importante fator para o

surgimento do tradicionalismo gaúcho, para o qual colaboraram entidades que

antecederam o movimento tradicionalista organizado, surgido nos anos 1940. A

primeira entidade registrada foi a Sociedade Sul-riograndense, fundada pelo

professor e historiador Antônio Álvaro Pereira Coruja em 1851. Organizada para

reunir os gaúchos saudosos da querência, para Savaris (2008, apud Cirne, 2011, p.

266), ―fazia reviver, na capital do Império, os costumes típicos do Rio Grande‖.

Surge depois, em 1868, a Sociedade Partenon Literário, sobre a qual já estudamos

no capítulo referente ao conto, e que deu às produções regionalistas personalidade

e força: as primeiras obras literárias de cunho regional partiram dos integrantes

dessa sociedade.

Mais tarde, em 1881, fundou-se a agremiação 20 de Setembro, com o

intuito de exaltar a história dos heróis farrapos. Em 1898, João Cezimbra Jacques

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fundou, em Porto Alegre, o Grêmio Gaúcho, o qual promoveu e se destacou pelas

festividades gaudérias – desfiles, conferências. Cirne (2011, p. 266-267) considera

essa última entidade como a precursora do culto das tradições gaúchas: ―na época

reconhecida e prestigiada por altas autoridades do estado, foi a pedra fundamental

do que mais tarde seria identificado como ―Tradicionalismo gaúcho‖.

Essas entidades mencionadas marcaram uma época, fazendo toda a

diferença no culto às tradições, pois auxiliaram na perpetuação e, também na

constituição de uma representação campeira na cultura urbana. Além dessas,

Cirne (2011) descreve a participação de outros clubes, também de fundamental

importância, que antecederam a fundação do então ―35‖ Centro de Tradições

Gaúchas (CTG). Entre eles estão: União Gaúcha, de Pelotas, Centro Gaúcho, de

Bagé, Grêmio Gaúcho, de Santa Maria, Sociedade Gaúcha Lomba-rio-grandense,

de Novo Hamburgo e Clube Farroupilha, de Ijuí.

Os primeiros registros fonográficos brasileiros só apareceram a partir de

1911, quando os imigrantes Theodoro Hartlieb e Savério Leonetti decidem

investir no mercado de discos, montando as companhias gravadoras Casa Hartlieb

e Casa A Eléctrica, ambas em Porto Alegre. Segundo ele, ―Juntas, estima-se que

estas empresas tenham lançado cerca de mil registros, dentre os quais estão os

xotes: Pisou-me no poncho e Está de tirar lixiguana, gravados, em 1913, por

Lúcio de Souza, em solo de acordeom‖. (COUGO, 2012, p. 5). Essas podem ter

sido as primeiras gravações da ―música gauchesca‖.

A nova conjuntura econômica do final da Primeira Guerra Mundial levou

ao fechamento da Casa A Eléctrica em 1924, momento em que a Europa voltou a

produzir seus próprios discos. A incipiente ―música gauchesca‖ passou, então, a

ocupar um espaço marginal nos anos 20, sendo considerada de baixa qualidade e

rotulada de grosseira, carregada, muitas vezes, por um tom humorístico que

ajudava a causar rejeição pelas classes letradas do meio urbano.

Este quadro só mudou com o aparecimento da rádio, que atuou de modo

significativo na difusão do gênero regional. A primeira estação de rádio de Porto

Alegre foi a Rádio Sociedade Rio-Grandense fundada em 1924; a segunda foi a

Rádio Sociedade Gaúcha, fundada em 1927; a terceira foi a Rádio Difusora

Portoalegrense, fundada em 1934, e a quarta a Rádio Farroupilha. Esta última foi,

segundo o memorial de Landell de Moura, organizada e fundada por Flores da

Cunha, Luiz e Antônio, filhos do então Governador do Estado, General Flores da

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Cunha e Arnaldo Balvê, que assumiu a direção da Rádio Farroupilha e, desde essa

época, foi um dos mais destacados radiodifusores do Sul do Brasil.

O período que envolve os anos 1930 evidencia, em um primeiro momento,

o afastamento da velha classe dominante diante da ascensão de Getúlio Vargas e,

junto a isso, registra-se a perda da força do tradicionalismo incipiente associado às

entidades anteriormente citadas; até o final da Segunda Guerra Mundial, o Rio

Grande do Sul vivenciou esse afastamento das raízes e culto tradicionalistas.

Por esse motivo, o final da década de 1940 é marcado pela ameaça dos

modismos estrangeiros à cultura rio-grandense. Nesse período, quase ninguém

pensava, muito menos cultuava as tradições. Segundo Cirne (2011, p. 267),

―Vestir-se como campeiro e andar na cidade era motivo de gozação. Os veículos

de comunicação de massa saturavam-se de tanto estrangeirismo‖.

A ordem geral dos maiores centros do País, irradiadores da ―moda‖, era

imitar o que vinha de além-mar ou seguir os moldes dos EUA, isso no que tange

ao cinema, disco, literatura e revistas. Desta época, existe apenas o registro da

Brigada Militar no que diz respeito às manifestações gaúchas que reverenciavam a

figura de Bento Gonçalves junto ao seu monumento no dia 20 de setembro.

Para Cirne (2011, p. 267), nessa época o próprio povo gaúcho ignora seu

patrimônio histórico cultural. No entanto, com o intuito de acender o amor à

Pátria e o culto aos heróis do passado, buscou-se incentivar a juventude através da

reorganização do tradicionalismo. A primeira atividade com esse propósito foi

organizada por estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, os

quais, liderados por João Carlos D‘Ávila Paixão Côrtes, fundaram o

Departamento de Tradições Gaúchas, movimento estudantil de diversas camadas

sociais e segmentos étnicos. Estes enviaram um comunicado à imprensa, cujo

primeiro parágrafo dizia:

O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade de

perpetuação das tradições gaúchas, fundou, aliando aos seus já

numerosos departamentos, o das Tradiçoes Gaúchas, procurando

assim preservar este legado imenso dos nossos antepassados,

constituído do amor à liberdade, grandeza de convicções representadas

pelo sentimento de igualdade e humanidade (CÔRTES, apud CIRNE,

1994, p. 43).

O objetivo do Departamento era encontrar um caminho para resgatar os

traços regionais, buscando ressaltar e renovar a identidade da terra gaúcha. Esse

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mesmo departamento foi o que realizou a primeira Ronda Gaúcha, que logo

recebeu a denominação de Ronda Crioula. A Ronda previa, segundo Cirne (2011,

p. 269) ―o acendimento de um candeeiro crioulo, o primeiro baile gauchesco com

concurso de danças e trajes, palestras, concurso literário e uma série de momentos

equestres‖. A Ronda Crioula foi a precursora da Semana Farroupilha.

Ainda no ano de 1947, no dia 07 de setembro, nasce o culto à Chama

Crioula, novamente pelas mãos de Paixão Côrtes, acompanhado de Cyro Dutra

Ferreira e Fernando Machado Vieira. Sete meses após a realização da Ronda

Crioula, em 24 de abril de 1948, foi fundado, no porão da casa da família Simch,

o ―35‖ CTG- Centro de Tradições Gaúchas, denominado de ―templo urbano‖ para

o culto ao mito do gaúcho herói.

O nascimento do Centro de Tradições Gaúchas está associado também,

segundo Dacanal (1998), a um grande fluxo migratório de habitantes das regiões

de pecuária, ainda na segunda metade da década de 40, atraídos pela oportunidade

de ascensão social oferecida pela industrialização e pela rápida expansão do setor

terciário da economia gaúcha, seguiram em direção aos centros urbanos, em

particular Porto Alegre. Dacanal (1998, p. 85) afirma que os migrantes não eram

simplesmente peões incultos ou deserdados sociais: ―pelo contrário, procedentes

quase sempre de famílias de estratos inferiores da oligarquia ou das regiões mais

atrasadas da campanha, alguns conseguiram não apenas estudar como também

fazer carreira como profissionais liberais, pequenos empresários, etc‖.

Marcados fortemente pelo passado agrário, os migrantes sentiam-se

excluídos diante da cultura urbana. Assim, buscando uma imagem para que

pudessem se reconhecer, acabaram por recriar na cidade um espaço cultural que

os identificasse. Dacanal (1998) considera que, nessa intenção de formular a sua

identidade, os migrantes recuperaram uma tradição bifronte:

Por um lado adotam elementos culturais – na linguagem, no vestuário,

na música, etc. – dos segmentos sociais inferiores do campo e, por

outro, assimilam, materializando-a em escala até então nunca vista, a

ideologia autojustificadora e destilada pelo estrato superior da

oligarquia rural do passado, cuja cultura, é preciso deixar bem claro,

fora sempre rígida e rigorosamente marcada pela tradição europeia

(em particular francesa). (DACANAL, 1998, p. 85).

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Os CTGs, em um primeiro momento, restringem-se à capital e às

principais cidades do interior, reunindo os migrantes, quase sempre de classe

média. O fundo ideológico observado por Dacanal manifesta-se através da

recriação das formas culturais visualizadas, principalmente, nas quatro palavras-

chave: galpão, patrão, peão e prenda. Em muitos lugares, especialmente cidades

interioranas, os CTGs acabaram substituindo, como local de convivência, a

própria igreja. Dacanal (1998, p. 86) afirma que ―nas comunidades menores ou

naquelas culturalmente mais atrasadas, os CTGs passaram a assumir a função de

espaço de poder, através do qual os grupos dirigentes se legitimavam‖.

Difundindo-se pelos municípios rio-grandenses, os CTGs vieram a

valorizar e prestigiar a figura humana do gaúcho. Conforme Lessa (2000), os

Centros de Tradições Gaúchas compõem-se de diversos núcleos: o núcleo básico

– o ritual do mate, como escola de cordialidade; a invernada campeira, que

buscava recuperar o cavalo através de práticas desportivas; a invernada artística,

que preparava ―a gurizada‖ para os festivais da escola; a invernada mirim, voltada

para as crianças, com o objetivo de transmitir a elas através da dança as noções de

sociabilidade e, por último o fandango, momento festivo de interação familiar. Em

síntese, Lessa (1998, p. 76) acredita que os CTGs representavam não a expressão

de mero passadismo, mas o retorno a uma cultura: ―Não se trata de reviver,

esterilmente, o Passado. Mas, sim, de resgatar, do passado, a Esperança perdida‖.

Assim organizado, o Movimento Tradicionalista institui práticas de culto a

partir das quais glorifica um passado atualizado no presente, manifestando

preocupação com a construção coletiva de identidades regionais. As lideranças

tradicionalistas se preocupam com a autenticidade no culto das tradições.

Exemplos são os folcloristas Maria e João Carlos Paixão Côrtes que apresentam

uma produção bibliográfica em torno da temática regionalista, discorrendo desde a

indumentária até à promoção de cursos de danças tradicionalistas ministradas em

CTG‘s.

Através dos patronos Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, durante pelo menos

20 anos, o tradicionalismo foi o responsável direto por estabelecer os parâmetros

sobre a autenticidade ou não do cancioneiro gaúcho, delimitando fronteiras e

definindo (às vezes inventando) suas características. Mesmo diante de polêmicas e

contradições, os tradicionalistas da primeira fase aproveitaram os espaços

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concedidos ao período inicial do mercado brasileiro, difundindo o movimento nas

rádios e colunas dos jornais mais reconhecidos do momento.

Nilda Jacks (2003) considera que o tradicionalismo originou-se de forma

espontânea e foi crescendo a ponto de se tornar ―código cultural‖. Este período

inicial caracteriza-se pela criação de espaços e momentos específicos para o culto

das tradições gaúchas em um cenário urbano, recriando o gaúcho nas suas vestes,

no seu espaço natural- a campanha. A expansão do Tradicionalismo suscitou a

necessidade de uma entidade que regulamentasse as atividades que se vinculavam

ao culto da tradição, nesse sentido em 28 de outubro de 1966, foi fundado o MTG.

O site oficial do Movimento Tradicionalista Gaúcho destaca como atividades

oficiais: Congresso Tradicionalista, Convenção Tradicionalista, Enart, Festa

Campeira, Concurso de prendas. É nesses eventos e, também no cotidiano do

CTG, que ocorre a vivência do ser tradicionalista, do ser gaúcho através da

afirmação das identidades grupais.

Cougo (2012, p. 6) sinaliza a primeira intervenção direta do Movimento

Tradicionalista Gaúcho na fonografia gaúcha com a gravação do também primeiro

disco do Conjunto Farroupilha, editado pela Rádio Serviços e Propaganda Ltda.,

pois o prefácio assinado pelo maestro Aldo Taranto diz o seguinte: ―as melodias

aqui interpretadas não têm sabor de produções urbanísticas; são autênticos

motivos colhidos pelos lídimos representantes do ‗35 – Centro de Tradições

Gaúchas‘‖.

Essa fase inicial deixou documentados os ritmos que pouco tempo depois

seriam elevados à condição de ―típicos‖ da música sulina, especialmente a polca,

a trova e o xote – nenhum deles originário do Rio Grande do Sul, mas todos com

características adaptadas ao cenário local.

Esse período se resumiu musicalmente ao rádio, isto porque, como sinaliza

Fonseca (1998), só haveria destaque real se o músico partisse do seu estado e,

emigrar não fazia parte da tradição dos gaúchos. Fonseca credita ao programa de

rádio Grande Rodeio Coringa, da Rádio Farroupilha, à importância do Movimento

Tradicionalista. Nessa fase, ninguém superava a Rádio Farroupilha, que

apresentava sua discoteca, constituída pelas antigas gravações de 78 rpm, a mais

completa do rádio sulino. Através dos programas de rádio, cantores, conjuntos e

trovadores fizeram sua popularidade. Fonseca acrescenta ainda que o ―programa

se apoiava também, no início, do sucesso primeiro regional e logo nacional do

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Conjunto Farroupilha e de outra formação, igualmente mais requintada, Os

Gaudérios. Ambos são a ponta da música folclórica revelada ou criada pelo

tradicionalismo‖. (1998, p. 182)

Entretanto, o Conjunto Farroupilha logo se radicou no Rio de Janeiro, e

passou a interpretar outras regiões brasileiras, apresentando também um repertório

internacional. Porém, o primeiro artista gaúcho que se destacou nacionalmente é

anterior a tudo isso: Pedro Raymundo, integrante, na década de 40, da Radio

Nacional do Rio de Janeiro com a popularidade de ―Adeus Mariana‖.

Pedro Raymundo e Gildo de Freitas foram os nomes de sucesso no Grande

Rodeio Coringa e podem, segundo Fonseca (1998), ser considerados como os

definidores da vertente popularesca que produziu a seguir Teixeirinha e José

Mendes. Da mesma forma, Cougo enfatiza o papel exemplar de Pedro Raymundo

para o desenvolvimento dessa gauchesca:

Pedro Raymundo, que estrelou dois filmes e gravou dezenas de discos

de 78rpm, foi o primeiro cantor sulino de êxito nacional que fez uso

do traje típico gaúcho (botas, bombachas, lenço ao pescoço, chapéu de

abas largas e cinturão). Seu sucesso chamou atenção de outros

cantores que logo passaram a imitá-lo (COUGO, 2012, p. 5).

Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, que figurou como o grande

representante da música sulina, imagem consolidada durante 25 anos de carreira,

foi no início reconhecido apenas nas rádios interioranas. Ao lado de Teixeirinha,

Gildo de Freitas e José Mendes também conseguiram grande destaque. Ainda na

década de 50, surgem os nomes de Tonico e Tinoco, Honeyde e Adelar Bertussi,

acordeonistas que, a partir de 1955, deram impulso ao estilo serrano da música

gauchesca.

2.3.2 Os festivais: a explosão nativista no Rio Grande do Sul

Nos anos 60, o estado do Rio Grande do Sul, vive um momento de euforia

da música feita em solo rio-grandense, tendo como princípio a influência

universitária, movida também pela repulsa à ditadura. Esta foi, segundo Fonseca

(1998), ―uma mobilização no País inteiro, coincidindo com o momento maior de

renovação e massificação da música no século‖. Os festivais chegam a Porto

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Alegre, fixando, como sublinha Fonseca (1998, p. 183-184), três marcos, dois em

1968:

O II festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, promovido pela Rádio

e TV Gaúcha, premiou o samba tradicional através de Túlio Piva [...] e

o I Festival Universitário da MPB, promovido pelo Diretório

Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, que refletiu a

nova música brasileira e reuniu compositores e intérpretes daqui e do

centro do País. O terceiro marco foi o segundo festival da Arquitetura,

em 69, já sob o signo tropicalista, anárquico, contraditório, radical e

estimulante (FONSECA, 1998, p. 184).

Os festivais universitários revelaram novos nomes e a Faculdade de

Arquitetura acabou entrando para a história da música gaúcha. Informalmente, nas

noites do diretório, aconteciam as rodas de som, dentre as quais surgiu o grupo

Canta Povo. Esse momento é sinalizado por Cougo (2012) como a segunda fase

da música regionalista, período em que se evidencia o início dos festivais,

principalmente da Califórnia.

A trajetória da Califórnia tem início quando uma emissora de rádio da

cidade de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina, promove o I

Festival da Canção Popular da Fronteira em 1970. A constância dos festivais de

música popular se espalhava por todo o território brasileiro. Neste festival da

fronteira, Colmar Duarte, juntamente com Júlio Machado, inscreveram uma

milonga intitulada ―Abichornado‖, que foi desclassificada pelo seu teor

gauchesco. Em sinal de protesto, desde então, Duarte passou a fomentar a ideia de

realizar um festival que aceitasse somente canções com temas e ritmos regionais,

e que tivessem a intenção de ―valorizar o que fosse culturalmente representativo

do que se entendia como nosso‖ (DUARTE, 2001, p. 14).

Para alcançar seu propósito, Duarte procurou a direção do principal CTG

da cidade de Uruguaiana, O Sinuelo do Pago e, em 1971, assumiu sua presidência,

com a intenção de realizar a I Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.

Segundo Duarte, o nome do festival:

Vem do grego, ―significa conjunto de coisas belas‖. No RS,

chamaram-se ‗califórnias‘ as incursões que Chico Pedro fazia, na

Cisplatina, a fim de resgatar os bens de brasileiros lá radicados que

sofriam perseguições (1850). Mais tarde, ‗califórnias‘ passou a

designar corrida de cavalos da qual participassem mais de dois

animais (...). Com as significações de ‗conjunto de coisas belas‘ e

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‗competição entre vários concorrentes em busca de grandes prêmios‘

foi que o nome CALIFÓRNIA DA CANÇÃO NATIVA prevaleceu

entre seus idealizadores. (CD I Califórnia da Canção Nativa do Rio

Grande do Sul, contracapa)

Importante foi, também, o papel exercido pela Rádio São Miguel de

Uruguaiana, pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), pela Ordem dos

Músicos do Brasil (OMB) e pela Companhia Jornalística Caldas Júnior, que foram

agentes importantes para a realização do festival. O próprio prêmio Calhandra de

Ouro (ave de belíssimo canto que não suporta o cativeiro), criado pelo artista

Paulo Ruchel, revela a síntese do evento, o qual, segundo Duarte, explica-se a

partir de três principais elos: o canto, o convívio e a liberdade.

A poética da canção dessa vertente gauchesca é fortemente arraigada na

figura do gaúcho, o habitante do pampa, homem sem lei descrito por vasta

literatura, cujas características constituem a base temática da música gauchesca:

―franqueza nas atitudes e nas palavras, o narcisismo, a bravura quixotesca, a

instantaneidade impulsiva das resoluções, a veemente vocação cívica, a altaneria,

o bom humor, mesclado a irreprimíveis explosões sentimentais e fatalistas‖

(LESSA, 2000, p. 54 - 55).

Havia, contudo, segundo Lopes (1987, apud, DUARTE, 2009, p. 14), um

confronto ideológico que permeava a formação da Califórnia, o qual era resultante

de uma mistura entre o romantismo nacionalista, de fundo liberal-idealista e

mitificador, e, o modernismo campeador de caminhos novos. A polêmica

instalava-se, justamente, sobre o gaúcho a ser cantado: o mitificado, monarca, ou

um tipo desmitificado, obtido pela visão da classe média intelectualizada.

[...] a Califórnia optava por valores da classe média. E se estabelecia

numa dicotomia antagônica. Se por um lado se erguia contra os

estrangeirismo da massificação dos meios de comunicação ―em

massa‖, por outro se opunha ao que de mais popular havia. Mas esse

popular, contra qual se levantava, representava o aviltamento urbano

da figura presente no campo, que simbolizava a própria conservação

das insígnias do passado histórico e mítico. (LOPES, 1987 apud,

DUARTE, 2009 p. 14).

A anterior associação entre a música regionalista e o grosseiro precisava

ser banida, pois era visível a necessidade de qualificar a música que se vinha

cantando para atrair a atenção da classe média. Nesse sentido, podemos considerar

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que o movimento da Califórnia da Canção inaugurou um novo período, uma nova

estética para a música regionalista. Conforme o jornalista Fonseca comenta,

Em pouco tempo, o palco do Cine Pampa, de Uruguaiana, assistiu à

saída dos esconderijos de dezenas de compositores e intérpretes que

ninguém imaginava existirem. O sucesso do festival significou (e

significa) uma fortíssima marca de antes e depois na música típica do

Rio Grande do Sul. Detonou um novo movimento que tomaria de

assalto o Estado, mudando costumes, revitalizando velhos hábitos,

forjando a participação maciça da juventude e registrando tudo em

discos. (FONSECA, 1998, p. 184)

A cada ano, o evento da canção nativa se consolidava mais e, aos poucos,

reformulava-se e passava a abranger novas temáticas. Um exemplo foi o que

aconteceu a partir do ano de 1975, momento em que a Califórnia divide-se em

categorias pré-estabelecidas através de três linhas temáticas. A linha campeira

compreende a identificação com o homem, o meio, usos e costumes do campo do

estado do Rio Grande do Sul. A linha de manifestação rio-grandense, sem se

limitar ao espaço campeiro, abrange outros aspectos sociais, culturais e

geográficos do Rio Grande do Sul. Por último, a linha de projeção folclórica

estabelecida a partir das linhas já mencionadas, projeta-se no sentido da

universalidade artística com relação ao tratamento poético-musical. Essa divisão

resultou em novos rumos para a música feita em solo gaúcho, os quais, segundo

Fonseca, vão além do novo repertório:

O movimento dos festivais nativistas não apenas renovou e

multiplicou o repertório do regionalismo através de uma série de

canções que hoje já são quase tão clássicas quanto aquelas do

tradicionalismo original (Negro da gaita, Romance na tafona,

Esquilador, Era uma vez, Desgarrados, Canto Alegretense, etc. etc.),

como abriu um mercado de trabalho que não tem paralelo anterior na

história de nossa música regional, seja em número de gravações, seja

em espaço de shows. (FONSECA, 1998, p. 186)

Assiste-se, a partir daí, a consolidação dos festivais. Somente a Califórnia

da Canção Nativa viu surgir mais de 250 novas músicas que visavam a

valorização dos elementos constitutivos da identidade gaúcha. Entre as canções

mais conhecidas, que foram consideradas obras primas e imortalizadas pelo

gaúcho, estão: Ave-Maria Pampiana (IV Califórnia); Desgarrados (XI Califórnia);

Esquilador (XI Califórnia); Pássaro Perdido (VIII Califórnia); Grito dos Livres

(XIV Califórnia); Guri (XIII Califórnia). Resumidamente, pode-se afirmar que,

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desde 1971, foram registrados aproximadamente 160 festivais, alguns com quase

quarenta edições.

Antes da Califórnia, a música gaúcha de raiz regionalista limitava-se ao

sucesso de artistas populares, de tendência quase caipira ou sertaneja. Fonseca

(1998, p. 184) assegura que ―A Califórnia da canção acendeu primeiro uma vela,

depois uma lâmpada e por fim um holofote sobre a música regional e inventou o

termo ‗nativismo‘‖. Este período é considerado como o do renascimento do

gauchismo, algo que já estava desacreditado. Oliven aponta uma consideração

importante com relação ao renascimento do gauchismo através dos festivais,

ressaltando a força e a busca pela afirmação da identidade regional do Rio Grande

do Sul,

Se o gauchismo reedita a tradição e a vida rural, ele o faz num estado

urbanizado que se quer moderno. Pode parecer curioso que esse

movimento lance mão de valores rurais e do passado quando o Rio

Grande do Sul é predominantemente urbano e bastante

industrializado. Isso leva a alguns a considerar o fenômeno como um

mero modismo passageiro ou como uma ideologia anacrônica, mas

curiosamente eficaz. Entretanto, pela extensão e duração do fenômeno

é difícil rotulá-lo como modismo ou como ideologia ultrapassada.

(OLIVEN, 1992, p. 79).

Toda a década de 80 viu surgir aproximadamente mil centros de tradições,

mais de quarenta festivais de música nativista, e vários rodeios. Os anos 80

marcam também um momento de produção acadêmica e sistematização histórica

envolvendo a temática da canção. Fonseca (1998) entende que a passagem para os

anos 80 evidencia duas mudanças principais que partiram do grande aumento de

número de gravações: amadurecimento dos trabalhos e linguagens e abertura de

possibilidades diferenciadas com relação a estilo e tendência. O início da década

assiste, ainda, o surgimento da dupla Kleiton & Kledir, com repercussão nacional.

Ainda Fonseca (1998, p. 187) comenta que: ―ninguém, nos anos 60, com a melhor

bola de cristal que tivesse, poderia imaginar que a música gaúcha aglutinaria

multidões de 10, 15, 20 mil pessoas‖.

O auge da produção musical foi, talvez, os anos 84 e 85, que presenciaram

festivais menos fechados. Surgem, nesse período, nomes como o da intérprete

Glória Oliveira e Renato Borghetti, nome inconfundível que marcou, e ainda

marca, gerações; surge, ainda, a explosão do rock.

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Conforme Fonseca (1998) no momento em que os festivais passaram a ser

reconhecidos como instituições culturais e fonográficas, a relação entre

tradicionalistas e nativistas foi abalada. Isto porque, de um lado, os CTGs estavam

fervorosos, expandindo-se rapidamente e, de outro, o movimento nativista

adquiria forma e consistência através do aparecimento de uma geração de letristas

e compositores de excelente nível. Ainda que os nativistas buscassem diferenciar-

se dos tradicionalistas, é fundamental perceber que ambos eram fruto das mesmas

condições históricas.

Oliven (1992) percebe a identidade gaúcha, na década de 80, como sendo

um duelo de disputas entre Tradicionalistas e Nativistas. O autor diferencia os

tradicionalistas dos nativistas a partir da influência do Movimento Tradicionalista

Gaúcho. Nesse sentido, os tradicionalistas são reconhecidos por exercer o controle

e, da mesma forma, a orientação sobre os bens simbólicos do Rio Grande do Sul,

por meio do MTG. Segundo Oliven (1992, p. 78) ―para eles é fundamental

demarcar quais são os ‗verdadeiros‘ valores gaúchos‖, para, assim, manter a

distinção entre o estado do Rio Grande e os demais. O outro grupo, denominado

de nativistas, formado, principalmente, por músicos e jornalistas, não aceita o

controle do Movimento Tradicionalista Gaúcho, ao qual acusam de ―patronagem

cultural‖ e de ―patrulhamento folclórico‖ (OLIVEN, 1992, p. 78).

O nativismo fundamenta-se em uma perspectiva contrária ao

tradicionalismo, ao tentar atualizar a cultura gaúcha, propondo uma temática mais

voltada para as questões emergentes da população rural, como a propriedade da

terra, o êxodo rural, a marginalização na periferia da capital e das grandes cidades.

No âmbito da linguagem, propôs, também, uma renovação estética que

correspondesse a uma temática mais urbana e contemporânea, significando um

rompimento com os padrões que vinham sendo defendidos desde o final da

década de 1940 pelos tradicionalistas, ainda como herança do Partenon Literário e

do Regionalismo Literário. No entanto, Cougo (2012) salienta que:

Em termos de popularidade, o nativismo não conseguiu ofuscar o

regionalismo. Como movimento cultural, ele jamais se tornou

independente do tradicionalismo, sobretudo por estar subjugado ao

potencial financeiro e organizacional dos Centros de Tradições.

Apesar disso, a ―era dos festivais‖ desencadeou a tão decantada ―febre

de gauchismo‖, uma onda de supervalorização da cultura gaúcha que

foi cooptada pelos jovens, sobretudo em Porto Alegre. Até os anos

1980, o mercado nativista proporcionou o surgimento de uma série de

artistas que se consagraram localmente, sobretudo porque a mídia e a

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indústria fonográfica do centro do país perderam o interesse pelo

gênero, proporcionando um mercado interno auto-sustentável

(COUGO, 2012, p. 10-11).

A expressão destes dois pólos da identidade gaúcha, Tradicionalistas e

Nativistas, observa-se pela fundamentação que os sustenta. O primeiro constrói

uma identidade baseada no mito do monarca das coxilhas e o segundo, mais

aberto, busca desmitificar a abordagem tradicionalista. Barbosa Lessa (1998)

caracteriza os nativistas como urbanos que se voltam para o culto da natureza na

busca de uma sociedade igualitária; conforme o autor, essas virtudes já eram

demonstradas pelos tradicionalistas. Entre nativismo e tradicionalismo existem

divergências, no sentido de o primeiro ser considerado pelo tradicionalismo como

deturpador da tradição, e o tradicionalismo ser denominado de conservador pelo

segundo.

Muito embora haja diferenciação na abordagem de ambos, tradicionalistas

e nativistas estão envoltos, como reflete Oliven (1992, p. 77), pelo mesmo campo

semântico: ―a figura do gaúcho, o modo de construí-la, os critérios para definir

sua autenticidade, as instâncias de sua legitimidade e consagração‖. Tau Golin

(1989, p. 46) aborda os dois fenômenos, tradicionalismo e nativismo, sem fazer

distinção a partir de sua terminologia Tradinativismo: ―Considero como

tradinativistas aqueles que militam no Tradicionalismo e/ou Nativismo, como

cultuadores e/ou criadores, sem terem inquietações reais que os levem a uma

ruptura com a cultura tradicional ontologicamente hegemônica no Rio Grande do

Sul‖.

2.3.3 De 1980 em diante: Memórias, produção acadêmica e revisionismo

A terceira e, última fase da música regionalista, denominada por Cougo

(2012) de ―Memórias, produção acadêmica e revisionismo‖, compreende os anos

1980 em diante. O primeiro trabalho acadêmico acerca da música gauchesca foi

publicado em 1980, por Antonio Corte Real, e foi o estudo responsável pelo

direcionamento de outros, ainda poucos, trabalhos universitários sobre o tema. No

que diz respeito à produção intelectual sobre a música gauchesca nos anos 1980-

1990, Cougo registra o surgimento de revistas especializadas, dentre as quais cita

três nomes: Nativismo (1982-1984), Tarca (1984-1986) e Nativa (1987-1990).

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Essas revistas abordavam diversos temas que vão desde questões

corriqueiras até os tabus. Um exemplo de tabu foi a abordagem da revista Tarca

sobre o conflito, já sinalizado neste trabalho, entre tradicionalistas e nativistas,

que gerou a edição de uma carta, denominada Carta de Uruguaiana, reconhecida

como um manifesto estético que questionou e demonstrou preocupação de cunho

metodológico e teórico com relação ao gênero e, mais propriamente, a música

gauchesca produzida nos festivais.

A década de 80, segundo Cougo (2012), é responsável pela presença de

uma bibliografia muito rica, fundamentada em relatos de memórias sobre os

personagens históricos da música do Rio Grande do Sul. A coleção Esses

Gaúchos, da Tchê/ RBS foi a primeira a desenvolver esta produção memorialista,

a qual apresenta, entre outros memoriais, a trajetória de vida do acordeonista e

cantor Pedro Raymundo e do trovador dos pampas Gildo de Freitas, ambos

símbolos do regionalismo. O terceiro músico a ser biografado seria Teixeirinha, se

não fosse sua morte inesperada em 1985; somente em 2007, Israel Lopes publica

Teixeirinha- o gaúcho coração do Rio Grande, primeira biografia sobre o maior

símbolo gaúcho.

Neste contexto, Cougo (2012) sinaliza que a academia também passou a

investir em pesquisas sobre a cultura regional enquanto fenômeno social, um

caminho que foi aberto com os debates entre os nativistas e tradicionalistas. A

esse respeito, os primeiros registros envolvendo pesquisas acadêmicas e a música

regionalista gaúcha, são de 1987, ambos se constituem em dissertação de

mestrado desenvolvidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o

título: Sob o signo da canção: uma análise de festivais nativistas, de autoria de

Rosângela Araújo e Festivais da canção nativa do RS: a música e o mito do

gaúcho, de Sérgio Ivan Gil Braga. Outras pesquisas, livros de memórias e outras

obras nem sempre chegam às estantes das livrarias, mas tem desenhado um

panorama crítico em relação à historiografia da música gaúcha (COUGO, 2012, p.

15).

A partir dos anos 80, a música gaúcha de vertente regionalista vê surgir

músicos que têm vivência da campanha e dominam os sons do violão.

Verificamos a persistência da vertente regional nas canções de Luiz Marenco,

Mano Lima e Jayme Caetano Braun, cujas carreiras profissionais foram

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impulsionadas pelo motivo regionalista de idealização romântica do gaúcho herói

registrado anteriormente pelo cancioneiro oral e, depois pelo conto sul-rio-

grandense.

Luiz Marenco é hoje um dos artistas nativistas mais requisitados do sul do

Brasil; tem a consciência de que seu canto está ligado a terra, valores, hábitos e

costumes de seu povo. As primeiras composições de Luiz Marenco têm, em suas

temáticas mais recorrentes, o gaúcho em suas atividades de doma, pecuária,

acompanhando, de certo modo, o romântico monarca das coxilhas dos tempos de

outrora; apontam, também, contudo, para a situação vivida, questões sociais,

políticas através da narração de um galpão vazio, da solidão atrelada ao

afastamento da família e ao êxodo rural.

Mano Lima aborda, em suas canções, a força do homem gaúcho – do herói

que deu seu sangue e a vida para defender a sua terra e as suas fronteiras; atrelado

a isso, o músico recupera a cultura e tradição de um povo, ambas localizadas no

espaço campesino.

Jayme Caetano Braun trouxe para suas composições a questão da terra,

cantando, principalmente no início de sua carreira, a indumentária e a cozinha

tradicionais do gaúcho – o mate, a faca, o lenço, o arroz de carreteiro. Foi

intérprete dos anseios de seu povo, denunciando o uso indevido dos símbolos

gaúchos por opressores. Entre outras características de Jayme estão as referências

históricas, as quais, devido ao seu conhecimento de história e geografia, são

constantemente recuperadas nas suas payadas, e acabam por denunciar a opressão

a que o gaúcho foi submetido.

Os compositores que mencionamos, além de representar, nos anos 80, a

continuidade da vertente regionalista tradicional, de culto aos valores e costumes

gaúchos, também apresentam um movimento de reação contra ―modismos‖

evidenciados através de duas novas linhas de produção musical que surgiram

nesse mesmo período, as quais traremos em nosso trabalho para demonstrarmos

outras vertentes que correm paralelas à canção regionalsita de Luiz Marenco,

Mano Lima e Jayme Caetano Braun.

A primeira linha ou corrente de produção se convencionou chamar de

Música Popular Gaúcha (MPG), composta por músicos que não se identificavam

nem com nativistas, nem com tradicionalistas, os quais produziram músicas de

temática urbanas e, a segunda, conhecida como Tchê Music, proveniente da

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mistura de ritmos musicais utilizados no Rio Grande do Sul com outros ritmos de

origem nordestina. Ambas as correntes defendiam caminhos diferentes para a

composição, que fugissem do antigo molde já explorado pelos festivais. Na

Música Popular Gaúcha, por exemplo, o campo dá lugar ao urbano e os feitos

heroicos são permeados pela dúvida; a mulher ingênua do campo é substituída por

uma mulher da cidade, sedutora. Assim, não é evidenciado o mito do gaúcho herói

nas composições da MPG, emergindo um homem urbano desmitificado. Nelson

Coelho de Castro, Bebeto Alves e Gélson Oliveira são considerados os principais

protagonistas da MPG.

Tanto o músico Nelson, quanto Bebeto e Gélson participaram, em 1992, de

uma entrevista mediada por Luís Augusto Fischer (1998). Nesse encontro os

quatro falaram sobre a denominação de Música Popular Gaúcha – MPG, também

se posicionaram acerca da carreira de músico, abordando temas como mercado e

imprensa. O músico Bebeto Alves afirma não aceitar o rótulo de MPG, isto

porque para ele não há diferenciação entre a sua produção e a produção da MPB-

Música Popular Brasileira ―por mais regional que ela seja MPG é um conceito que

não corresponde à realidade‖. Quando questionado sobre o motivo da existência

de tal ―rótulo‖, Bebeto apresenta uma relação com a questão identitária gaúcha:

Acho que isso faz parte de um sentimento arraigado do homem que

vive aqui, do espírito gaúcho, que é o de se diferenciar por pequenas

coisas. Há uma falta de abrangência no pensamento, de se sentir

fazendo parte do mundo, que é algo muito maior. Nós podemos

guardar nossas características, ser fieis à nossa origem, sem deixar de

perceber o mundo. (FISHER, 1998, p. 189).

Com relação ao mercado e à imprensa, tanto Nélson quanto Bebeto partem

do fator diferencial da música e cultura do Rio Grande do Sul para explicar a

dificuldade de fazer sucesso num período inicial. Nelson afirma que, no estado do

Rio Grande do Sul, existe uma cultura de autor, o que não gera um

―megassucesso‖ na mídia; ainda o mesmo músico exemplifica o processo que,

segundo ele, é de fundamental importância para o reconhecimento e, posterior

sucesso: ―Na década de 70, tinha o Júlio Furst na Rádio Continental, que dizia:

‗Na Porto Alegre de Fernando Ribeiro, 14 homem‘. Ele vendia isso.‖ (FISHER,

1998, p. 190). O que o cantor e compositor quer dizer é que todo movimento

precisa que um integrante da mídia se encante com a proposta para divulgá-la.

Para Nélson, falta ainda uma indústria do disco que vá além do que o CTG se

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propõe, pois o Centro de Tradições Gaúchas representa apenas uma parte com

relação ao todo, e essa é a parte mais popular, por isso o músico argumenta que:

Eu acho que ela tem alguns problemas, porque não consegue absorver

nada externo, é muito radical, muito conservadora. Digo isso porque

houve um momento em que tentamos fazer uma ponte, absorver essas

coisas, mas fomos enxotados. Era o ―bum‖ do nativismo, início dos

80, quando estávamos resgatando isso e projetando para um universo

que achávamos mais real, mais lúcido. (FISHER, 1998, p. 192)

Ainda no que tange à produção gauchesca, o compositor Nelson ressalta a

riqueza das composições musicais sulinas ao representar esteticamente o seu tipo

humano e o seu espaço. Contudo, ele acrescenta que a produção é rica, mas não é

popular, o que Bebeto complementa argumentando: ―Ela poderia ter-se tornado

popular no limiar dos anos 80, quando estávamos fazendo a transposição do

regional‖ (FISHER, 1998, p. 192) Ambos queixam-se do fato de serem os

pioneiros, pois assim sendo, são eles os que produzem, divulgam e contam as suas

histórias, atuando desde como compositores até antropólogos.

Se, no circuito nacional, essa identidade gaúcha mediada pela canção

apareceu esporadicamente, com exemplos esparsos antes dos anos 70, de lá pra cá

o circulo da música gaúcha segue conquistando novos ouvintes. Fonseca (1998, p.

187) afirma que: ―de norte a sul do país, o circuito antenado sabe de Bebeto

Alves, Vitor Ramíl, Nei Lisboa, Cheiro de Vida [...] e o circuito de massa tem

como estrelas Kleiton & Kledir (ainda), Gaúcho da Fronteira, Renato Borghetti

[...]‖.

As bandas que são classificadas como Tchê eram, originalmente,

pertencentes ao segmento tradicionalista, atuando junto a CTGs. No entanto, na

busca pela ampliação de seu público, abandonaram alguns elementos como a

vestimenta típica e o ritmo musical e incorporaram outros relacionadas a

vestimenta e a linguagem que tornaram inviável a identificação da Tchê Music

com o MTG. No entanto, alguns músicos que integravam a Tchê Music e, que,

por muito tempo desafiaram patrões de CTGs, renderam-se novamente ao

tradicionalismo. Essa notícia foi extraída do Diário Gaúcho através do escrito de

José Augusto Barros, intitulado ―Será que é o início do fim da tchê music?‖,

segundo o qual os filhos da tradição estariam retornando para sua casa.

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Entre os nomes da tchê music que retonam estão Luiz Cláudio e o grupo

Quero-Quero; já outros, como o Tchê Barbaridade, estariam tentando o meio-

termo. Sobre esse fato, o presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore

(IGTF), Manoelito Savaris afirma que: ―não será tão simples assim. Se voltarem a

fazer música gaúcha tradicional, tendo a postura adequada, serão contratados. Mas

poderão ter dificuldade, pois haverá desconfiança‖.

Paixão Côrtes, crítico de todo e qualquer tipo de radicalismo com que

tradicionalistas tratam a questão da Tchê Music, ressalta: ―Sou contra qualquer

medida proibitiva, mas sou a favor de conceituação, da diferenciação dos estilos

claramente‖. Depois ainda acrescenta que os integrantes da tchê music ―não

guardam raiz com nada!‖ Para finalizar sua opinião sobre esse ―movimento

musical‖ Côrtes menciona que: ―Todo modismo tem tempo limitado, é

circunstancial, consumista.‖... Luiz Claudio justifica o seu retorno argumentando

que ―O nosso público começou a nos cobrar músicas tradicionais. Nunca cuspi no

prato que comi, apenas segui um caminho que achei conveniente na época. Voltei

para ficar‖ (DIÁRIO GAÚCHO, 17/10/ 2009).

Trazemos para a nossa discussão esse fato acerca da Tchê Music por

entendermos que, através dele, continuamos a nossa abordagem sobre

permanência e persistência da vertente regional na canção gaúcha, pois ele revela

que o percurso da música regionalista continua encontrando refúgio nos ecos da

antiga tradição e cultura. Mano Lima – compositor que continua nos anos 80 o

cultivo da vertente regionalista, manifestou sua preocupação sobre esses

modismos, principalmente, com receio de que as raízes da cultura e tradição sejam

ofuscadas. No entanto, esse mesmo compositor argumenta que é responsabilidade

do Movimento Tradicionalista Gaúcho estabelecer os parâmetros de produção da

música que se diz regionalista gaúcha, para saber diferenciar as linhas e vertentes

defendidas por cada um em suas composições e manifestações.

Sem sombra de dúvida, a canção típica rio-grandense auxiliou a própria

consolidação da imagem do gaúcho enquanto um tipo distinto dentro do universo

mais amplo do população brasileira. Neste trabalho, atemo-nos à análise da

vertente regionalista tradicional, pois como diz Nilda Jacks (2003), a compreensão

da MPG demandaria um estudo específico.

A canção ajuda na construção do ―tipo gaúcho‖ no imaginário nacional,

também desempenha um forte papel nos processos de reprodução, permanência e

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reinvenção dos valores iniciais constituintes do regionalismo: o sentimento de

orgulho pelo chão, a exaltação do gaúcho, a valorização do pampa, dos hábitos e

costumes, conferindo uma identificação coletiva para a gente gaúcha na

contemporaneidade, as quais podem ser reveladas mediante as regravações e

também mediante ao surgimento de músicos engajados com a proposta

regionalista tradicional que norteiam nosso trabalho.

Diante disso, no próximo capítulo, analítico, partiremos do pressuposto de

que a letra que compõe a canção revivifica os laços identitários, possibilitando

cantar o passado da glória, batalhas e heroísmo, dando continuidade à inscrição da

vertente regionalista verificada no conto gaúcho.

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3 A VERTENTE REGIONALISTA EM CONTO E CANTO

3.1 O conto regionalista

Neste capítulo buscaremos demonstrar, através de um estudo analítico, os

temas e motivos que movem o regionalismo na contística gaúcha desde os tempos

iniciais até sua renovação, a partir dos anos 1970. Para registrarmos a presença da

vertente regionalista, pautaremos nossa análise nas diferentes nuances de

regionalismos sinalizados por Bittencourt na contística sulina, ocupando-nos da

mesma terminologia utilizada pela pesquisadora para definir os quatro

regionalismos: o primeiro regionalismo - o romântico que evidencia o herói

gaúcho e seu passado guerreiro através do conto ―Monarca das coxilhas‖, de

Apolinário Porto Alegre; o segundo regionalismo, que narra o desaparecimento do

antigo gaúcho a partir de uma influência real-naturalista, através do conto ―Velhos

tempos‖, de Darcy Azambuja; o terceiro, que revela o influxo do modernismo

baseando-se no modelo de Simões Lopes Neto, através do conto ―Trezentas

onças‖, de Lopes Neto e o quarto, e último, um regionalismo chamado de crítico

ou social a partir do conto ―Tempo de seca‖, de Cyro Martins. Depois desses, a

fase de transição será observada a partir do conto ―O boi das aspas de ouro‖,

Barbosa Lessa e, por último, a renovação no conto sulino da temática regionalista

a partir do conto ―Cavalo cego‖, de Josué Guimarães.

3.1.1 A idealização do herói gaúcho: Apolinário Porto Alegre

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita do conto ―O monarca das

coxilhas‖, faz-se necessário evidenciar o contexto histórico que permeia os

escritos de Apolinário Porto Alegre e o início da literatura sulina em prosa. Os

anos de 1860 e 70 foram, para o Rio Grande literário, o começo da circulação em

escala apreciável das letras, em revistas e jornais, no teatro e nos encontros do

Partenon Literário.

Nesse sentido, o início de uma literatura sul-rio-grandense voltada para as

questões locais foi possível devido ao projeto liderado pela Sociedade Partenon

Literário, a qual evidenciou a necessidade de propostas originais que

demonstrassem, segundo Glodomiro Paredes (1869, apud Zilberman, 1985, p.

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21), amor à terra natal, resultando daí a valorização e descrição do modo de vida e

costumes gaúchos. Mais detalhista, Taveira Júnior é quem vai indicar os temas e

motivos a serem desenvolvidos pelos escritores rio-grandenses:

O aspecto de suas serranias elevadas, de seus bosques enflorescidos,

de suas campinas verdejantes, de seus rios e cachoeiras; o cântico de

suas aves multicores, a majestade de suas florestas, a par de um céu

esplêndido – basta para inspirar-vos a verdadeira poesia do belo. Em

nossas lendas, em nossas tradições, em nossos costumes, no valor de

nossos bravos, encontrareis uma fonte inexaurível para o romance,

para o drama, para a história, para a epopeia (TAVEIRA JÚNIOR,

1886, apud Zilberman, 1985, p. 22).

Esses estudos revelam a busca da geração dos românticos pelo

estabelecimento de uma temática regionalista singular, a qual garantiria o

fortalecimento das condições de produção e circulação da literatura sulina. Regina

Zilberman ressalta que cabe à literatura estabelecer a identidade com o meio

através de elementos retirados da história e dos hábitos locais, com função

educativa e moral, levantar o público e fortificar as instituições civilizatórias; a

autora ressalta o papel de Apolinário Porto Alegre nesse sentido:

Compete a Paisagens, de Apolinário Porto Alegre, concretizar estas

metas: dar vazão ao anseio de representação literária das sugestões

locais; fundar uma literatura autônoma; propor um outro tipo de

relação com o leitor [...] e, até mesmo, dar corpo e consistência ao

público que precisava crescer ou, ao menos, amadurecer (REGINA

ZILBERMAN, 1985, p. 22)

Apolinário Porto Alegre em seus ―rápidos esboços de cenas campestres‖

vai se destacar por evidenciar um tipo sul-rio-grandense, o gaúcho, apresentado

em seus escritos (poesias, contos e romance) como livre, altivo, leal, amigo de seu

cavalo, vigia da fronteira. O livro de contos Paisagens é assinado com o

pseudônimo Iriema, abrindo uma série que o torna pioneiro na exploração do

regionalismo. João Pinto da Silva, em sua História literária do Rio Grande do

Sul, elogia Paisagens, justamente por seus tipos regionais: ―Nas Paisagens

aparece pela primeira vez, sob forma viável, como fator estético, o nosso homem

do campo, desdobrando-se numa série pitoresca de personagens saturadas do

Romantismo, a exemplo, aliás, dos mais famosos livros da época‖ (2013, p. 145).

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Paisagens é composto por seis histórias: ―Mandinga‖ (1867), ―Pilungo‖

(1874), ―Os butiazeiros da tia Anastácia‖ (1870), ―O valeiro‖ (1869), ―A tapera‖

(1869), ―O monarca das coxilhas‖ (1869). Pelas datas indicadas em cada conto,

evidenciamos que o período em que foram escritos se estende de 1835 – início da

Revolução Farroupilha – até 1850, época em que já estavam extintos os efeitos

mais imediatos do conflito. O conto que selecionamos para nossa análise ―O

monarca das coxilhas‖, além de ocupar-se do cotidiano campeiro e da personagem

típica sul-rio-grandense aborda, de modo singular, a dicotomia campo e cidade.

Assim, a narrativa introduz os hábitos, os costumes e os sentimentos que estão

arraigados à figura representada pelo monarca e que se estende no viver dos rio-

grandenses. No entanto, o monarca das coxilhas aparece no texto como objeto, e

não sujeito da percepção do mundo, pois o leitor vai conhecendo a realidade do

campo a partir da percepção de Oliveira, o homem da cidade de Rio Grande que

se desloca para a região das Missões em uma jornada de 59 dias.

O conto inicia com a descrição dos motivos que levaram o Sr. Oliveira a se

direcionar para as Missões. Seu propósito era encontrar os herdeiros (um irmão e

duas irmãs) do falecido Sr. Abílio Escafuza, seu sócio na casa Oliveira & Cia, que

tinha vindo, ainda moço, da campanha para seguir carreira do comércio. Logo no

início, o leitor se depara com a expectativa do Sr. Oliveira para conhecer as

Missões, as quais ele idealizava, relacionando-as às narrativas que escutava

quando criança: ―Além de um passeio higiênico e onde podia apreciar os

costumes de camponeses, cujas proezas assemelhavam-nos aos heróis dos contos

de cavalerias que ouvira em criança [...]‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 106).

Em seu trajeto da viagem, depois de esgotado o trajeto fluvial, Oliveira

precisou montar a cavalo, algo que não estava habilitado para fazer, pela sua

condição sedentária de vida; assim, arranjou um carretão e lá se foi em direção às

Missões. No entanto, no segundo dia de viagem o carro tombou, e lhe restou a

―Cila e Caribdes‖ entre as duas opções: ―o carro prometia um novo baque e o

cavalo dores no espinhaço‖. Ele preferiu o cavalo:

Não encontrou todavia cavagaldura que se quadrasse com seu corpo,

apesar de algumas serem excelentes e cômodas, que podia ir-se com

um copo d‘água sem derramar-se uma gota. Caminhou uma hora no

primeiro dia e não pode mais. Sentiu dores nas costas, nas pernas, nos

intestinos e parecia ter os braços deslocados. Um vaqueano e um peão

que iam em sua companhia achavam estranheza no caso, mas não

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tugiam: ganhavam o salário mais comodamente ( PORTO ALEGRE,

1987, p. 107).

Nesse trote em cinco dias, o Sr. Oliveira fez tanto caminho quanto

qualquer campeiro, porém para ele: ―O trote vascoleja-me as tripas, como o mar

sacode uma barcaça; o galope dá-me tonturas, parece que vou caindo duma torre

de cabeça para baixo‖ (1987, p. 107). Diante de tanto sofrimento e inadaptação,

durante as horas de pouso, a filosofia lhe fazia companhia, fazendo-lhe pensar em

―Quantas saudades não tinha do Rio Grande!‖; resume seu desconforto ao

imaginar que, se fosse poeta, a viagem lhe inspiraria a expressão de dissabores:

―Uma viagem, despedida, saudades, desalento, infortúnio e outras de tal jaez‖

(1987, p. 107). Essas primeiras percepções do Sr. Oliveira com relação ao meio de

condução e ao hábito de cavalgar vão conduzindo o leitor para a dicotomia campo

e cidade: ―- Quem mandou meter-me na esparrela, sem tomar pulso às posses? Eu

por estes sertões! Que loucura! Qual! Todo o homem tem lá um dia em que o

miolo desconserta‖ (1987, p. 108).

Quando Oliveira entrou nas Missões, procurou pelo irmão de Abílio, o

Sancho Escafusa, e, para sua surpresa, este era conhecido em sua terra por

―monarca das coxilhas‖. Oliveira, contudo, ainda não havia chegado ao destino

final, pois teria que percorrer mais um trajeto que, segundo o vaqueano, era

próximo: ―- Meu amo, estamos perto, por isso era melhor que subisse em minha

garupa. Não se arreceie, num pulo estamos lá‖ (1987, p. 109). No caminho até o

rincão de Sancho, Oliveira vai imaginando o motivo pelo qual Sancho era assim

denominado e já concluía, de antemão, a ascendência da figura: ―Monarca das

coxilhas! Repetia de si para si... Um monarca?! Deve ser personagem de alta

posição, para ser tratado assim. E eu que vinha apresentar-me com ares de

importância?‖ (p. 109).

O conto revela, durante o difícil deslocamento de Oliveira, o trabalho do

vaqueano e do peão, sua coragem e a vida perigosa (aos olhos de Oliveira) que

esses levam: ―O negociante julgava estar num mundo como o dos Liliputs no

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Gulliver de Smith1 ou no planeta dos homens-árvores no Niel-Klim de Holberg.

Coisas tão estranhas nunca vira. – É o país dos absurdos, resmoneava entre os

dentes, preparando-se para dormir à borda dum capão‖ (p. 110).

A condição do espaço e os costumes dos camponeses quanto à medição do

espaço também são descritos durante o percurso: ―Alguns tiros de laço daqui. Está

vendo aquele rincão? Na costa de lá há um arroio. Passe adiante, caminhe um

bocadinho e encontra uma sanga que tem uma pinguela; acima da pinguela.‖.. (p.

110).

Ao definir o sentido da monarquia, o narrador o faz relacionando

monarquia à montaria, busca pela liberdade, prontidão para a peleia, na defesa do

solo:

Os rio-grandenses têm em nenhuma monta os tronos e cetros. Para

eles uma boa equitação vale uma monarquia; um bom cavaleiro é um

grande monarca. Parece uma irrisão, quer fosse fortuitamente dada

esta acepção à palavra, quer de firme propósito. Quem não conhecer

os costumes de nossas vastíssimas campanhas, há de estranhar que

uma só família às vezes seja o troco duma série de monarquias. E por

Deus! Valem mais que os testas coroadas os valentes campeiros do

Rio Grande. Ao menos sob cada poncho palpita um coração onde a

liberdade entronizou-se; em cada pulso lampeia uma espada ou uma

lança que fará tremer a tirania. (PORTO ALEGRE, 1987, p. 111).

Definidos os rio-grandenses, e o sentido de monarquia, o narrador resgata

a ideologia do movimento farroupilha, recuperada no conto em forma de

desabafo: ―Se quiserem a prova, abram seus anais, e aí encontrarão uma década

gloriosa, dez anos que procuram fazer esquecer, que tentam eliminar de sua

história, porque não consentem que a escrevam... Inútil e frustrânea tentativa!‖. O

narrador empolga-se e continua sua menção ao fato histórico, dando ar de protesto

pelo esquecimento do passado glorioso vivido pelos gaúchos rio-grandenses:

1 O autor, equivocadamente, atribui a autoria de Gulliver a Smith, quando o correto é Jonathan

Swift. Lilliput é uma ilha fictícia do romance As Viagens de Gulliver, parte de um arquipélago

situado em algum lugar do Oceano Índico. A população de Lilliput constitui-se de pessoas

minúsculas (com menos de seis polegadas de altura, cerca de 15 centímetros), para as quais

Gulliver é um gigante. Niel-Klim- uma sátira fina, esclarecida, mordente, que, sob a capa da

alegoria, faz forte crítica. Com vistas a ridicularizar os erros do seu país e de seu tempo, Holberg

cria a personagem Niel Klim, um estudante honrado que vai descobrir uma gruta, a qual chama de

planeta, em que os homens são árvores. Andam e falam, e a nobreza se expressa pelo número de

galhos. Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000001.pdf

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―Tradições tão brilhantes, grandiosas e sublimes não se extirpam, morrem com o

povo em que nasceram, são a arca santa, o tabernáculo de miríadas de gerações‖

(PORTO ALEGRE, 1987, p. 112).

Depois de aberto esse parêntese na narração da história do Sr. Oliveira,

para contar sobre as tradições gloriosas e, ainda esclarecer sobre a revolução

farroupilha e o monarca das coxilhas, o leitor é conduzido para conhecer Sancho,

o ―monarca das coxilhas‖, cujo caráter exemplar é garantido pelo narrador:

Sancho Escafusa era um verdadeiro monarca. Ninguém montava

como ele. E demais monarca das coxilhas, o que significa não só o

perfeito e garboso cavaleiro, mas o janota do pampa, que traça o pala

de vicunha com inimitável faceirice sobre os ombros e traz o pingo

coberto de pratas e fina lonca (PORTO ALEGRE, 1987, p. 112).

Evidenciamos, no conto, que a monarquia está associada ao fato de ser

bom cavaleiro, ao gosto pelo bem vestir, e o cavalo belamente encilhado. Em

meio à expectativa do Sr. Oliveira para conhecer o monarca, o conto desloca-se

para descrever a atividade de Sancho, o qual está com as duas irmãs e um escravo

trabalhando na safra da erva mate: ―Escafuza está junto a uns jiraus, sobre os

quais a erva sapecada de véspera passava pelo processo da torrefação a fogo

lento‖ (1987, p. 112). Na descrição da atividade que estava sendo realizada pelo

monarca notamos o traço regionalista da ―democracia rural‖, sinalizado por

Zilberman (1980, p. 36), pois estancieiros, campeiros, escravos ou peões

aparecem juntos nas lidas, como podemos observar na seguinte passagem do

conto:

Numa vasta eira que havia dentro do mato, área que servia para passar

ligeiramente pelas chamas os ramos tenros da congonha apenas

colhidos, e donde iam em seguida aos jiraus, duas moças, senão belas

ao menos lindas, separavam nas joeiras o pó fino do grosso, levando

este aos pilões, onde devia ser pisado para a continuação do fabrico.

Com tal trabalho os ervateiros estavam verdes, e não se podia

distinguir a face do senhor da do escravo (PORTO ALEGRE, 1987, p.

112).

O fato de o narrador não distinguir a face do senhor da do escravo, remete-

nos para a organização da sociedade primitiva rural, constituída por dois

segmentos principais: os fazendeiros e os peões; há expressão de solidariedade

compartilhada por ambos, através de suas virtudes e de sua relação com a

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estância. O texto regionalista narra a divisão social, mas não a desigualdade, pois

a atividade comum entre os segmentos sociais justificaria a ―democracia‖.

Depois de muito cavalgar, avistaram um pequeno rancho. O senhor

Oliveira começou a se arrumar para, então, conhecer o monarca das coxilhas. Ao

se aproximarem, quem abre a porta do rancho é uma velha africana. O primeiro

contato com o rancho é descrito sem muitos detalhes, mas revela a percepção de

Oliveira: ―A primeira peça, em que se achou o nosso herói, era uma sala de forro

de telha vã, chão de argila e paredes de taipa‖. Mais tarde resolveu examinar a

habitação e então relatou o seguinte:

Dos exames feitos, resultou o seguinte inventário: Três mochos em

mau estado, a um dos quais faltando uma perna. Duas mesas

toscamente trabalhadas. Três catres usados. Uma arca de guajuvira.

Tristes utensílios de cozinha. Sete pratos de louça branca, algumas

quengas. Dois alguidares, um dos quais rachado. Cinco gamelas de

timbaúva. Dezessete cuias e oito bombas. Dois sapicoás. Abundância

de surrões de couro. Dois carros de bois sob um telheiro. Cinco laços

e três pares de bolas. Vinte ajoujos, dez brochas, dez tiradeiras, duas

rijeiras e um feixe de ligais. Ferramenta e um banco de carapina

(PORTO ALEGRE, 1987, p. 114).

Notadamente, as posses do monarca estão todas relacionadas à sua

atividade e vida no campo; em seu inventário, seus objetos referem-se ao

exercício da monarquia. Aquilo tudo era estranho para o citadino, diante do

contato com Sancho e sua família – os quais descreve como ―verdes de erva‖, em

função de sua atividade no campo. Para Oliveira, parece se tratar de novos seres,

ou, ainda, seres de uma ―nova raça‖; também os julga diferentes por não

derramarem nenhuma lágrima pela morte do irmão.

Mais fortemente, o contraste entre o campo e cidade vai, a partir de agora,

nortear as caracterizações, as impressões, por vezes em tom humorístico, com

relação à inadaptação de Oliveira para com aquele cenário campestre. O senhor

Oliveira tinha medo daquele lugar, dos insetos, sentia-se inseguro. Embora o

primeiro contato tenha sido de constrangimento, a família Escafuza logo se

acostuma com a presença de um estranho. O conto aborda, também, a diferença

entre o homem do campo e da cidade, demonstrando a superioridade do primeiro,

que era caracterizado como franco e hospitaleiro, em detrimento do segundo,

calcinado pelo positivismo mercantil:

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O monarca e suas irmãs ao princípio estiveram constrangidos com a

presença dum estranho, mas decorridos alguns dias a familiaridade

estabeleceu-se entre todos. O negociante, bom coração em fundo,

embora filho duma época de positivismo mercantil capaz de calcinar

todas as fibras do coração humano, em vista da franqueza e

hospitalidade já proverbiais dos rio-grandenses, começou a estima-los

sinceramente [...](PORTO ALEGRE, 1987, p. 117).

Oliveira também se aproxima de uma das irmãs de Sancho, a Amália, que

é descrita com infinda pureza e ingenuidade, diferente da descrição de Niquinha,

que vive nas redondezas:

Esta moça era duma beleza correta e magistral. Sua fronte podia

firmar-se num busto de Fídias sem ter que recear retoques do cinzel do

artista; o contorno de suas formas, a carnação fina e transparente de

sua cútis podiam substituir o corpo das banhistas Ingress, e talvez a

obra da natureza fosse menos censurável do que os frutos do pincel e

da palheta (PORTO ALEGRE, 1987, p. 116).

Niquinha e Sancho eram namorados; na história do início do

relacionamento, existe a afirmação da ―china‖ e do cavalo como elementos

essenciais da vida do gaúcho, pelos quais ele sofre, e vive. Sancho conhece a

moça, porém ficaram dois meses sem se ver. Ele sofre tanto que chegaram a

considerar o amor igual ao feitiço. No entanto, o reencontro foi típico de um herói,

pois Niquinha e sua mãe estavam em situação de perigo. Um novilho investia

contra as duas. Sem demora, Sancho primeiro deixa as moças fora de perigo e

depois luta bravamente com o novilho.

Apesar da superioridade representada pelo espaço campestre, Oliveira não

consegue se adaptar à vida rural. Assim, com o passar do tempo, consegue fazer

com que o monarca torne-se sócio do comércio no Rio Grande e, ainda, obtém a

mão de Amália. A promessa de Sancho é de, em um ano, voltar para casar-se com

Niquinha:

Afinal lá vou por essas cidades... Bastantes desejos tinha eu de Vê-las,

há muito. Deixo os pagos, deixo a querência. Que querem? Nem

sempre há de estar-se enfronhado nos ervais. Saudades vou ter... ó que

sim! E então da minha querida Niquinha?! Vou, mas num ano estou

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aqui rente com ela, e caso-me, por Deus! (PORTO ALEGRE, 1987, p.

119).

O duelo campo e cidade é narrado, no conto, em ambos os percursos:

primeiro, na viagem de Oliveira para a campanha e, depois, na viagem de Sancho

para a cidade. Para Sancho, a saída do campo representou o seu martírio. A

primeira dificuldade foi abandonar o cavalo, deixar seus hábitos já no início da

viagem, para usar carruagem e, mais tarde, um barco. O incômodo provocado

pelos novos meios de transporte causava-lhe enjoo:

O Sr. Oliveira veio trazer-lhe uma xícara de café. – Tome, mano.

Deve fazer-lhe bem. – Ai! Ai... Eu lá tomo essa cousa?! Nem um

chimarrão aqui!... Ah! Meus pagos! Quem mandou-me deixar-vos!?

Que dores nas fontes, mano! Que aflições! ... Eu morro...Ai! Ai! E

agarrava-se à amurada com ambas as mãos. (PORTO ALEGRE, 1987,

p. 120).

Já na cidade, os transeuntes diferenciavam Sancho dos demais e

chamavam-no de guasca, isso devido a sua forma diferente de pisar, pela sua

inadequação àquele espaço. Ressaltamos, nessa identificação e diferenciação, a

questão geográfica em sua definição dos traços biológicos das personagens: ―O

hábito da gineteação faziam-no também pisar contrafeito, o que por si só chamava

a atenção‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 121). Na realidade urbana, duas coisas o

incomodaram seriamente: ―o andar todo vestido à urbana, e as areias‖, porém o

espetáculo da cidade lhe agradava. Sancho sentia falta da nostalgia do viver no

rancho, do cavalo baio, dos belos campos, essa saudade era infinda.

Para melhor adaptá-lo, Oliveira ofereceu-lhe uma ―chacra‖ e um cavalo:

―Houve melhoras sensíveis. Sancho apenas jantava seu churrasco sem sal

gotejando sangue e bebia o seu clássico chimarrão, o que preparavam meramente

para ele, porque seu mecanismo digestivo não se dava com iguarias da cidade, ia a

pé até a rua do Castro, donde saía montado‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 121).

Sancho queria ―monarquear‖ na cidade e, nesse ímpeto, chegou a imaginar

que estava no campo, o que lhe causou preocupação e envolvimento com a justiça.

Depois disso: ―O infeliz monarca das coxilhas abandonou para sempre a

equitação, numa terra em que esta arte colhia só espinhos e dissabores‖ (p. 122).

Não podendo mais montar, seu trabalho foi lidar com a horticultura, para, assim,

lembrar-se dos tempos nas Missões. A ―chacrinha‖ se desenvolveu pelo trabalho

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do monarca, e em pouco tempo árvores frutíferas podiam ser vistas na antiga terra

de solo inculto e endurecido. A promessa seria maior se não fosse um novo

envolvimento de Sancho com a justiça e a polícia.

Desta vez, ele havia se envolvido em uma briga no momento em que, sem

intenção, na volta de seu trabalho, resolveu tirar as botas, que lhe incomodavam, e

enterrar o pé na areia. Ao retirar o pé, o faz de modo brusco, e acaba acertando a

face de um sujeito, que o chama de ―bêbado insolente‖. Assim, o motivo da briga

estava formado; o sujeito utilizava uma bengala de pau ferro e Sancho, que não

saía sem seu facão trazido da campanha, lutou em defesa. Tal briga o levou

injustamente à prisão, pelas acusações proferidas pela população.

Preso, o monarca revoltou-se contra a sociedade, e foi humilhado: ―O

cárcere para ele era o maior desdouro, a maior afronta a um homem de brios.

Quase enlouqueceu nas vigílias da prisão‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 124).

Depois desse fato, Sancho concluiu, definitivamente, que a cidade não era seu

lugar e, como havia prometido para Niquinha, voltou para o aconchego do campo,

deixando para trás as duas irmãs, mas ainda mantendo a sociedade com Oliveira.

Neste conto, podemos identificar a recuperação da figura do herói já

inscrito no imaginário coletivo através do cancioneiro, principalmente a partir de

dois elementos: as cenas campestres e o vocabulário regional, com vistas a

representar o tipo humano campeiro, suas tradições e hábitos e torná-lo assim

conhecido. Cenário e linguagem correlacionam-se em sua narrativa; ao primeiro,

o autor dedica o seu olhar atento e manifesta em uma escrita detalhista daquilo

que visualizou, ao mesmo tempo em que revela sua origem. Ainda, através da

relação campo e cidade, conseguimos apreender a importância do local para a

configuração da personagem na narrativa, assumindo, inclusive, um conjunto de

valores. A valorização do passado, na saída de Sancho do campo e sua

inadaptação ao novo, revelam a integração da personagem a uma ordem natural –

o pampa, o cavalo, a simplicidade do rancho atentando para o fato de que o

estranho será sempre o homem que vem de outro espaço.

3.1.2. Influências real-naturalistas, desaparecimento do herói: Darcy

Azambuja

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Embora os escritos de Darcy Azambuja preconizem uma ideologia

conservadora de idealização do gaúcho herói, preservando seus valores e

qualidades, o apego à terra, o trabalho campeiro, as descrições das paisagens e

tipos humanos são transcritas de modo realista, sem exaltações e ornamentos

típicos do primeiro regionalismo de influência romântica. O regionalismo da

literatura sul-rio-grandense, através de Azambuja, foi atualizado, e seu livro No

galpão acaba por introduzir uma nova visão literária.

Zilberman considera que No galpão traz consigo duas fases do

regionalismo gaúcho: o saudosismo atrelado ao passado gaúcho e a própria

alteração dessa vertente, afetada pela modernização e pelas modificações na

economia agrícola:

No galpão dá as pistas para um eventual percurso da prosa

regionalista: cabia-lhe explorar estes veios relativos à condição

marginal e alienada do trabalhador do campo e as transformações por

que passou a economia gaúcha, a fim de poder sobreviver enquanto

assunto literário, ou manter-se nesta valorização de um passado cada

vez mais mumificado devido ao desaparecimento das circunstâncias

que marcaram o seu nascimento (ZILBERMAN, 1980, p. 65)

A obra No galpão foi configurada como a criação mais importante do

autor, justamente porque Azambuja consegue entrelaçar o passado regionalista e o

futuro da própria vertente regionalista, ou seja, ao mesmo tempo em que Darcy

Azambuja ajudou a legitimar um imaginário voltado para a campanha, procurou,

ainda, atualizar e preservar aspectos e valores inscritos na memória coletiva.

O espaço a ser representado no modelo regionalista de Azambuja, assim

como na maioria das obras de cunho regionalista produzidas no Rio Grande do

Sul, é a campanha, lugar privilegiado que se destaca diante das demais regiões,

inclusive do meio urbano, configurando-se, portanto, como o espaço natural do

monarca, do guasca livre. Especialmente na obra de Azambuja, o leitor vai

identificar essa relação com a campanha em um plano memorável, pela

rememoração do passado em virtude da rejeição atribuída à modernização.

No galpão, publicado em 1925, é composto por dezesseis contos: ―Fogão

gaúcho‖, ―Contrabando‖, ―Carreteiros‖, ―Brinquedo pesado‖, ―Juca da

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Conceição‖, ―Por pena‖, ―Velhos tempos‖, ―Querência‖, ―Charla‖, ―Dia de

chuva‖, ―Andarengo‖, ―Lagoa morta‖, ―Fazendo aramado‖, ―Beira de estrada‖,

―Emboscada‖ e ―Passo brabo‖. Em cada um dos contos são representados

personagens típicas tanto da cidade como do campo, através de uma linguagem

poética, sensível, em que a paisagem e a campanha fornecem os predicados que

caracterizam o gaúcho e o período de modernização sofrido por esse.

O conto selecionado, ―Velhos tempos‖, aborda os sentimentos de

despertencimento, estranhamento, causados pela invasão da tecnologia no espaço

campeiro; nesse sentido, vamos identificar o rural e o moderno em confronto e,

ainda, o passado exposto pelo viés da saudade com a qual a personagem recorda

seus bons e velhos tempos, tempos de guerras e glórias, os quais o protagonista,

Severo, vivenciara outrora.

O início do conto narra o olhar do velho gaúcho Severo para a estância,

quando já estava fora de suas divisas, no alto de coxilha. Seu último olhar já é

permeado pela diferença, pelo desânimo e pela saudade, pois ele nem reconhece o

antigo campo natal e, por isso, estava abandonando-o:

Não parecia o mesmo. E ele, que nascera ali, e vivera e envelhecera

entre aquelas dobras verdes da terra, já quase não conhecia mais o

pago. Retalhara-o em pedaços um emaranhamento constritor de

aramados inumeráveis. Aproveitando-o melhor, tinham-no deformado

e morto, matando-lhe a alma imensa, que era a vertigem de extensão

desmarcada (AZAMBUJA, 1960, p. 81).

Agora ele não via mais os campos abertos em que o gado corria solto; tudo

o que os seus olhos alcançavam eram os pedaços de terra, envoltos por aramados,

que haviam sido feitos para um melhor aproveitamento econômico:

Já não se corria o gado, não se laçava mais campo fora. O brete

monotonizara as agitadas marcações, e os animais de raça não exigiam

o trabalho rude mas alegre dos crioulos. De raro em raro, um rodeio,

sem correrias, sem imprevistos. O movimento desenvolto, sem peias,

a agitação primitiva e rude da gauchada, constringira-se, afeiçoara-se

forçadamente às normas novas, regulares, calculadas

(AZAMBUJA,1960, p. 82).

Podemos observar que o abandono do campo por Severo se explica devido

à mudança bruta nos costumes e tradições relativas à vida antiga na estância: ―E

tudo mais era assim, estranho e incomum. Parecia um sonho tão profunda

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mudança nas cousas e nos costumes de outrora‖ (1960, p. 82). Azambuja tipifica o

peão-guerreiro, acostumado com a lida campeira, habituado, ainda, a pelear tanto

em guerras como no trabalho na campanha. Para o velho gaúcho as mudanças

eram desconcertantes, ele se sentia invadido. Essa ―invasão‖ é justamente a

ocupação do espaço e do serviço pelas máquinas:

Aquela invasão de máquinas, sobretudo, doía-lhe profundamente. À

beira do arroio, dia e noite chiavam os locomóveis, captando água

para os arrozais. E a água límpida, sugada pelos tubos negros e

premida violentamente para as calhas, espirrava pelas fissuras,

querendo libertar-se, e parecia chorar (AZAMBUJA, 1960, p. 83).

Porém, a chegada da modernidade, além de modificar a paisagem na qual a

personagem está inserida, modificou também as pessoas e as relações entre elas,

causando enorme estranhamento. Seu olhar corre para o campo e, também fixa-se

no lugar em que antes se encontrava o velho casarão, agora todo reformulado:

―sobre os seus alicerces erguera-se a Granja Nova. Via-lhe de longe as telhas

francesas, as cúpulas, as torrezinhas pontiagudas, tudo tão leve, tão diferente da

antiga‖ (p. 83). Notamos que a personagem não aceita nem a invasão de

máquinas, muito menos a ―gente esquisita‖:

A gente também não era mais a mesma. Os patrões do outro tempo,

rudes e lhanos como ele, filhos dos pagos, gaúchos de lei, tinham

morrido ou se afastado. E não pudera habituar-se à gente nova,

esquisita, de costumes estranhos, que passeava de automóvel pelo

campo e vivia mais na cidade. Até as moças... Louras, claras, que

andavam a cavalo, vestidas de homem, rindo e falando alto – não

podia acreditar que fossem patrícias, tão diferentes das morenas

recatadas dos outros tempos (AZAMBUJA, 1960, p. 84).

Para Severo, tais mudanças representavam a morte do pago. Só sentia-se

alegre quando se aproximava dos mateadores no galpão e contava-lhes a história

de ―outro tempo‖, o velho tempo que, em sua acepção, humilhava-os. Sua alegria

está arraigada ao passado; na possibilidade de contar, reviver e reconstruir, ainda

que imaginativamente, os velhos tempos, estavam seu motivo para reanimar-se e

seguir vivendo. São episódios que relembram, além da vida no campo, episódios

guerreiros, como quando rememora episódio ocorrido durante a Guerra da

Tríplice Aliança, quando sob o comando do general gaúcho Osório, atravessa o

rio Paraná no Passo da Pátria, entrando no território inimigo. Assim, movido por

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uma linguagem breve e enérgica Severo revive através da lembrança a guerra

grande:

Foi logo depois do Passo da Pátria. Estávamos acampados assim numa

recosta, na beira dum mato ralo. Quase toda a cavalaria meio cansada,

mas como aspa de novilho, de afiada. O seu general Osório tinha

mandado um reconhecimento, e esperava-se a toda hora o toque de

encilhar. A paraguaiada... (AZAMBUJA, 1960, p. 85).

Evidenciamos que o fato de relembrar o período da guerra fortalece um

traço histórico que acentua, de um lado, a violência gratuita e, de outro, a

violência em nome da honra. Ainda, a prontidão para lutar mesmo em meio ao

cansaço é motivo para vanglória diante dos demais. Depois de contar suas

histórias, Severo novamente voltava ao seu isolamento, cada vez mais infindo,

pois sentia que precisava deixar para sempre a Granja Nova.

Indiferente à maneia como vivia aquela ―gente nova‖, ele partiu

carregando junto a si o desprezo a todos, inclusive ao lugar em que trabalhara

setenta anos: ―Parece mentira! Quem diria que aquilo tudo mudasse do dia para a

noite... A casa velha derrubada‖ (1960, p. 86). Notamos que a alusão à campanha,

como matriz de uma identidade cultural, sustentadora de todo um imaginário, não

se dá apenas pela descrição física e da paisagem, mas, sim, pela apresentação

desta última como espaço de um passado heroico: ―O velho pôde, então, naquela

derradeira vista de conjunto, ver quanto estava mudado o seu campo natal‖ (p.

87).

A substituição de valores é pouco apreciada pela velha geração, a qual

representa na narrativa o mundo gauchesco autêntico. Nesse sentido, a decadência

apontada associa-se, de um lado, ao abandono da tradição e, de outro, atrela-se ao

fato da modernização. Ainda assim, observamos que, ao condenar o moderno, as

circunstâncias que motivaram tal modernização são omitidas, dentre as quais

Zilberman (1985, p. 30) enfatiza a associação com o capital estrangeiro e a

manutenção da política de exportação dos produtos primários, como a carne, o

couro, acentuando a vocação de dependência da economia regional.

No conto, a vida nova, representada pelo presente, repele a personagem;

seu olhar durante a saída e afastamento do campo, parecia querer gravar, ou até

mesmo buscar, a antiga paisagem, para carregá-la consigo. O sentimento de

abandono era predominante; contudo, o olhar para o horizonte lhe acalmava, pois:

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―surgiam recordações, trechos do passado, fragmentos de outras vidas, outros

tempos povoando o mesmo cenário. A animação crescia, cercava-o [...]‖ (1960, p.

87).

Severo vive no passado e se recusa a aceitar as modificações do presente;

apenas se reencontra quando um dos aspectos mais marcantes do seu passado

retorna ao presente, a guerra. Um ano se passou; após esse corte temporal, inicia-

se um segundo momento, em que a paz anterior se opõe à atividade guerreira. Era

setembro, de novo, ―uma primavera de sangue‖ (p. 88), e a revolução de 1923

devolve à personagem sua antiga vida: ―O pampa convulsionava-se em mais uma

guerra civil‖ (p. 88). Severo está de volta, lutando, mas feliz, porque o seu pago

havia revivido:

A comoção empolgou, repetindo fielmente as fases de desdobramento

das lutas anteriores. Mobilizavam-se os homens, mudavam-se os

gados, sítios eram abandonados, grupos cruzavam-se, reuniam-se,

engrossando; piquetes autônomos, corpos defluindo às agregações

prefixadas; brigadas volantes, divisões efêmeras. A fronteira animava-

se como no tempo das invasões; tropas de gado emigrando para

invernadas seguras, grupos de guerrilheiros indo e vindo,

contrabandos de equipamento às forças improvisadas – a osmose

secular de três povos em contato (AZAMBUJA, 1960, p. 88).

A guerra une o passado e o presente, permitindo a consagração do tipo

humano sulino e de seus valores: a coragem, a bravura e a entrega da própria vida

em benefício de sua terra: ―O combate foi bem defronte à Granja Nova. Desde o

começo da revolução, aquela região povoada e fértil, a cavaleiro de rumos

propícios para incursões e retiradas, vinha sendo constantemente batida pelas

forças em luta‖ (1960, p. 90).

A força de sua memória realizava-se, proporcionando-lhe a alegria de

reviver seus momentos de glória, suas velhas saudades, os velhos tempos que

sempre viveram para ele:

E a pouco e pouco consumou-se a destruição do labor de tantos anos.

Os aramados por terra, as taipas arrombadas, queimado como lenha o

madeiramento das calhas, o arrozal amassado na lama endurecida, as

máquinas enferrujando às intempéries, abatidos os rebanhos, as

invernadas feito campo raso, logradouro de quem quisesse [...] Todo o

campo talada e aberto. Fizera-se arena, onde sempre tremulava alguma

flâmula de guerra (AZAMBUJA, 1960, p. 91).

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Inclusive, parece que a guerra ia devolvendo à campanha a sua antiga

condição, pois durante a guerra é narrada a desconstrução de tudo aquilo que

modificara o espaço campestre e que não permitia a identificação de Severo no

início da narrativa:

A pouco e pouco o assalto ganhava terreno. As telhas da Granja

voavam em estilhas e na copa enfolhada dos plátanos os projéteis

esfuziavam, derrubando chuvas de ramos e folhas. O ar vibrava de

zunidos, ruflos, assobios, e estralejar das metralhadoras. De quando

em quando, através da cerca que servia de trincheira, braços erguiam-

se, convulsos, e tombavam (AZAMBUJA, 1960, p. 92).

O inimigo não é revelado; o que importa é que a bravura, uma vez mais, se

faz necessária na defesa da terra: ―Lances de louca bravura entremeavam os de

ódio e desespero. De lado a lado os combatentes resguardavam, e morriam, uns

sorrindo, outros gemendo fracamente, alguns praguejando‖ (1960, p. 93).

Severo, ―remoçado‖, estava entre os da ―testa‖: ―Remoçara, de fato, com a

vida guerreira. Sentia-se novo, e aguentava alegre, como ―da outra‖, a existência

vibrante e dura de marchas forçadas, de acampamentos, sempre no lombo do

pingo, combatendo sempre, comendo quando Deus queria‖ (1960, p. 93). No

entanto, dessa última guerra, já no final, uma lança em riste acertou Severo, que

ficou ouvindo os fortes ruídos e, ainda morrendo, em uma última visão, levou

consigo os pagos de antigamente:

tudo aberto, escampo, e o solar feito baluarte estrondejante de

descargas em meio a campanha em guerra... E o duro lutador ainda

murmurou: - Agora sim... Agora sim, os seus pagos tinham revivido.

E, pendeu a cabeça, os olhos já vidrados, consolado em morrer pela

vida que voltava (AZAMBUJA, 1960, p. 94).

Observamos que, em ―Velhos tempos‖, a memória da personagem é que

evidencia os principais aspectos que revelam o passado e, ao mesmo tempo,

diferenciam-no do presente. Além disso, a memória de Severo interfere no

processo de significação das mudanças relativas à chegada da modernidade; são as

recordações do passado que o fazem rejeitar as modificações do presente, uma vez

que o passado interfere diretamente nas relações estabelecidas com o presente.

Em sua narrativa, Azambuja expressa aspectos muito significativos do

regionalismo gaúcho, mesclando a temática da saudade com o viés da

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modernidade e dos costumes gaúchos. O autor apresenta a guerra, elemento do

passado, de modo bem vivo, no presente. Os velhos tempos da personagem

ganham sentido junto às recordações, porque enfrentam o presente, contrastando

com a modernidade. Ainda acrescentamos que o regionalismo assumido por

Azambuja decorre, principalmente, devido a influencia de três fatores: o espaço, o

tempo e a história em que, em vez da denúncia que observaremos mais tarde em

Cyro Martins, está presente a nostalgia que contradiz a tendência da idealização

dos primeiros regionalistas.

3.1.3 Tradição e inovação sob o influxo do modernismo: João Simões Lopes Neto

Nascido em 1865, Simões Lopes Neto faleceu em 1916, antes de conhecer

a glória. Até esse período havia publicado três obras: Cancioneiro Guasca

(1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Contos gauchescos

teve sua origem no Cancioneiro Guasca, livro que contribui, de modo muito

especial, para a história cultural e foi organizado por Simões.

Contos Gauchescos obteve seu reconhecimento apenas na sua segunda

edição, publicada pela Editora Globo, em 1926. Tal reconhecimento fez com que

o conto regionalista rio-grandense atingisse a sua maioridade: Bittencourt (1999,

p. 24) afirma que as narrativas de Lopes Neto serviram de modelo a toda uma

corrente da gauchesca que se desenvolveu no Rio Grande do Sul ao longo dos

anos 20 e início dos 30. Sob a influência modernista, a releitura da obra de Simões

pode evidenciar a conservação dos traços tradicionais do regionalismo, os quais

reforçaram ainda mais o gosto pelos temas locais, o culto pelas raízes culturais e

também pelo patrimônio histórico; por outro lado, evidenciamos, na obra de

Simões uma heterogeneidade de influências, dentre as quais heranças

alencarianas, cancioneiras, e do real-naturalismo. Contudo, Blau Nunes, seu

inimitável narrador, também se distingue dos padrões do realismo, pelo uso de

uma voz narrativa interior ao mundo representado, narrando a realidade com

subjetividade.

No prefácio da obra, o vaqueiro Blau (e também narrador) é apresentado

ao leitor por um narrador anônimo a quem os patrícios gaúchos (os leitores)

devem escutar. Patrício escuta-o:

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Genuíno tipo – o crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era

Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria

e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado

de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e

encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco

dialeto gauchesco ( NETO, 1912, p. 3).

Percebemos, nessa imagem, uma representação do povo gaúcho e, ainda

uma aproximação/identificação do leitor com o contador de história de qualidades

extremadas. São suas características, suas qualidades e, principalmente a sua

identificação com o homem de outros tempos que permitem que ele seja tomado

para tipificar o homem gaúcho. Simões Lopes Neto faz largo uso do léxico e

sintaxe próprios da linguagem da campanha. Assim, mantém a ―cor local‖, própria

do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo, porém, universal

também a sua linguagem. O espírito heroico do gaúcho está relacionado,

especialmente nas narrativas de guerra, à defesa das fronteiras e, na maioria das

vezes, à Revolução Farroupilha.

Com relação às personagens de suas narrativas, Zilberman resenha, com

muita propriedade, os seres que desfilam nos Contos Gauchescos:

Desfila, assim, uma galeria de seres que apresentam características

semelhantes às do narrador ou que pertencem ao mesmo eixo.

Independentemente de sua classe social ou, sobretudo, de seu posto na

hierarquia militar, todos os agentes das narrativas são acima de tudo

homens corajosos, desconhecendo os limites legais (podendo até ser

um fora-da-lei, como Jango Jorge), morais, como o negro Bonifácio,

ou sociais, como na maioria dos contos (ZILBERMAN, 1980, p. 41).

O meio social em que ocorrem as narrativas é instável e, isso é proveniente

da ausência de uma autoridade instituída, pois nos Contos Gauchescos não existe

classe política; cada estância é um mundo à parte, os campos são abertos,

ilimitados. Essa realidade demanda a necessidade da coragem pessoal para a

defesa individual de cada personagem. O mundo retratado é o passado, é a

reprodução das relações entre homem e o espaço, inerentes ao regionalismo.

O livro é composto por dezenove contos, dentre os quais selecionamos

―Trezentas Onças‖, o qual evidencia a marca regionalista por meio da tríade

homem, o espaço e tempo. É o primeiro conto do livro, narrado em primeira

pessoa. Blau Nunes atua como narrador-personagem, contando uma história da

época em que era um vaqueano: ―Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que

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viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui

neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia

pousar‖ (2003, p. 13).

Logo no início do conto, Blau Nunes localiza o leitor com relação à

marcação temporal: ―Parece que foi ontem!... Era fevereiro; eu vinha abombado

da troteada‖ (2003, p. 13). Ao contar seu causo, evidenciamos que o conto

configura a imagem do próprio Blau, e, através desse, as características do homem

do campo. A paisagem é significativa para estabelecer e ao mesmo tempo

revelar a harmonia existente entre o vaqueiro e a natureza:

— Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato

que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos

pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma

sesteada morruda. Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão

limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me

banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem

capincho! Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas

quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não

tinha cancha para um bom nado (NETO, 2003, p. 13).

Da mesma forma, Blau deixa claro, em seu causo, o lugar ocupado pelos

animais, o cavalo e o cachorro, os quais, além da natureza, são sua única

companhia: ―E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei

[...] — Ah! ... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorro brasino, um

cusco mui esperto e bom vigia‖ (p. 13).

Depois do descanso embaixo na sombra da árvore, o vaqueano seguiu em

seu trote, porém logo observou a agitação do cachorro, o qual, segundo Blau,

parecia que o chamava: ―Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco

parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me e latia de

novo e troteava um pouco sobre o rastro‖ (p. 14).

A angústia toma a figura do gaúcho, no momento em que este, ao chegar à

estância, dá-se conta de que havia perdido grande quantia em dinheiro, trezentas

onças de ouro, que estavam em sua guaiaca: ―Quando botei o pé em terra na

ramada da estância, ao tempo que dava as – boas tardes! – ao dono da casa,

aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!‖

(2003, p. 14).

Os animais ocupam na narrativa um lugar significativo, a ponto de o

vaqueano estabelecer com eles uma comunicação muito particular. Simões dá à

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natureza uma linguagem própria, que permite ao campeiro interpretá-la, pois no

momento de desespero é o cachorro quem dá demonstrações de que sabia o local

onde estava a guaiaca, dando sinais de que teriam que retornar:

Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como

querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-

me, e vinha e ia, e tomava a latir...Ah!... E num repente lembrei-me

bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a

arrumação da roupa nuns galhos de Sarandi, e, em cima de uma pedra

a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de

cigarro de que tirei uma última tragada [...] (NETO, 2003, p. 15).

Observamos que a afinidade entre homem e os animais o fazem recordar

do seu trajeto e lhe dão a esperança de encontrar a guaiaca; além disso o cachorro,

ao conseguir ajudar o vaqueano, também parece efetivamente estabelecer

comunicação com ele: ―Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a

retouçar, numa alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala!‖ (p.

15).

No caminho de volta, para encontrar a guaiaca o vaqueano se depara com

uma comitiva de tropeiros que aos seus olhos estavam indo em direção à estância

para passar a noite. Porém, a busca pela guaiaca, o fato de ser honesto com seu

patrão estava em primeiro plano.

Zilberman (1980, p. 40), ao demonstrar a importância do cenário para o

gaúcho, afirma que, em Simões, além de a paisagem comunicar-se com o

protagonista, ela, ainda, representa imageticamente a temática do conto, pois, para

a autora ―se Blau apresenta os lugares por onde passou à procura de sua guaiaca, a

descrição nunca visa à identificação do pitoresco na paisagem sulina, mas a

denunciar a solidão e o abandono do herói, quando de sua busca alucinada do

objeto perdido‖. Isso fica patente, por exemplo, quando os campos abertos são

descritos em sua serena vastidão e silêncio, que contrastam com a alma aflita e

amargurada do herói à procura das moedas perdidas:

A estrada estendia-se deserta; à esquerda, os campos desdobravam-se

a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol

morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos

paradouros da noite; à direita, o sol; muito baixo, vermelho-dourado,

entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Nos atoleiros,

secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de

manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que

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fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a

brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as

asas, como uma despedida triste, em que a gente também não sacode

os braços... (NETO, 2003, p. 15).

O conto revela um gaúcho que é ao mesmo tempo destemido e sensível,

como podemos observar nos trechos: ―Há que tempos eu não chorava!... Pois me

vieram lágrimas... devagarinho, como gateando, subiam... tremiam sobre as

pestanas, luziam um tempinho.‖ (2003, p. 16).

Ao chegar ao local onde havia deixado a guaiaca, verificam que a guaiaca

não estava mais lá: ―Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos

do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por

todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!.‖..(p. 16-17). O susto leva

Blau ao desespero, a ponto de desejar morrer antes de ser visto como ladrão:

―Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia

roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão,

é que era!.‖.. (2003, p. 17).

O peso vinha contra o sossego de homem, de palavra, de fidelidade e

confiança: ―Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no

ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...— Ah! patrício! Deus existe!‖.

(p. 17). E, assim, muito próximo de tirar sua própria vida, Blau encontrou

primeiramente na natureza, e, especialmente, na companhia amiga do cavalo e do

cusco, os motivos para desistir de se matar. Toma-os como enviados por Deus,

seres que lhe transmitem a mensagem da preservação da vida:

- Ah! Patrício! Deus existe!...No refilão daquele tormento, olhei para

diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na

pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino

relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo

que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...

— Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no

luzimento daquelas estrelas, era Ele que mandava aqueles bichos

brutos arredarem de mim a má tenção...(NETO, 2003, p. 17)

Os animais, nesse momento de decisão, também recuperam, no vaqueano,

a importância da família e dos valores que norteiam o gaúcho, como podemos ver

no trecho que segue: ―O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade de minha

gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador

trouxe a esperança‖ (NETO, 2003, p. 17). Pela família, pela liberdade, pelo

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trabalho e esperança, Blau desistiu de tirar sua própria vida: ―matar-se um

homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!‖ (p. 17).

Blau decide voltar, assumir sua culpa e vender os seus bens para pagar a

dívida: ―Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umas

leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores – vender a tropilha dos

colorados... e pronto!‖ (p. 17). Novamente os animais – seus companheiros de

viagem – compartilham de sua decisão e de seus sentimentos, pois ambos, a seu

modo, demonstram tal contentamento: ―E despacito vim subindo a barranca;

assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio. Desmaneei-o,

apresilhei (o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado. O cusco

escaramuçou contente‖. (p. 17)

Para a alegria e alívio de Blau, quando ele chega à casa de seu patrão sua

guaiaca com as trezentas onças havia sido trazida pela comitiva de tropeiros: ―Em

cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na

ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças

dentro‖ (2003, p. 18). O fato de Blau Nunes, ao chegar à estância, encontrar a

guaiaca perdida, retoma a questão da lealdade, da honestidade dos peões, que

assim como Blau, homens simples e honestos, devolveram a guaiaca ao dono. De

modo geral, o conto narra trajetória de homens em que a lealdade figura, pois

temos essa qualidade associada tanto a Blau quanto para os tropeiros, bem como

ao patrão, ―sujeito de contas mui limpas‖ (2003, p. 14).

Ao contrário do que pode-se supor em uma primeira leitura, esse conto

fala da vida e não da morte, pois nele prevalecem os valores evidenciados no

próprio apego ao viver, expressos através de manifestações positivas, que se dão

através da natureza, do retorno à casa do patrão, da esperança na volta para casa e

da recepção festiva e bem humorada de gente de bem, os tropeiros, que, assim

como ele, praticam a honestidade.

Por meio de uma linguagem coloquial, do uso de expressões espanholas e

muitas interjeições o conto, não somente revela os elementos que definem a cor

local, os quais são vislumbrados a partir da personagem – tropeiro, cavalgando,

que viaja com seu cusco, a partir também da caracterização – uso da guaiaca e, de

todo o contexto que envolve a narrativa: todos são tropeiros, charqueadores, que

usam linguajar típico. Por outro lado, o conto reafirma as qualidades de Blau

anunciadas no prefácio da obra: homem leal, ingênuo, impulsivo na alegria e na

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temeridade, ainda ―precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma

memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora

loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco‖ (1912, p.

3 ).

No contexto em que se desenvolve a narrativa, podemos observar que

embora existam ―os que têm‖ e ―os que não têm‖, há uma constância no autor

Lopes Neto de posicionar-se ao lado ―dos que não tem‖ e, talvez por isso, a

narrativa desenvolva-se a partir do temor do homem honesto de ser considerado

ladrão. Além da divisão, notamos a manifestação da religiosidade nos momentos

de solidão e incerteza, apresentando, quem sabe, o único temor do gaúcho, o

temor, ou reverência, para com Deus: ―Deus me perdoe‖, ―Deus conserve‖, ―Deus

existe‖. Observamos que a universalidade da escrita simoniana se instala,

justamente, no fato de que mesmo sendo o gaúcho Blau, essa caracterização da

personagem pode ser aplicada a qualquer outro ―Blau‖, humilde, honesto e fiel.

3.1.4. O regionalismo crítico ou social: Cyro Martins

Campo fora é o primeiro livro de Cyro Martins, composto por quatorze

contos, publicado em 1934, pela Editora Globo. Nele o escritor recupera, através

da linguagem e nos próprios relatos, o viço da infância e adolescência, a

paisagem, as vivências da campanha, cujo foco principal, segundo Bittencourt

(1999, p. 31), é o gaúcho apegado a terra, seu telurismo, seus valores, embora já

se possam visualizar alguns traços de transição. Dentre esses, a autora menciona o

desaparecimento do confronto campo/ cidade e a abordagem da marginalização e

da pobreza do homem do campo. Na apresentação do livro Campo fora,

Guilhermino Cesar afirma que:

Cyro Martins, em sua estréia em 1934, com os contos regionais de

'Campo fora', trouxe ao gênero uma perspectiva social que todos os

críticos têm valorizado; e sob este ângulo é que, no futuro, será ainda

lembrado, quando todas as 'modas' de hoje estiverem esquecidas. Mas

a meu ver, há nele um traço que o singulariza entre seus

companheiros, tão importante, afinal, como sua temática: o modo de

narrar (CESAR, 1971, p. 5).

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Para Guilhermino Cesar, esse livro de contos se tornou representativo da

gauchesca, de um modo "mágico e sutil, porque omite o espalhafatoso, o teatral"

[...] ―Fugindo a qualquer demasia, o admirável escritor rio-grandense recria a vida

sem pressa. É, portanto, um artesão consciente‖ (1971, p. 5). O conto selecionado

para análise é ―Tempo de seca‖, no qual vamos identificar uma prosa

comprometida com a denúncia das condições sociais da campanha, em que a

recuperação dos aspectos característicos do regionalismo são sinalizados sem

apresentar, porém, o ufanismo e a índole festiva.

A narrativa inicia contando a rotina diária de José Maria em seu ato de

resgatar as antigas e longas troteadas. Desde o início do conto, o leitor é

conduzido a ambientar-se em sua atmosfera, primeiramente através da linguagem,

depois pelo cenário típico sulino e, ainda pela descrição da personagem, que

recorda o fiel gaúcho centauro dos pampas:

José Maria madrugara grande, muito mais que de costume. E quem

visse o alarme da véspera – movimentos com cavalhada, da invernada

para o potreiro, daí para a mangueira, e logo cinco ou seis pingos

agarrados, e deixados no gancho até meia-noite para alevianar –

pensava em seguida: D. José ‗stá de tropeada... (MARTINS, 1978, p.

57).

No entanto, tal movimentação praticada pelo gaúcho, centauro dos

pampas, nada mais é do que como sinaliza o narrador, ―mania de velho‖, ou seja,

o velho gaúcho recorda o antigo viver através da repetição das atividades de

outrora, desde o despertar cedo ―no primeiro canto do galo‖ até a vontade de sair

em longa viajada. Essa ―mania‖, ou melhor, costume, é respeitado por todos:

―Ficava só o rebuliço normais. Todos achavam graça daquela mania de velho.

Mas toda gente respeitava D. José, que fazia aquilo tudo mui a sério‖ (1978, p.

57).

Depois disso, José Maria seguiu como de costume, mateando ―até o

apontar das primeiras barras do dia‖, para depois se deslocar ―a trotezito‖ em

direção à Estância da Figueira. “Tempo de seca”, revela a permanência da

temática regionalista através da personagem do campo na constística sul-rio-

grandense, porém observamos que o enfoque com que o mundo rural é analisado é

alterado, levando a uma tendência para a desmitificação, pois o interesse recai

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sobre o peão, encarado agora na sua condição de trabalhador rural, assalariado,

sem posses nem visto como herói.

No entanto, é possível aproximar o conto de Cyro Martins à narração de

Blau Nunes em ―Trezentas onças‖, pois em “Tempo de seca‖, a natureza e o

velho campeiro comunicam-se mutuamente, fornecendo subsídios para a

compreensão da realidade que está sendo narrada. O homem do campo, o herói

agora velho mas ainda em seu cavalo, entende os sinais da natureza:

Quando ponteou a Serrinha, nascia o sol, dilatado e vermelho, fogo

vivo montando a aba do Cerro Grande. Sinal certo de que a seca havia

de prolongar-se ainda por mais dois ou três meses, mastigava,

concentrado e amargo, o velho campeiro experiente que era – sessenta

anos! Do campo e do tempo (MARTINS, 1978, p. 57).

Depois de observar o céu para tentar encontrar nele alguma nuvem que

pudesse simbolizar o término da seca, seu olhar se direciona para os animais:

―Tão descaídos! Também, água por ali, só a mais de légua. A animalada vivia

transitando inquieta, com sede e com fome‖ (1978, p. 58). E ainda seu olhar

recupera o chão ―aberto em largas brechas‖ nas quais o cavalo pouco a pouco

tropeçava: ―Culpado daquilo não era o pobre animal, era o tempo que não chovia‖

(p. 58).

A manhã já estava alta, quando o campeiro parou sob a sombra da ramada

e ouviu o grito de Pedrinho, filho mais novo do seu Joca: ―Vovô taí, e traz fruta

pra nós‖ (1978, p. 58); depois disso, José Maria se viu rodeado pela gurizada. As

crianças indagavam ao velho sob a falta de algumas frutas, sem saberem ao certo

o motivo por não haver mais pêssego, jabuticaba: ―- Me dá pesco, vovô, me dá? –

Quedele aquelas frutinhas manchada de encarnado? – E daquelas redondas bem

pretinha que o vovô trazia, não tem mais?‖ (p. 58). O velho viu nas crianças a

alegria tornar-se tristeza, mas em sua acepção, o fato vivido por elas (da seca

acabar com as frutas e com todo o verde, prejudicando a vida dos animais)

representava apenas: ―os primeiros invites da vida‖ (p. 58).

Diante do olhar do velho para as crianças evidenciamos a tristeza, a

miséria retratada no conto, que se diferencia da idealização, tanto do espaço

quanto do herói, uma vez que o antes centauro dos pampas encontra-se agora

sozinho, em um pobre rancho, diante de uma terra ―torrada‖ pela seca, sem

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perspectivas, vivenciando no campo a desigualdade social, diante da relação

estabelecida entre patrão e peão.

A seca era forte demais, os animais estavam sofrendo muito com aquela

situação, era preciso fazer alguma coisa. Assim, na conversa com o patrão, José

Maria considerou que seria importante levar o gado para costa do Ibicuí, porque o

campo onde estava não dava mais sustento: ―Tá torrando. É uma miséria‖. Mais

uma vez, a voz da experiência do velho campeiro, com relação à natureza,

sinalizou a possibilidade de chover: ―Ontem foi nova. E eu tenho fé nesta lua!‖

(MARTINS, 1978, p. 58).

Durante a conversa que se estendeu até às onze horas, os dois foram

surpreendidos pelo ronco de um trovão. Ao olharem para o céu viram uma

movimentação muito rápida de nuvens formando ―um paredão azul escuro‖ que

anunciava um temporal (p. 59). A esperança os moveu, e através dela, podemos

observar a reciprocidade existente entre patrão e peão, uma vez que o olhar bastou

para expressar o alívio e a alegria:

Entreolharam-se e quedaram fitando o chão. Mas quanta coisa se

disseram naquele olhar! Entre os dois, dum para o outro, passou a

galopito uma bruta esperança. Subia do chão um bafo de brasa,

fazendo espichar e estalar como pipoca os zincos da coberta e as

cordas dos aramados. As manchas escuras de sombra e as claras das

olheiras de sol, maleavam os campos de oveiro (MARTINS, 1978, p.

59).

A descrição do olhar entre ambos e do olhar deles para a natureza é feita a

partir do viver típico sulino, pois a esperança galopeia, o chão tem ―bafo de

brasa‖. Da mesma forma, a felicidade, que, para eles, significava a vinda da

chuva, foi pressentida também pelo galo, pois, para o velho campeiro, quando um

galo canta fora de hora virado para uma pessoa está adivinhando felicidade.

Assim, às duas da tarde, eles foram agraciados por uma forte chuva:

Às duas da tarde vinha perto a tormenta, que era uma tormenta aquilo.

A zoada do vento no arvoredo e nas frinchas, e o estrondo da chuva de

pedra guasqueando os campos, ensurdeciam. E erguiam-se paredões

pardos da terra solta dos corredores, enormes, marcando os caminhos.

A água rolou de todos os declives, e correu pelos valados velhos de

encher nas crescentes, pelos novos que o seu ímpeto abria e espraiada

nos plainos duros, ásperos, que a sua força não podia abrir

(MARTINS, 1978, p. 59).

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A chuva não demorou muito; José Maria, agora alegre, ia voltando para o

seu rancho, acompanhado pelo ar fresco da aragem que o rejuvenesceu. Durante o

percurso, resolveu experimentar o trote do zaino, pois queria chegar cedo para ver

se o cercado havia molhado bem, pois tinha planos de lavrar e plantar alguma

coisa: ―Se não desse e não viesse outra boa em seguida, que ia ser do pobrerio no

inverno? Morrer de fome? Roubar? Mas que o comissário para que é que existe?

Roube um pobre um cordeiro dum rico, e conhecerá maneador, estaca, barra e

folha de espada‖ (1978, p. 60).

Notamos que a alegria não durou mais que o tempo da chuva, pois, na

realidade o gaúcho precisava de mais do que de uma simples chuva para encontrar

sua felicidade, porque a chuva não resolveria os problemas da fome, da miséria

vivida por eles e pelo restante do ―pobrerio‖. Para além desses problemas,

evidenciamos a falta de esperança e novamente a desigualdade social, pois, para o

patrão, a chuva lhe bastava.

Percorridas mais umas léguas, o campeiro estende o olhar para encontrar o

rancho e, não conseguindo enxergá-lo, reclama da velhice: ―Puxa! Que a gente

depois de ficá véio inté as vista arruiná‖ (p. 60). Seguindo em seu rumo, José

Maria observou que havia algo de estranho: ―Logo adiante encontrou as vacas

mansas. Estranhou que ainda estivessem ali. E foi repontando. Vendo para um

lado um bando grande de caranchos e outros tantos rondando no ar em espirais de

ameaça, pendeu para lá‖ (p. 60). Nesse momento, diante do animal morto, o

campeiro ficou sentido por Joaquina, a qual, relembra, teve muito trabalho para

criar esta ―guaxa‖. Observamos que nem mesmo a chuva trouxe alegria, pois o

cenário era de tristeza, de desalento.

Quando estava perto do rancho, identificamos a proximidade na relação

entre o homem e o cavalo, pois o primeiro a demonstrar estranheza foi o próprio

cavalo, que levantou as orelhas; depois ele, o campeiro ergueu os olhos. Os planos

com que sonhara no caminho agora se transformam em cinzas:

Planos de velho, é certo, mas ainda planos de vida. Barrear e guinchar

o rancho na entrada do inverno. Feito isso, pegar algumas tropeadas. E

comprar tanta coisa que faltava em casa! José Maria chegava. O

silêncio que havia em redor pesava mais que a desgraça. O seu rancho,

um montão de cinzas. (MARTINS, 1978, p. 60).

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A paisagem, assim como o animal, era tão pesada quanto a desgraça. Seu

rancho transformara-se em um monte de cinzas. A chuva, que devia ter trazido

somente alegrias para o pobre e velho campeiro, simbolizou desalento, tristeza,

miséria, solidão: ―O zaino espichou o pescoço, hirto, e olfateou a cinza morna. O

velho não apeou. Apear pra quê? As sombras vindas de todos os baixos subiram

no ar, aglomeradas, feitas uma só, e refugiaram, na sua quietude, o vulto curvo de

José Maria‖ (MARTINS, 1978, p. 61).

Ao finalizarmos a leitura do conto, é possível identificarmos que o tema

principal abordado pelo autor é a vida do homem do campo; podemos perceber a

linguagem regionalista na narrativa, por meio da cuidadosa descrição da

paisagem, da natureza, a qual é também, tipicamente regionalista, como o é,

também, a caracterização da personagem, que repete todas as manhãs a rotina

antiga de preparar-se para a longa troteada. A narrativa deixa explícito, ainda, o

momento histórico, através da sinalização da diferença entre o passado e o

presente, da vida como era e de como é em plena seca: ―Ah! Que diferença das

outras vezes! A seca transformara tudo‖ (1978, p. 58).

Cyro Martins, através de uma linguagem dialetal revela, de modo muito

particular e sem idealização, a representação social da vida no campo, no

momento em que predomina a miséria, a pobreza e a decadência do herói gaúcho.

Evidenciamos em ―Tempo de seca‖, uma nova visão do herói tradicional dos

pampas, que, agora, vive em condições desumanas – homem simples do interior

que vive em crise, mas que, ainda assim, insiste nos afazeres campestres,

buscando cultivar os motivos anteriores de seu fazer campeiro: montar a cavalo,

organizar-se para o trote, cuidar dos animais e viver no rancho.

3.1.5. A fase de transição: Luiz Carlos Barbosa Lessa

Luiz Carlos Barbosa Lessa foi o autor selecionado para representar, com o

conto que dá nome à obra O boi das aspas de ouro (1958), a fase de transição,

período em que a vertente regionalista de culto ao passado relacionava-se com a

narração das transformações da sociedade rio-grandense. Muito embora Lessa

aborde, de um modo geral, as mudanças da sociedade campeira, destacando a

presença do colono, da tecnologia nos afazeres campais e o consequente

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empobrecimento do gaúcho, o conjunto da obra reproduz o mesmo modelo de

antes, através do culto aos valores de uma sociedade fechada.

O conto narra a história de um boi misterioso, chamado Boi-Eleição que se

escondia nas furnas de Caaporã – localizado num fim de mundo onde não havia

chegado a mão do branco. Com suas aspas de ouro, o boi era cobiçado, inclusive

porque, segundo os índios, quem laçasse o tal bicho seria dono da felicidade, mas

por muito tempo nenhum campeiro conseguiu laçá-lo.

Logo ao início da narrativa, evidenciamos a retomada da história da

povoação do Rio Grande e a localização temporal do causo para o leitor:

Amigo: eu lhe conto agora um causo que meus avós já contavam: Era

no tempo em que este Rio Grande Velho não tinha fronteiras, não

tinha começo nem fim, não tinha dono também. Dono era quem

plantasse um ranchito num topo de coxilha e ficasse de cavalo

encilhado e lança pronta, defendendo o pedaço de terra que entendia

seu (LESSA, 2000, p. 5).

A partir dessa introdução, percebemos que a descrição caracteriza o

cenário como intocado, no tempo mítico dos inícios, e que, depois disso, vai

mostrar a história de uma terra que foi devastada por forças, que não tinha dono,

nem fronteiras. Da mesma forma, o narrador, ao se dirigir ao leitor, pelo

chamamento de ―amigo‖ confere, à obra, proximidade e, ao leitor, intimidade com

o causo.

Muitos dos chirus, índios e brancos que seguiram em direção ao boi não

voltaram e, os que voltavam narravam estórias espantosas:

Houve mesmo quem chegasse a laçá-lo, mas o boi tinha forças que

ninguém conhecia, nem sovéu de charqueada lhe resistia ao tirão.

Houve mesmo quem chegasse a formar pandilha grande pra botar

cerco ao tal boi: mas por encanto ele sumia nos peraus de Caaporã. E

assim os homens não tiveram volta senão desistir da campeação,

abichornados, e sem mais esperanças de caçar o boi das aspas de ouro

que os índios diziam ser o boi da felicidade (LESSA, 2000, p. 6).

Notamos, em evidência, a diferença social descrita no conto, através da

descrição do estancieiro, homem de muitas posses que ficou sabendo da história

do boi. Mesmo sendo muito rico, vivia infeliz e insatisfeito com os bens que

possuía, pois suas recordações do passado (perda da mulher e da filha ainda muito

jovens) vividas num rincão distante eram bastante tristes: ―Vida maleva a sua –

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cuê-puxa! – que lhe assinalara de miséria a mocidade e lhe marcara a alma pela

solidão‖ (2000, p. 7). Depois da descrição do estancieiro ―mui rico‖, novamente o

conto retoma a história das posses das terras gaúchas nos tempos de colonização:

Naquele tempo, os campos do Rio Grande, tapados de gado selvagem,

eram uma tentação cuja fama se alastrava províncias afora.

Constantemente desciam comitivas em demanda das gadarias fartas e

numa dessas comparsas ele se alistou. Não que o tentasse o brilho das

riquezas – mas porque, no perigo dos rodeios, sonhava encontrar o

lenitivo final para as mágoas que o afligiam (LESSA, 2000, p. 7).

Agora, já velho, o estancieiro, depois de muitas peleias contra índios,

castelhanos e as próprias feras e o gado bravio, possuía uma grande estância, tão

grande que seus olhos não alcançavam vê-la; no rodeio do seu coração, porém,

―cargosa, se aninhava ainda a tropilha de mágoas e desenganos com que o Destino

o presenteara pelo tempo afora‖ (p. 7). Evidenciamos, na descrição da vida e da

riqueza do estancieiro, o vazio, e a chegada da velhice, repleta apenas de solidão.

Observamos que o estancieiro tem bens - gado, estância, poder, mas não é feliz.

A história do Boi-Eleição animou esse velho estancieiro, pois a

possibilidade de aprisionar o animal significava para ele a garantia de sua

felicidade. No entanto, essa alegria durou pouco, pois a realidade lhe assomou

quando se inteirou da história das muitas tentativas fracassadas de outros

campeiros: ―se homens puavas, na flor da idade, haviam tentado em vão

aprisionar o boi de Caaporã, como poderia ele, já fraco, sem forças, iludir-se com

um busca de antemão extraviada? E seus olhos cansados choraram mais uma vez.‖

(2000, p. 7).

Embora sozinho não tivesse a força suficiente para aprisionar o boi, o

estancieiro tinha inteligência para planejar alguma forma de laçar e dominar o

animal. Nesse momento do conto, percebemos, claramente, a nova dimensão do

herói gaúcho na história, uma vez que a força não é mais a única estratégia

possível de conduzir o homem do campo à glória e sim a capacidade de ter ideias,

de ser criativo:

Amigo: hai quem pense que o poder do homem está só nos braços que

ele tem, e que mais forte é o qüera que sem esforço derruba o touro

nas lides do rodeio, vence o bagual no entrechoque da doma ou o

inimigo na fúria da peleia. Não! Mais forte é aquele que melhor sabe

usar da inteligência que o Senhor lhe concedeu para distinguir dos

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brutos. Com as luzes de Deus, pode o homem andarenguear confiante:

nem a noite mais escura há de lhe dar extravio (LESSA, 2000, p. 7).

Assim foi que o estancieiro se desfez de sua estância, de sua gadaria,

juntou campeiros de lei, comprou escravos e, em comitiva, saiu em direção aos

campos de Caaporã. O momento da compra dos escravos revela a presença das

classes sociais diferentes, da desigualdade e da miséria com que viviam muitos em

solo rio-grandense. Da mesma forma, é possível perceber a posição ocupada pelo

antes peão, que agora é representado a partir do trabalhador rural.

Não demorou muito, e o boi apareceu num alto do perau; para os

campeiros era hora de ―avançar, cerrar rodeio, e muito gaúcho disposto

desapresilhou o laço preparando pealos‖ (p. 8), mas o estancieiro que coordenava

os campeiros e os escravos ordenou que apeassem e ficassem apenas de olho para

que ele não fugisse. Disse isso e voltou para a senzala.

À espera de uma segunda ordem do estancieiro, os dias que se seguiram

foram de calmaria, toda a gauchada mateava e contava causo, típico cenário dos

costumes sulinos. Interessante é a descrição dada ao animal enquanto este

pastoreava: ―lá no alto do perau permanecia o animal pastoreando – monarca e

sestroso – às vezes se afastando pra pastar mas sem demora voltando à sua postura

de espera – paciente e tranquilo, embora desconfiado da incompreensível

quietude‖ (2000, p. 8-9); dizemos interessante, porque é dada ao animal a

definição de monarca e também é a ele que é dado o poder para conduzir a

narrativa, uma vez que sua atitude nortearia o rumo que os fatos tomariam.

Depois de algum tempo, quando o estancieiro voltou, foi recebido com a

notícia de que o trabalho estava feito, o dever de pastoreio tinha sido cumprido;

foi então que o estancieiro começou a pagar cada um dos peões e libertou muito

dos escravos. Estes ficaram sem entender sua atitude; foi então que o estancieiro

começou a explicar:

No lugar onde antes estava a senzala, hoje se ergue a casa-grande de

minha nova estância. E por toda a volta, rodeando estes peraus, ergui

uma cerca de pedra alta e encorpada – que boi nenhum vai cruzar.

Agora tudo isso aqui me pertence: o chão, o pasto, o arvoredo, as

sangas... E, enquanto não me fugir, meu será também o boi da

felicidade... (LESSA, 2000, p. 10-11)

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De pago em pago a notícia do boi encurralado, do boi das aspas de ouro se

estendeu, fazendo com que muitas pessoas viessem de outras estâncias para

conhecer o boi encantado. Quando chegavam, viam o boi no alto do perau e, ao

partirem, manifestavam inveja para com o estancieiro, que agora era o dono da

felicidade. Antes de contar isso, novamente o chamamento ―amigo‖ é utilizado,

agora para clarear o sentido da felicidade atribuída ao domínio do boi:

Amigo: a gente sempre é aquilo que os outros querem que a gente

seja. Ninguém nasce ruim neste mundo, mas hai que se torne mau,

porque, desde cedo, foi encontrando a maldade que outros botaram em

sua senda. Do mesmo jeito, tem de ser bueno aquele que, desde cedo,

rodeado de afeição, aprende a ter um coração buenacho. Quando todos

nos olham como se a gente fosse mau, nós somos maus. Quando todos

nos olham como se a gente fosse bueno, nós somos buenos. Quando

todos nos olham com piedade, como se nossa vida fosse um descuido

de Nosso Senhor, somos tão infelizes. E quando todos, todos, nos

olham como se a gente fosse dono da felicidade, isto nos faz ser

felizes (LESSA, 2000, p. 11).

A felicidade plena do estancieiro se resumia na cobiça alheia pela posse do

boi. Assim, instigados pelo motivo de ver o boi, pela curiosidade, muitos

campeiros, além de se deslocarem até Caaporã, decidiam ficar por lá, iniciando

assim, o povoamento: ―Foram-se fundando estâncias, abriram-se veredas,

surgiram bolichos nas encruzilhadas‖ (2000, p. 11). Tamanha felicidade também

vinha acompanhada pelo medo, pois o estancieiro temia que alguém, por inveja ou

pura maldade, matasse o boi. Como não tinha familiares, precisou selecionar um

campeiro que, depois de zelar o animal, herdaria sua estância e suas riquezas.

Para realizar a empreitada, o estancieiro fez seleção mediante a realização

de três provas que muitos tentaram e não conseguiram vencer: a primeira

dependia de ―que o índio fosse valente – jogando o primeiro-sangue com três

qüeras, sem receber arranhão‖; a segunda prova era ―... que o índio fosse campeiro

– domando três aporreados no prazo de uma semana‖;... e a terceira vinculava-se

ao caráter do índio ―que não soubesse mentir‖ (p. 12). Para o estancieiro, se algum

moço vencesse essas três provas, ele poderia descansar, pois a valentia garantiria a

proteção física do Boi- Eleição, o fato de ser campeiro garantiria os cuidados

dispensados ao animal e não saber mentir garantiria que ele, o estancieiro, não

fosse enganado pelo peão. Através das provas estabelecidas pelo estancieiro,

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podemos perceber que esse buscava no peão as características do gaúcho monarca

das coxilhas.

Foi então que apareceu um dia um gaúcho novo, ―meio gurizote‖, vestido

―mui pobre‖. Quando este se apresentou para realizar as três provas, ninguém deu

muita atenção, isto porque ―seu cavalo era feio e, ainda por cima, aperado com

preparos sem valor‖ (p. 12); só depois de muito insistir o estancieiro permitiu que

ele realizasse as provas. Durante a primeira prova, a da valentia, mesmo estando

em desvantagem, o indiozito, gaúcho novo, demonstrou sua agilidade:

Quando o patrão deu ordem pra começar o jogo, foi coisa de admirar!

O indiozito pulou que nem gato, num upa cruzou o ferro com o negro

do facão e ali no mais lo talhou, dando um novo pulo pra trás e vindo

postar-se no mesmo jeito quieto de antes. O bugre e o castelhano,

maneados pelo espanto – nunca tinham visto tanta ligeireza assim! –

não tiveram tempo nem sequer de quadrar o corpo, e só agora é que

pensavam se mover (LESSA, 2000, p. 12).

Eis que, em pouco tempo, o bugre estava machucado e o sangue corria em

seu rosto; ao final da primeira prova, o gaúcho novo saiu ileso e vencedor e foi

saudado até mesmo pelo patrão velho, que abriu um largo sorriso. A segunda

prova, a qual exigia que o peão demonstrasse a agilidade na lida campeira foi,

novamente realizada com louvor pelo indiozito, pois ele conseguiu montar nas

feras mais xucras da estância, coisa que o patrão ainda não tinha visto. Na mesma

noite, o estancieiro comunicou a decisão, antes mesmo da última prova, falando

para o indiozito:

Tu já mostrou que é peleador como poucos e ginete como ninguém.

Eu devia fazer tu passar ainda pela terceira prova, que é a mais difícil

de todas. Mas vou confiar na tua palavra e quero apenas perguntar se

tu é capaz de mentir? Eu lhe juro, meu patrão – foi a resposta do

qüera. – Eu lhe juro por esta luz que me alumia que nunca em minha

vida fiz falsidade pra os outros. Eu nunca pude mentir (LESSA, 2000,

p. 14).

Dito isso, o gaúcho foi aceito para cuidar da felicidade do patrão, ou seja,

zelar pelo boi das aspas de ouro. Passou a ser chamado de ―posteiro da Invernada

do Fundo‖; entre os tratos a cumprir, o gaúcho poderia construir seu rancho em

qualquer parte do campo e carnear qualquer uma das reses; ao final de cada dia ele

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deveria vir trazer noticias do boi ao seu patrão. Desse modo, todos os dias, na hora

do pôr do sol, o indiozito aparecia na frente do galpão e dizia:

Lá se vai o sol entrando

E eu vos faço a saudação:

Nada de novo em meu Posto,

Vai lindo o Boi-Eleição!

(LESSA, 2000, p. 15)

A felicidade do estancieiro estava assim garantida, no entanto o peso de

sua idade cada vez mais o vergava. Ele se sentia velho, mas seus dias eram

conservados em plena paz e suavidade. Porém, uma surpresa, motivo de maior

alegria, pois ele, que sempre viveu sozinho, sem família, acabou recebendo um

dia a visita de quatro sobrinhos, dos quais nem se lembrava:

Um rapagão de bons modos – gente fina de cidade, pelo visto – e mais

as irmãs. Três moças com jeito de encantar a gente que só vendo pra

tirar-se um tento. Ele haviam viajado de longe – lá daquela mesma

terra de onde, há muitos anos, partira um moço tangido pela dor – e de

bom grado haviam enfrentado as agruras do sertão para reverem o tio

que, eles sabiam, sozinho vivia no meio das campanhas (LESSA,

2000, p. 15-16).

O estancieiro ficou realizado com a boa notícia e implorou para que os

jovens ficassem morando com ele e, assim ―adoçassem de carinho os últimos dias

do seu viver‖ (p. 16). Novamente, temos a interrupção da narrativa para a

sinalização do narrador, que desta vez tratava dos jovens da cidade, dos sobrinhos

comparando-os aos urubus em torno de um animal:

Amigo: você nunca viu os urubus quando rodeiam um animal

moribundo? Um deles pula impaciente ali por perto, até que – não

mais contendo os impulsos malevas – avança e fura os olhos da presa

fraca e indefesa, comandando assim a avançada cruel. Pois, pra o

causo, o moço da cidade aquele era o urubu impaciente em torno do

estancieiro, fazendo mais agrados do que china candongueira no colo

de tropeiro bem pilchado. Moço de má cabeça – já com uma ponchada

de estórias brabas negrejando na alma – ele faria tudo no mundo pra

ficar herdeiro das léguas de terra e dos miles de gado da estância do

Boi-Eleição (LESSA, 2000, p. 16).

Três dos sobrinhos mantinham com o estancieiro uma relação de interesse:

o jovem, já mencionado, a moça mais velha ―nada mais fácil que agradar o tio.

Nunca lhe fora difícil, em verdade, oferecer carinho pela ambição do dinheiro‖. A

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moça do meio, sensual, ―feiticeira de corpo‖, ainda que sem maldade, estava

agora diante do tio, botando feitiço em tudo, com ―mãos de pecado, seios de

desatino‖ (LESSA, 2000, p. 17); somente a mais nova oferecia carinhos sinceros

ao tio, pois ela tinha: ―tudo o que de bueno existe na alma de um cristão‖, trazia

carinhos sinceros ao tio semelhantes a de uma filha ―terna e inocente‖ (p. 17). De

agora em diante, a estória segue com a presença dos quatro irmãos.

Uma tarde, o posteiro cuidador do boi chegou para dar notícias do animal e

o sobrinho aproveitou para saber da herança prometida ao indiozito: ―É verdade,

meu tio, é verdade que vosmecê prometeu deixar de seu herdeiro esse posteiro de

Fundo?‖ (p. 18). O velho estancieiro contou os motivos da escolha do peão,

esclarecendo que primeiro ele foi escolhido pelo desconhecimento de que tinha

família (os sobrinhos), depois pela valentia inimitável e, por último pela

incapacidade do índio mentir. Indignado, o sobrinho demonstra saber que não foi

realizada a última prova e assim argumenta:

Acredito que ele não saiba mentir! – riu, com deboche o maleva. –

Ora, meu tio! Não hai homem neste mundo que não seja mentiroso...

O velhito parece que entendeu até onde ele queria chegar, pois o fitou

com firmeza num jeito de indagação. E o moço continou: - Eu sei,

direitinho, que esse qüera não passou pela prova da verdade, que é a

mais difícil das três. Vosmecê apenas confiou na palavra dele... e pode

ser tão falsa como a de um homem qualquer (LESSA, 2000, p. 18).

Depois da desconfiança plantada pelo sobrinho, o estancieiro ficou a

indagar-se sobre o indiozito, sobre a herança e, também sobre a injustiça de deixar

todos seus bens a um desconhecido. Passa alguns minutos em silêncio, o sobrinho

encorajou-se e pediu: ―E... se ele mentir...? Entendendo logo a coisa, o velhito

completou: -... a herança é tua!‖ (p. 19). Era o que o sobrinho sem caráter

precisava ouvir, pois sabia como fazer o indiozito mentir usando a irmã mais

velha, aquela que tudo faz por dinheiro:

- Monta a cavalo e parte ao Posto do Fundo. Põe no teu corpo todas as

manhas do mundo e vai tentar o campeiro que guarda o Boi-Eleição.

Diz-lhe que, em troca de teus beijos e tua carne, antes mate o boi

encantado e te entregue as aspas de ouro da Felicidade. Ele sabe que o

patrão, velho demais, nunca irá até o fundo do campo pra ver com os

próprios olhos o boi das aspas de ouro. Por isso, a tentação vencerá, e

amanhã, como foi sempre, ele dirá que vive o Boi-Eleição. Com essa

mentira perderá a herança e nós seremos ricos! (LESSA, 2000, p. 19).

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Para a surpresa do irmão, a moça foi ao encontro do índio e ele não se

interessou: ―Encontrei o indiozito junto do Boi-Eleição. Todas as manhas do

mundo botei no corpo, nos olhos, mas pra nada ele atentou‖ (p. 19). Foi então que

o moço resolveu partir para a segunda irmã, a qual ―ferida pela peçonha da

ambição‖ partiu disposta: ―Não lhe seria sacrifício a perdição, porém, se em troca

recebesse as aspas de ouro da Felicidade‖ (p. 19). Novamente o indiozito teve a

mesma reação. Foi assim que o moço chamou a irmã de mais pureza, a qual,

chorando, implorou-lhe para não sacrificar, mas com um relho ele bateu nela até

fazê-la sangrar: ―Sangue por sangue, já estás agora sangrando. Vai, então, pra com

mais sangue trazer riqueza pra mim‖ (p. 20).

Quando o sol nasceu, a irmã voltou com as aspas de ouro da Felicidade,

pois o posteiro sacrificou o boi para evitar o sofrimento da moça diante de seu

irmão. Confiante e alegre, o sobrinho aguardava junto do tio a vinda do guardião

do boi, que, em sua acepção, iria mentir e, assim também haveria de garantir a

herança. Porém, o estancieiro e o moço maleva foram surpreendidos com a

verdade proclamada pelo posteiro:

Lá se vai o sol entrando

E eu vos faço a saudação:

Peço perdão, Senhor meu:

Matei o Boi-Eleição

(LESSA, 2000, p. 20)

No dia seguinte, o moço e duas irmãs retornaram para sua terra; apenas a

irmã mais jovem ficou com o velho tio. A ilusão da felicidade, que antes cercava a

vida do estancieiro, foi tomada por tristeza desde a morte do Boi; no entanto, a

felicidade da consciência limpa lhe acompanhou, pois ao seu lado estavam dois

entes que o estimaram: ―a mão suave da piguanchinha morena – aquela que era

turna de pureza no pedregal do pecado... a mão calejada do indiozito do Posto‖ (p.

21). Antes de morrer, o velho estancieiro ainda viu as aspas de ouro que, por força

do encantamento, fazia os homens se sentirem donos da Felicidade.

Ao encerrarmos a leitura do conto de Barbosa Lessa, evidenciamos que

esse autor desenhou um novo gaúcho a cavalo que, nos anos 1950, em meio a uma

geração realista, revive a história da formação social do Rio Grande do Sul, dando

voz aos grupos marginalizados, representados, no conto, pelos escravos e pelos

trabalhadores rurais. Esse é, sem dúvida, um tema que distingue o autor dos

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demais contistas; ademais, há a abordagem das pessoas sendo utilizadas como

objetos e, ainda definidas como ignorantes diante dos estancieiros, como ficou

explicitado no momento em que ser forte não era o mais importante, mas sim ser

inteligente. Figueiredo, ao estudar a trajetória intelectual e a obra de Barbosa

Lessa, evidenciou que esse autor incorpora outros sujeitos em sua narrativa sobre

a formação social do Rio Grande do Sul. Segundo ela,

[...] em sua visada ao Rio Grande do Sul, estão presentes o índio, o

negro e a mulher como fundadores dessa pequena pátria, tanto quanto

o elemento açoriano, o jesuíta, o espanhol, o tropeiro e todo o tipo de

figura masculina privilegiada por uma leitura mais tradicional do que

seja a formação social sul-rio-grandense (FIGUEIREDO, 2006, p. 38).

Assim, ainda que o gaúcho pampiano seja, nesse conto, o centro de seu

enfoque, notamos certo distanciamento das narrativas do regionalismo inicial, pois

evidenciamos a reconfiguração através dos elementos culturais e sociais que estão

envolvidos. Observamos a falta de uniformidade na caracterização das

personagens que constituem essa narrativa regionalista, pois diferentemente do

que apreciamos no conto ―Trezentas onças‖, em que havia valores comungados

por todos os envolvidos na narrativa, em ―O boi das aspas de ouro‖ encontramos a

narração da felicidade atrelada aos bens, ao ter, os sentimentos da inveja, ambição

na relação entre personagens e, ainda à mentira e à desonestidade, ambientadas no

cenário campesino.

Barbosa Lessa conseguiu reproduzir, em seu conto, a cor local a partir da

linguagem, que lembra muitas vezes Simões, permeada de metáforas e de

comparações com o meio circundante, expressando, ainda, a concepção de uma

sociedade fechada, com valores próprios, que vê com diferença o indivíduo de

fora, o qual no conto foi representado pelo índio que se tornou o posteiro, homem

leal. Da mesma forma, a narrativa ―O boi das aspas de ouro‖ ocupa-se de um

elemento sobrenatural, ―o Boi-Eleição‖, no momento em que demonstra a

transformação da sociedade campeira, em que, de um lado, evidenciamos a

solidão do gaúcho ao chegar à velhice e, de outro, o empobrecimento, a

escravidão.

3.1.6. A nova vertente regionalista dos anos 70: Josué Guimarães

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Embora, a partir de meados do século XX, com a introdução da narrativa

urbana, a vertente regionalista tenha deixado de predominar na prosa gaúcha,

existem, ainda que em menor número, autores que trabalham na linha regionalista,

a partir de uma ótica renovada. Josué Guimarães é um dos autores em que

encontramos narrativas regionalistas, ainda que envoltas por uma vertente social

aplicada ao conto gaúcho. Esse autor que mencionamos e trazemos para análise

em nosso trabalho teve, segundo Bittencourt (1999, p. 75) dois livros publicados

nos anos 70, o primeiro Ladrões (1970), que inclui três contos premiados no II

Concurso de Contos do Estado do Paraná – Fundepar – 1969; o outro, Cavalo

cego, publicado no ano de 1979. Segundo Bittencourt:

Nos dois livros, Josué opta, na sua maior parte, pela ficção realista

tradicional, mas envereda, por vezes, pelo campo do insólito e do

fantástico. Os contos identificam-se com um modelo de construção

oitocentista, com desenvolvimento cronológico e causal das ações,

personagens definidas com traços individuais e localização espacial

particularizada (BITTENCOURT, 1999, p. 75).

O conto selecionado para análise é ―Cavalo cego‖, que dá nome à obra.

Nesse conto, encontramos o narrador, que é também testemunha, o velho

caudilho, antigo coronel e a filha mais velha que cuida do pai. O que o leitor vai

acompanhar é um longo diálogo sobre política, eleição, regime militar, em que o

narrador observa atentamente o velho, emitindo pequenos comentários.

Logo no primeiro parágrafo, encontramos a definição temporal, através da

primeira frase: ―Conheci o caudilho precisamente no dia 14 de agosto de 1945,

quando Getúlio dizia (e mandava dizer para todo mundo) que o Estado Novo

estava no fim e que as eleições seriam mesmo realizadas no dia 2 de dezembro

daquele ano‖ (2003, p. 143). Dito isso, o narrador volta-se para a definição do

coronel, o senhor Clarimundo Vasconcelos, um homem já velho que, solitário,

vive de suas lembranças:

O caudilho era homem de idade indefinida e não se importava muito

com as coisas que estavam acontecendo naquele ano, pois vivia

mergulhado num passado distante, no qual o próprio Getúlio devia ter

os seus quinze anos, alistado como soldado raso no final dos

entreveros entre brasileiros e platinos. Clarimundo Vasconcelos, agora

ao pé do fogão, tentando aquecer as mãos ancilosadas, falava

embevecido nos chimangos e maragatos, republicanos e federalistas,

até nos pica-paus (GUIMARÃES, 2003, p. 143).

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A partir da definição do antigo coronel, evidenciamos o percurso em que

se dará à narrativa, pois estamos, novamente, diante de um contador de histórias;

ainda mais, Clarimundo é testemunha viva da história do Rio Grande do Sul.

Dando continuidade à caracterização do personagem: ―Cuia na mão, palheiro

entre os dedos, cuspia encorpado nas lajes do chão. Voltava sempre ao passado

entre o roncar da bomba no fundo da cuia sem água e a espuma verde de um novo

mate‖ (p. 143).

As primeiras narrações dos atos de guerra são contadas por Clarimundo

para justificar a escolha de seu nome pelo seu pai. Segundo ele, o nome foi

escolhido, primeiramente porque combinava muito com Vasconcelos e ainda pela

crença do pai de que ele seguiria a tradição de caudilho da família. Depois, outro

motivo da escolha era o fato de ele ser bem comprido e assim dificultar e atrasar

os inimigos na guerra:

Era para quando a gente topasse com um inimigo sem perdão. Já

imaginou a gente assim, frente a frente, na obrigação de prevenir com

honra o ato de vingança? O outro tinha que dizer: Vais morrer,

Clarimundo Vasconcelos... Riu com as gengivas murchas. Disse que

quando o outro chegasse no mun de Clarimundo, a capangada atenta já

teria perfurado o atrevido que virava peneira na hora (GUIMARÃES,

2003, p. 144).

Na narrativa, passado e presente estão entrelaçados pela voz do narrador,

que dialoga com o coronel; do diálogo, emerge um antigo herói, abastado, agora

envelhecido: ―Agora ele estava ali, aproveitando o calor das brasas e tratando de

aquecer a mão escalavrada, segurando a cuia de porongo bordado a ouro e prata‖

(p. 144). Essa imagem de debilidade é mais forte na descrição da vida atual e da

saúde do velho coronel, que é cuidado pela filha mais velha, sobrevivente e viúva

desde a Revolução de 30: ―lidava com o pai como quem cuida uma criança de

peito, trocando mijados e sacando os grãos das espigas de milho verde. Então ele

ficava chupando o caldinho que escorria pela barba rala‖ (p. 144).

A conversa entre os dois, narrador e coronel, vai se desenrolar a partir da

abordagem política, na qual discutem sobre a permanência de Getúlio no poder;

depois falam da Constituinte, momento em que os dois têm a mesma opinião: não

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acreditam nela. Novamente passado e presente são utilizados para diferenciar os

tempos, pois o velho quis saber se o narrador tinha tropas. Nesses novos tempos,

outros são os elementos de combate: ―Operário na rua, estudante com faixas,

donas-de-casa a protestar e a gritar: queremos Getúlio, queremos Getúlio! E

levamos tudo de roldão, fique sabendo‖ (p. 145).

Depois da descrição da atualidade, o narrador pede o auxílio do velho

caudilho para ajudar a manter Getúlio no poder. Na resposta do velho,

evidenciamos a contrariedade do antigo coronel para com as atitudes atuais, pois

ele prefere ficar com suas ―santas recordações‖.

O narrador, ao observar a impossibilidade de tornar o velho um dos seus

aliados, e também julgar ser uma perda de tempo continuar a insistir, vai se

despedindo. Promete voltar para ouvir novas histórias e causos, ao que o coronel

garante que, de sua boca, somente serão ouvidas verdades. O narrador-

testemunha insiste ainda na participação do coronel, solicitando que ele ditasse

uma proclamação, ou que assinasse uma. Novamente a comparação com o

passado é feita pelo coronel, a qual, além de revelar seu posicionamento atual,

remonta a seu passado, e o tempo em que não era ―bem educado‖:

Se o senhor viesse aqui na minha casa dizer isso que acaba de dizer,

naquele tempo em que eu ainda não era tido como um homem bem-

educado, fique sabendo que a gente ia logo lá para fora tirar a

diferença a bala, ou de qualquer outra maneira que o senhor

escolhesse (GUIMARÃES, 2003, p. 146).

Depois disso, o homem tenta se retirar enquanto o velho tomava o mate,

porém o coronel quer conversar mais. Diante da obrigação de ficar escutando,

notamos o direcionamento para a filha, que estava com quase setenta anos: ―Era

magra e tinha berrugas pelo rosto descarnado e pelas costas das mãos, de veias

esticadas como cordas. Fungava sempre, nunca recorrendo ao lenço, pois era um

fungar seco de cacoete‖ (p. 147). A descrição da filha fornece a idade aproximada

do coronel, que já havia passado dos noventa.

Observamos, no narrador, o distanciamento em relação ao modo de viver

do coronel e de sua filha. Diante do convite (na verdade intimação) para jantar, ele

pensa em tudo o que precisa fazer:

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Eu ainda precisava telegrafar para Alegrete, Passo Fundo, Bagé e

outros lugares. Não era segredo nenhum que os militares estavam

preparando um golpe contra Getúlio e lá se ia o queremismo por águas

abaixo. E sabe Deus o que viria depois. Mas não descobria um jeito

(GUIMARÃES, 2003, p. 147).

Os dois tomam uma cachaça ainda antes do jantar e o coronel promete

contar uma história de ―deixar os cabelos em pé‖. Inicia-se, assim, a contação de

causos do velho caudilho, coronel e antigo herói. Mas, antes do causo, ainda

percebemos o distanciamento do narrador com relação à vida no campo, no

rancho, uma vez que as descrições que envolvem a espacialização ou até mesmo o

jeito do coronel são feitas a partir de um olhar de fora, mais precisamente da

cidade para o campo:

Eu já estava conformado em ficar na casa dele até altas horas. Não via

maneira de imaginar outras desculpas. Meu carro ficara do lado de

fora da porteira, distante uns quarenta metros da casa colonial que

tinha um pátio espanhol, com parreiras e limoeiros. Assim era comer

devagar e ouvir (GUIMARÃES, 2003, p. 148).

Voltando para o causo, o coronel diz ser amigo de Getúlio desde 1909,

quando ocorreu a sua eleição para a Assembleia dos Representantes, com vinte e

seis anos e, com menos de quarenta e três, Getúlio era ministro do Washington

Luís, e logo veio a Revolução de 30. Segundo o velho, mesmo com a amizade

entre os dois, ele nunca havia aceito nenhuma promoção a não ser que fosse por

merecimento. Mas, nesse percurso, o coronel foi ferido, pegou uma pneumonia

(doença grave na época) e só saiu da cama quando a Revolução já tinha acabado.

O jantar é servido; evidenciamos, tanto no prato principal como na

sobremesa, o cultivo da tradição dos antigos costumes, comidas que ainda se

caracterizam como tipicamente sulinas: mandioca bem macia, molho de torresmo,

carne de costela assada na brasa, feijão e de sobremesa doce de abóbora. Depois

disso, notamos a inquietação novamente no narrador, que pensa em inúmeras

estratégias para sair e ir embora e deixar de ouvir: ―histórias de guerras,

escaramuças, degolas, vinganças, valentias e terrores‖ (p. 149).

O coronel, ainda, após o jantar, continua sua história, lembrando o período

em que Borges adoeceu, em 1915 e assumiu o vice o senhor Salvador Pinheiro

Machado. O velho disse ter ido com um regimento da Brigada Militar até a

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fronteira sul, pois: ―havia boatos de rebelião, o homem forte na cama e logo

quando chegava aqui a notícia do assassinato do Senador Pinheiro Machado.‖

Momento muito difícil, pois o ―Estado parecia entrar numa convulsão

revolucionária‖ (p. 150).

No momento em que o narrador diz saber das histórias, o velho demonstra

a visão crítica, adquirida por experiência direta. Valorizando sua experiência com

a história vivida, despreza o saber advindo de segunda mão, a partir de leituras.

Por outro lado, revolta-se com o que lhe parece ser um certo desprezo, por parte

de seu interlocutor, de sua sabedoria vital: ―O senhor fica aí lendo livros de

História, querendo saber as coisas nas bibliotecas e saiba que é lá justamente que

nada acontece. Eu vivi todo esse tempo, meu prezado amigo‖ (p. 150).

A inquietação e o deslocamento com relação ao espaço do campo

demonstrado pelo narrador continuam: ―a noite estava gelada, e se chovesse o

meu carro não conseguiria sair daquelas grotas, nem com correntes nas quatro

rodas‖ (p. 151). Diante da possível dificuldade em sair com o carro o coronel

apresenta duas argumentações: a primeira, a de que ele sabia que não iria chover

nos próximos quatro ou cinco dias e, a segunda, foi comparando a facilidade de

andar de carro frente ao andar a cavalo. Diferentemente do gaúcho dos contos das

nuances iniciais da prosa regionalista, este velho caudilho, se bem que reconheça

um bom cavalo quando o vê, já não necessita tê-lo como meio de transporte

insubstituível. Não mais centauro, sabe que o carro, ―fechado,[com] vidro em

todas as janelas, poltronas estofadas‖ é muito mais confortável que um cavalo em

uma noite gelada.

O coronel, em suas histórias, evidencia as injustiças e maldades das elites

dirigentes contra os menos afortunados. Em suas palavras é possível perceber as

desigualdades reinantes, inclusive no seio das tropas revolucionárias. Quando a

filha vai deitar, pede que ela reze pelos mortos e, confessa ao narrador que só reza

pelos seus próprios mortos, coisa que aprendeu com Honório Lemes e Zeca Neto:

Gente de outra estirpe, meu caro, fique sabendo. Honório Lemes, o

Leão do Caverá, morreu nos meus braços e foi enterrado em Rosário,

com banda de música tocando a marcha fúnebre, velado no salão

nobre da Prefeitura, respeitado até mesmo por seus mais ferrenhos

inimigos (GUIMARÃES, 2003, p. 152).

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O narrador interrompe-o, indagando se este é o tempo de Flores da Cunha

e de Osvaldo Aranha, ao que o coronel responde afirmando que esses eram do

outro lado e se tornaram heróis só porque ganharam e, continuou: ―É sempre

assim, quem ganha uma revolução é quem fica de dono da razão‖ (p. 152). O

coronel faz uma pausa para relatar sua dificuldade para enxergar, pois está com

sério problema de visão e revela que seu medo é não saber se é dia ou noite, de

não saber distinguir entre um pau de lenha e um carvão e, também de não saber de

que ―banda‖ está o inimigo. O outro que ouvia, pensando em alegrar o coronel,

afirma que ele não tem mais inimigo. Ao que o velho responde: ―Se diz isso para

me agradar, saiba que está me ofendendo. Quando um homem não tem mais

inimigos é porque está chegando ao fim‖ (p. 152).

O coronel ainda desmitifica a falácia da democracia rural, apontando para

as diferenças entre ricos e pobres, desde as coisas mais simples até as maiores

dificuldades enfrentadas:

E veja bem, em todas essas revoluções em que gastei quase a minha

vida inteira, os que tinham divisa nos braços e galões nos ombros

comiam a parte melhor das vacas carneadas e o que sobrava era

atirado aos soldados como quem dá polenta com osso para a

cachorrada. E assim mesmo, anote aí, quando sobrava alguma coisa. E

nem sempre sobrava (GUIMARÃES, 2003, p. 153)

O narrador afirma se tratar de destino e o velho complementa: ―Destino

coisa nenhuma, é maldade dos homens, é egoísmo, meu filho. Eu tenho pelo

menos duas vezes a sua idade e sei das coisas‖ (p. 153).

Durante a conversa, os dois ouviram o relincho de um cavalo, para o qual

evidenciamos, no conto, o mesmo tratamento dispensado desde o cancioneiro na

literatura oral, quando o coronel explicou os motivos de deixar os cavalos soltos:

―Cavalo é como gente, quer liberdade‖ (p. 154).

Depois do relincho do cavalo, o velho permaneceu um tanto calado e até

distante, aos olhos do narrador. Ao retomar a conversação, começou a falar de um

cavalo, já muito velho e que por vezes desaparece pelos campos. O animal deve

ter perto de 30 anos, pois ele está junto do coronel desde os anos 1914, não que

fosse seu ou que o tivesse ganhado: antes, o cavalo o seguiu por mais de cinco

léguas. Sobre o cavalo o velho coronel afirma:

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Desaparecia de dia, surgia de noite. E para falar a verdade, se o senhor

me perguntar não sei dizer a cor do pelo dele, se tem uma, duas ou

três, se é baio ou rato, se é negro, alazão ou branco. Só posso garantir

que foi um temível garanhão, pastor para um potreiro de éguas. E

ainda hoje, vem e vai, ouço a voz dele muito raramente e se não morro

logo, talvez esse animal desapareça para sempre (GUIMARÃES,

2003, p. 154).

A preocupação e a atenção do coronel estavam voltadas para o campo, até

que ele, dirigindo-se para o homem que lhe ouvia, confessou que contaria agora,

algo que jamais contou a ninguém, nem para sua mulher, nem para sua filha.

Inicia-se o relato do caso do cavalo cego. O fato que foi ocultado pelo coronel se

refere à chacina da família de um coronel, seu compadre, na qual cachorros foram

estripados, e seu compadre, comadre e filhos degolados. O coronel encontra-os,

―sangrando igual a porcos e ovelhas‖; atribui a tragédia à vingança,

provavelmente causada pelo ódio entre maragatos e chimangos, e rapidamente

organiza o sepultamento. Jura para si mesmo encontrar os bandidos e dedicar a

eles uma morte bem violenta: ―Eu remoía coisa distinta, mortes com requintes do

demo, primeiro uma orelha, depois outra, a ponta do nariz, metade da língua para

que o desgraçado não falasse nada‖ (p. 158).

No entanto, nem ele nem sua tropa encontravam os bandidos; deparam-se

porém, com um estranho cavalo de longas crinas, extraordinariamente forte e

majestoso. Seu pescoço era semelhante a ―tábuas [...] como se tivessem sido

talhadas na pedra, [tinha] narinas que resfolegavam como uma locomotiva, enfim,

um animal de não ser posto fora em qualquer parte do mundo‖ (p. 160). Com

receio do cavalo, eles o prenderam para conhecer melhor e, assim poder analisá-lo

mais cautelosamente, ainda que apenas pelo tato, uma vez que estavam em plena

escuridão da noite:

-Era uma cruz de pontas viradas, marca que não havia pelas

redondezas. Depois, passei a mão pelo lombo todo, pelas ancas

fornidas, nas entrepernas, pelas crinas e tudo me parecia de um

tamanho descomunal, de uma força de furacão. Desci pelas pernas

fortes até os cascos que me pareceram feitos de ferro, e confesso que

ainda hoje sinto nas palmas das mãos o frio gélido daquele animal,

nenhum indício de calor ou de vida, como se ele fosse de mármore ou

de bronze, muito embora ele estivesse ali nas nossas mãos, cheio de

vida e indócil de pôr um homem a perigo (GUIMARÃES, 2003, p.

161).

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Segundo o coronel, esse cavalo misterioso foi o responsável,

aparentemente, pela morte dos assassinos, cujos corpos estavam pisoteados.

Depois de contar a história, o velho silencia. O narrador resolve sair sem se

despedir; novamente há a sugestão e distanciamento daquela realidade, pois ele

desejava apenas ir embora, se afastar do velho, e a impressão de que história fora

um tanto fantasiosa.

No entanto, seguindo em direção à porteira, eis que ele se depara com um

extraordinário cavalo, o qual parecia ser o da história do velho caudilho:

Aproximei-me cauteloso, levei a mão vagarosamente para bater na

tábua do pescoço, senti o cheiro acre e gostoso do seu suor e de

repente vi-me aterrorizado por uma descoberta inesperada: o animal

não tinha olhos. Com um incontrolável tremor nas mãos, caminhei

com os dedos até a anca vigorosa e examinei a marca de fogo: uma

cruz de pontas viradas, perna inferior com sinal de excesso de fogo

(GUIMARÃES, 2003, p. 164).

Através do velho caudilho e de sua forma de relatar as experiências

vividas, assegurando a veracidade das mesmas, recordamos da narração de Blau

Nunes, de Simões Lopes Neto. No entanto, o coronel distingue-se de Blau,

primeiro por representar na história a classe dominante; mesmo aí evidenciamos

elementos de tradição e ruptura, uma vez que ao lembrar-se das guerras, dos

momentos de valentia o faz pelo viés consciente do desaparecimento do Rio

Grande de outrora. Em segundo lugar, o narrador não faz parte do universo

campesino representado, figurando, assim, apenas na condição de observador e

interlocutor.

Depois de lermos o conto, observamos que Josué Guimarães, embora

mantenha as linhas tradicionais do modelo real-naturalista que norteou os escritos

da ficção regionalista inicial, acaba por introduzir elementos que alteram o

modelo reproduzido nos primeiros contos sulinos, como é o caso da linguagem,

pois ainda que haja a ênfase no coloquialismo, os termos locais não são

privilegiados; além disso, como em Barbosa Lessa, há a intromissão de um

elemento que parece fugir às leis da natureza, o misterioso e longevo cavalo cego.

Também a temática do conto crítica as oligarquias rurais, demonstrando que a sua

decadência e seu gradativo desaparecimento está diretamente relacionado com a

desagregação moral e a própria degeneração dos costumes dos antigos dirigentes,

os caudilhos.

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3.2 A persistência da vertente regional na canção gaúcha

Nesta seção, propomo-nos a evidenciar, através de estudo analítico

comparativo, como os discursos iniciais da literatura oral e, mais tarde, do conto

são recuperados, na contemporaneidade, nas letras das canções regionalistas

gaúchas, as quais continuam conduzindo os indivíduos a recordar, reviver e

demonstrar a singularidade de sua tradição cultural regional. Para demonstrarmos

a persistência da vertente regionalista na canção gaúcha, selecionamos onze

compositores cujas canções continuam inscrevendo elementos da cultura regional,

os quais são introduzidos de acordo com a tipologia do percurso histórico da

canção do estado do Rio Grande do Sul, proposta por Cougo (2012) para se referir

aos sucessivos períodos da evolução da canção gaúcha, os quais, como já

registrado no capítulo anterior, são: Inventando as tradições; Ebulição nativista e

Memórias, Produção acadêmica e Revisionismo dos anos 1980 em diante.

A fim de melhor situar cada um dos compositores, apresentamos seus

dados biográficos, ainda que de forma sucinta, com a finalidade de relacionar sua

produção com a origem social e formação, ou seja, ressaltar a perspectiva a partir

da qual escreve: se a partir de uma inspiração e vivência rural ou citadina. Além

disso, procuramos situar as canções de cunho regionalista dentro do contexto

maior da obra de cada artista, com vistas a registrar a dimensão que a temática

regionalista assume para cada um destes.

3.2.1. Inventando as tradições

A música é um componente variável na alma dos povos. Reflete o

espírito coletivo, seus dramas, suas conquistas, seus traços

característicos de modelo social e psicológico. Sendo ainda, matéria -

prima, componente e tempero que dá gosto, vida e substância às ditas

ciências, tais como: História, sociologia, enfim, a tantas

outras. Entretanto, para nós, gaúchos campeiros - espécie em evidente

extinção, com o perdão do lugar comum - para nós, música é a própria

fisionomia da terra. É Alma, é coração, é sangue plasmado numa

vibração interior e uniforme, abrindo rotas, apontando diretrizes,

atraindo e repelindo sinais perdidos do núcleo central da

espiritualidade. José João Sampaio da Silva (2011)

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Durante esse período, que envolve os anos 40 e se estende até 1971, o qual

para Cougo é considerado como o início das tradições, muitos nomes da música

gaúcha foram alcançando destaque, tanto artistas solistas como grupos musicais.

Nessa fase, vivia-se a era do rádio, meio difusor e propagador da vertente

regionalista, especialmente a partir do programa Campereadas, da Rádio

Farroupilha. Dentre os artistas cuja carreira profissional foi impulsionada pelo

rádio, destacamos Pedro Raymundo, Vitor Matheus Teixeirinha e Leovegildo José

de Freitas, por considerarmos que esses compositores foram os precursores da

canção regionalista gaúcha que é cantada até nossos dias.

3.2.1.1 Pedro Raymundo

Pedro Raymundo, catarinense, natural de Imaruí, nasceu em 29 de junho

de 1906. Foi o primeiro cantor do sul de êxito nacional que fez uso do traje típico

gaúcho. Mudou para a capital gaúcha em 1929, onde trabalhou como motorneiro

de bonde, na Cia. Carris Porto Alegrense e nas horas vagas, além de participar do

grupo de jazz da empresa, mostrava seu talento com sua gaita nos cafés do

Mercado Público. Em 1939, criou o Quarteto dos Tauras, adaptando canções do

folclore gaúcho, como Prenda Minha (1945) e Boi barroso (1951).

Quatro anos depois, foi tentar a sorte no centro do país, onde frequentou

programas de calouros no Rio de Janeiro, sempre com sua gaita e vestimenta

típica gaúcha. Pedro Raymundo foi o grande pioneiro da música regionalista do

Rio Grande do Sul. Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, no livro Danças e andanças

da tradição gaúcha (1975, p. 35) registraram: ―Nos cafés e bares ‗da volta do

Mercado‘, concorridíssimos, ganha aplausos um cantador de nome Pedro

Raymundo – natural de Santa Catarina, mas bem representativo do Rio Grande na

sua maneira ‗largada‘ de interpretar, à gaita-piano, animados xotes e polquinhas‖.

Em 1944, Raymundo ficou reconhecido nacionalmente com a

composição ―Adeus Mariana‖, tornando-se uma estrela do rádio com o apelido de

Gaúcho Alegre do Rádio. Apresentou-se na emissora Mayrink Veiga, depois na

Tupi, Tamoio, Guanabara, Globo e Nacional. Em 1950, a consagração de Pedro

Raymundo chegou às bancas de revista, pois lá estava ele, na capa da Revista do

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rádio, uma espécie de Revista Caras dos anos 40 e 50. Em 1959, Pedro

Raymundo tinha 60 discos em 78 RPM, e projeção nacional.

Vieira no Jornal Folha da Cidade ao refletir sobre a música regionalista

gaúcha recupera uma frase mencionada por Luiz Gonzaga no ano de 1971,

durante uma entrevista, que demonstra o quanto a figura de Pedro Raymundo

inspirou o trabalho de músicos sulinos e, principalmente inspirou a composição de

novos personagens característicos de regiões distintas: ―Quando Pedro Raymundo

veio para cá vestido de gaúcho, eu me senti nu. Eu disse: por que é que o Nordeste

não tem sua característica? (...) Vou imitar esse senhor. (...) Ele é gaúcho, vou ser

cangaceiro‖ (2014).

Em 1986, foi publicado um livro sobre a vida de Pedro Raymundo, de

autoria de Israel Lopes e Vitor Minas, pela Editora Tchê, de Porto Alegre. Em

2003, o selo Revivendo lançou o disco Saudade de Laguna com composições do

artista, entre as quais, "Tico-tico no terreiro", "De galho em galho", "Manhoso",

"Lamentos", "Contigo no pensamento", "O carreteiro", "Flor brasileira", "Se Deus

quiser", "Meu cavalo parelheiro", "Morena faceira", "Gauchinha", "Gaúcho

largado", "Adeus moçada", além da clássica "Adeus Mariana".

Quarenta e um anos depois da morte de Pedro Raymundo, músicos

catarinenses regravam suas canções, como parte de projeto de estímulo à cultura

liderado pelo violonista e produtor Luiz Sebastião Juttel, de Florianópolis,

segundo informação veiculada pela jornalista Caroline Macário no Diário

Catarinense no dia 18 de junho de 2014. Segundo Macário, o violonista Juttel

aposta no repertório instrumental de clássicos de Raymundo, tais como ―Adeus,

Mariana‖. O produtor, juntamente com Bruno Moritz (acordeon) e Rafael Borges

(guitarra semiacústica) deixará intactas as melodias, pois a intenção é fazer apenas

algumas adaptações de harmonia. A ideia, segundo Juttel (2014), é simples:

―arranjos feitos na hora e intuitivos, para não descaracterizar Pedro Raymundo

e ressaltar sua musicalidade. O único toque de contemporaneidade é a guitarra‖.

Conhecido como ―Gaúcho alegre‖, o catarinense Pedro Raymundo

misturou a temática sulina à de outros estados: interpretava polcas, valsas,

marchinhas e até mesmo baião. Nisto, como na linguagem simples, apelo ao

imaginário popular, identificação com o homem do povo, e o emprego de um

humor baseado na banalização da violência, Raymundo parecia buscar uma

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fórmula que lhe garantisse empatia com seu público; reivindicou para si a

identidade de ―gaúcho adotivo‖.

Na canção ―Adeus Mariana‖ o eu poético coloca-se na posição de alguém

que se desloca da cidade para o campo e, para quem, portanto, o ambiente

regionalista não fazia parte das vivências primeiras: ―Nasci lá na cidade, me casei

na serra/ Com a minha Mariana: moça lá de fora‖ (RAYMUNDO, 1944). A

temática que envolve a canção é o romance com a Mariana, o casamento e a

infidelidade.

Nessa composição, evidenciamos a inscrição dos elementos campeiros a

partir de uma identificação externa, pela indumentária. A amada é caracterizada

como ―gaúcha de verdade dos quatro costados‖, opinião que é justificada pelo fato

de que a mulher ―usa chapéu grande, bombacha e esporas‖. A descrição, que se

aproxima do imaginário do gaúcho monarca das coxilhas, é ainda composta a

partir de elementos que integram a vivência campeira, como o hábito de levantar

cedo, o trabalho do campo, o andar a cavalo: ―Nem bem rompeu o dia/ me tirou

da cama/ encilhou o tordilho e saiu campo afora‖.

Evidencia-se, porém, uma inversão nos papéis sociais, já que a mulher

passa a assumir comportamentos que eram associados ao homem. Ademais, há

uma inversão, ainda, no comportamento masculino, que passa a ser objeto de

agressão por parte da mulher. Se na tradição da monarquia o homem exercia a

violência na defesa do território, a mulher agride o homem na defesa do objeto

amado, que se rende a sua força (e violência):

Ela não disse nada, mas ficou sismando

Que era dessa vez que eu daria o fora

Pegou uma açoiteira e veio contra mim

Eu disse larga, Mariana, que eu não vou embora

Podemos perceber que Pedro Raymundo retoma a temática antiga,

remontando ao cenário campeiro através de imagens e figuras que já estão

inscritos no imaginário regionalista: como tordilho, campo fora e açoiteira, mas o

faz em um contexto diferente, que contrasta com o da tradição regionalista inscrita

no conto, pois na canção o contexto é o desentendimento com a mulher, a traição.

Além de reinscrição do tradicional cenário regionalista, linguagem simples e o

tom humorístico com que se refere à violência praticada contra o gaúcho, sugere a

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busca pelo apelo popular. Ao que parece, foi bem sucedido: ―Adeus, Mariana‖

segue sendo gravada e continua fazendo sucesso nas interpretações de artistas

como Gaúcho da Fronteira, Sérgio Reis, Tonico e Tinoco, Neto Fagundes e

Ernesto Fagundes e Osvaldir e Carlos Magrão.

Outra composição de Pedro Raymundo, ―Gaúcho Largado‖, gravada no

ano de 1944, retrata a imagem do gaúcho festeiro, cobiçado, briguento,

tipicamente pilchado e acompanhado do ―pingo‖, o seu cavalo. Evidenciamos a

natureza identitária do gaúcho, expressa, novamente, por meio de elementos

externos, através da vestimenta: ―botas, bombacha e lenço encarnado‖: ―Quando

eu ponho minhas botas, bombacha e lenço encarnado/ Todo mundo logo grita: -

Eta gaúcho largado;/‖.

Como em ―Adeus Mariana‖, a caracterização do tipo humano se dá

através do resgate de elementos que compunham a vida do gaúcho: a companhia

do cavalo e a peleia, inscritos agora em uma perspectiva diferente daquela

referendada pela tradição do conto regionalista, uma vez que o cavalo é utilizado

como meio de deslocamento para a ida ao baile e a peleia não é mais atrelada à

guerra, não mais é sinônimo de valentia, mas é, antes, elemento provocador de

cobiça entre as mulheres:

Se monto no meu cavalo, no meu pingo pangaré

Por Deus que sou cobiçado por mais de trinta mulheres!/

E quando eu chego num baile sapateio na entrada

Se alguém me chama atenção a peleia está formada

Atiro no candeeiro e vou brigar no escuro.

Identificamos o deslocamento da matéria campeira para um contexto

diferente, em que a vestimenta confere ao gaúcho a sua caracterização, e a

valentia confunde-se com a briga sem motivos. Em contraste, por exemplo, com a

importância dada ao ser em Simões Lopes Neto, nesta canção avulta a importância

atrelada das posses, do ter, mais do que ao ser. Assim, ―ser gaúcho‖ define-se por

ter as vestimentas típicas, que são usadas para a conquista amorosa. Da mesma

forma, a questão maior inscrita na composição é a da valentia, que não se

manifesta na peleia heroica, nem mesmo na defesa da honra, mas simplesmente é

uma resposta compulsiva a qualquer briga. Assim, preserva-se a valentia em um

contexto degradado, à medida que a canção faz apologia à violência gratuita.

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A canção desnuda a prontidão do gaúcho para a luta e pelo morrer por sua

honra, mas de modo diferente, pois não evidenciamos os motivos que antigamente

levavam o gaúcho à peleia, como por exemplo, a defesa pelo território e à

posterior heroicização:

Se morrer pouco me importa, mas desaforo eu não aturo!

Encosto numa parede e mando vir quem quiser,

venha velho, venha novo, só não me venha mulher;

Arranco do meu facão, manejo sem atrapalho,

Nos magros eu dou de prancha e nos gordos dou de talho!‖.

Ainda na canção ―Gaúcho Peleador‖, evidenciamos a recuperação da

temática antiga, pela inscrição de traços que compõem a identidade gaúcha:

―peleador‖, ―rei‖, ―cavalo‖, porém, novamente, em um contexto diferente daquele

apresentado no conto. Tipo comunicativo e fanfarrão, o gaúcho assim se

apresenta:

Buena moçada linda, com vocês aqui estou/

quem esqueceu do meu nome, desculpa faça o favor,

me chamo Pedro Raymundo, gaúcho peleador

Dizem por aí afora,que eu sou o rei da furada,

em toda parte que eu chego,a bagunça tá formada

entro um no baile a cavalo,e não me acontece nada.

Observamos a peleia relacionada a um comportamento inadequado e não

mais a um sentido heroico, de glória, pois o gaúcho representado é o ―rei da

furada‖. Ademais, a defesa pela honra, o lutar e não ter medo de morrer por

aquilo que acredita, evidenciados no conto, bem como o amor pela aventura, a

exaltação da coragem pessoal, contrastam com a representação desse novo gaúcho

peleador, igualmente individualista. Notamos, desse modo, um deslocamento da

imaginação, pois brigão e valente não são sinônimos. A personificação do amigo,

o fiel cavalo, é celebrada ainda nesse contexto que, se por um lado, preserva a

violência que perpassa a narrativa do gaúcho monarca e centauro dos pampas, é,

por outro lado, reduzida ao cenário de um entrevero banal de uma violência

gratuita:

e não se corre do bicho sem ver o pelo, camarada

Amigo só tenho um, meu baio buêno flete,

com ele eu enfrento a morte, brigo com cinco, e com sete,

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no entreveiro de bala, brigo até de canavete

-e dou talho que não é qualquer doutor que costura, amigo, eiaa...

Em ambas as canções: ―Gaúcho peleador‖ ou ―Gaúcho largado‖, é

somente para a mulher que o gaúcho se entrega, pois não é avesso ao amor, e a

figura feminina associa-se à concepção de sua masculinidade:

e dou talho que não é qualquer doutor que costura amigo eiaa

Quando eu entro no bochincho, acredite quem quiser

não me deixo levar preso por um cidadão qualquer

me entrego de corpo e alma pra uma linda mulher‖.

Como exemplificadas, as composições de Raymundo cantam a terra

gaúcha a partir de elementos externos, ao invés de vivências propriamente ditas, a

partir da indumentária, do cavalo, da valentia transformada em briga, os quais

funcionam como elos identitários. Tais elos, aliados a uma linguagem simples,

que reflete a fala do povo, garantem uma comunicação fácil com o público a que

se destina, aparentemente o gaúcho menos cultivado, das classes populares.

Ressaltamos, ainda, o deslocamento do cenário da valentia, e do próprio sentido

da mesma, que passa a se atrelar à defesa não mais do território, mas da

masculinidade, o que é alcançado através da violência, da briga. As armas antes

usadas na lida campeira e na peleia guerreira agora são empregadas para a defesa

pessoal, e como instrumento de afirmação da masculinidade. Assim, podemos

dizer que o gaúcho adotivo desloca as figuras cristalizadas pelo imaginário,

recuperando através delas os elementos do cancioneiro oral e da prosa regionalista

em um contexto diferente.

3.2.1.2 Vitor Matheus Teixeira- o Teixeirinha

O final da década de 50 reservou para a história da música gaúcha uma

grande surpresa. Isso se deve ao aparecimento de um personagem de nome Vitor

Matheus Teixeirinha, o Teixeirinha o qual, segundo Cougo (2012), foi,

ironicamente, minimizado, durante muitos anos, pela historiografia.

Teixeirinha nasceu em Rolante/RS em 03 de março de 1927. Inicialmente

conhecido apenas nas rádios interioranas do chamado Planalto Médio sul-rio-

grandense, registrou suas primeiras gravações em 1959, pela incipiente gravadora

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Chantecler. No entanto, seus três primeiros discos não fizeram sucesso, mas o

quarto – um 78rpm contendo o xote ―Gaúcho de Passo Fundo‖ e a toada-milonga

―Coração de luto‖ – tornou-se um marco da fonografia brasileira. Segundo Cougo:

Em pouco tempo, Teixeirinha vendeu dois milhões de cópias, tornou-

se um dos artistas mais bem pagos do Brasil e passou a figurar como o

grande representante da música sulina – imagem consolidada durante

25 anos de carreira, sobretudo depois da parceria com a acordeonista

Mary Terezinha. O sucesso do ―Gaúcho Coração do Rio Grande‖ foi

tanto que vários outros artistas resolveram seguir seus passos.

(COUGO, 2012, p. 8)

O sucesso de Teixeirinha surpreendeu tanto a ele quanto ao meio

empresarial que assistia o fenômeno deste músico. Desde então, em sua carreira,

até o ano de 1983, gravou mais de 700 canções, teve 69 LPs editados e compôs

um acervo de 1.200 obras. Durante vinte anos, apresentou programas de rádio

diariamente com duas edições: ―Teixeirinha amanhece cantando‖ (pela manhã) e

―Teixeirinha comanda o espetáculo‖ (à noite); ainda, aos domingos pela manhã,

tinha o programa ―Teixeirinha canta para o Brasil‖, esse com transmissão da

capital gaúcha para o interior e, também, para outros estados brasileiros.

Sobre a aceitação do público pelo trabalho de Teixeirinha, a fundação

Vitor Matheus Teixeirinha registrou em seu site que se deve à simplicidade com

que eram escritas suas músicas. Nas palavras do próprio músico, pode-se

observar: "Eu canto para o povo" e "Onde o povo for eu vou". Assim, ele

consolidou sua carreira e levou sua música por todo o Brasil, América do Sul,

Estados Unidos e Canadá, tendo recebido de Portugal o troféu Elefante de Ouro.

No dia 4 de dezembro de 1985, Teixeirinha faleceu, vítima de câncer.

Reconhecido pelo forte timbre de voz, vinha acompanhado pelo conjunto

regional composto pelo som de acordeom, violão e flauta. Ainda que tímidas e

introspectivas, as primeiras gravações de Teixeirinha lembram o gênero

estabelecido por Pedro Raymundo -- temas regionais, baseados na simplicidade e

na fácil compreensão. Depois de conquistado o mercado musical, Teixeirinha

reproduziu livremente em suas composições as influências recebidas,

apresentando um repertório cada vez mais diversificado. Cantou a morte da mãe,

o amor, a mulher gaúcha, a honra, o gaúcho herói, a fronteira.

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Com relação ao tema, algumas de suas composições lembram sua história

de vida, como na canção de sucesso ―Coração de luto‖, em que o músico canta a

tristeza pela perda trágica da mãe: ―O maior golpe do mundo/ Que eu tive na

minha vida/Foi quando com nove anos/ Perdi minha mãe querida/ Morreu

queimada no fogo/ Morte triste, dolorida/ Que fez a minha mãezinha/ Dar o adeus

da despedida‖.

O apelo à orfandade em tenra idade fala aos sentimentos dos ouvintes, em

uma busca de identificação que é magnificada pela valorização da figura materna

e do amor por ela, expressos em ―mãe querida‖ e no diminutivo carinhoso ―minha

mãezinha‖. Há, ainda, como elemento garantidor de empatia, o cenário trágico em

que a morte ocorreu, e a proclamação da intensidade da dor sofrida.

A exploração da dor continua na parte final da composição, a qual relata a

chegada ao cemitério, a comoção dos momentos finais de despedida, e a condição

desvalida do órfão que não tem ninguém por si:

Ao chegar no campo santo

Foi maior a exclamação

Cobriram com terra fria

Minha mãe do coração

Dali eu saí chorando

Por mãos de estranhos levado

Mas não levou nem dois meses

No mundo fui atirado

Por fim, a canção apela à tradição da honradez gaúcha, ainda no cenário

―sagrado‖ do cumprimento de promessa feita à falecida mãe: ―Quando mamãe era

viva/ Me disse: filho querido/ Pra não roubar, não matar/ Não ferir, não ser ferido/

Descanse em paz, minha mãe/ Eu cumprirei seu pedido‖.

Mesmo no contar e cantar o luto ambientado no pampa, e a infância triste e

pobre do menino que teve sua vida desorientada pela perda da mãe, podemos

acompanhar a descrição do espaço através da recuperação de elementos da

vivência campeira gaúcha: o rancho da família, a simplicidade do campo, o carro

de boi:

Vinha vindo da escola

Quando de longe avistei

O rancho que nós morava

Cheio de gente encontrei.

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Seguiu num carro de boi

Aquele preto caixão

Ao lado eu ia chorando

A triste separação.

Devido ao sucesso da música "Coração de luto", Teixeirinha foi convidado

pela Leopoldis Som (1967) a encenar a história da música e, desde então, o

cinema também passou a fazer parte de suas conquistas, pois produziu em torno

de dez filmes. Sua última participação em filmografia ocorreu no ano de 1981.

A canção ―Gaúcho de Passo Fundo‖, gravada no ano de 1960, no disco O

gaúcho coração do Rio Grande, e regravada pelo grupo Os Fagundes, no ano de

2005 no Cd Os Fagundes: ao vivo, inscreve os elementos da vertente regional a

partir de um contexto diferente. A identificação do gaúcho se dá, de um lado,

através da recuperação dos valores preconizados na vida no campo, como a

hospitalidade; por outro lado, a própria aparência, e a indumentária, simbolizada

pelo pala, são suficientes para o eu lírico caracterizar a identidade gaúcha: ―Me

perguntaram se eu sou gaúcho/ Está na cara repare o meu jeito/ Eu sou gaúcho lá

de Passo Fundo/ Trato todo mundo com muito respeito/Mas se alguém me pisar

no pala/ Meu revolver fala e o bochincho está feito‖. Novamente, o que se

inscreve é a imagem do gaúcho brigão, vingativo e peleador, porém não mais

heróico, o que sugere o fortalecimento de um traço associado ao gaúcho: a

violência gratuita.

A formação desta identidade cantada se dá pelo viés da diferença – da

singularidade de um povo que sempre vence, de uma terra que é produtiva, e de

um povo que é amigo: ―Me perguntaram qual era razão/ Eu ter orgulho e ser

passo-fundense/ Eu respondi sou da terra do trigo/ Tem um povo amigo e quando

luta vence/ É um pedaço do Rio Grande amado/ Orgulha o estado e o povo rio-

grandense‖.

Os elementos regionalistas evidenciados no conto -- a mulher, o cavalo, o

campo fora --, são recuperados na canção no contexto do orgulho pelo chão

nativo. A presença da prenda sinaliza os motivos para voltar à terra natal, ao

mesmo tempo em que retoma a imagem do monarca que cruza fronteiras. Este é

um gaúcho que atravessou as fronteiras de seu estado, conheceu diferentes

realidades, e, portanto, está habilitado a formular com conhecimento de causa a

identidade gaúcha naquilo que a caracteriza em contraste com as demais: sabe

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bem o que é o não-gaúcho, e, conhece as moças de outros estados, e, portanto,

pode bem contrastar a bondade de sua terra, e a beleza de sua gente com as

demais. Isso o estimula a retornar:

Já respondi a pergunta seu moço

Me dá licença vou encilhar o cavalo

Brasil a fora atravessei os estados

Troteando apressado eu vim tirando o talo

Pra ver as prendas mais lindas do mundo

Cheguei em passo fundo no cantar do galo.

Igualmente, “Querência amada”, gravada no ano 1975, exalta as virtudes

do povo gaúcho, as belezas do estado do Rio Grande do Sul e da mulher gaúcha, a

produtividade da terra: ―Querência amada dos parreirais/Da uva vem o vinho/ Do

povo vem o carinho/ Bondade nunca é demais‖. Esta é, talvez, uma das músicas

gaúchas mais regravadas por cantores nativistas; notamos que esta canção convida

o povo gaúcho para exaltar sua cultura, seu estado, seu povo, levando à empatia

através da exploração do amor à terra.

O lenço, que compõe a identidade do gaúcho através da vestimenta,

também diferencia o gaúcho dos demais, caracterizando a conotação política

evidenciada pela sua cor: nos anos 1835, 1893, 1923 o lenço vermelho distinguia

os maragatos, como eram chamados os adeptos do Partido Federalista. Na

atualidade, representa a preservação de uma tradição que cultua a valentia e

heroísmo gaúcho. Por outro lado, esse gaúcho é caracterizado também com

relação à natureza bela de sua terra. Dizem os versos: ―Quem quiser saber quem

sou/ Olha para o céu azul/ E grita junto comigo/ Viva o Rio Grande do Sul/ O

lenço me identifica/ Qual a minha procedência/ Da província de São Pedro/

Padroeiro da querência‖.

A canção relembra, ainda, os nomes de três importantes representantes

políticos do Rio Grande do Sul. São eles: Flores da Cunha, que recebeu o título de

general, pela bravura com que lutou como chefe militar legalista na revolução de

1930, que conflagrou o Rio Grande do Sul; Borges Medeiros, representante da

primeira geração republicana, e que foi presidente do estado do Rio Grande do

Sul, um dos maiores representantes e fiel executor do positivismo e Getúlio

Vargas, advogado e político brasileiro, líder civil da Revolução de 1930, que pôs

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fim à República Velha, atuando como presidente do Brasil em dois períodos. Diz

a canção:

Berço de Flores da Cunha

E de Borges de Medeiros

Terra de Getúlio Vargas

Presidente brasileiro

Eu sou da mesma vertente

Que Deus saúde me mande

Que eu possa ver muitos anos

O céu azul do Rio Grande

A composição também recupera a temática da morte heroica, morrer pela

defesa do território, assim como a mulher como símbolo de beleza: ―Te quero

tanto/Torrão gaúcho/Morrer por ti me dou o luxo/Querência amada/ Planície e

serra/Dos braços que me puxa/Da linda mulher gaúcha/Beleza da minha terra‖.

Além disso, persiste a identificação com o heroísmo farroupilha: apesar de

se dizer pertencente a uma nova geração, nesta ainda ―escorre o sangue herói de

farrapo‖; nesse sentido, evidenciamos uma geração que cultua ainda, no presente,

o seu passado: ―Sou da geração mais nova/Poeta bem macho e guapo/Nas minhas

veias escorre/O sangue herói de farrapo‖.

Ao reverenciar a cultura gaúcha, a canção ainda extremiza a caracterização

do gaúcho ao colocar no mesmo plano o gaúcho e Deus, além de relacioná-lo à

imagem da violência, da guerra e à beleza e grandeza da Terra gigante do Rio

Grande do Sul. Deus é grande, a Terra também:

Deus é gaúcho

Da espora e mango

Foi maragato ou foi chimango

Querência amada

Meu céu de anil

Este Rio Grande gigante

Mais uma estrela brilhante

Na bandeira do Brasil.

Teixeirinha, em seu disco Rio Grande de outrora, no ano de 1981, na

música homônima, compara o gaúcho de outrora ao de hoje, iniciando com a

caracterização do gaúcho de outrora. Nessa canção é possível acompanhar uma

retomada da história, da caracterização do herói farrapo a partir de sua

indumentária: bombacha, espora, chapéu grande, lenço vermelho, camisa branca.

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Isso nos é contado pelo olhar de outra geração, do neto que lembra a figura do avô

ao observar um velho gaúcho que se desloca a cavalo para ir ao baile. O ―velho

gaúcho‖ representa o gaúcho autêntico que segue acompanhado do ―pingo‖, seu

cavalo, levando consigo seu lenço vermelho, considerado pelo músico como ―fiel

herança de um herói farrapo‖:

Velho gaúcho de bombacha e espora

de chapéu grande tapeado na testa

bigode branco e um sorriso aberto

montando um pingo nos dias de festa

acariciando a crista do seu pingo

batendo o relho de leve na anca

lenço vermelho esvoaçando ao vento

guasqueando as pontas na camisa branca

eu me encontrava na beira da estrada

quando passava um gaúcho guapo

me fez lembrar de meu avô e outros

fiel herança de um herói farrapo

Esse velho gaúcho remonta às gerações e às tradições por portar consigo a

história do Rio Grande do Sul; o eu lírico refere-se, mais adiante, ao velho

gaúcho, que defendeu o seu estado na guerra, como ―Deus na terra‖. A festa, o

momento do baile é o lugar de reflexão de pensar o estado e a tradição, local em

que ocorre a comparação entre o gaúcho de outrora e o do presente pelo contraste

entre o ―velho gaúcho‖ e o ―magrinho‖. Tal distinção inicia pela língua, pelo ―ok‖

proferido pelo magrinho e que simboliza, na canção, aquele que é ―de fora‖, assim

como evidenciamos a supervalorização do gaúcho tradicional:

velho gaúcho chegou na tal festa

logo mais tarde eu cheguei também

cantei uns versos saudei os presentes

quando um magrinho me falou ―ok‖

corri os olhos no velho gaúcho

e no magrinho olhei de cima a baixo

pensei comigo e vou dizer agora

a diferença que nos dois eu acho

Na descrição de um e do outro vai ser revelada a superioridade do velho

gaúcho, pois a imagem do ―magrinho‖, o ―gaúcho de agora‖ representa a geração

atual, que não está engajada ao tradicionalismo: ―no tal magrinho eu vi o presente/

e no gaúcho velho vi o passado/ a diferença é do dia prá noite/ como mudou o

meu Rio Grande amado‖. Depois de diferenciar os dois gaúchos, o eu lírico

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coloca-se na posição de quem vai ensinar o outro a reverenciar a história, a

tradição e o respeito pelo gaúcho de outrora:

Eu não sou contra o gaúcho de agora

só não me diga ―ok‖, me aperte a mão

leia a história do velho Rio Grande

como é linda nossa tradição

veja o gaúcho como eu vi aquele

respeite ele como Deus na terra

se o Rio Grande hoje é paz e amor

É por que ele defendeu na guerra.

Percebemos a cisão parcial entre o universo regionalista e o presente,

manifesto pelo anseio de uma geração que retoma os feitos gaúchos e sente o

compromisso de manter viva a história do ―velho Rio Grande‖, cultuando o mito e

transformando em símbolo o passado vivido. Ao final da canção acontece a

reafirmação de que o velho gaúcho representa o gaúcho autêntico, pelo seu modo

de viver, enfim, pela ambientação, pois o gaúcho de outrora continua vivendo em

seu rancho: ―velho gaúcho bebeu festejou/ montou no pingo partiu foi

embora/direto ao rancho e eu fiquei dizendo/lá vai o velho Rio Grande de

outrora‖.

Notamos que essa canção recupera a imagem do gaúcho sem fazer

apologias à violência, à valentia e à briga sem motivos, uma vez que a

caracterização se dá pelo viés da busca do eu lírico pela tradição, pelo culto ao

herói do passado, enfim, pelo reconhecimento da história e grandeza do Rio

Grande.

Outra composição de Teixeirinha que compõe o seu último Lp Amor aos

passarinhos, gravado no ano de 1985, é ―Querência e cidade‖, a qual foi

considerada como a última produção do compositor alinhada ao gauchismo. Nessa

canção, os espaços campo e cidade significam, de um lado, a idealização e, de

outro, a realidade.

No campo, a paisagem campeira denota a imagem de um mundo positivo,

sem males, tranquilo, em que o indivíduo é livre. A relação harmônica entre

homem e o seu território é que impera sobre a formação do gaúcho no campo,

diferentemente do que acontece com o mesmo na cidade: ―Lá na querência

quando amanhece/ A gente esquece todos dissabores /Cá na cidade quando

amanhece/ É um inferno o ronco dos motores.‖

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A superioridade da vida passada no campo, com relação à descrição da

vida na cidade, desenha a imagem de que a beleza do campo se perde no cinza da

cidade. A cidade desumaniza, pois o homem ―é fera‖; a querência, ―jardim de

flores‖, lembra a inocência. Nesse sentido, podemos depreender que o homem, ao

se afastar do campo, torna-se um indivíduo degradado: ―Cidade é selva de

cimento armado/ O homem é fera embora estudado/Lá na querência é um jardim

de flores/ E querência amada‖.

Depois da discussão acerca da natureza e o seu efeito sobre o homem do

campo e o da cidade, a canção opõe cidade e campo pela honradez, uma vez que,

no campo, o homem é de palavra: ―Lá na querência um fio de bigode/ Fecha um

negócio vale um documento‖ e na cidade a palavra e o bigode é ―coisa à toa‖.

Diante desse paralelo, podemos também atentar para o fato de que campo lembra

a violência, a banalidade injustificada, movida pela herança de valentia; a cidade,

por sua vez, lembra a diplomacia: ―Cá na cidade o advogado fala/ Lá na querência

se resolve à bala/ Finda pra sempre um aborrecimento‖. Evidenciamos, nesta,

canção a herança da valentia e do heroísmo, porém associada a uma violência

injustificada.

A distinção entre campo e cidade continua, agora, com relação à beleza e à

força da mulher: à mulher do campo é atribuída a condição de superioridade,

manifestada pela sua íntima associação à natureza e a sua simplicidade, uma

simplicidade que se opõe ao esnobismo da mulher da cidade, e se manifesta,

também pela ausência de maquilagem, e à simplicidade alimentar, que lhe dá

força:

Lá na querência a mulher é simples

E tem o cheiro das flores da mata

Cá na cidade a mulher é isnobi

E a maioria delas é ingrata

A diferença de uma e da outra

Perdoe-me senhores de gravata

Lá na querência a mulher não se pinta

Cá na cidade é na base da tinta

Come pão doce, lá come batata.

E a batata dá mais força mesmo.

O campo é, ainda, descrito como superior pela evidência sonora: no campo

há o canto dos passarinhos e a beleza do nascer do sol; na cidade, a buzina dos

carros e ruído dos pneus no asfalto. Ao final da canção, o eu-lírico reafirma a

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beleza da vida e convivência social no campo, bem como da lida na lavoura, ainda

que ―grosso‖, o homem do campo goza de uma vida superior:

Lá na querência canta os passarinhos

Como é bonito quando o sol levanta

Cá na cidade a buzina é música

E no asfalto o pneu é que canta

A diferença de uma coisa e outra

Peço senhores em nome de santa

Lá na querência nós fazer visita

Pra ver que a vida lá é mais bonita

Do homem grosso que lavra e planta.

A roupagem regional evidenciada nas canções de Teixeirinha se inscreve

em contextos diferentes, uma vez que, o antigo herói dos pampas configura-se

como o atual brigão, através de uma valentia sem motivos. No contato com as

composições estabelecemos basicamente, três aspectos que as delineiam. O

primeiro relaciona-se ao tema das canções - sua exploração do espaço campeiro,

dos costumes gaúchos, da indumentária, da mulher, e da dicotomia campo e

cidade. O segundo atém-se à relação entre o passado e a vivência no presente; é

possível perceber a trajetória da canção atrelada aos aspectos vividos, como a

perda da mãe, a revolução, a saída do campo, Finalmente, o terceiro associa-se à

origem social do público e do próprio cantor, evidenciados a partir de uma

linguagem simples, de um olhar singular para a terra gaúcha, para a vida no

campo.

3.2.1.3 Leovegildo de Freitas – Gildo de Freitas

Ao lado de Teixeirinha, destacamos Leovegildo de Freitas, conhecido

como Gildo de Freitas, que nasceu em Porto Alegre, a 19 de junho de 1919. Poeta

popular, cantou a sua época, o seu povo. No ano de 1949, era considerado

trovador com fama ascendente, ―Rei dos Trovadores‖ em todo o Rio Grande do

Sul. A sua fama como trovador nos programas de rádio ao vivo em Porto Alegre

acontece por volta dos anos 1953-54, momento em que os programas

organizavam disputas entre os participantes.

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O jornalista Juarez Fonseca, no programa Galpão Crioulo veiculado no

mês de abril do ano de 2014, foi entrevistado por Shana Müller para falar sobre a

trajetória desse trovador dos pampas. Segundo Fonseca (2014), Gildo de Freitas

era imbatível como trovador, em uma época em que a trova teve seu auge no Rio

Grande do Sul. Da mesma forma, Shana Müller afirma, no mesmo programa, que

Gildo criou um estilo próprio de trova gaúcha.

O ano de 1955 registra o encontro e, também identificação com o músico

Teixeirinha; nesse período realizaram muitas viagens. No período que envolve os

anos 1956 – 1960, Gildo torna-se a maior atração do programa Grande Rodeio

Coringa, nos domingos à noite. Entretanto, a passagem dos anos 1961 e 1962

demonstra um relativo declínio dos programas de rádio ao vivo, isso em função da

chegada da televisão.

A gravação do primeiro disco acontece no ano de 1963, em São Paulo, e o

lançamento ocorreu em 1964. Em se tratando de provocações em disco, o

primeiro alvo de Gildo de Freitas não foi Teixeirinha. Gildo de , em seu primeiro

Lp em 1964 provocou Pedro Raymundo, respondendo à música ―Adeus Mariana‖

com a canção ―Que jeito tem a Mariana‖.

A disputa entre Gildo de Freitas e Teixeirinha através dos discos inicia em

1965, quando é lançado o segundo Lp, O trovador dos pampas- vida de

camponês‖. Entre suas músicas estava ―Baile de respeito‖, que foi a primeira

música gravada em provocação a Teixeirinha. No seu quarto Lp, gravado em

1968, Gildo de Freitas e sua caravana,seguem as provocações e respostas a

Teixeirinha. Em 1969, é lançado o quinto Lp, De estância em estância, com a

canção ―Resposta da Milonga‖, mais uma provocação ao sucesso de Teixeirinha

com a ―Milonga da Fronteira‖.

Nas citações abaixo, os primeiros versos são da ―Milonga da Fronteira‖, de

Teixeirinha, gravada no ano de 1964, no Lp Gaúcho autêntico; a seguir citamos a

resposta de Gildo de Freitas, gravada no ano de 1969. Em meio à disputa,

podemos observar a inscrição dos elementos regionalistas em Teixeirinha e sua

(re)inscrição, depois, em Gildo de Freitas. A milonga de ambos recupera o ato de

atravessar fronteiras e a conquista do amor da linda fronteirista:

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Atravessei a fronteira por eu ser bom violeiro conhecer mais um pedaço do meu torrão brasileiro na costa do Uruguai fiz milonga no terrero e uma fronteirista linda me chamou de milongueiro Respondi pra fronteirista -não sou milongueiro, não eu só toco essa milonga que eu fiz de prevenção só pra ver se eu conquisto o seu meigo coração Ela foi me respondendo - mesmo assim és cantador eu também sou milongueira no violão tenho valor vamos fazer um desafio ganhando és merecedor e se tocar mais do que eu será teu o meu amor [...] (TEIXEIRINHA, 1964)

Ô Teixeirinha um dia destes

Eu andei lá na fronteira

Lá aonde tu perdestes

Pra gaúcha milongueira

Um lugar muito bonito

A china bonita e bela

Só achei muito esquisito

Tu ter pedido pra ela

E eu cantei lá, um pouquinho

E ela também cantou

Depois nós os dois sozinhos

Está história me contou

Quando o Teixeirinha veio

Cantei com ele e venci

Contigo dei um floreio

Me entreguei, me convenci

( FREITAS,1969 )

Entre 1970 e 1980 Gildo de Freitas grava mais oitos Lps, entre ele

sucessos como o ―Ídolo‖ e ―Rei do Improviso‖, porém problemas de saúde

começam a se agravar. Em 1981, grava o Lp Rei dos trovadores; a disputa com

Teixeirinha é amenizada um pouco, mas não impede a ―Resposta da Adaga de S‖.

No ano de 1982 é realizada a ultima gravação; trata-se do Lp Figueira amiga,

pela Continental, com a última provocação ao Teixeirinha com a música ―Que

negrinha boa‖ e, claro, com a música ―Figueira amiga‖. A composição ―Que

negrinha boa‖ retrata a história de um homem apaixonado pela ―negrinha‖, a

Gabriela, a qual o eu lírico tem receio de que outro artista na composição, o

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Teixeirinha, a roube. Assim, com a intenção de cuidar da mulher, observamos um

homem disposto a cumprir com os afazeres da casa e tratar com carinho a mulher

para não perdê-la. Nessa composição observamos a inscrição dos elementos da

vertente regionalista, ainda que de forma diferenciada, e até invertida, com relação

à tradição: há a inscrição do amor do homem por uma ―prenda‖, que é referida

como ―minha negra‖; é o homem que a serve, e não o contrário, como costuma

acontecer na prosa da vertente regionalista:

Eu cuido da minha negra

Dou sopinha na tigela

Dou café, almoço e janta

Mingauzinho com canela

Tiro o pó todo da casa

Lavo os pratos e a panela

Não precisa trabalhar

Eu faço tudo por ela

Vou bater no Teixeirinha

Por andar de olho nela

De modo diferente, a canção ―Figueira amiga‖ recupera a vida do passado,

da saudade da antiga imagem do campo aberto, através da modificação do espaço

e do modo de viver. O eu lírico manifesta sua ―raiva‖ ao buscar o local que sua

memória retoma através da imagem da figueira, pois ele não consegue mais ver o

que antes via, nem com o que se refere ao ambiente, nem com as pessoas ―as

criatura‖ que ali se abrigavam, junto com seus cavalos:

Figueira faz tanto tempo

Que eu estava retirado

Aqui deixei meu passado

E hoje venho a procura

Só não vejo as criatura

Que eu vi e sou testemunha

Pegando cavalo a unha

Para porem a ferradura.

Figueira como é que pode

Estares modificada

E vejo assim tão cercada

De casas de moradia

Onde estão as ferrarias

Do Carlo e do Zeca Paiva

Francamente eu tenho raiva

De não ver mais quem eu via.

A saudade surge da perda dos elementos de identificação: o andar a

cavalo, as tropas, a própria violência, os hábitos do churrasco, de ouvir sanfona

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que agora se perderam, visto que o local onde se insere a figueira passou a fazer

parte de um cenário urbano:

Passavam tropas e tropas pelo Passo da Mangueira

E na Estrada da Pedreira pouco adiante do boeirinho

O matador assassino e as facas carneadeiras

Parece até brincadeira que o tempo modificou

Que fim será que levou teus velhos dono figueira

Eu tenho até que teus donos à anos já faleceram

E os herdantes venderam para outros seus direito

Ficaste assim desse jeito cercada de vizinhança

Que fim levou as crianças e aquelas moça tão lindas

Recordo de tudo ainda e não me sai da lembrança.

Quem tu eras, quem tu és, oh figueira bonitona.

Zeca Paiva era o teu dono, a dona Alzira tua dona

Quantas vezes em tua sombra churrasquiei, toquei sanfona

E a evolução por vaidade transformou tudo em cidade, passou a ser

cidadona.

Ao final da canção, é recuperada também a insatisfação com o espaço, a

impossibilidade de viver feliz longe do campo, fato que se aproxima da dicotomia

referendada por Teixeirinha entre querência e cidade. A canção também recorda a

saída do gaúcho, o deslocamento vivenciado e a inadaptação no ambiente

citadino, evidenciado como ―estranho ambiente‖:

Se eu pudesse eu te mudava

Pra um lugar de campo aberto

Para sentires de perto

As coisas de antigamente

Tu com toda essa beleza

I esse estranho ambiente

Não podes viver contente

Distante da natureza.

A última aparição pública de Gildo de Freitas é registrada na RBS em um

Galpão Crioulo em novembro de 1982, pois no mês de dezembro, no dia 4 ele

veio a falecer; justamente no mesmo dia, três anos mais tarde Teixeirinha faleceu.

Diante disso, em 1989, através do projeto do deputado Joaquim Moncks foi

aprovada a Lei Estadual 8814, que fixou o dia 4 de dezembro como o Dia do

poeta repentista gaúcho e do Artista regional gaúcho.

Fonseca (2014) registra a importância desse trovador, ressaltando que,

mesmo que ele tenha morrido há mais de 30 anos, as gerações de hoje conhecem e

reconhecem o seu papel para a sociedade sul-rio-grandense; da mesma forma, o

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jornalista comenta sobre a continuidade de suas músicas através das inúmeras

regravações. Gildo ficou na memória dos gaúchos pela genialidade que ele teve

como trovador, cantador e cantor. Shana Müller ressalta o fato de que deixou um

legado, não somente para a música regionalista gaúcha, mas para a música

brasileira, pois suas composições têm histórias e, de certa forma, Freitas construiu

a história do Rio Grande do Sul e de uma época.

Uma das evidências da repercussão de Gildo de Freitas no meio musical

até a atualidade pode ser demonstrada a partir do músico Omair Trindade, o qual,

no ano de 2012, passou a chamar a atenção da crítica, que lhe concedeu o título de

Embaixador e herdeiro musical da obra de Gildo de Freitas pela sua regravação de

quatro grandes sucessos do Rei dos Trovadores e, ainda pela sua homenagem a

Gildo com a composição ―Ao Rei do Improviso‖: ―Mas o povo pede bis e eu

canto feliz ao nosso Rei do Improviso‖.

As composições de Gildo de Freitas trazem consigo a bagagem cultural da

terra gaúcha. Em seu cantar, Gildo retoma o viver no rancho, o amor vivido e

desfeito, a figura feminina, a saída do Rio Grande e, portanto, a saudade dos

tempos de outrora. ―Sistema dos pagos‖, gravada no álbum de 1965, O trovador

dos pampas – vida de camponês faz uma leitura da vida do gaúcho e,

principalmente, revela sua singularidade. Os versos são construídos a partir do

pedido de alguém para que seja definido o gaúcho: ―Muito bem, Gildo de Freitas,

mostra bem como os gaúchos é, compadre!‖.

A caracterização do ―sistema dos pagos‖ inicia pela indumentária, a qual

lembra o centauro dos pampas através da vestimenta, própria para montaria, e a

história do Rio Grande do Sul que ela evoca: ―Eu vou contar pra vocês o minha

gente/ Qual é o traje que o Rio Grande se usa / Uma bombacha umas bota um par

de espora / um chapéu grande um lenço um pala uma brusa/‖.

Depois da caracterização pela indumentária na primeira estrofe, a segunda

vai ser construída a partir do sinônimo de gaúcho como valente: ―[...] um cinturão

boleadera e tirador/ e um revolver carregado na cintura/ um litro mango e uma

faca prateada /e uma cordeona pr‘alegrar as criaturas‖. Na terceira estrofe

evidenciamos a caracterização que rememora a figura do centauro dos pampas, o

homem no cavalo: ―cavalo gordo e um areio preparado/ dois pelegão, peiteira,

freio e barbela/ um ramaneia um laço mala de poncho/e na garupa uma china

formosa e bela‖.

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O gaúcho, nesta composição, é macho e machista, pois a inscrição da

mulher ( a ―china‖) se dá unicamente pela função desta (tal como a filha do

coronel no conto de Josué Guimarães) de servir ao homem e ser-lhe carinhosa: ―e

esta china que me faz o chimarrão/ me lava a roupa faz almoço e faz café/ é bem

assim que se traja o rio grandense/ é o meu chão que le pertence os carinho da

mulhe‖. Por outro lado, o território local, os fazeres campeiros, são recuperados,

ao mesmo tempo em que são conservados os anseios de luta, pela retomada na

composição em que o próprio cachorro peleia com o inimigo:

Também percisa ter dois cachorro bueno

mas escolher da raça dinamarquês

para ajudar o seu dono a pelear

se pur acaso for perciso alguma vez

cada cachorro peleia com o inimigo

e o dono é guapo peleia com dois ou trêis

e foi assim que eu resolvi todo o problema

di contar todo o sistema do Rio Grande pra voceis.

Para além da definição do gaúcho, encontramos também a caracterização

do espaço, da china, enfim, do ―Sistema do Rio Grande‖, termo utilizado pelo

compositor para resumir o sentido da canção ―Sistema dos Pagos‖. Gildo de

Freitas empreende, nessa canção, uma descrição essencialista, sem comparações

ou construções, diferente da que apresentou Teixeirinha ao comparar claramente o

cenário, o indivíduo e os costumes campesinos aos da cidade; a intenção de

Freitas é demonstrar, simplesmente, como se comporta o gaúcho.

A composição gravada no ano de 1966, ―Despedida do Rio Grande‖ é

construída para justificar a saída de Gildo de Freitas do estado do Rio Grande do

Sul. Em sua retórica, o compositor recorre à intertextualidade, citando a marcha

que se tornou símbolo do Rio de Janeiro, para onde se dirige em busca de sucesso:

―Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil‖, marchinha composta por André

Filho e arranjada por Silva Sobreira para o Carnaval de 1935 que homenageia as

belezas naturais do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul também é

belo, possui encantos mil e, por esse motivo ele precisa mostrar as belezas que

Deus fez:

Até a volta gauchada amiga

Deste Rio Grande com encantos mil

Eu vou sair e levar as belezas

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Destas canções por todo o Brasil

Eu vou sair em direção ao norte

E boa sorte pra o meu céu de anil

A construção da despedida/ justificativa é alegre e se dá pela busca para

conhecer novos lugares e poder ver outras belezas, pois o compositor afirma nessa

estrofe que não é por dinheiro, mas a amizade ―vale milhões‖: ―Tenho certeza que

num outro Estado/ Quando ouvirem a nossas canções/ O que é tristeza vai ficar de

lado/ Vai alegrar vários corações/ Fazendo uso da simplicidade/ Por que a

amizade me vale milhões‖. Evidenciamos nessa composição a construção de uma

justificativa para a saída do Rio Grande do Sul através de uma retórica de

desculpa, firmada no fortalecimento das belezas do seu espaço e da liberdade

advinda do ―Pai Verdadeiro‖, o qual, além de fazer tantas belezas, deu também ao

homem liberdade de admirá-las:

Viver andando no Brasil inteiro

Eu sou gaúcho eu tenho vontade

Pra ver os feitos que o Pai verdadeiro

Deixou no mundo e deu liberdade

De admirar todas essas belezas

Que a natureza deu pra humanidade

No final, o compositor repete a imagem de Deus criador que fez a terra tão

linda, tirando o foco do seu próprio querer, praticamente responsabilizando Deus

pelas belezas naturais, afirmando ainda que não é por dinheiro que ele sai do Rio

Grande do Sul, pois a força, amizade e saúde e o contato com a natureza lhe são o

bastante:

Eu vou levando a vida de Aragano

Pelo Brasil eu só levo alegria

Pra ver a serra e a água do oceano

E as beleza que esse mundo cria

Todos da Terra não fazem em cem ano

O que o Pai soberano fez em sete dia

Por isso eu peço que Deus me ajude

Para eu cantar por este mundo além

Que eu tendo força amizade e saúde

Não me interessa eu ter um vintém

Basta o contato com a natureza

E ver as beleza que esse mundo tem

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A composição ―Gaúcho bom é assim‖, que faz parte do disco Rei do

improviso, gravado no ano de 1970, recupera a imagem do gaúcho ―valente‖ e

―destemido‖ evidenciada nos contos regionalistas, de um modo diferente, pois a

abordagem se dá pelo viés da violência, uma vez que esse é o seu valor diante dos

demais: ―O Gaúcho Rio-grandense /Já é muito conhecido/É valente é

destemido/Mas não ofende a ninguém/Mas porém sendo ofendido/O Gaúcho

perde a linha/Mostro logo em seguidinha/ O grande valor que têm‖.

No entanto, essa valentia que descamba para a violência é justificada, não

sendo mais apresentada como nas canções de Pedro Raymundo e Teixeirinha, em

que observamos o gaúcho brigão: ―O gaúcho desconfiado/ É um tremendo perigo/

Reconhece o seus amigos/Mas não briga sem razão‖. Novamente a mulher,

através da qual é recuperada a imagem da chinoca, é o único motivo pelo qual o

gaúcho deixa de pelear: ―Mas se enxergando mulher/ Lhe cai as armas da mão/ Aí

não dá mais pra brigar/ Primeiro se atende a chinoca!‖.

A presença do inimigo nessa canção é sugerida a partir da palavra

―contrário‖; nessa situação, evidenciamos a superioridade do gaúcho diante do

outro que estava armado. Há uma demonstração da força e também da valentia do

gaúcho sobre o ―contrário‖, que se consuma na perpetração de violência, o

assassinato do oponente: ―Numa certa ocasião/ Um contrário me ofendeu/Puxou

do revorve seu/ Mas não chegou dar um tiro/ Até parece mentira/ Dei-lhe um

tamanho sopapo/ Caiu virado num trapo/ Morreu sem dar um suspiro/ Este não

incomoda mais!‖ E novamente será a mulher, a prenda ―de rara beleza‖, quem vai

fasciná-lo e fazê-lo não fugir do crime cometido:

Nisto chegou uma prenda

Mulher de rara beleza

Que me olhou com firmeza

E o meu corpo estremeceu

Deu-me tamanho pialo

Aquele olhar fascinante

Eu não fugi do flagrante

E a policia me prendeu

-Depois que eu sai da cadeia

eu fui preso de novo nos braços dela!

Assim como evidenciamos na literatura oral no Cancioneiro, a temática

dessa canção gira em torno do fato de o gaúcho contar suas cenas de valentia e sua

atração pela mulher, temas que se configuram como prediletos do troveiro

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primitivo. Nessa composição, não evidenciamos a valentia atrelada à defesa de um

território, nem mesmo o cavalo ou a espacialização do rancho, mas podemos

observar o deslocamento da imagem do centauro dos pampas para as cenas

cotidianas em que prevalece, no gaúcho, sua herança de ―valente‖ e ―destemido‖,

e sua afirmação de masculinidade diante da prenda. A mulher, nesta composição,

é elemento de redenção, pois é por causa dela, de seu olhar, que o gaúcho cumpre

a lei:

Se não fosse aquele olhar

Eu garanto que fugia

Eu brigava mas não ia

Parar lá naquela prisão

Mas um olhar como aquele

Em qualquer parte do mundo

Em menos de dois segundos

Prende qualquer valentão

Ao encerrarmos essa fase de invenção das tradições evidenciamos que a

música produzida era muito popular. Os artistas que trouxemos para análise em

nossa pesquisa viveram a época de crescente popularização do rádio, foram muito

cultuados no meio rural. Embora tenha sido considerada de pouca qualidade ou,

ainda, rotulada de ―grosseira‖, foram esses os poetas que fizeram nascer o estilo

regionalista na canção gaúcha e, pela simplicidade e por cantar o Rio Grande, são

ainda fonte de inspiração para novas gerações de músicos sulinos.

Estes compositores cantaram o gaúcho através de uma caracterização

externa – pela indumentária típica, reverenciaram a cultura rio-grandense, o

pampa como cenário, a fronteira, a tradição. Observamos ainda, que as

composições que fazem parte da fase ―Inventando as tradições‖ recuperaram, em

sua grande maioria, a temática da violência, apontando para um gaúcho brigão e

não valente, como podemos evidenciar no conto regionalista. Envoltos pela

tradição, evidenciamos, em menor parcela, o amor pela terra, mas em maior

profundidade encontramos a herança da valentia, porém sem heroísmo, através de

um deslocamento vazio do eu lírico.

3.2.2. A era dos festivais

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A era dos festivais tem início quando uma emissora de rádio da cidade de

Uruguaina promove o I Festival da Canção Popular da Fronteira em 1970.

Naquela época, a movimentação em torno dos festivais de música popular se

espalhava por todo o território brasileiro, pois os Festivais Internacionais da

Canção eram transmitidos do estado do Rio de Janeiro para todo o país através da

televisão. Para Cougo (2012, p. 9), a década de 1970 sinaliza a ebulição nativista,

e tem como proposta reciclar a produção regionalista anterior, que padecia do

estigma da grossura, difundindo uma imagem distorcida da cultura gaúcha. Desde

a primeira edição, o festival pretendeu rebuscar esteticamente o músico gaúcho,

estabelecendo ―uma poética, rítmica e afluência de gêneros compromissados com

uma estética mais refinada‖ (COUGO, 2012, p. 9).

Assim, no ano de 1971, a música regionalista viveu o momento maior de

sua propagação, isso em virtude da realização, neste ano, do primeiro Festival da

Canção Nativa no Rio Grande do Sul. Surgidos no interior do tradicionalismo, os

festivais aos poucos foram ganhando independência, e representam um momento

de renovação para a produção musical sulina. Em pouco tempo, o palco dos

festivais viu saírem dos ―esconderijos‖ muitos compositores e intérpretes, a maioria

desconhecidos, sendo considerado ―um divisor de águas‖ na produção musical do Rio

Grande do Sul. Iniciava um movimento mudaria os costumes, revitalizaria velhos

hábitos, buscando a participação da juventude e veiculando tudo em discos, a chamada

―febre do gauchismo‖, momento de supervalorização da cultura gaúcha, sinalizada por

Lessa (2008, p. 104).

Diante dessa invasão nativista, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa classificam

a música gauchesca praticada em três linhas de produção musical, uma das quais

seria a dos festivais. A primeira linha, tradicionalista, é envolta pelos preceitos do

Movimento Tradicionalista Gaúcho, com ênfase no folclore defendido pelo

Centro de Tradições Gaúcha; a regionalista liga-se à cultura popular, e vincula-se

ao estilo de Teixeirinha, e a linha nativista, considerada como a renovadora,

destaca os cantores e compositores surgidos nos festivais. Com relação à

popularidade, o nativismo não ofuscou o regionalismo; da mesma forma,

enquanto movimento cultural, por muito tempo dependeu do tradicionalismo, nos

âmbitos organizacionais e financeiros dos Centros de Tradições.

Mesmo assim, a aceitação das três linhas foi possível por pouco tempo,

pois os festivais se consagraram enquanto instituições culturais, o que abalou a

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relação entre tradicionalistas e nativistas. Assim, evidenciamos que essa proposta,

aparentemente pacífica, de divisão da música gaúcha, é ainda motivo de

polêmicas e reflexões no meio da música. Em nosso trabalho, como já nos

posicionamos em outro momento, não levaremos em conta as divergências entre

tradicionalistas e nativistas para darmos ênfase à temática levantada por ambos e

identificar os elementos regionais que se mantêm no passar dos anos.

Dessa fase, buscamos em nosso trabalho destacar justamente compositores

que surgiram em meio ao período dos festivais e que continuam, na

contemporaneidade cantando a cultura gaúcha: Sérgio Napp, Cesar Escoto e José

Claudio Machado.

3.2.2.1 Sérgio Napp

Sérgio Napp nasceu em 03 de julho de 1939 na cidade de Giruá/RS.

Formou-se em engenharia, tornou-se professor universitário e continuou

procurando caminhos, tanto através da literatura, escrevendo de tudo e sobre tudo,

tendo publicações em jornais de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, como

também através da música, participando e sendo premiado em diversos festivais.

Sua trajetória começa em 1959, quando recebeu o primeiro prêmio em

poesia. Depois, em 1964, teve grandes nomes da música brasileira gravando suas

composições: Elis Regina com ―Meus olhos‖, Tito Madi com ―Pra que mentir‖,

Marisa Barroso com ―Vou ficar com você‖. Desde esse tempo, Napp seguiu

conquistando títulos, ora pela escrita literária, em crônicas, ora pela música. Em

1981, recebeu o grande prêmio Calhandra de Ouro no Festival Califórnia da

Canção Nativa de Uruguaiana/RS, com a música ―Desgarrados‖. Essa composição

foi resultado de uma parceria com Mario Barbará, e obteve, até hoje, mais de 40

gravações; foi. ainda, lançada em 1993, na Alemanha.

Napp participou da criação do Grupo Canto Livre que, em pouco tempo, se

transformou no principal grupo vocal gaúcho, tendo o seu primeiro Lp gravado

ainda no ano de 81. Em 1982, foi considerado o melhor letrista do estado pelo

jornalista e crítico Juarez Fonseca. Entre 1987-1991, Napp foi diretor da Casa de

Cultura Mario Quintana, publicou seu livro de contos Para voar na boca da

noite e ainda teve participações em antologias da poesia, incluindo até

participação na antologia bilíngüe de contos Marcosul/sur, com lançamento

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simultâneo no Brasil e Argentina, pela editora Tchê. Nos anos de 1992 e 93,

Sérgio Napp escreve novelas, além de poesias, crônicas e contos.

No ano de 1999, lança Claridade, um cd com a sua trajetória urbana, em

que descreve Porto Alegre, canta o amor não correspondido. Lança mais tarde, em

2001, o cd Nos palcos da vida, com a interpretação do Grupo Canto Livre, tendo

apoio do Funproarte, através da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.

As composições que compõem esses CDs demonstram a renovação da música

regionalista com relação à apresentação e ao arranjo musical, mas a letra conserva

ainda elementos da vertente regional, desde o cavalo, o espaço cantado e o sonho

– tempo bom marcado pelo passado.

Podemos afirmar que Sérgio Napp é um dos mais profícuos autores do Rio

Grande do Sul, tendo publicado, em mais de 40 anos de carreira, literatura infantil,

juvenil, adulta, crônica e poesia, reunidos em mais de 15 livros. É letrista

premiado e tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e

internacionais.

Em suas composições, principalmente na canção ―Desgarrados‖,

evidenciamos que o espaço ocupa um lugar de destaque, não apenas pela

geografia ou ainda pela caracterização da cultura à que está associado, mas pela

influência que essa ambientação tem na formação e, porque não, na ação do

elemento humano. Ainda percebemos o perfil do gaúcho, compreendido não como

o indivíduo nascido no Rio Grande do Sul, mas como elemento oriundo do

campo, habitante originalmente ligado à vida rural típica do pampa.

Para exemplificar a importância do espaço organizaremos nossa análise, de

modo a contemplar como são abordados na canção os elementos que lembram o

campo e os elementos que lembram cidade. Inicialmente, percebemos o gaúcho

vislumbrado por um olhar de fora, que lastima a atual decadência do gaúcho

proletarizado. O título ―Desgarrados‖ sugere esse distanciamento do eu lírico, que

esse assume o papel de expectador, pois os desviados do seu rumo, ou ainda

extraviados são ―eles‖, portanto, os outros. A letra da canção propõe a

comparação dos ex-trabalhadores do campo aos animais desgarrados da cidade,

tudo isso sem deixar claros os reais motivos pelos quais esses gaúchos vieram

para a cidade.

Os elementos que descrevem a cidade demonstram o motivo pelo qual eles

estão desgarrados. Evidenciamos, no início da canção, a localização de um

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ambiente citadino, a perda da referência ao campo, ao verde, ao céu azul, pois

―eles‖ estão ―nas calçadas‖, ―nas esquinas‖, sem função gloriosa, ou mesmo

humanizadora: agora ―são pingentes das avenidas‖, ou seja, são insignificantes e

por isso são colocadas à margem da sociedade. Depois, seguem-se os elementos

que lembram o trabalho: ―fazem biscates‖, ―carregam lixo‖, ―juntam baganas‖

demonstram que os novos afazeres, o trabalho na cidade, os degradam. Assim,

podemos afirmar que nessa primeira estrofe não há marca identitária que revele o

gaúcho tradicionalmente glorificado na vertente regional:

Eles se encontram no cais do porto pelas calçadas

Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas,

Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas

E são pingentes das avenidas da capital

Eles se escondem pelos botecos entre cortiços

E pra esquecerem contam bravatas, velhas histórias

E então são tragos, muitos estragos, por toda a noite

Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho

Observamos que a fuga da realidade vivida, nessa nova espacialização, se

dá no ato de contar as ―bravatas‖, ―das velhas histórias‖; aqui podemos identificar

a relação da canção com o gaúcho e seu hábito de contar suas bravuras, suas

glórias. Ainda com relação ao contar o passado para se aproximar desse antigo

viver, recordamos o conto ―Velhos tempos‖, de Darcy Azambuja, em que Severo,

o protagonista, só se reanimava diante da nova situação vivida, imposta pela

industrialização do campo, mediante a possibilidade de contar suas histórias na

roda do galpão, as histórias ―de outro tempo‖. Depois, o último verso da primeira

estrofe: ―Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho‖ demonstra a

resistência do sujeito, pois mesmo de ―olhos abertos‖ ele continua sua tentativa de

esquecimento da realidade. Essa resistência se dá através do sonho e da

rememoração.

No espaço citadino, através de um jogo de vocabulário, o próprio vento,

assim como as pessoas, encontra-se ―desgarrado‖ e, nesse sentido, podemos

aproximar o vento e o sujeito afirmando que ambos estão ―sem rumo‖,

―extraviados‖ nessa nova espacialização. Ainda, vento e o gaúcho não podem

voltar no tempo: ―Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade/Viram

copos viram mundos, mas o que foi nunca mais será‖.

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Depois, os elementos relacionados ao campo revelam a identidade peculiar

do sujeito gaúcho, uma vez que são recuperados os arsenais que compõem a

imagem do habitante do pampa, no qual evidenciamos a fixação às coisas da terra

e à socialização. Tais elementos não expressam melancolia, tudo é tranquilo, de

forma que é possível repensar a ―harmonia‖ e também a ―democracia rural‖

evidenciada por Zilberman (1980) no texto regionalista, com referência à partilha

de atividades por estancieiros e vaqueanos. Em ―Desgarrados‖, essa harmonia é

identificada pelo companheirismo entre os homens que, junto ao palheiro aceso,

comiam, contavam causos, e preparavam o cavalo para as lides do dia. Além

disso, observamos, que diferentemente do trabalho na cidade, percebido como

degradante, as lidas campestres humanizam o homem, que a elas se entregar está

em comunhão com seu semelhante:

Cevavam mate, sorriso franco, palheiro aceso

Viraram brasas, contavam causos, polindo esporas,

Geada fria, café bem quente, muito alvoroço,

Arreios firmes e nos pescoços lenços vermelhos

O lenço vermelho aponta categoricamente para a figura do gaúcho mítico,

construído nas interações sociais e guerreiras, da mesma forma que, é construído

um imaginário de como era a vida no campo antes de o gaúcho deslocar-se para a

cidade. O passado é, ainda, lembrado pelos costumes atrelados ao divertimento,

como o ―jogo de osso‖, muito praticado na fronteira, e que consiste em arremessar

um osso; pela ―cancha reta‖: lugar preparado para corrida de cavalos e pela fartura

de comida: ―Jogo do osso, cana de espera e o pão de forno/O milho assado, a

carne gorda, a cancha reta‖.

É nessa época de fartura e divertimento que os gaúchos: ―Faziam planos e

nem sabiam que eram felizes‖, mas agora, desgarrado, o gaúcho longe do campo,

distante de sua cultura e de sua gente rememora esses momentos. Desse modo,

evidenciamos que esse desgarrar-se culturalmente é marcado na letra da canção, a

qual acaba denunciando o êxodo rural, ao mesmo tempo em que, revela um

saudosismo em relação ao passado, à vida no campo, aos costumes gaúchos

A composição ―Retirante‖, de autoria de Sérgio Napp, interpretada por

Mario Barbará, mostra um gaúcho que, no seu habitat campeiro, ao invés de se

sentir livre e identificado com os elementos do espaço, julga-se quase um escravo

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que tem ―as mãos calejadas‖. Vendo-se como um ―burro de carga‖, ele relembra

que, mesmo existindo um espaço de amplidão, nenhuma parte deste espaço lhe

pertence, recordando ainda a dicotomia: ele tem, mas não possui. O seu fascínio

não está associado ao espaço citadino, às luzes da cidade; anseia por vida, por

liberdade e demais valores que lhes são significativos e, que o campo não mais lhe

oferece:

Eu tenho as mãos calejadas

Algumas rugas no rosto

Aqui sou burro de carga

E nem sou dono de mim

Eu tenho todo o espaço

Que os olhos podem tomar

Mas não consigo um pedaço

Que seja meu pra plantar

Não me fascina o luzeiro

Que eu possa achar na cidade

Eu busco um prato de vida

E um gosto de liberdade

Observamos que o deslocamento do campo para a cidade torna palpáveis

algumas dicotomias que se relacionam às estruturas sócio-econômicas: liberdade

versus escravo, ser versus não ser, as quais são trazidas na composição pelas

marcações ―aqui‖ e ―lá‖: ―aqui‖, no campo, ―sou mero instrumento‖, portanto,

escravo, denotando, ainda, um indivíduo que não se sente adaptado ao seu meio

de origem, a ponto de não se sentir ―como igual‖; ―lá‖, na cidade, o trabalho

poderá lhe humanizar, diferentemente do que observamos nas demais canções

analisadas em que a degradação estava sempre relacionada à cidade. Nessa

composição, a lida campestre baseada na exploração econômica é que degrada o

homem:

O que me leva é o desejo

De me enxergar como igual

Aqui sou mero instrumento

Usado por serventia

Nas safras eu me alimento

Do gado sou dependente

Lá fora, por meu trabalho

Talvez eu venha a ser gente.

Notamos um gaúcho despido dos ornamentos românticos e da aura mítica,

pois esse não leva ―sonhos na mala‖ nem os costumeiros ―vícios de valentia‖,

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como se ele pudesse se despir das influências de seu espaço, de seus costumes

―De corpo e de coração‖ quer abrir-se a uma nova possibilidade de vida, na qual

ele deseja deixar de ser peão, para ser operário. Notamos, ainda, que a cidade é o

ambiente que poderá vir a lhe conferir um status identitário mais digno ―No

espelho das avenidas‖:

Não levo sonhos na mala

Nem vícios de valentia

Eu sei, me espera uma adaga

Que pode matar-me um dia

Me jogo inteiro assim mesmo

De corpo e de coração

No espelho das avenidas

Operario, e não peão

Novo disco com músicas regionais é gravado no ano de 2002- Mala de

garupa, momento em que seus sucessos são regravados e outras canções são

lançadas. A música que dá nome ao álbum narra a saída do homem do campo, o

gaúcho, o qual se desloca para a cidade. Em sua jornada rumo ao cenário citadino,

o gaúcho traz consigo uma mala de garupa, a qual nos remete à imagem dos

antigos tropeiros, do centauro dos pampas em suas campereadas, nas quais

portava a mala de garupa para poder levar seus utensílios, enfim, seus pertences,

como é narrado na primeira estrofe. Nesse primeiro momento, ele carrega junto

aos seus apetrechos, ―um bilhete pra cidade‖:

Nesta mala de garupa fumo em rama e um baralho

Uma faca na bainha com a qual eu dou meus talhos

Vai num canto escondida uma ponta de saudade

Rapadura e erva mate e um bilhete pra cidade

No entanto, na segunda estrofe, os pertences carregados pelo gaúcho não

são somente os para uso no seu cotidiano, os quais apontam para uma nova leitura

da ―mala de garupa‖, a qual nos permite associar à ―bagagem‖ do homem do Sul

com a sua cultura, tradição e costumes, os quais são trazidos para a cidade e os

identificam. Mesmo que o gaúcho não tenha o fracasso como motivo de sua

mudança, ele já carrega ―uma ponta de saudade‖, ―sonhos guardados‖, ―um

pedaço de esperança‖ e ―mais um tanto de alegria‖.

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Novamente, evidenciamos a identificação com os antigos tropeiros, não

somente pelo uso da ―mala de garupa‖, mas também pelo fato do gaúcho recordar

―um punhado de caminhos‖ e ―outras tantas geografias‖:

Lá no fundo guardo um sonho desses que jamais vingou

Uma funda e uma isca da pandorga o que sobrou

Um punhado de caminhos e outras tantas geografias

Um pedaço de esperança mais um tanto de alegria

No final da canção, essa associação da ―mala de garupa‖ com a bagagem

da vida do gaúcho fica mais evidente, pois ele traz em suas lembranças os

―estragos‖e ―feridas‖. O gaúcho inclui também, em sua ―mala‖ os seus ―retalhos‖,

os seus amores vividos e as lidas praticadas:

Vai um sol já meio gasto e uma rosa esquecida

Um lugar onde refaço meus estragos e feridas

Dentro dela meus retalhos meus amores minhas lidas

Nesta mala de garupa vai a vida, vai a vida

Sérgio Napp continua lançando novos discos e regravando suas antigas

canções das raízes gaúchas, o último foi gravado no ano de 2010 com a

interpretação de Mário Barbará. Esse disco, denominado Vivências, traz canções

como ―Mala de garupa‖, ―Retirante‖ e uma, em especial, ―Portas do sonho‖, que

retoma, pelo viés da saudade e do sonho, o ―camperear pelas coxilhas‖ o ―abrir

trilhas‖ e, ainda traz a liberdade associada aos elementos do campo.

Notamos nessa composição um retorno onírico às raízes, ao seio de origem

para a retomada de uma cultura, associada à liberdade e à alegria de camperear

pelas coxilhas, as quais remetem à imagem do monarca: ―quando abro as portas

do sonho/ sinto o gosto de liberdade/ pés descalços, camisa aberta/ mesas postas

pelas varandas e uma dor roendo meu peito/ se fazendo sem ter razão/ deve ser a

dona alegria/ campereando pelas coxilhas‖.

Durante o sonho, são narrados também os lugares que lembram a vida no

campo, entre a natureza e onde a alegria ―redomava‖ o coração do gaúcho: entre

avencas e samambaias/ pelas sangas, abrindo trilhas/ maneirosa dona alegria/

redomando meu coração. Para o eu-lírico, o ato de abrir as portas do sonho é se

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permitir ousar e retomar do passado a magia dos ―ventos de rebeldia‖. A vida se

aproxima a um galope e a saudade é tão forte que fere ―é punhal que se crava

lento‖. A composição recupera os elementos característicos que compõem a vida

do gaúcho: o fato de galopear, a música através da gaita e da viola, a liberdade

através do voo livre do coração do gaúcho pela sua própria história:

É a vida em seu galope

me envolvendo redemoinho

É punhal que se crava lento

e abre em festa meu coração

geme gaita, chora, a viola

corta firme punhal de prata

espanta o medo, abre asas

e voa livre o meu coração

um grande abraço.

Ao lermos as poesias de Sérgio Napp, evidenciamos o cantar das coisas do

pago, que se dá em meio ao deslocamento do campo. Em todas as composições

analisadas, ―Desgarrados‖, ―Retirante‖, ―Mala de garupa‖ e ―Portas do sonho‖,

encontramos a saudade do passado, o canto dos costumes campeiros, a vida no

campo, narrados por meio de uma linguagem mais rebuscada e poética do que

aquela evidenciada na Era do Rádio.

Além da linguagem diferente, também observamos uma mudança na

temática, a temática do êxodo rural, evidenciada pela imagem do gaúcho à

margem na sociedade no ambiente citadino, que remonta o passado, recuperando

seu antigo viver e seus afazeres, ou até mesmo do gaúcho que não carrega ―vícios

de valentia‖, que busca novo sentido para a vida na cidade. Notamos o

distanciamento em Sérgio Napp do narrar da violência banal, sem justificativa que

norteou as canções da primeira fase, pois, nas composições analisadas, a violência

que se delineia é a que o gaúcho está disposto a enfrentar para encontrar a

liberdade, como a miséria e o risco de vida nas cidades.

3.2.2.2 César Escoto: César Passarinho

César Escoto, mais conhecido no meio artístico por César Passarinho,

nasceu em Uruguaiana, no ano de 1949 e faleceu no ano 1998. O apelido

Passarinho é uma referência ao pai, que tinha a alcunha de gurrião (pardal): o filho

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do pássaro se transformou em passarinho. Foi também denominado de Músico da

Pilcha, pois era conhecido por usar uma boina e um colete branco, lenço, em cima

do ombro, e um pala. Nos pés, uma alpargata ou um par de botas.

Passarinho se destacou, entre outros, no Conjunto Hi-Fi. O mais inusitado

de tudo era o seu instrumento, pois além de cantor, Passarinho era baterista. Foi

com a 3ª Califórnia, em 1973, que ele descobriu a música regionalista com a

interpretação da canção ―Último Grito‖; podemos afirmar que o festival Califórnia

e o músico começaram juntos. O artista uruguaianense acabou se transformando

na marca registrada do festival de música nativista: premiado com quatro

Calhandras de Ouro, sete prêmios de melhor intérprete, Passarinho foi o mais

destacado dos vencedores do festival. Em sua temática, vamos encontrar o canto

às coisas do campo através da exaltação da tradição do estado sulino.

O primeiro disco de Cesar Passarinho, Fundamento, foi gravado no ano

de 1983 e tem entre suas músicas e regravações a canção ―Causo sério‖, a qual

retrata o fim da vida de um peão campeiro, do qual só sabemos que é chamado

José, José de Tal, que, depois de muito servir, agora encontra-se em meio ao

abandono e à solidão. Talvez essa não identificação visa à universalização, pois

José representa outros tantos peões que no fim da vida encontram-se em meio ao

descaso:

Nome: José de Tal...

Profissão: Peão Campeiro...

Idade: Uns setenta e pico...

-A la pucha, que o tempo, passou ligeiro!

E o velho peão, afinal

Terá sua compensação:

-No fim do mês, Funrural,

No fim da vida, abandono e solidão...

Observamos que a canção, ao narrar a velhice do peão, também narra o fim

de um período em que o fato de ser peão garantia sua vida e seu reconhecimento.

Notamos que o fato de o eu lírico despir-se da possibilidade de atuar como peão

representa o distanciamento de uma tradição e, ainda mais de uma identidade. Sua

relação com os costumes que envolvem o ambiente campeiro não se dá de modo

externo, mas sim, por meio de suas vivências à medida que sua vida se resume aos

―arreios‖, ―ao meio‖, ao ―enrrodilhar‖: ―Agora é guardar os arreios,/ Caseriar

recordações,/ Apartar-se do seu meio,/ Enrrodilhar ilusões.‖...

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Nesse momento de vida, resta ao peão desgarrar-se do campo, viver de

recordações:

Lhe resta soltar pra o campo

Velhas lembranças sogueiras

Que o amargo exílio campeiro,

De mansas, fez caborteiras.

Agora é esperar sua hora

Que sem demora há de vir...

- A velhice é um causo sério

Que o tempo nos conta sem rir!

A composição ―Solito‖, que compõe o disco de mesmo nome, gravado no

ano de 1985, revela, assim como a canção ―Causo sério‖, um olhar interior para

as vivências das campereadas que refletem agora um vazio no fim da vida, pois

toda a busca, os motivos que moviam o ato de avançar campo fora, sem rumo, e

até mesmo o fato de ser um bom peão agora desencadearam tristeza e solidão.

Para narrar sua trajetória, o peão retoma sua vida, aproximando-a a uma

cavalgada, mas agora uma cavalgada percorrida pelo seu interior, na qual ele

encontrou a desilusão e o desamparo:

Me campereando

alma dentro

proseando com a solidão

passei a vida alolargo

sem deixar rastros no chão

que me adiantou ser bom peão

onde o bom peão é um ser comum

e entre tantos sou mais um

solito, solito rumo a extinção‖.

O antigo cantar do gaúcho mulherengo, conquistador de muitas prendas

que não firmava raízes, contrasta com o sentimento de abandono, de carência. Não

encontramos nessa composição o gaúcho destemido, valente, que idealiza a

liberdade e que vive de amores. A mulher, nesse contexto, também é diferente,

pois ela não aparece à espera do homem para formar sua família, nem mesmo está

disponível para servi-lo: ―pro amor me faltou tempo/ e sem tempo o amor é curto/

se algum durou foi oculto/ em meio a lida e cachaça/ mulher não é assim no mais/

e assim no mais não se acha/ que nos dê amor, filhos e paz/ e ainda nos lave as

bombachas‖.

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Essa canção recupera toda a vivência do gaúcho que tem como vida a

estância, a lida na campeira, a cavalgada, a sua relação com o meio, que por muito

tempo lhe supriu, lhe preencheu os vazios. Agora, contudo, sente a falta de ter

deixado rastros, de ter constituído família e filhos homens para ―repisarem‖ seu

caminho. Nessa ―campereada‖ interior, ele remonta a história, a tradição e os

costumes rio-grandenses, empregando linguagem campeira, como em ―mate‖,

―pelegos‖, ―tordilhar‖, ―macanudo‖:

piás, quem me dera tê-los

pra encherem minha vida e meu mate

mijarem os pelegos no catre

tordilharem meus cabelos

me darem afeto e o carinho

a troco de caramelo

seria macanudo vê-los

mesma raça, sangue e pelo

repisarem meu caminho.

Do mesmo modo, a composição ―Galope dos sonhos‖ evidencia a saudade

do gaúcho em viver no campo aberto, de galopear e viver em liberdade. Nessa

canção, o eu lírico revisita a antiga morada através do sonho, reverencia os antigos

costumes e fazeres campestres e, nesse ato de revisitar, ele encontra aconchego

para sua alma galponeira: ―Liberdade é campo aberto/ rédeas soltas, galopar/ o

longe está mais perto/para quem pode sonhar./ Alma a dentro campo a fora/ no

atropelo da razão/ campereada não tem hora/na fronteira da ilusão‖. A

composição denota um tempo em que é impossível refazer esse caminho do

passado e, por esse motivo é que ―o longe‖ é buscado no plano da ilusão e no

―atropelo da razão‖.

O mesmo galope que se associa à festividade, à liberdade, também narra a

partida, os sonhos, as saudades, os tombos: ―mas na raia desta vida/ é preciso

conciliar/ achegada tão festiva/ e a partida sem chegar/ A galope vão os sonhos/

do tropel do coração/deixam marcas de saudades/que jamais se apagarão‖. Ainda,

podemos observar que nesse sonho também existe a percepção da resistência de

cair, mas sempre levantar: ―mas no lombo do destino/ em galopes desiguais/

muitos sonhos de meninos/lembram tombos nada mais‖.

É ainda a cavalo, no galope que os sonhos vão se concretizar, através da

recuperação do monarca das coxilhas, aumentando ainda mais a saudade de um

tempo que não poderão apagar. Registramos a retomada da tradição, através da

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exaltação das coisas da querência, da idealização de um espaço, de que tudo o que

simboliza positivo está preso ao passado, aos sonhos de menino, ao viver no

campo:

A galope vão os sonhos

do tropel do coração

deixam marcas de saudades

que jamais se apagarão.

A composição ―Que homens são esses‖ ecoa como um grito para com as

raízes, os antigos costumes e os momentos de glória e história do passado. Mostra

um gaúcho que olha para os homens de agora e não enxerga aquilo que foi a base

de sua formação; tal olhar torna possível aproximarmos essa composição à ―Rio

Grande de outrora‖, de Teixeirinha. A recuperação do antigo viver, assim como na

canção de Teixeirinha, acontece por meio da retomada dos valores que os

antepassados representam; no entanto, não há, nesta canção, menção a dicotomia

campo e cidade como evidenciamos em ―Rio Grande de Outrora‖, pois em ―Que

homens são esses‖ é no próprio pago que não existe a continuidade do cultivo da

tradição.

O vocabulário que remete aos homens de hoje, habitantes do campo, como

o atestam as referências a ―freio‖, ―cabresto‖, ―rédea‖ e ―buçal‖. Percebe-se a

inquietude da voz que canta, ao observar o desconhecimento da nova geração da

história de glória de sua terra, pois agora os homens fogem à luta, silenciam

acerca de fatos relevantes, reprimem afetos:

Que homens são esses

Que fogem à luta

Será que não sabem as glórias do pago?

Que homens são esses que nada respondem,

que calam verdades, que reprimem afagos?

Aproximando, da mesma forma, a canção de Passarinho ao conto ―Velhos

tempos‖, de Darcy Azambuja, podemos observar que o olhar disposto ao campo

busca a vida de outrora; no conto, além da mudança das pessoas, como

evidenciamos na canção, as coisas também mudaram. Outra semelhança entre a

canção e o conto está na rememoração do passado pelo viés geracional, pela

necessidade dos antigos demonstrarem a importância da história para a

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persistência de valores que evidenciem um novo viver, que se distancie das

mágoas e das cicatrizes deixadas para espalhar a bondade e a irmandade:

Que homens são esses que tem o dever de fazer o bem, mas só fazem

o mal?

Eu quero ser gente igual aos avós

Eu quero ser gente igual aos meus pais

Eu quero ser homem sem mágoas no peito

Eu quero respeito e direitos iguais

Eu quero este pampa semeando bondade

Eu quero sonhar com homens irmãos

A canção, ao convidar o povo a se refazer, recupera ainda uma imagem

consolidada no conto regionalista, em que a irmandade e a bondade eram valores

vivenciados, pois além da necessidade de rever a história, ―as glórias do pago‖ o

eu lírico busca viver sem mágoas, em um ambiente de respeito e igualdade.

Assim, a composição mistura passado e presente, na intenção de buscar um futuro

ainda melhor do que o próprio passado do avô e de seu pai: ―Eu quero meu filho

sem ódio nem guerra/Eu quero esta terra ao alcance das mãos/ Que sejam mais

justos os homens de agora/ Que cantem cantigas, antigas e puras/ Relembrem

figuras sem nada temer‖.

A canção representa, ainda, a busca por um novo caminho e também

sugere uma revisão da imagem do gaúcho: ―Desperta, meu povo, do ventre de

outrora/Onde marcas presentes não são cicatrizes/Desperta, meu povo, liberta teu

grito/Num brado mais forte que as próprias raízes‖.

Observamos que as temáticas das composições analisadas de César

Passarinho ocupam-se das fronteiras existentes entre o passado e o presente, para

denunciar o gaúcho de hoje que está contido em velhas lembranças. O presente é

definido pelo abandono e solidão na chegada da velhice, como evidenciamos na

canção ―Causo sério‖. A volta ao passado aparece muito claramente, por exemplo,

na canção ―Galope dos sonhos‖, em que o eu lírico rememora seu galopear, a

liberdade, e o contato com a natureza. Notamos, sim, o distanciamento da imagem

do gaúcho farroupilha- do cantar da violência, das guerras e da exaltação da

coragem pessoal, ao mesmo tempo em que percebemos a aproximação das

canções com uma imagem do gaúcho que, marginalizado na cidade, pode voltar à

campanha em seus sonhos.

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3.2.2.3 José Cláudio Machado

Nasceu em Tapes, no ano de 1948; faleceu no mês de dezembro do ano de

2011. Intérprete de música nativa do Rio Grande do Sul, venceu a Califórnia da

Canção Nativa em 1972, com a música ―Pedro Guará‖. Na mesma década,

integrou o grupo Os Teatinos e, mais tarde, na última década de 1980, participou

do grupo também nativista Os Serranos.

A composição ―Pedro Guará‖ compõe o disco Recordando a querência,

lançado no ano de 1983, e narra a relação entre o homem e a natureza. Ao homem

e à natureza podemos vincular os sentimentos de pertencimento a um espaço e,

também de troca, pois ambos se complementam e, juntos, originam costumes e a

própria cultura. Na primeira e segunda estrofes, evidenciamos a identificação com

a natureza e com o ciclo vital, uma vez que aquela associa-se, por exemplo, o fim

da vida de Pedro Guará, simbolizado na composição pelo ―último inverno‖. É o

momento em que o vento lamenta, o orvalho chora e o céu se enluta, mas a terra –

como elemento fixo – o enraíza mais:

Num lamento chegou o minuano

Anunciando o último inverno

O orvalho chorou nas campinas

E o céu enlutou as estrelas

Pedro Guará sentia mais forte

Cheiro da terra o vento do sul

Entrava no rancho o calor do braseiro

Mateava na espera do tempo chegar.

Assim o lugar, expresso pelo rancho, e pela a natureza – pela manifestação

do cheiro da terra e pelo vento – é significativo para Pedro Guará, da mesma

forma que os costumes, como o hábito de matear. Durante a espera ―do tempo

chegar‖, a composição retoma a vida que levou Pedro Guará e, nessa recordação,

evidenciamos a imagem do centauro dos pampas, de viver ―aragano‖. Este remete

à imagem do gaúcho associado ao galope, ao trotear livre pelos campos afora, pois

aragano é o nome utilizado pelo gaúcho para definir o cavalo difícil de ser

domado: ―Pedro Guará viveu aragano/ Camperiando manhãs distantes/‖.

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No entanto, em suas andanças, Pedro Guará ―plantou alegria‖ e ―o riso

ficava quando partia‖, inclusive no momento em que é cantada a sua morte. Ao

final da canção, a morte de Pedro Guará associa-se novamente à natureza no seu

partir ―sem rastro‖ e ― na volta pra terra‖, deixando ainda ―um riso seu último

gesto‖. Assim, Pedro Guará ―sumiu da serra não vai mais cantar‖.

A canção ―São as armas que conheço‖ é a primeira faixa do disco Entre

amigos, lançado no ano de 1995. Diferentemente das canções da fase Inventando

as tradições, nas quais o gaúcho portava revólver, facas, facões e demonstrava sua

valentia e coragem, inclusive associada, muitas vezes, às brigas sem motivo e,

portanto, a uma valentia vazia, nessa canção podemos recuperar o gaúcho envolto

pelas questões do campo, portando ―armas‖ de natureza e função diversas. Agora,

suas ―armas‖ são os instrumentos indispensáveis para sanar suas necessidades

diárias, os quais são necessários para a doma do cavalo, o plantio e a construção

do rancho; mesmo o facão, quando usado, o é no contexto de trabalhar a terra

bruta, para que lhe dê o pão.

Na primeira estrofe são recuperados os instrumentos, denominados de

―armas‖, que são utilizados para amansar um ―cavalo bagual‖, além de ser

reconstituída a imagem do centauro e sua agilidade no trato com os cavalos:

um lombilho, um baixeiro, cincha, peiteira e rabicho

buçal, cabresto e maneia e uma espora garroneira

mango, rédea e bocal são as armas que conheço

pra fazer um cavalo manso quando me entregam um bagual.

Na segunda estrofe, novos elementos do campo são trazidos para sinalizar

o trabalho realizado na lida do campo a fim de tornar uma terra produtiva:

uma junta de boi mansos, um arado, pula-toco

cangas, brochas, tamoeiros, uma regeira um cambão

machado, enxada e facão são as armas que conheço

pra fazer a terra bruta me dar o trigo pro pão.

Para além de domar cavalos baguais e produzir em ―terra bruta‖, o gaúcho

também demonstra sua destreza na construção do próprio rancho, para deixar de

viver só: ―esteios, rimas, baldrames, travessas e cachorretes/caibros e pontaletes,

gaipa, taquara e cipó/cupim, leiva em santa fé são as armas que conheço/pra fazer

meu próprio rancho e deixar de viver só‖.

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Ao final, o eu lírico recupera seus feitos conquistados no plantio, como

domador e como construtor: ―as plantas estão maduras, os meus cavalos domados/

o meu rancho está plantado‖, e depois destes elementos só falta a mulher para ser

feliz junto dele: ―mas só meu catre está vazio/ quem sabe numa volteada eu

encontre por aí/ alguém que junto comigo seja feliz por aqui‖. A composição ―São

as armas que conheço‖ acrescenta, em cada estrofe, os elementos que compõem a

vida no campo e a do seu habitante, o gaúcho: a doma, o cultivo da terra, a

moradia e a busca da mulher amada. Esses são também os motivos que

predominaram no cantar do cancioneiro oral, no qual são recorrentes os temas do

cavalo, do trabalho no campo, o cantar das coisas do pago e da mulher.

A composição ―Sistema antigo‖ que compõe o disco Arranchado,

gravado no ano de 2005, remonta o viver do passado e, portanto, o ―sistema

antigo‖, tanto da criação e dos costumes, como dos valores vivenciados na vida do

campo. Novamente é o passado o motivo de alegria e de afirmação da identidade,

pois nesse recordar são recuperados o rincão, o carinho recebido da mulher

gaúcha, a música da acordeona, o chimarrão, e o ―quera pacholento‖,

denominação popular que define o indivíduo valente, mas também orgulhoso que

habitava o pampa: ―Um pouco de saudade lá do meu rincão/ um gesto de carinho

da gaúcha amada/ um toque de cordeona e um bom chimarrão/ um quera

pacholento pra contar cueradas‖.

A lida do campo, o cuidado com os animais revela a passagem de um

tempo feliz que agora está distante, pois o rancho e o pai já envelheceram: ―(eira,

eira, boi, tempo feliz que muito longe vai/ eira, eira, boi, no velho rancho do meu

velho pai)‖. A saudade se manifesta pela perda dos valores recordados e que são

somente vislumbrados na descrição da vida no campo: a harmonia, a união e a

alegria, sentimentos que embalam a simplicidade de uma comemoração ao som de

violão e gaita:

antigamente se carneava um boi

se convidava toda a vizinhança

era uma festa de violão e gaita

lá pelas tantas começava a dança

e a gauchada pela noite afora

faziam farra ate romper a aurora.

Assim como no conto regionalista, a composição narra o mito da

democracia rural, prevalecendo sobre a temática da valorização do passado. Essa

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composição aborda ainda a dicotomia entre campo e cidade, que foi também

cantada por Teixeirinha. Nesta composição, podemos observar a diferença entre o

passado e o presente a partir de uma identificação manifestada pela vivência e,

não somente pela caracterização exterior: ―quem se criou pelo sistema antigo/ cá

na cidade vive inconformado/ e quando encontra algum gaúcho amigo/ fala de

tudo que lembra o passado/ canta saudade do gorjeio triste/lembra do tempo que já

não existe‖.

Ao analisarmos as composições de José Claudio Machado, identificamos a

nostalgia da vida no campo, o cantar da relação entre o homem habitante da

campanha e a natureza. Encontramos mais fortemente o distanciamento da

temática heroica atribuída aos valores preconizados pela guerra, pela violência. O

gaúcho, em suas canções, é o amante do seu chão, inconformado com a vida na

cidade, e que demonstra a distância entre o passado e o presente, entre os

momentos puros, de simplicidade e amizade campeira, recordados ante o vazio

deixado pela saudade.

Ao encerrarmos a era dos festivais evidenciamos que esta fase se

consolidou como marco da música sulina, registrando na vertente regionalista um

posicionamento contrário ao regionalismo inicial, observado nas canções da era

do rádio, dos tempos de ―grossura‖ da fonografia sul-rio-grandense. Notamos um

distanciamento no que tange às canções que evocam os fatos históricos, as

revoluções, isso pela intenção do festival em promover a renovação da canção que

era produzida.

No entanto, podemos perceber que os temas caros ao regionalismo – como

o trabalho campeiro, a vida no campo, os costumes, a saudade do pago, a oposição

campo e cidade – foram conservados em muitas canções da Califórnia, mas

receberam um tratamento poético mais elaborado. Evidenciamos, ainda, a

persistência de uma tendência à idealização que aproxima a Era dos festivais às

temáticas que predominaram na literatura oral no Cancioneiro e depois no conto,

como é o caso da idealização do herói e do próprio cenário campesino, como o

narrado no conto ―Monarca das coxilhas‖ de Apolinário Porto Alegre, e a

dicotomia campo/cidade narrada no conto ―Velhos tempos‖, Darcy Azambuja.

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3.2.3 A canção regionalista dos anos 1980 em diante

Dos anos 1980 em diante, a música regionalista gaúcha vai acompanhar o

surgimento de músicos também caracterizados por possuir experiência com o

campo, sabedores do que se passa na campanha, que conhecem e sabem de

cavalos e dominam os sons do violão. Esta fase é reconhecida por apresentar um

número significativo de cantores e compositores, músicos profissionais que se

tornaram conhecidos em festivais nativistas, apresentando, inclusive, um

movimento de reação contra determinadas alterações efetuadas em relação à

música gaúcha.

Dessa fase, buscamos exemplificar a persistência da vertente regional nas

canções de Luiz Marenco, Mano Lima e Jayme Caetano Braun, cujas carreiras

profissionais foram impulsionadas pelo motivo regionalista de idealização

romântica do gaúcho herói registrado anteriormente pelo cancioneiro oral e,

depois, pelo conto sul-rio-grandense.

3.2.3.1 Luiz Marenco

Luiz Marenco apresenta atualmente uma discografia de 20 obras, dezoito

CDs e dois DVDs; é considerado hoje um dos grandes artistas nativistas, tendo a

consciência de que seu canto está ligado à terra, valores, hábitos e costumes de

seu povo. Natural de Porto Alegre/RS, nasceu no dia 22 de dezembro de 1964 e

começou a se interessar pela música aos 08 anos de idade, quando ganhou seu

primeiro violão. Sua carreira profissional iniciou em 1988, data em que começou

a participar de festivais, os quais lhe renderam grandes conquistas em âmbito

regional.

Marenco gravou em 1990 o seu primeiro disco, ao lado de seu parceiro e

amigo Jayme Caetano Braun - ―Luiz Marenco canta Jayme Caetano Braun‖.

No ano de 1991, esse disco leva ao prêmio Sharp (na época, hoje conhecido como

Prêmio Tim). Outro reconhecimento foi o troféu de melhor intérprete do ano em

1997 e melhor música – ―Quando o Verso Vem Pras Casa‖ – também no mesmo

ano. Sua carreira de grande sucesso, lançada em meio aos festivais, foi

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reconhecida inclusive pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, o qual em 2002

concedeu o selo de ―Qualidade, Autenticidade e Tradicionalidade‖ previsto pelo

Projeto ISO TCHÊ para o seu Cd. Ainda nesse mesmo ano, recebeu disco de ouro

por De bota e bombacha, com José Claudio Machado. Na televisão, Marenco

participou também da mini-série da TV Globo ―A Casa Das Sete Mulheres‖. Os

anos 2007 e 2008 são motivos de comemoração, pois recebe DVD de ouro e o

troféu Guri da Radio Gaúcha e Rádio Gaúcha Sati.

Dentre as muitas premiações recebidas, podem-se destacar: ―Forasteiro‖ -

vencedora da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana; ―Milongão Pra

Assobiar Desencilhando‖ - vencedora do Um canto para Martin Fierro, de Santana

do Livramento; ―Charla de domador‖ - vencedora do Chamamento do pampa de

Passo Fundo; ―Sovando um pelego‖ - vencedora do Reponte da canção de São

Lourenço do Sul; ―Quando o verso vem pra casa‖ - vencedora da Tafona da

canção nativa de Osório.

No site do cantor Luiz Marenco, encontramos depoimentos importantes,

que nos auxiliam na construção da imagem e do papel do músico para a vertente

regionalista. O poeta e escritor José João Sampaio da Silva argumenta que

Marenco, desde seu primeiro trabalho, preocupou-se em exaltar o homem, os

costumes, os hábitos, o trabalho, enfim, a legítima cultura do povo

gaúcho. Yamandu Costa, violonista e compositor, afirma que Marenco dignificou

a música do Rio Grande do Sul. Renato Borghetti, músico e instrumentista,

menciona acerca da excelente qualidade do canto, do conteúdo das letras e

também dos músicos que acompanham Marenco.

As primeiras composições de Luiz Marenco têm, em suas temáticas mais

recorrentes, o gaúcho em suas atividades de doma, pecuária, acompanhando, de

certo modo, o romântico monarca das coxilhas em tempos de outrora; apontam,

também, contudo, para a situação vivida, questões sociais, políticas através da

narração de um galpão vazio, da solidão atrelada ao afastamento da família e ao

êxodo rural.

Mesmo tendo nascido em meio aos festivais nativistas que lembravam a

renovação da música regionalista sulina, podemos encontrar em suas composições

a consagração do herói, dos feitos gaúchos que se aconchega no viés

tradicionalista. Embora Marenco retrate musicalmente as paisagens campeiras, ele

demonstra também a preocupação com o gaúcho excluído socialmente.

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A canção ―Meu rancho‖, que compõe o cd Luiz Marenco canta Jayme

Caetano Braun, gravado no ano de 1991, constrói o cenário em que vive o

gaúcho, apresentando o sentimento de apego ao ambiente campesino: ―Que alma

tem o meu rancho/ Por isso deixá-lo como/ Pedaço de céu com terra/ Folheado de

cinamomos/Silêncio rodeado a berro/ Solidão sem viver só‖. Podemos observar

através da palavra ―céu‖, a qual remete a uma espécie de ―paraíso‖, pois assim é

considerado o campo para o gaúcho. Mais: é realidade híbrida, formada de dois

lugares almejados: não só céu, ou céu na terra, mas céu com terra, com o torrão

natal.

Os hábitos locais e as paixões do gaúcho – a mulher, o cavalo e o

cachorro – são recuperados pelo eu lírico, por meio de uma linguagem simples,

que se dá não pela identificação externa, mas pela vivência: ―Coqueiral e caturrita/

Galpão de fogo paxorro/ E uma xirua bonita/ Cavalo bom e cachorro.‖ Há uma

diferenciação que revela a singularidade desse espaço diante dos outros, espaço

onde o tempo psicológico difere do de outras regiões, e pelo modo com que,

mesmo ante as intempéries, o gaúcho se entrega de corpo e alma a suas atividades:

―Com chuva acorde e milonga/ Consola o campo cedinho/ Por aqui a noite é

longa/ E o dia devagarzinho‖.

Assim como encontramos a personificação do amigo fiel, o cavalo, em

outras canções, e também nos contos regionalistas, nessa composição quem é ―um

ser vivente‖ é o rancho, do qual o eu lírico sente saudade, uma saudade que é

recíproca, e por isso recebe o gaúcho com alegria: ―Quando eu saio mais que um

dia/ Este rancho é um ser vivente/Me recebe com alegria/Tem saudade como a

gente‖. Para além dessa caracterização associada ao rancho, evidenciamos em

Marenco uma recorrência da abordagem do cenário campesino, dos afazeres dos

campeiros. Nessa composição, identificamos o sujeito sulino como alguém que

tem apego ao campo, que possui sentimentos internalizados com relação a essa

ambientação.

Ainda com o mesmo olhar para a ambientação campeira, a composição ―O

forasteiro‖, que compõe o disco Estância da Fronteira, gravado no ano de 1999,

narra o sentimento de desesperança em que se encontram os gaúchos que moram

em lugares isolados:

Na sombra de um bolicho à beira estrada,

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Daqueles que do mundo se perdeu

Encontra-se uma gente reunida,

À espera de um chamado de seu Deus

Perfumes de bom fumo amarelido,

Paredes com suas almas penduradas

Paciências de um lugar envelhecido,

E uma coragem de quem não tem nada

Nesse desamparo, só o que resta é o ―chamado de seu Deus‖. Na segunda

estrofe a presença de um forasteiro e de sua pergunta ―o que é da vida?‖ faz com

que seja narrada a história de vida e a desilusão do gaúcho frente à ―terra

prometida‖, frente ao trabalho realizado e a recompensa que ele não visualiza;

parece-lhe que o sul anda esquecido, desprovido de perspectivas tanto para a

geração mais antiga como para a que lhe sucederá:

Apeia um forasteiro: ―O que é da vida?‖

Responde o bolicheiro: ―Está cansada‖

A gente de bombacha anda esquecida

Desiludida nos beirões da estrada

Buscamos nossa terra prometida

Um mundo pras crianças e pros velhos

O sul que nós sonhamos onde a vida

Devolva o que branqueou nossos cabelos

A natureza, que sempre foi evidenciada como aliada do gaúcho, agora é

motivo de tristeza: ―Mas cada ano a seca de janeiro, precede um novo inverno de

asperezas/ Parece que o destino do campeiro não pode pedir mais que pão na

mesa‖. Aos poucos, ao falar do bolicheiro se juntam outras vozes, em um coro de

desesperança. No entanto, é o forasteiro quem vai demonstrar que cabe a cada

povo construir seu destino: ―Um povo sonha Deus a sua imagem,/ e Deus devolve

a terra a cada povo/ Moldada no trabalho e na coragem/ que o povo usou pra

levantar o sonho‖, trazendo, assim, para a composição a noção de que essa mesma

terra, agora inferno, poderá ser, mediante o trabalho de todos, o paraíso sonhado, a

terra pela qual ―Há que morrer por ela se preciso,/ o sul somente o sul pode

salvar‖.

A imagem do forasteiro na canção recupera a imagem de Deus, à medida

que essa voz remete a uma bênção, como podemos observar no trecho em que o

forasteiro monta em seu cavalo e é envolvido por um clarão. Ao mesmo tempo, a

bênção é identificada com o amor aos pagos da própria gente, e nasce de seus

sentimentos mais íntimos:

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Assim falou pro povo o forasteiro,

Depois montou e envolto num clarão

Sumiu emoldurado pela tarde,

Bem como o sol dissipa a serração

Uns dizem que mais altos que os cerros

Ele segue abençoando este rincão

Mas muitos acreditam que essa gente

Ouviu a voz do próprio coração.

Ao final da canção, os gaúchos voltam para suas casas e se entregam à

antiga lida do plantio e do arar a terra, sabendo-se individualmente responsáveis

pela construção do Rio Grande sonhado:

O certo é que um a um se foi às casas,

Porque havia uma planta por cuidar

Arar a terra a cada madrugada,

Para a semente que há de germinar

O homem faz seu Deus que faz o sonho

Um sonho azul maior que este lugar

Na luz que vem dos olhos dessa gente,

O sul um dia se iluminará

De outro modo, a canção ―Milongão pra assobiar desencilhando‖ que faz

parte do disco gravado no ano de 2001, O melhor de Luiz Marenco, aborda a

vida no campo. A temática destacada na canção expõe o apego do sujeito sulino

ao campo, a tudo aquilo que faz parte do pampa e que está relacionado à lida

campeira. Trata-se de uma identificação com o meio onde transita e pratica suas

atividades, um ambiente natural, campestre, descrito de forma a ressaltar com

detalhes aquilo que o compõe: o rancho, a sombra das árvores, o fogão de lenha:

Silhueta de um fim de tarde, prenunciando a mesma sombra

Do tarumã bem copado contra o lado do galpão

Que larga fumaça branca no mais alto se desenha

De certo é cambona e lenha na porfia do fogão.

A composição recupera os motivos predominantes nas temáticas do

cancioneiro e do conto regionalista, pois evidenciamos o cavalo, o cachorro,

descritos a partir de uma linguagem típica do gaúcho – ―gateada‖ e ―cuscada‖ –;

da mesma forma, a indumentária recuperada a partir do som das esporas, denuncia

a chegada do gaúcho autêntico dos pampas:

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A gateada apura passo no acoo da cuscada

Que faz festa com o retorno dos campeiros na mangueira

Silêncio se vai aos poucos pelas esporas nas pedras

E os tinidos da barbela nos escarceios da oveira

Essa composição remete, ainda, ao ―rancho vivente‖ da canção de Luiz

Marenco, o qual recebe o gaúcho em seu retorno; entre campo e alma existe uma

reciprocidade: ―Aos poucos, ouvem-se coplas num assobio compassado/ Que

entram galpão à dentro, depois voltam mais sonoras/ Se vão tirando a carona, o

xergão e entram mais calmas/ Parecem que campo e alma se mesclam bem nessa

hora‖.

O dia de lida do campeiro é narrado mediante o uso de uma linguagem

regional costumeiramente utilizada pelo habitante do campo: ―Água nos lombos

suados, mais águas pras cambonas/E o galpão se para quieto pra escutar um

campeiro/Depois do dia de lida, de invernada e rodeio/ Sobra tempo pra um

floreio e um assobio milongueiro‖. Observamos o costume do gaúcho do ―mate

recém cevado‖ e a ambientação do galpão e, ainda a relação de que o trabalho no

campo engrandece o homem, faz-lhe bem, deixa-o de ―alma lavada‖ e permite-lhe

terminar o dia cantando uma milonga enquanto desencilha o cavalo:

Um mate recém cevado, silencia o galpão grande

Reverenciando quietudes nas sombras que aquerenciei

E quem refaz o seu dia de bem com a vida no campo

Um pelego sobre um banco é mais que um trono de rei

Ficou um resto de pasto agarradito no freio

Esporas ,mangos e laços e um silêncio esperando

Alguém de alma lavada aá debruçar-se no violão

E tocar um milongão pra assobiar desencilhando

Ao analisarmos as canções de Marenco, evidenciamos que as temáticas mais

recorrentes giram em torno do gaúcho; tratam justamente da questão da atividade da

doma, da pecuária e do hábito de matear, através das quais é possível aproximá-lo

tanto do modelo romântico do monarca das coxilhas, como da denúncia das questões

sociais vivenciadas pelo gaúcho como, por exemplo, a solidão do campo, o

afastamento da família e o êxodo rural. Diante disso, embora Marenco tenha surgido

em festivais nativistas, suas composições se aproximam tanto dos princípios do

nativismo, por cantar as dificuldades que o gaúcho enfrenta para se manter no campo,

a partir de um enfoque denunciativo recorrente desse movimento da música nativa,

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quanto do tradicionalismo, por reverenciar os feitos do gaúcho e de suas atividades

campeiras.

3.2.3.2 Mário Rubens Batanolli: Mano Lima

Mário Rubens Batanolli, mais conhecido como Mano Lima, nasceu em

M‘Bororé, atualmente município de Massarambá, porém seu berço artístico é a

cidade de São Borja. Caracteriza-se pela irreverência e pelo uso de um linguajar

rústico, próprio do gaúcho nascido e criado no interior. Suas músicas têm como

instrumento principal uma gaita de botão, que ele mesmo toca.

Fonseca (2014) apresenta em seu texto sobre a música regional gaúcha o

posicionamento do compositor Mano Lima sobre as novas correntes musicais,

inicialmente afirmou: ―o sol nasceu para todos‖, e, ainda diz que não serão os

músicos que irão opinar a respeito da tchê music, maxixe, enfim, outras formas

que se misturam ao tradicionalismo; no entanto, o músico reforça o compromisso

com relação à ―bandeira‖ que cada compositor carrega, a qual, para Mano Lima,

faz com que a música gaúcha se diferencie de outras manifestações. Nesse

sentido, ele argumenta que, como músico, prefere não opinar, mas enquanto

cidadão gaúcho apresenta o seguinte raciocínio:

Surgiu uma música moderna, muito bonita por sinal, com grandes

músicos, grandes talentos, mas levando uma bandeira errada. ―Quando

se carrega uma bandeira, se tem com ela uma responsabilidade"

disse. E continuou: "se fossem me perguntar o que eles deveriam

fazer, eu diria: 'não carreguem a bandeira do tradicionalismo, não

carreguem a bandeira dizendo que a música que vocês tocam é

gaúcha‖. Carreguem a bandeira de vocês, porque cada pessoa tem uma

personalidade. Aliás, a palavra pessoa já significa personalidade.

Sejam vocês mesmos. Levem a bandeira que vocês não ajudaram a

construir e que estão destruindo. (FONSECA, 2014, p. 3)

Ao mesmo tempo em que evidenciamos um cuidado muito especial do

músico com relação às influências ou surgimento de novas correntes na música do

Rio Grande do Sul, podemos perceber que existe, para o cantor, uma

diferenciação muito clara entre os estilos, a qual pode ser explicada pela

―bandeira‖, termo utilizado para sinalizar o estilo musical escolhido por cada

compositor. Esse cuidado de Mano Lima, ao se intitular como cantor e compositor

de música regionalista gaúcha, pode ser percebido em suas canções, pois elas

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carregam consigo a força do homem gaúcho – do herói que deu seu sangue e a

vida para defender a sua terra e as suas fronteiras; atrelado a isso, o músico

recupera a cultura e tradição de um povo, ambas localizadas no espaço campesino.

A canção ―Clarim farrapo‖, que integra o cd Troveiro do Mbororé,

gravado no ano de 1989, soa como um grito farroupilha que permanece sempre

vivo no coração que canta. Clarim é um instrumento de sopro, espécie de

trombeta, que tem som agudo e estridente, o qual Mano Lima utiliza para, em um

primeiro momento, expressar a força de seu canto farrapo e, em outro, para

mostrar a força de um tempo que passou. O último verso dessa primeira estrofe

traz a mistura de força que lembra o passado e da solidão que resume o presente:

Meu canto é mais de que um canto

É um clarim farroupilha que tenho no coração,

De vez em quando se solta

Do corredor da garganta em noites de solidão.

A liberdade também é cantada arraigada ao individualismo e ao ato de

avançar e dominar novos campos, exaltando, ainda, a coragem pessoal e o amor à

aventura, bem como a liberdade, retratada como associada ao vento, figura que já

se encontra registrada na literatura oral do cancioneiro, como registrado no

segundo capítulo. No dizer de Mano Lima: ―Corto aramados de rumo/ Na direção

que mais quero/Eu sou mais livre que o vento/ E que o cantar do quero-quero/ Dos

pelego faço a cama/ Pois sou igual à sariama/ Onde anoitece me podero‖.

Outro tema predileto do gaúcho também está sinalizado na canção: a

mulher, a qual lhe confere afirmação de masculinidade:

Hei de vagar a vida inteira

Enquanto houver no meu peito vontade e voz pra cantar

E um sorriso encabulado

De algum beiço pintado que surgiu quando eu cruzava.

Sou gaudério, sim senhor

Vivo nos corredores tomando café em cambona

Namorando às madrugadas

Desafogando minhas mágoas no focote da cordeona.

Junto à condição de vida nômade, de liberdade, a mulher e o namoro

também representam passagem; sentimos, na canção, o gosto pelo vagar sem

rumo pelo tempo e pelo espaço. A linguagem bem regionalista, em um

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vocabulário que aproxima o ouvinte da marca iniludível dos pagos, por meio da

qual também é possível demonstrar a diversidade da língua – falada e escrita.

No álbum Tô de volta, gravado no ano de 1991, Mano Lima aborda o

gaúcho de fé, de alma, também domador, cantando as coisas do pampa, do rancho

e da infância. A canção ―Teteias de minha infância‖ volta o olhar com nostalgia

para o passado, relembrado como o melhor tempo. Retoma um espaço, dando-lhe

vida e som, ao passo que registra a afeição de menino às lidas do campo e ao

conhecimento da natureza que o rodeia:

Espora, estribo, bocal é rédea larga

Foram teteias que marcaram minha infância

Quando um potro saísse dando volta

Empurrando o lombo em frente da velha estância.

A canção descreve a aproximação do gaúcho desde cedo, na infância, a

lida campeira, demonstrando a ligação íntima entre a terra e o homem que a

povoa; junto a isso, evidenciamos o orgulho de homem ao contar como domava os

bois quando ainda era menino.

Minha esporas de sete dentes cravadas Que eu usava pra matungo que aporreava Uma feria e a outra vinha cortando E no caminho geralmente se encontrava,

De madrugada quando aponta a estrela d‘alva De muito longe se ouvia um potro berrando E um piazito que no seu lombo ia firme Espora e mano de atrofia iam cantando.

Podemos aproximar a essa canção outra gravada no ano de 1996, intitulada

―Minha pátria‖, incluída no disco Estouro de tropa. Da mesma forma que na

canção ―Teteias de minha infância”, essa última evidencia a formação do gaúcho

e, através desta, relembra o passado guerreiro do Rio Grande, a força e coragem

do gaúcho em forte ligação com os elementos da terra: ―Eu sou gaúcho e brotei do

vento e da pampa/ cresci peleando abraçadito num fuzil/ de bombacha e de chapéu

de aba larga/ por muitas vezes já defendi meu Brasil‖.

Sempre positivo e viril, a defesa da pátria está em primeiro plano, mesmo

quando se trata de pelear com o próprio irmão, ou seja, pelear com os outros

estados da federação. Da mesma forma, evidenciamos a sincronia que existe entre

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o ser, o gaúcho, o estado Rio Grande do Sul e nação – o Brasil, no sentido de

existir uma força que sobrepõe o próprio ser quando o assunto é a defesa de sua

terra:

Por igualdade já peleei com meus irmão

tive meu corpo todo coberto de chaga

mas injetei ajuda de outras nação

pra não ferir a pátria que eu tanto amava

E o que mais me deixa triste meus amigos

é que meu nome a história não escreveu

pra quem não sabe, eu sou o Rio Grande do Sul

e não existe mais brasileiro que eu.

Mano Lima segue cantando a alma o Rio Grande do Sul, sua paisagem,

seu povo, sua singularidade, fazendo sempre menção à liberdade campeira,

desfrutando do ânimo guerreiro para realçar o modo de viver do gaúcho através de

sua arte. A canção ―Um homem fora do seu tempo‖ que dá nome ao disco gravado

no ano de 2004 distancia-se do cantar da infância para sinalizar o afastamento do

campo através de um gaúcho que carrega mais forte ainda a bagagem cultural

adquirida nos tempos de outrora: ―Um homem o mundo não leva/ Quando tem

sangue nas veia/ Eu venho vindo da terra/ Onde o touro berra e o tauro peleia‖.

No entanto, não existe generalização nesta definição do gaúcho que o

mundo não corrompe, pois Mano Lima deixa claro, principalmente, em duas

estrofes: ―Tem gaúcho da boca pra fora/ Mas também tem o que é do coração pra

dentro/ Se tem o cerne na garganta, é de pau ferro/ Por isso berro e, quando canto,

me sustento‖. E, na última estrofe: ―Amigo, bote otro trago/ E saiba porque peleei/

Foi porque os home mudaram/E se acadelaram e eu não acompanhei‖.

No entanto, ao mesmo tempo em que a canção permite a aproximação com

o presente, ela também se envolve e dialoga com os versos do cancioneiro, à

medida que recupera os elementos regionais, demonstrando o apego à terra, a

caracterização do tipo e sua relação com a campanha. Podemos observar

semelhança entre os versos de Mano Lima, e os do Cancioneiro, coletados por

Augusto Meyer. Em ambos, é possível observar o nomadismo, a exaltação da

coragem pessoal, da valentia, da liberdade atrelada ao ato de pelear, o culto da

monarquia que entoam o canto da vida semibárbara do gaúcho primitivo:

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Quando ato a cola do pingo

E ponho o chapéu de lado,

E boto o laço nos tentos,

Por Deus que sou respeitado

Desde guri eu já era

Um monarca abarbarado,

Ninguém me pisou no poncho

Que não ficasse pisado

( MEYER, 1959, p. 72)

Um homem o mundo não leva

Quando tem sangue nas veia

Eu venho vindo da terra

Onde o touro berra e o taura peleia

Que me valeria a vida

Se do perigo eu fosse disparar?

O que vale a liberdade

Pra quem é covarde e não sabe pelear?

(LIMA, 2004)

Mano Lima segue lançando discos: Homem da terra, gravado no ano de

2007, Destino da gente, do ano de 2008; em 2012 temos regravações no disco As

mais tocadas e, no ano de 2013, Batendo estribo, do qual analisaremos duas

canções: ―Rancho de vidraça‖ e ―No rancho do coração”.

A primeira canção, ―Rancho de Vidraça‖, narra o início de um namoro e,

novamente Mano Lima prima pela caracterização do gaúcho atrelado ao espaço

recordando, em síntese, os dois fatores que fundam o regionalismo: o tipo humano

e o meio espacial. Nessa composição, a diferença geográfica do ―Rio Grande

velho‖ reflete-se em traços biológicos e psicológicos na figura do gaúcho que vai

ser cantada, a partir do tema do namoro entre o gaúcho e sua prenda: ―‗A gente

somos cada um no universo‘/ Disse uma prenda no princípio de namoro /Eu disse

a ela ‗venho do Rio Grande velho/ Da tropa-alçada e dos índio marca-touro‘‖. Na

definição de si mesmo, o gaúcho já demonstra seu orgulho a partir da força, da

valentia, e da história de sua terra.

O gaúcho meio grosso representado nessa composição lembra um pouco a

fase inicial, pois evidenciamos na descrição deste tipo humano o canto da

violência, o machismo, o ser ―cuiudo‖, como podemos observar no trecho:

O meu bigode ta branco não é do tempo

Bombeia bem que isso é farinha de mandioca

Eu me criei só com tutano de chibo

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E galopeando cuiudo com massarote.

Na segunda estrofe quem fala é a mulher, a qual lembra os momentos de

―circunstância‖, que para ela era o tempo em que prevalecia a cultura gauchesca, a

qual agora deve ser mantida para não serem pisados. Notamos um culto pelas

tradições, pelos costumes antigos, o desejo de não deixar para trás aquilo com que

se identificam:

Ela me disse "Há momentos maior aquele,

de circunstância e de principalmente...

A gente tem que mantê o nível e a cultura,

pras criatura não pisá em riba da gente.‖..

Observamos, ainda, o desrespeito para com a mulher e a exaltação da

valentia, pois por cima dele não ―cruza‖ ninguém a não ser alguma égua.

Observamos nessa composição um gaúcho que se impõe pela força e violência,

caracterizando um indivíduo machista:

Eu disse a ela: "Só o que me cruza por riba,

é alguma égua, quando as vez plancha comigo.

Sai corcoveando, se quexando campo a fora,

igual muié quando apanha do marido.

Ao final da canção, a voz do gaúcho persiste sobre a voz da mulher e,

novamente é possível observar a descrição de um indivíduo machista tanto na

relação com a mulher, a qual ele estava conquistando, quanto com a égua. Através

do animal e da mulher ele demonstra sua índole violenta, e a desvalorização da

mulher, a qual, por contiguidade, e pelo tratamento recebido, é equiparada à égua.

Por outro lado, a impetuosidade do animal vem a ressaltar a valentia do homem,

pois, mesmo ―aporreada‖, ou seja, mesmo sendo difícil de montar, é dominada por

ele, como o é a mulher, que anda ―nos conforme‖, ou seja, prevalece sua voz, sua

opinião. Ao mesmo tempo em que evidenciamos o machismo no gaúcho,

evidenciamos, na mulher, a submissão:

E assim se fomo naquela séca baguala,

de "laranjóide" e de "pessigueróides"...

Eu dando pau tipo bicho em égua aporreada

E o namoro se arrumô bem nos conforme...

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Por sua vez, a canção ―No Rancho do coração‖, existe uma aproximação

de Deus ao povo gaúcho, através do ato de matear e a recuperação do cenário

campal. Inclusive, a canção soa como uma prece, com uma certeza da grandiosa

fé de novos tempos, da possibilidade de viver em um mundo mais igual. Outra

leitura interessante se revela pelo significado da palavra rancho nessa letra, pois

ele simboliza aconchego, simboliza coração, local em que Deus passou a morar

depois da criação do mundo: ―Deus após criar o mundo ficou pensando ao matear/

Em que rincão escolher um ranchito pra morar/ Depois de muito pensar solito na

madrugada/ Em cada coração humano se arranchou e fez morada‖.

Depois de demonstrar que Deus ―se arranchou‖ quer dizer está presente

nos corações e no rincão gaúcho, a canção revela a importância de manter a fé, de

agradecer e não somente buscar a Deus nos momentos difíceis, lembrando ainda,

que Deus não está nas coisas, mas sim no coração de cada um. Dessa forma, não é

preciso buscá-lo através de outros que o distanciam e alienam do homem, os quais

na canção são chamados de ―falsos profetas‖:

Não deixa tua pessoa campear Deus só quando chora

Visite ele diariamente, não somente nesta hora.

Não siga falsos profetas que vendem ele aqui fora

No rancho do coração, dentro de ti que ele mora.

Sem se desvencilhar dos motivos regionalistas e da linguagem típica

sulina, do ―camperear Deus‖, ―do rancho do coração‖, ―sinuelo do bem‖, o

compositor aborda, ainda, a questão da desigualdade a partir de duas principais

classes: o rico e o pobre, fazendo um chamamento para caminhar em direção ao

bem e espalhar o bem e, assim tentar, através da oração, buscar um mundo mais

igual.

Siga o sinuelo do bem, derrame onde for seu unto

Para que o homem e poder um dia ainda vivam junto

Lute por um mundo justo sem ganância ou mexerico

Onde o pobre deixe de ser dominado pelo rico.

Por isso eu falo com deus diariamente lado a lado

Num mundo já carcomido pelo cupim do pecado

Ao final, novamente o eu lírico demonstra sua crença apenas em Deus, em

algo maior que qualquer outra ―lorota‖, sinalizando que o pecado existe mesmo

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que tenha outros nomes e, ainda que as desigualdades evidenciadas no mundo

sejam contas a serem resolvidas entre homens e não com Deus. Observamos que a

canção elege a fé como força, para assim poder acreditar em mundo de igualdade;

para isso existe uma crítica ao fato de buscar a Deus apenas nas horas ruins:

Não me venha com lorota de bruxa e de lobisomem

O pecado é sempre o mesmo embora tenha vários nomes;

Como dizia um paisano que por teres sede e fome

Que viu as desigualdades de cascatas e sobrenomes

Não tenho conta com deus, minhas contas são com os homens.

As composições selecionadas do músico Mano Lima revelam a sua

irreverência através do uso de um linguajar simples, rústico, próprio do gaúcho

nascido e criado no interior. Em suas composições evidenciamos, basicamente, o

canto da valentia do homem gaúcho, da ―grossura‖, do machismo, que se

manifestam nas peleias, na montaria, no trato com a mulher e com os animais. O

Rio Grande, em suas canções, recebe a definição de pátria dos gaúchos e o

habitante, mesmo quando o tema é o namoro, a fé, a infância, é definido como

taura, o valente. A valentia para o eu lírico de suas composições, associa-se,

facilmente, com a possibilidade de lutar, como é o caso das canções ―Clarim

farrapo‖ e ―Minha pátria‖. Ao mesmo tempo, a imagem idealizada do herói dos

pampas, defensor de sua terra se perde em meio à banalidade de guerrear, a ponto

de não conseguirmos, por exemplo, evidenciar a imagem do monarca nem do

centauro dos pampas.

3.2.3.3 Jayme Caetano Braun

Jayme Caetano Braun nasceu em 30 de janeiro de 1924, na Timbaúva,

distrito de São Luiz Gonzaga (RS), hoje pertencente ao município de Bossoroca.

Destacou-se como um artista que fez de sua terra o seu mundo. Foi alambrador,

tropeiro e curandeiro, formou-se em jornalismo. Escreveu poemas que versavam

sobre a temática campeira, quase sempre em homenagem ao homem da campanha

e seus costumes. Costumava, enquanto poeta regionalista, usar os pseudônimos de

Piraju, Martín Fierro e Andarengo. Muito carismático, tornou-se popularmente

conhecido não só no Brasil, mas também em países como Uruguai e

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Argentina. Entre seus poemas mais declamados pelos poetas regionalistas do país

inteiro, destacam-se "Tio Anastácio", "Bochincho" e "Galo de Rinha".

Trabalhou como radialista na década de 1970, na Rádio Guaíba, onde

apresentava o programa "Brasil Grande do Sul". Reconhecido como o maior

pajador do Rio Grande do Sul, ou seja, poeta do improviso, foi membro e co-

fundador da academia nativista Estância da Poesia Crioula, em Porto Alegre.

Vários CTGs renderam-lhe homenagem, inclusive em vida, adotando o nome de

"Jayme Caetano Braun", em várias cidades brasileiras, inclusive na Capital

Federal.

A questão da terra perpassa toda a sua obra. Jayme cantou, principalmente

no início de sua carreira, a indumentária e a cozinha tradicionais do gaúcho – o

mate, a faca, o lenço, o arroz de carreteiro. Foi intérprete dos anseios de seu povo,

sempre denunciando o uso indevido dos símbolos gaúchos por opressores. Outra

característica são as referências históricas, as quais, devido ao seu conhecimento

de história e geografia, são constantemente recuperadas nas suas payadas, e

acabam por denunciar a opressão a que o gaúcho foi submetido.

A canção ―Meu Rancho‖, que integra o disco nativista Payador, Pampa,

Guitarra (1976), tem como compositor Jayme Caetano Braun e Noel Guarany;

apresenta a singularização do espaço gaúcho, através do rancho – simples,

humilde, com ―frinchas na porta‖, lembrando o herói guerreiro, que agora, velho,

retoma o antigo viver, recuperando os motivos de orgulho pelo fato de ser

missioneiro:

É a sina dos tapejaras

Essa de beber mensagens

Que o vento traz nas aragens

Do fundo da noites claras

Bordoneando nas taquaras

Ou pelas frinchas da porta

Porque reanima e conforta

O velho sangue guerreiro

E se eu nasci missioneiro

O demais pouco me importa.

A canção narra a ambientação campeira, os costumes e a cultura atrelada

ao viver no campo através do resgate da infância do eu lírico, na qual vivenciou a

miséria e pobreza, as quais retomam o significado de ser missioneiro guerreiro:

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Nasci no meio do campo

Na costa do banhadal

Dentro dum rancho barreado

De chão duro e desigual

Meu berço foi um pelego

Sobre um couro de bagual.

Bebi leite na mangueira

Numa guampa remachada

E acavalo num tição

Me aquentei de madrugada

Enquanto o vento assobiava

Nos campos brancos de geada.

No entanto, mesmo que o viver tenha sido marcado pela simplicidade, pela

dificuldade, o eu lírico cresceu orgulhoso pelo fato de ser um chiru e, por esse

motivo, a composição denota a imagem de um gaúcho que preza pela vida, pela

natureza, manifestando afinidade com o viver no campo. Da mesma forma, existe

a recuperação dos hábitos, desde o matear um amargo até o churrasco gaúcho:

Brinquei com gado de osso

Na sombra do velho umbu

E assim volteando um amargo

E o churrasco meio cru

Fui crescendo e me orgulhando

De ter nascido um chiru.

A composição é escrita a partir da sinalização marcada pelo passado e

presente, uma vez que é possível identificar a transição entre antigo e atual, antes

e agora. Existe a recuperação do passado através da criação, da infância e da

caracterização de ser um missioneiro e também da chegada da velhice e da volta

no viver humilde da campanha. Também evidenciamos o registro do centauro dos

pampas, do gauderear por muitos campos, e retorno na velhice ao espaço de

origem, na companhia da mulher e do cachorro: ―Depois de andar

gauderiando/Por muita querência estranha/ Hoje vivo no meu rancho/Na

humildade da campanha/ Junto à chinoca querida/ E um cusco que me

acompanha‖.

O amor à vida, à natureza, às coisas do pago simboliza o ideal mais forte

na canção, pois esses sentimentos e identificações do gaúcho com seu meio o

fortalecem. Há, também, a exploração de um dos temas prediletos do gaúcho: a

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celebração da mulher; nessa composição, esta é companheira fiel, que divide com

o gaúcho todos os momentos, recebendo, na composição, a definição de ―guasca;

mulher e cavalo são valorizados igualmente, como fonte de riqueza para o índio

pobre:

É meu vizinho de porta

Um casal de quero-quero

Por isso embora índio pobre

Bem rico me considero.

Tendo china, pingo e cusco

No mundo nada mais quero.

Na estaca em frente do rancho

Dorme o pingo, meu amigo

Companheiro que eu adoro,

Prenda guasca que bendigo

Pois alegrias e penas

Sempre reparte comigo.

Mesmo diante da percepção de que, pelos costumes que mantém, pela

companhia da mulher e dos seus animais ele é feliz e rico, podemos perceber que

existe o canto da solidão dos pagos, das mágoas que revivem na chegada da noite,

e que se manifestam através do canto:

E quando de noite, a lua

Vem destapando meu rancho

Agarro na gaita velha

Que guardo erguida no rancho

E dando rédeas ao peito

Num vanerão me desmancho.

E ali pela solidão

Onde meu canto escramuça

Parece que a noite velha

Cheia de mágoas soluça

E a própria lua pampiana

No santa fé se debruça.

Notamos, ainda, bem vivas, as pegadas no heroísmo farrapo, das guerras,

da presença das tropas, presentes no cancioneiro gaúcho, e que continuam a ser

constantemente registradas e glorificadas, nessa composição, através da gaita. É o

momento em que o gaúcho recupera o antigo viver, assim como observamos no

conto ―Velhos tempos‖, em que a lembrança do passado permitia aceitar o

presente:

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É mesmo que bombeador

Dos piquetes de vanguarda

Que vem abrindo caminho

Pelas tropas da retaguarda.

Enquanto a cordeona chora

Meu cusco fica de guarda.

Ao final da canção, o eu lírico demonstra que a luta pela defesa do Rio

Grande está acima de tudo e, portanto, é o único motivo que faz o gaúcho sair do

sossego de sua vida na querência, mas mesmo assim a china e o cusco o

acompanharão. Evidenciamos uma valorização na representação da mulher

diferente das demais canções analisadas, pois ela faz parte de tudo o que move o

gaúcho e não é simples objeto de desejo ou manifestação de masculinidade:

Mas pra deixar o sossego

Do meu rancho macanudo

Basta só a voz de um clarim

Com china e cusco me mudo

Pra defesa do rio grande

Que adoro acima de tudo.

A canção ―Bochincho‖ está incluída no Lp Payador, gravada no ano de

1983. Lembra os cantores da primeira fase – inventando as tradições, ao contar a

história de um gaúcho que vivia na costa do Uruguai e chegou em um baile ―num

rancho de santa-fé‖ conquistando uma ―china lindaça, morena e de toda a crina‖

que levou a pelear com o dono do bochincho, pois a peleia, a valentia é usada a

serviço pessoal, diferente daquela associada ao herói farroupilha ou mesmo da

valentia que defendeu o Rio Grande. Essa canção remonta aos tempos do

cancioneiro, através da imagem da mulher, a partir de um olhar erotizado e

também da exuberância animal do amor, que confere ao gaúcho a afirmação de

masculinidade. Nota-se que a beleza física vale mais que qualquer outra afeição.

Ao contar a peleia, o gaúcho briga sozinho com todos do baile; corre muito

sangue, demonstra muita força e, mesmo lutando sozinho, eis que o gaúcho sai

pela porta da frente – nesse caso, uma estratégia covarde, já que era aguardado na

porta dos fundos:

E a coisa ia indo assim,

Balanceei a situação,

- Já quase sem munição,

Todos atirando em mim.

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Qual ia ser o meu fim,

Me dei conta - de repente,

Não vou ficar pra semente,

Mas gosto de andar no mundo,

Me esperavam na do fundo,

Saí na porta da frente...

No disco A volta do Payador, gravado no ano de 1985, Jayme Caetano

Braun canta a lembrança da querência, na canção ―Chimarrão do sem destino‖,

apresentando uma leitura do antigo gaúcho – o herói, para o gaúcho de agora ―um

paria ao relento‖, que mesmo na indigência, conserva sua altivez. Em sua letra, o

compositor faz um chamamento para a tradição, atentando para a nova condição

do gaúcho.

No desenvolvimento da canção, o gaúcho será lembrado a partir dos

sinônimos: desgarrado e retirante, os quais nos remetem às canções de Sergio

Napp, anteriormente analisadas, pois passado e presente, campo e cidade, êxodo

rural serão abordados para demonstrar o período da modernização, da saída do

campo. Nessa composição, as palavras lembrança e incerteza são as que

caracterizam o momento. Lembranças do passado, da vida na querência, da tapera

que não tem mais e, incerteza ao olhar para o futuro, de esperar agora novo

sentido:

Atrás o tempo - a lembrança

do "não tem mais" da tapera

na frente - a incerteza - a espera

mas ninguém come a esperança

o choro de uma criança

o leite - o pão que não há

salário - se tem - não dá,

teu viver não vale um real‖.

O chimarrão, bebida típica do estado do Rio Grande do Sul, na tradição é

representativo do pago, constitui-se ainda no símbolo de hospitalidade e da

amizade do gaúcho. Na canção, a bebida representa o que restou do passado na

querência e, ainda a possibilidade de ser reconhecido em outra estância pela

bagagem cultural que representa por meio da tradição uma forma de garantir a

permanência da tradição:

Meu amigo - meu irmão,

de campo - serra e fronteira,

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alma da terra e tronqueira,

da gaúcha tradição,

prepara o teu chimarrão

pra que o mundo inteiro tome.

Mate amargo! santo nome

na religião dos andejos,

os que beberam teus beijos,

não podem morrer de fome!

Poder não deve - mas pode,

não há quem dome o destino,

o índio do campo fino,

como o da barba de bode

que fez dum fio de bigode

seu código e documento,

agora é um paria ao relento,

sobra de tempo e de guerra,

porque os que domam a terra

não constam do testamento!

O herói é retomado, em meio à tristeza do sentimento de

despertencimento, pois a canção os nomeia de ―epopeias de dantes‖ que são

sobras tanto do tempo, como da guerra e, ainda podemos perceber uma mudança

de paradigma em que tudo aquilo que os heroicizava, a relação com a natureza, a

peleia pela fronteira, agora não tem mais valor:

Essa altivez que te resta

pode durar muito mais,

pois te sobram credenciais,

além do ser que protesta,

a preocupação na testa

e os olhos queimando luz,

talvez pensando em gurus,

estranhos aos teus terreiros,

ou - talvez - nos entreveros

dos nazarenos sem cruz!

A lembrança do campo aberto, da fronteira que imperava as disputas é

recuperada no disco Payadas, gravado no ano de 1993. A canção ―Sangue

Farrapo” recorda os tempos de luta, dez anos de guerra, tempo de sofrimento que

foi escrita por Jayme para denunciar o descaso do império diante da guerra. Ainda

assim, a canção explicita que embora a situação tenha mudado e a cidade seja o

novo paradeiro do gaúcho, se for preciso escolher ele prefere a peleia. A canção

relê o passado da guerra, sem idealização ou glória, porém os motivos da terra, da

conquista do solo gaúcho e defesa tem valor maior do que a vida de hoje na

cidade: ―Hoje quer seja funcionário, ou operário, ou da cidade, ou da lavoura, ou

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do rodeio ante os que aviltam o trabalho e o salário sem me obrigarem a escolher

volto e peleio‖.

De modo diferente, o cd Êxitos, gravado no ano de 1999, principalmente

com a canção ―Querência, tempo e ausência‖, demonstra a relação do gaúcho

dividido entre passado e presente. Nesse sentido, tudo o que retoma o passado é

gratificante e motivo de glória e o olhar para o presente se resume em falta, em

ausência. A distância da querência na canção se resume a perda, a uma busca que

nunca se supre, pois está atrelada a um espaço incomum, singular.

A canção revisita os espaços campestres para discutir os efeitos da

ausência do passado no presente: ―E nesse andejar em frente,/Sem procurar

recompensa,/ Fui vendo - na diferença,/ Entre passado e presente,/ Que a

lembrança de um ausente,/ Tem mais força que a presença!‖. Ainda podemos

mencionar, nessa canção que a paisagem, o ambiente simbolizado pela querência

é uma extensão da identidade do gaúcho.

Diante da análise realizada, consideramos que persiste na canção

regionalista gaúcha no Rio Grande do Sul a vertente regional, a qual contribui

para a permanência do mito (gaúcho–herói) pelo viés histórico e social. Sendo

assim, ressaltamos o papel da canção na (re) construção mítica do gaúcho,

considerando as questões sociais, culturais e ideológicas. Acreditamos, desse

modo, que o ato de revisitar os espaços e rememorar o passado através da música

regionalista evidencia, de um lado, o sentimento de pertença para o gaúcho à

identidade deste Estado e, de outro, a manifestação de uma tradição, de uma

continuidade cultural na contemporaneidade.

O passado do gaúcho – seu motivo de heroísmo e identidade está presente

desde as origens das composições musicais regionalistas. A canção gaúcha

oferece um espaço significativo e provocativo de vozes que convidam a gente

gaúcha a reforçar ou sustentar a identidade e, portanto, a sua unidade. As letras

das canções revelam um espaço de discursos diferenciados e plurais que conferem

ao individuo gaúcho o seu pertencimento em uma coletividade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa teve como objetivo investigar a persistência da vertente

regionalista na literatura gaúcha, evidenciando, para isso, a mitificação do gaúcho

e de sua terra em dois gêneros literários: o conto e a canção. Em nossa análise,

demonstramos, em um primeiro momento, a construção ideológica do gaúcho e

sua representação na vertente regionalista, objetivo para cuja compreensão tornou-

se necessário lembrar, ainda, o gaúcho histórico, e suas lutas e vivências na defesa

da fronteira e do território sul-rio-grandense, já que o conhecimento dos fatos

históricos permitiria melhor dimensionar a construção imaginativa desse tipo

humano.

Ao dedicarmo-nos ao estudo da representação do gaúcho e da sua terra,

verificamos que a configuração do gaúcho mítico é evidenciada desde a literatura

oral, através do Cancioneiro popular, no momento em que o homem rural é

enobrecido a partir do elogio das qualidades como trabalhador, amante e soldado.

No cancioneiro, o gaúcho apresenta as seguintes características: a revolta; a

solidariedade; a simplicidade; a força; o cavalo como companheiro inseparável, o

gosto pela liberdade, a obstinação à sua sina, a coragem, a valentia, a aversão a

estrangeiros, a honra, a dignidade e a solidão.

Entendemos que a configuração da imagem mítica do gaúcho como

representativo do Rio Grande do Sul se deu a partir de duas principais esferas, as

quais puderam ser observadas no percurso em que traçamos – literatura oral, conto

e, novamente oral, através das canções. A primeira esfera é de procedência

popular, e levava em consideração a indumentária, os hábitos e modos de falar; a

segunda, de natureza erudita, que se vincula, inicialmente, à associação do gaúcho

à figura mítica e aos fatores históricos integrados a sua personalidade, a sua índole

guerreira e livre constituída em virtude da formação de sociedade pastoril. Essas

duas esferas revelam os dois símbolos também predominantes nas representações:

o centauro dos pampas e o monarca das coxilhas. O centauro, reconhecido pela

sua bravura, considerado o gigante destemido, indomável; o monarca, por sua vez,

deixa de lado a visão obscura de homem bárbaro, conotando a imagem de um

mundo positivo, sem males, plenamente livre.

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Contudo, cabe mencionar a presença de outra esfera, que diferentemente

da imagem mítica, evidenciou o processo de desmitificação, expresso por meio de

um revisionismo crítico e de denúncia social que se ocupou em registrar o gaúcho

a partir de um novo olhar. Sob essa perspectiva, o gaúcho é representado despido

de sua áurea mítica, encontrando-se à margem da sociedade no espaço citadino

ou, ainda, mesmo vivendo no campo, sente-se deslocado, pela impossibilidade de

viver como nos tempos de outrora.

Para demonstrar a persistência da vertente regionalista, partimos de sua

inscrição no conto, analisando, depois, o modo como os motivos e temas caros ao

regionalismo foram retomados na canção, para, no final, aproximarmos as

unanimidades e as dissonâncias evidenciadas nessas representações.

A temática da representação do gaúcho mitificado no conto foi

demonstrada em nosso trabalho a partir da análise de nossa seleção do corpus

analítico, uma vez que, através dela, conseguimos demonstrar o modo como se

deu a representação do gaúcho e de sua terra. A identificação dos quatro

regionalismos na literatura gaúcha, de acordo com o nível de regionalismo

empregado, possibilitou-nos verificar o tratamento diferenciado que cada autor

conferiu ao mesmo tema, propiciando, ainda, um trabalho peculiar no que tange

ao processo interpretativo obtido a partir de uma leitura que se firmou no

envolvimento do conteúdo de cada narrativa ao seu momento histórico. Além do

emprego de um determinado tempo histórico, ocupamo-nos, em nosso percurso

analítico, de outros dois fatores que também caracterizam o regionalismo em uma

obra literária: o tipo humano escolhido e o meio espacial.

Em Apolinário Porto Alegre, no conto ―Monarca das coxilhas‖

evidenciamos a cor local, principalmente a partir de dois elementos: as cenas

campestres e o vocabulário regional, com vistas a representar o tipo humano

campeiro, suas tradições e hábitos, dentro de um espaço restrito. As relações na

sociedade campeira, embora sejam narradas a partir da presença de segmentos

sociais distintos, por exemplo, patrões e subordinados, são representadas como

sendo fraternas e igualitárias. O cenário e a linguagem correlacionam-se com

relação ao primeiro; o autor dedica o seu olhar atento, manifestando uma escrita

detalhista daquilo que visualizou, ao mesmo tempo em que revela sua origem,

pois observamos uma narração que se dá através do olhar da cidade para o campo;

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Em ―Velhos tempos‖, de Darcy Azambuja, os motivos idealizadores,

oriundos do passado regionalista, são demonstrados a partir de um ângulo

negativo, tanto com relação às paisagens quanto com relação ao tipo humano. Na

representação do tipo humano, coube ao autor demonstrar a marginalidade, a

solidão, a perda da identidade; já na representação da paisagem evidenciamos a

modificação da economia gaúcha e, com isso, novas condições de trabalho,

fazendo com o saudosismo se associasse à rememoração. Diferente do conto de

Apolinário Porto Alegre, em que os motivos regionalistas foram mantidos desde a

caracterização do tipo até a caracterização do espaço, em Azambuja verificamos,

sim, a presença do tipo, mas na leitura da campanha persiste o mesmo motivo

literário, contudo a partir de um espaço modificado, que revela os sentimentos de

despertencimento, estranhamento causado pela invasão da tecnologia no espaço

campeiro e, ainda a violência, os motivos da guerra que caracterizam o herói

gaúcho.

João Simões Lopes Neto ocupa-se da tríade regionalista: o homem, o

espaço e o tempo para representar o universo campeiro através do narrador-

personagem Blau Nunes. A localização dos seus casos remete a um passado

distante, mas pleno de honradez, como é o caso do conto ―Trezentas onças‖, no

qual percebemos a presença simultânea da nostalgia e da idealização com relação

ao tipo humano e o espaço representado. A sociedade campeira, assim como em

―Monarca das coxilhas‖ apresenta a divisão social a partir da caracterização do

estancieiro e do vaqueano, o peão, mas os valores como a solidariedade e a

honestidade imperam sobre qualquer diferença existente entre ambos. A paisagem

é idealizada e, além disso, reflete os sentimentos do herói.

Diferentemente, no conto ―Tempo de seca‖, de Cyro Martins, visualizamos

o gaúcho decadente, que lembra o passado guerreiro e as longas troteadas, mas

que agora está diante da seca. Notamos, no conto, a repetição da abordagem da

divisão social, mas sob um novo prisma, em que são realmente distintivas as

relações entre ambas, o que é demonstrado a partir da própria personagem,

durante o percurso para o seu rancho. O conto já nos encaminha para a saída do

campo, uma vez que a personagem perde seu rancho.

A aproximação deste conto de Martins com os anteriores, vinculados

primeiramente à idealização e, depois ao desaparecimento do herói e do antigo

cenário é possível pelo viés do contraste com relação ao conto ―Trezentas onças‖

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e aproximação com o conto ―Velhos tempos‖. Contraste com o primeiro em

virtude da idealização do campo, da paisagem, pois em Martins evidenciamos, a

partir da temática da seca, a narração da impossibilidade de continuar vivendo no

campo pelo antigo herói, mas ainda é possível aproximar pela figura do contador

de histórias, que é relativizado nesse conto através da presença do velho rodeado

pela ―gurizada‖. A aproximação com o segundo se dá pela mudança na paisagem

e pela rememoração, em ambos, dos personagens com relação ao passado.

A demonstração da permanência da vertente regionalista no conto rio-

grandense prosseguiu, em nosso trabalho, a partir da leitura da narrativa de

Barbosa Lessa ―O boi das aspas de ouro‖ a qual nos revela a continuidade da

abordagem regionalista nos anos 1958. Novamente vincularemos uma leitura que

abrange contrastes e aproximações. Notadamente evidenciamos no conto a tríade

regionalista, através do culto aos valores de uma sociedade fechada e, ainda por

meio da caracterização do tipo e do cenário. Entretanto, percebemos também as

mudanças da sociedade campeira; o conto traz a presença do escravo e, através

deste, da divisão social sem a ideologia da democracia do campo, e o

empobrecimento do gaúcho, a solidão. O emprego do tempo histórico, assim

como nos demais contos, também é identificado, pois desde o início da narrativa o

leitor é conduzido para um passado distante, tempo em que as terras não tinham

dono, remontando à colonização.

O velho caudilho recuperado no conto ―Cavalo cego‖, de Josué

Guimarães, pela forma de relatar as experiências vividas, assegurando a

veracidade das mesmas, recorda, facilmente, a narração de Blau Nunes, de Simões

Lopes Neto. No entanto, o coronel distingue-se de Blau, primeiro por representar

na história a classe dominante, na qual evidenciamos os elementos de tradição e

ruptura, uma vez que ao lembrar-se das guerras, dos momentos de valentia o faz

pelo viés consciente do desaparecimento do Rio Grande de outrora; e, segundo,

pelo fato de o narrador não fazer parte daquele universo campesino representado,

figurando, assim, apenas na condição de observador ou interlocutor.

Depois de lermos o conto observamos que Josué Guimarães, introduz

elementos que alteram o modelo dos primeiros contos sulinos. Um dos elementos

pode ser observado através da linguagem, pois ainda que haja a ênfase no

coloquialismo, observamos certo distanciamento das expressões, enfim dos

termos locais. Também a temática do conto, de crítica às oligarquias rurais, sugere

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que a sua decadência e seu gradativo desaparecimento está diretamente

relacionado com a desagregação moral e a própria degeneração dos costumes dos

antigos dirigentes, os caudilhos. Esse conto dialoga facilmente com as canções da

primeira fase, momento em que são recuperadas, de modo mais visível, as

revoluções, as guerras nas quais estiveram envolvidos os heróis gaúchos. Ao

mesmo tempo, existe uma aproximação com os contos críticos, que denunciam a

atual situação do gaúcho, que vive em meio à solidão, ao descaso, mantendo viva

a tradição e os costumes pelo viés da rememoração.

Reconhecido o valor de cada um dos contistas trazidos para análise neste

trabalho, cabe ainda mencionar que esses escritores publicaram suas obras em

momentos fundamentais e também determinantes do regionalismo gaúcho. Neste

momento, buscaremos demonstrar as temáticas predominantes, as quais são para

nós: a caracterização do tipo, a sociedade campeira, a presença do cavalo, a

rusticidade e a simplicidade, a presença do contador de causos. Verificamos, em

todos os contos, o tipo regional, do qual ora se ressaltam as qualidades morais,

comportamento, e hábitos típicos, ora as crises existenciais; nas narrativas

permeadas por revisionismo crítico, evidencia-se a solidão do pago, a chegada da

velhice, o êxodo rural, a crise de desemprego ocasionada pela introdução do

maquinário agrícola, e o viver isolado no espaço citadino,

Através da análise dos contos, comprovamos que houve uma duração

prolongada do regionalismo nesse gênero. Evidenciamos que, em boa parte de sua

história, conto e regionalismo foram indissociáveis, desde as primeiras

manifestações românticas até a fase em que ocorreu uma diminuição, sem perder

seus traços regionalistas, momento em que registramos a presença de elementos

da tradição e de ruptura.

Nesse contexto é que nos ocupamos, em nossa pesquisa, da verificação da

permanência da vertente regionalista na canção, porque levantamos a hipótese,

posteriormente confirmada, de que este gênero literário, de modo singular, vai

retomar na contemporaneidade os valores do regionalismo e da cultura rio-

grandense, através do sentimento de orgulho pelo chão, da exaltação do gaúcho,

da valorização do pampa e dos seus hábitos e costumes, ao mesmo tempo em que

vai denunciar a vida atual do gaúcho na cidade, cantando o êxodo rural, a solidão

dos pagos e o gaúcho a pé, conferindo, assim, uma identificação coletiva para a

gente gaúcha desde os anos 1940 até a atualidade.

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Por outro lado, evidenciamos, em grande parte das canções gaúchas, a

permanência do mito, através de um ato rememorativo do passado heroico e da

cultura sul-rio-grandense, por meio da atualização e renovação dos laços

identitários que em algumas ocorreu pelo cantar da guerra, da violência, da

caracterização da virilidade do homem do pampa e, em outras, por um tom

idealizante e nostálgico do passado com relação ao antigo herói e também ao

espaço. No entanto, constatamos que, assim como no conto, não existe uma

predominância unânime dos traços regionalistas nas canções gaúchas, o que foi

possível perceber através da divisão do gênero em três principais fases, nas quais

verificamos o tratamento do tema dispensado por cada compositor (autor).

A fase Inventando as tradições é composta por músicos muito populares,

que viveram a época de crescente popularização do rádio, sendo muito cultuados

no meio rural. Esses músicos cantaram o gaúcho através de uma caracterização

externa – pela indumentária típica, reverenciando a cultura gaúcha, o pampa como

cenário, a fronteira, a tradição. Em menor parcela, evidenciamos o amor pela

terra, mas em maior profundidade encontramos a herança da valentia, apontando

para um gaúcho brigão e não valente, através de um deslocamento vazio do eu

lírico, pois a valentia não está atrelada à defesa do território. Observamos, com

frequência, o deslocamento da imagem do centauro dos pampas para as cenas

cotidianas.

Relacionando a temática das composições desta fase com a literatura oral

e, depois com o conto, principalmente ―Velhos tempos‖, constatamos que há

canções que se ocupam da imagem do gaúcho contador de causos, principalmente

de suas cenas de valentia e sua atração pela mulher, temas que se configuram

como prediletos do Cancioneiro primitivo. No entanto, esses foram os poetas que

fizeram nascer o estilo regionalista na canção gaúcha e, pela simplicidade e por

cantar o Rio Grande, continuam sendo fonte de inspiração para novas gerações de

músicos sulinos.

A fase Ebulição nativista ou ainda a Era dos festivais estabeleceu um

posicionamento diferenciado com relação à primeira fase da canção, pois

constatamos um distanciamento no que tange à temática que evoca fatos

históricos, as próprias revoluções. Concluímos que tal distinção se dá pela

intenção do festival de promover a renovação e o refinamento da canção, que era

considerada ―grosseira‖. No entanto, essa mesma fase pode ser facilmente

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aproximada do regionalismo inicial evidenciado no conto, isso devido à influência

romântica, como é o caso da idealização do herói e do próprio cenário campesino

narrado no conto ―Monarca das coxilhas‖ de Apolinário Porto Alegre, bem como

a visão da dicotomia campo/cidade narrada no conto ―Velhos tempos‖, de Darcy

Azambuja. Percebemos a predominância dos temas caros ao regionalismo – como

o trabalho campeiro, a vida no campo, os costumes, a saudade do pago, a oposição

campo e cidade, que foram conservados em muitas canções da Califórnia, mas

receberam um tratamento poético mais elaborado.

A última fase da canção é muito significativa em nosso trabalho, uma vez

que ela comprova a persistência na canção da vertente regionalista até a

atualidade. É sabido que existem outras correntes musicais em solo gaúcho que,

assim como no conto, buscaram novas articulações vinculadas à renovação, mas

que também retornaram ao viés regionalista, para alcançar a solicitação do público

que cultua a tradição gaúcha, seus costumes e sua história.

Esse cantar, nem sempre está relacionado à valentia, à coragem do homem

gaúcho, mas está sempre voltado a terra gaúcha. A persistência com relação ao

cantar o pampa é evidenciada em todas as fases da canção, uma vez que

observamos a tematização deste, tanto pela nostalgia que envolve o cenário

campesino, em que as relações sociais são igualitárias e, mesmo o trabalho não é

depreciativo, pois ele engrandece o homem, como pelo viés da rememoração, da

lembrança com saudade dos tempos de outrora cantado a partir da cidade e, do

sentimento de despertencimento que o ambiente citadino causa no homem do sul.

Mencionamos, ainda, que consideramos persistência na canção as inúmeras

regravações de discos regionalistas na contemporaneidade, assim como a

continuidade de cada um dos compositores selecionados em nosso corpus

analítico.

Retomando, de um modo geral, a temática que envolve as canções

regionalistas, sem distingui-las de acordo com fases, percebemos os seguintes

aspectos referentes à identidade do gaúcho: o apego à cultura tradicional, o apreço

pelas lidas campeiras, a honra no cumprimento de qualquer desafio, a idealização

do pago, o respeito às gerações mais velhas, o gosto pela música e pela dança, a

idealização do passado e a consequente inconformidade com o presente, com o

espaço citadino e, nesse contexto a solidão, a marginalização, a tendência a não

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seguir leis, o desprezo diante do ―de fora‖ e, do ―inimigo‖, observa-se ecos

farroupilhas, mais raras, mas ainda aparece a sensibilidade.

Tendo em vista as questões aqui arroladas, constatamos que não só

alcançamos nosso objetivo de investigar a permanência da vertente regionalista na

representação do homem e da terra do Rio Grande do Sul, como, ainda

registramos o modo como se dá essa persistência tanto no conto, quanto na

canção.

Entendemos que esse estudo é uma das possibilidades de leitura que o

conto regionalista e a canção nos possibilitam percorrer e, que, portanto, é uma

discussão que não se esgota. Da mesma forma, ressaltamos a contribuição desta

pesquisa no estudo específico da canção regionalista gaúcha, uma vez que são

encontrados poucos estudos monográficos a respeito da mesma.

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______. Que homens são esses. In:____ Milongueando essas lembranças tuas.

Tropical discos, 1996.

FREITAS, Leovegildo José de. Sistema dos pagos. In:____ O trovador dos

pampas – vida de camponês, Continental, 1965.

______. Despedida do Rio Grande. In:_____ O desafio do padre e o trovador,

1966.

______. Gaúcho bom é assim. In:____ Rei do improviso. Continental, 1970.

______. Pedro Guará. In:____ Recordando a querência. RBS Discos, 1983.

______. São as armas que eu conheço. In: ____ Entre amigos, RBS Discos,1995.

______. Sistema antigo. In:____ Arranchado. Mega Tchê Discos Stereo, 2005.

500066.

MARENCO, Luiz. Meu rancho. In:_____ Luiz Marenco canta Jayme Caetano

Braun. Gravadora RGE, 1991. 500078.

______. O forasteiro. In: ____Estância da fronteira. Gravadora Vozes, 1999.

______. Milongão pra assobiar desencilhando. In:____ O melhor de Luiz

Marenco, Mega Tchê Discos Stereo, 2001. 500015.

NAPP, Sérgio. Desgarrados. In: Canto Livre: nos palcos da vida. Nascente

Discos, 2001.

______. Portas do sonho. In:____ Vivências. Nascente Discos, 2010

______. Retirante. In:____ Mala de Garupa. Nascente Discos, 2002.

______. Mala de garupa. In:____ Mala de Garupa. Nascente Discos, 2002.

RAYMUNDO, Pedro. Adeus Mariana. In:____ Tico-tico no terreiro/Adeus,

Mariana. Columbia. 78rpm, 1943.

______. Gaúcho largado. In:____ Gaúcho largado/Cuidado Maneca.

Continental. 78rpm, 1944.

TEIXEIRINHA, Vitor Mateus. Coração de luto. In:_____ Trilha coração de

luto. Warner Music do Brasil, 1967. CMG-2482

______. Gaúcho de Passo Fundo. In:____ O gaúcho coração do Rio Grande.

Warner Music do Brasil, 1960. CMG 010.

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204

______. Querência amada. In:____ Aliança de ouro. Copacabana. SOLP: EMI

Music, 1975. 40641.

______. Rio Grande de outrora. In:____ Rio Grande de outrora. Warner Music

do Brasil, 1981. 2-11-405-456.

______. Querência e cidade. In:____ Amor aos passarinhos. Warner Music do

Brasil, 1985. 2-74-405-160

______. Figueira amiga. In: ____ Figueira amiga. Chantecler, 1982. K7-2-11-

703-498.

______. Que negrinha boa. In:____ Figueira amiga, Chantecler, 1982. K7-2-11-

703-498.

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ANEXO 1: Letras das canções analisadas.

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INVENTANDO AS TRADIÇÕES: Pedro Raymundo, Teixeirinha e Gildo de

Freitas

PEDRO RAYMUNDO

Adeus, Mariana

Nasci lá na cidade me casei na serra

Com minha Mariana, moça lá de fora

Um dia eu estranhei os carinhos dela

E disse: Adeus, Mariana, que eu já vou embora.

É gaúcha de verdade dos quatro costados

Que usa chapéu grande, bombacha e esporas

E eu que estava vendo o caso complicado

Disse: Adeus, Mariana, que eu já vou embora.

Nem bem rompeu o dia me tirou da cama

Encilhou o tordilho e saiu campo afora

e eu aproveitei e saí dizendo:

Adeus, Mariana, que eu já vou embora.

Ela não disse nada, mas ficou cismando

Que era dessa vez que eu daria o fora

Pegou uma soiteira e veio contra mim

Eu disse: Larga, Mariana, que eu não vou embora.

Gaúcho largado

Quando eu ponho minhas botas, bombacha e lenço encarnado

Todo mundo logo grita: - Eta gaúcho largado;

Se monto no meu cavalo, no meu pingo pangaré

Por Deus que sou cobiçado por mais de trinta mulheres!

E quando eu chego num baile sapateio na entrada

Se alguém em chama atenção a peleia está formada

Atiro no candeeiro e vou brigar no escuro,

Se morrer pouco me importa, mas desaforo eu não aturo!

Encosto numa parede e mando vir quem quiser,

venha velho, venha novo, só não me venha mulher;

Arranco do meu facão, manejo sem atrapalho,

Nos magros eu dou de prancha e nos gordos dou de talho!

Gaúcho peleador

Buena, moçada linda,

com vocês aqui estou,

quem esqueceu do meu nome,

desculpa faça o favor,

me chamo Pedro Raymundo,

gaúcho peleador.

Dizem por ai afora,

que eu sou o rei da furada,

em toda parte que eu chego,

a bagunça tá formada,

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entro um no baile a cavalo,

e não me acontece nada.

(Falado) E não se corre do bicho sem ver o pelo, camarada.

Amigo só tenho um,

meu baio bueno flete,

com ele eu enfrento a morte,

brigo com cinco,e com sete,

no entreveiro de bala,

brigo até de canavete.

(Falado) E dou talho que não é qualquer doutor que costura, amigo, eiaa...

Quando eu entro no bochincho,

acredite quem quiser,

não me deixo levar preso

por um cidadão qualquer,

me entrego de corpo e alma

pra uma linda mulher.

(Falado) Mulher e cachaça em qualquer lugar se acha,sô bobo, não, eiaa...

Boena, moçada linda,

me despedindo estou

quem esqueceu do meu nome

desculpe faça o favor

me chamo pedro Raymundo,

gaúcho peleador.

VITOR MATEUS TEIXEIRA- TEIXEIRINHA

Coração de luto

O maior golpe do mundo

Que eu tive na minha vida

Foi quando com nove anos

Perdi minha mãe querida.

Morreu queimada no fogo

Morte triste, dolorida,

Que fez a minha mãezinha

Dar o adeus da despedida.

Vinha vindo da escola

Quando de longe avistei

O rancho que nós morava

Cheio de gente encontrei

Antes que alguém me dissesse

Eu logo imaginei

Que o caso era de morte

Da mãezinha que eu amei.

Seguiu num carro de boi

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Aquele preto caixão

Ao lado eu ia chorando

A triste separação

Ao chegar no campo santo

Foi maior a exclamação

Cobriram com terra fria

Minha mãe do coração.

Dali eu saí chorando

Por mãos de estranhos levado

Mas não levou nem dois meses

No mundo fui atirado.

Com a morte da minha mãe

Fiquei desorientado

Com nove anos apenas

Por este mundo jogado

Passei fome, passei frio,

Por este mundo perdido.

Quando mamãe era viva

Me disse: filho querido

Pra não roubar, não matar

Não ferir, não ser ferido.

Descanse em paz, minha mãe,

Eu cumprirei seu pedido

O que me resta na mente

Minha mãezinha é teu vulto

Recebas uma oração

Desse filho que é teu fruto,

Que dentro do peito traz

O seu sentimento oculto

Desde nove anos tenho

O meu coração de luto.

Gaúcho de Passo Fundo

Me perguntaram se eu sou gaúcho

Está na cara, repare o meu jeito

Eu sou gaúcho lá de Passo Fundo

Trato todo mundo com muito respeito

Mas se alguém me pisar no pala

Meu revolver fala e o bochincho está feito.

Não sou nervoso e nem carrego medo

Eu me criei sem conhecer remédio

Eu meto os peitos em qualquer fandango

Mas quando eu me zango até derrubo o prédio

Eu sou gaúcho e se me agride eu tundo

Sou de Passo Fundo do Planalto Médio.

Me perguntaram qual era razão

Eu ter orgulho e ser passo-fundense

Eu respondi sou da terra do trigo

Tem um povo amigo e quando luta vence

É um pedaço do Rio Grande amado

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Orgulha o estado e o povo riograndense.

Já respondi à pergunta, seu moço,

Me dá licença, vou encilhar o cavalo

Brasil afora atravessei os estados

Troteando apressado eu vim tirando o talo

Pra ver as prendas mais lindas do mundo

Cheguei em Passo Fundo no cantar do galo.

Querência amada

Quem quiser saber quem sou

Olha para o céu azul

E grita junto comigo

Viva o Rio Grande do Sul

O lenço me identifica

Qual a minha procedência

Da província de São Pedro

Padroeiro da querência

Oh, meu Rio Grande

De encantos mil

Disposto a tudo

Pelo Brasil.

Querência amada dos parreirais

Da uva vem o vinho

Do povo vem o carinho

Bondade nunca é demais.

Berço de Flores da Cunha

E de Borges de Medeiros

Terra de Getúlio Vargas,

Presidente brasileiro.

Eu sou da mesma vertente

Que Deus saúde me mande

Que eu possa ver muitos anos

O céu azul do Rio Grande.

Te quero tanto,

Torrão gaúcho,

Morrer por ti me dou o luxo

Querência amada

Planície e serra

Dos braços que me puxa

Da linda mulher gaúcha

Beleza da minha terra.

Meu coração é pequeno

Porque Deus me fez assim

O Rio Grande é bem maior

Mas cabe dentro de mim

Sou da geração mais nova

Poeta bem macho e guapo

Nas minhas veias escorre

O sangue herói de farrapo.

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Deus é gaúcho

Da espora e mango

Foi maragato ou foi chimango

Querência amada,

Meu céu de anil,

Este Rio Grande gigante

Mais uma estrela brilhante

Na bandeira do Brasil.

Rio Grande de outrora

Velho gaúcho de bombacha e espora

de chapéu grande tapeado na testa

bigode branco e um sorriso aberto

montando um pingo nos dias de festa

acariciando a crista do seu pingo

batendo o relho de leve na anca

lenço vermelho esvoaçando ao vento

guasqueando as pontas na camisa branca.

Eu me encontrava na beira da estrada

quando passava um gaúcho guapo

me fez lembrar de meu avô e outros

fiel herança de um herói farrapo.

Velho gaúcho chegou na tal festa

logo mais tarde eu cheguei também

cantei uns versos, saudei os presentes,

quando um magrinho me falou ―ok‖

corri os olhos no velho gaúcho

e no magrinho olhei de cima abaixo

pensei comigo e vou dizer agora

a diferença que nos dois eu acho:

no tal magrinho eu vi o presente

e no gaúcho velho vi o passado

a diferença é do dia prá noite

como mudou o meu Rio Grande amado.

Eu não sou contra o gaúcho de agora

só não me diga ―ok‖, me aperte a mão

leia a história do velho Rio Grande

como é linda nossa tradição

veja o gaúcho como eu vi aquele

respeite ele como Deus na terra

se o Rio Grande hoje é paz e amor

é por que ele defendeu na guerra.

Velho gaúcho bebeu, festejou,

montou no pingo, partiu, foi embora

direto ao rancho e eu fiquei dizendo

Lá vai o velho Rio Grande de outrora.

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Querência e cidade

Querência e cidade, meus companheiros,

Há uma diferença muito grande.

Lá na querência quando amanhece

Agente esquece todos desabores

Cá na cidade quando amanhece

É um inferno o ronco dos motores.

A diferença de uma coisa e outra

Que me perdoe agora, meus senhores,

Cidade é selva de cimento armado

O homem é fera, embora estudado;

Lá na querência é um jardim de flores

Équerência amada.

Lá na querência um fio de bigode

Fecha um negócio, vale um documento

Cá na cidade um fio de bigode

É coisa à toa que vive ao relento

A diferença de uma coisa e outra

Perdoe-me, senhores, um momento:

Cá na cidade o advogado fala

Lá na querência se resolve à bala,

Finda pra sempre um aborrecimento.

Ah,...ah, o defunto sai mais barato.

Lá na querência a mulher é simples

E tem o cheiro das flores da mata

Cá na cidade a mulher é isnobi

E a maioria delas é engrata

A diferença de uma e da outra

Perdoe-me, senhores de gravata,

Lá na querência a mulher não se pinta

Cá na cidade é na base da tinta

Come pão doce, lá come batata.

E a batata dá mais força mesmo.

Lá na querência canta os passarinhos

Como é bonito quando o sol levanta

Cá na cidade a buzina é música

E no asfalto o pneu é que canta

A diferença de uma coisa e outra

Peço, senhores, em nome de santa.

Lá na querência nós fazer visita

Pra ver que a vida lá é mais bonita

Do homem grosso que lavra e planta.

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GILDO DE FREITAS

Sistema dos pagos

Eu vou contar pra vocês, ó minha gente,

Qual é o traje que no Rio Grande se usa

Uma bombacha, umas bota, um par de espora,

um chapéu grande, um lenço, um pala, uma brusa,

um cinturão, boleadera e tirador

e um revolver carregado na cintura;

um litro mango e uma faca prateada

e uma cordeona pr‘alegrar as criaturas,

cavalo gordo e um arreio preparado

dois pelegão, peiteira, freio e barbela,

um ramaneia, um laço, mala de poncho,

e na garupa uma china formosa e bela.

É esta china que me faz o chimarrão

me lava a roupa, faz almoço e faz café

é bem assim que se traja o rio-grandense

é o meu chão que le pertence os carinho da mulhé

também percisa ter dois cachorro bueno

mas escolher da raça dinamarquês

para ajudar o seu dono a peliar

se pur acaso for perciso alguma vez

cada cachorro peleia com o inimigo

e o dono é guapo peleia com dois ou trêis

e foi assim que eu resolvi todo o problema

di contar todo o sistema do Rio Grande pra voceis.

Despedida do Rio Grande

Até a volta, gauchada amiga,

Deste Rio Grande com encantos mil

Eu vou sair e levar as belezas

Destas canções por todo o Brasil

Eu vou sair em direção ao norte

E boa sorte pra o meu céu de anil

Tenho certeza que num outro Estado

Quando ouvirem a nossas canções

O que é tristeza vai ficar de lado

Vai alegrar vários corações

Fazendo uso da simplicidade

Porque a amizade me vale milhões.

Viver andando no Brasil inteiro

Eu sou gaúcho, eu tenho vontade

Pra ver os feitos que o Pai verdadeiro

Deixou no mundo e deu liberdade

De admirar todas essas belezas

Que a natureza deu pra humanidade.

Eu vou levando a vida de aragano

Pelo Brasil eu só levo alegria

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Pra ver a serra e a água do oceano

E as beleza que esse mundo cria.

Todos da Terra não fazem em cem ano

O que o Pai soberano fez em sete dia

Por isso eu peço que Deus me ajude

Para eu cantar por este mundo além.

Que eu tendo força amizade e saúde

Não me interessa eu ter um vintém

Basta o contato com a natureza

E ver as beleza que esse mundo tem.

Gaúcho bom é assim

Gaúcho bom é assim

O gaúcho rio-grandense

Já é muito conhecido

É valente ,é destemido

Mas não ofende a ninguém

Mas porém sendo ofendido

O gaúcho perde a linha

Mostro logo em seguidinha

O grande valor que tem.

-E é bem assim lá no Rio Grande!

-Principalmente em São Borja, não é Dourado?

O gaúcho desconfiado

É um tremendo perigo

Reconhece o seus amigos

Mas não briga sem razão

Mas também se resolvendo

Manda chegar quem quiser

Mas se enxergando mulher

Lhe cai as armas da mão

-Aí não dá mais pra brigar

-Primeiro se atende a chinoca!

Numa certa ocasião

Um contrário me ofendeu

Puxou do revorve seu

Mas não chegou dar um tiro

Até parece mentira

Dei-lhe um tamanho sopapo

Caiu virado num trapo

Morreu sem dar um suspiro

-Este não incomoda mais!

Nisto chegou uma prenda

Mulher de rara beleza

Que me olhou com firmeza

E o meu corpo estremeceu

Deu-me tamanho pialo

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Aquele olhar fascinante

Eu não fugi do flagrante

E a polícia me prendeu

-Depois que eu saí da cadeia

Eu fui preso de novo nos braços dela!

Se não fosse aquele olhar

Eu garanto que fugia

Eu brigava mas não ia

Parar lá naquela prisão

Mas um olhar como aquele

Em qualquer parte do mundo

Em menos de dois segundos

Prende qualquer valentão.

A ERA DOS FESTIVAIS: SÉRGIO NAPP, CÉSAR PASSARINHO, JOSÉ

CLAUDIO MACHADO

SERGIO NAPP

Desgarrados

Eles se encontram no cais do porto, pelas calçadas

Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas,

Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas

E são pingentes das avenidas da capital.

Eles se escondem pelos botecos entre cortiços

E pra esquecerem contam bravatas, velhas histórias

E então são tragos, muitos estragos, por toda a noite,

Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho.

Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade

Viram copos, viram mundos, mas o que foi nunca mais será.

Cevavam mate, sorriso franco, palheiro aceso

Viraram brasas, contavam causos, polindo esporas,

Geada fria, café bem quente, muito alvoroço,

Arreios firmes e nos pescoços lenços vermelhos

Jogo do osso, cana de espera e o pão de forno

O milho assado, a carne gorda, a cancha reta

Faziam planos e nem sabiam que eram felizes.

Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho

Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade

Viram copos, viram mundos, mas o que foi nunca mais será

Retirante

Eu tenho as mãos calejadas

Algumas rugas no rosto

Aqui sou burro de carga

E nem sou dono de mim

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Eu tenho todo o espaço

Que os olhos podem tomar

Mas não consigo um pedaço

Que seja meu pra plantar

Não me fascina o luzeiro

Que eu possa achar na cidade.

Eu busco um prato de vida

E um gosto de liberdade.

O que me leva é o desejo

De me enxergar como igual

Aqui sou mero instrumento

Usado por serventia

Nas safras eu me alimento

Do gado sou dependente

Lá fora, por meu trabalho

Talvez eu venha a ser gente.

Não levo sonhos na mala

Nem vícios de valentia

Eu sei, me espera uma adaga

Que pode matar-me um dia

Me jogo inteiro assim mesmo

De corpo e de coração

No espelho das avenidas

Operário, e não peão.

Mala de garupa

Nesta mala de garupa, fumo em rama e um baralho,

Uma faca na bainha com a qual eu dou meus talhos

Vai num canto escondida uma ponta de saudade

Rapadura e erva mate e um bilhete pra cidade.

Lá no fundo guardo um sonho desses que jamais vingou

Uma funda e uma isca da pandorga, o que sobrou

Um punhado de caminhos e outras tantas geografias

Um pedaço de esperança mais um tanto de alegria

Vai um sol já meio gasto e uma rosa esquecida

Um lugar onde refaço meus estragos e feridas

Dentro dela meus retalhos, meus amores, minhas lidas

Nesta mala de garupa vai a vida, vai a vida.

Portas do sonho

Portas do sonho

quando abro as portas do sonho

sinto o gosto de liberdade

pés descalços, camisa aberta

mesas postas pelas varandas

e uma dor roendo meu peito

se fazendo sem ter razão

deve ser a dona alegria

campereando pelas coxilhas

entre avencas e samambaias

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pelas sangas, abrindo trilhas

maneirosa, dona alegria

redomando meu coração

geme gaita, chora, a viola corta

firme punhal de prata

espanta o medo, abre asas

e voa livre o meu coração

quando abro as portas do sonho

sopram ventos de rebeldia

trovoadas, raios e medos

ferve o sangue em meio aos receios

e depois em calma e riso

faz-se o canto paz e aconchego.

Me levando feito magia

a lugares que não sei mais.

É a vida em seu galope

me envolvendo redemoinho

É punhal que se crava lento

e abre em festa meu coração

geme gaita, chora, a viola corta

firme punhal de prata

espanta o medo, abre asas

e voa livre o meu coração

um grande abraço.

CÉSAR PASSARINHO

Causo sério

Nome: José de Tal...

Profissão: Peão Campeiro...

Idade: Uns setenta e pico...

-A la pucha, que o tempo, passou ligeiro!

E o velho peão, afinal

Terá sua compensação:

-No fim do mês, Funrural,

No fim da vida, abandono e solidão...

Agora é guardar os arreios,

Caseriar recordações,

Apartar-se do seu meio,

Enrrodilhar ilusões...

Lhe resta soltar pra o campo

Velhas lembranças sogueiras

Que o amargo exílio campeiro

De mansas, fez caborteiras.

Agora é esperar sua hora

Que sem demora há de vir...

- A velhice é um causo sério

Que o tempo nos conta sem rir!

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Galope dos sonhos

Liberdade é campo aberto

rédeas soltas, galopar

o longe está mais perto

para quem pode sonhar.

Alma adentro, campo afora,

no atropelo da razão

campereada não tem hora

na fronteira da ilusão.

Mas na raia desta vida

é preciso conciliar

a chegada tão festiva

e a partida sem chegar.

A galope vão os sonhos

do tropel do coração

deixam marcas de saudades

que jamais se apagarão.

Gineteando apaixonado

vai o sonho do amor

num flete colorado

que também é sonhador

por lugares encantados

um convite a ser feliz

velhos sonhos renovados

a campear outro matiz.

Mas no lombo do destino

em galopes desiguais

muitos sonhos de meninos

lembram tombos, nada mais.

A galope vão os sonhos

do tropel do coração

deixam marcas de saudades

que jamais se apagarão.

Que homens são esses

Que homens são esses

Que fogem à luta

Será que não sabem as glórias do pago

Que homens são esses que nada respondem,

que calam verdades, que reprimem afagos

Que homens são esses que trazem nas mãos

o freio, o cabresto, a rédea e o bucal?

Que homens são esses que têm o dever de fazer o bem,

mas só fazem o mal?

Eu quero ser gente igual aos avós

Eu quero ser gente igual aos meus pais

Eu quero ser homem sem mágoas no peito

Eu quero respeito e direitos iguais

Eu quero este pampa semeando bondade

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Eu quero sonhar com homens irmãos

Eu quero meu filho sem ódio nem guerra

Eu quero esta terra ao alcance das mãos

Que sejam mais justos os homens de agora

Que cantem cantigas, antigas e puras

Relembrem figuras sem nada temer

Procurem um mundo de paz na planura

E encontrem na luta, na força e na raça

Um novo caminho no alvorecer.

Desperta, meu povo, do ventre de outrora

Onde marcas presentes não são cicatrizes

Desperta, meu povo, liberta teu grito

Num brado mais forte que as próprias raízes

Eu quero ser gente igual aos avós

Eu quero ser gente igual aos meus pais

Eu quero ser homem sem mágoas no peito

Eu quero respeito e direitos iguais

Eu quero este pampa semeando bondade

Eu quero sonhar com homens irmãos

Eu quero meu filho sem ódio nem guerra

Eu quero esta terra ao alcance das mãos

Eu quero ser gente igual aos avós

Eu quero ser gente igual aos meus pais

Eu quero ser homem sem mágoas no peito

Eu quero respeito e direitos iguais

Eu quero este pampa semeando bondade

Eu quero sonhar com homens irmãos

Eu quero meu filho sem ódio nem guerra

Eu quero esta terra ao alcance das mãos

JOSÉ CLAUDIO MACHADO

Pedro Guará

Num lamento chegou o minuano

Anunciando o último inverno

O orvalho chorou nas campinas

E o céu enlutou as estrelas

Pedro Guará sentia mais forte

Cheiro da terra, o vento do sul.

Entrava no rancho o calor do braseiro

Mateava na espera do tempo chegar

Pedro Guará viveu aragano

Camperiando manhãs distantes

E passando plantava alegria

O riso ficava quando partia.

Pedro Guará partiu sem rastro,

Fruto maduro na volta pra terra

Rasgando um riso seu último gesto

Sumiu da serra não vai mais cantar.

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São as armas que conheço

Um lombilho, um baixeiro, cincha, peiteira e rabicho

buçal, cabresto e maneia e uma espora garroneira

mango, rédea e bocal são as armas que conheço

pra fazer um cavalo manso quando me entregam um bagual

ou uma junta de boi mansos, um arado, pula-toco.

Cangas, brochas, tamoeiros, uma regeira um cambão

machado, enxada e facão são as armas que conheço

pra fazer a terra bruta me dar o trigo pro pão.

Esteios, rimas, baldrames, travessas e cachorretes

caibros e pontaletes, gaipa, taquara e cipó

cupim, leiva em santa fé são as armas que conheço

pra fazer meu próprio rancho e deixar de viver só.

As plantas estão maduras, os meus cavalos domados

o meu rancho está plantado, só meu catre está vazio

quem sabe numa volteada eu encontre por aí

alguém que junto comigo seja feliz por aqui.

Sistema antigo

Um pouco de saudade lá do meu rincão

um gesto de carinho da gaúcha amada

um toque de cordeona e um bom chimarrão

um quera pacholenta pra contar cueradas

(Eira, eira, boi, tempo feliz que muito longe vai,

eira, eira, boi, no velho rancho do meu velho pai).

Antigamente se carneava um boi

se convidava toda a vizinhança

era uma festa de violão e gaita

lá pelas tantas começava a dança

e gauchada pela noite afora

faziam farra ate romper a aurora

(Eira, eira, boi, tempo feliz que muito longe vai

eira, eira boi tempo feliz que muito longe foi).

Quem se criou pelo sistema antigo

cá na cidade vive inconformado

e quando encontra algum gaúcho amigo

fala de tudo que lembra o passado

canta saudade do gorjeio triste

lembra do tempo que já não existe.

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ANOS 80 EM DIANTE: LUIZ MARRENCO, MARIO RUBENS BATANOLLI,

JAYME CAETANO BRAUN.

LUIZ MARRENCO

Meu rancho

Que alma tem o meu rancho

Por isso deixá-lo como

Pedaço de céu com terra

Folheado de cinamomos

Silêncio rodeado a berro

Solidão sem viver só

Madeirama de pau ferro

Toda atada com cipó

Mangueira de pedra moura

Que nunca mais ter fim

Um restingal de vassoura

Pôr de sol perto de mim

Coqueiral e caturrita

Galpão de fogo paxorro

E uma xirua bonita

Cavalo bom e cachorro...

Com chuva acorde e milonga

Consola o campo cedinho

Por aqui a noite é longa

E o dia devagarzinho

Quando eu saio mais que um dia

Este rancho é um ser vivente

Me recebe com alegria

Tem saudade como a gente.

O forasteiro

Na sombra de um bolicho à beira estrada,

Daqueles que do mundo se perdeu

Encontra-se uma gente reunida,

À espera de um chamado de seu Deus

Perfumes de bom fumo amarelido,

Paredes com suas almas penduradas

Paciências de um lugar envelhecido,

E uma coragem de quem não tem nada.

Apeia um forasteiro: ―O que é da vida?‖

Responde o bolicheiro: ―Está cansada‖

A gente de bombacha anda esquecida

Desiludida nos beirões da estrada

Buscamos nossa terra prometida

Um mundo pras crianças e pros velhos

O sul que nós sonhamos onde a vida

Devolva o que branqueou nossos cabelos.

Mas cada ano a seca de janeiro,

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Precede um novo inverno de asperezas

Parece que o destino do campeiro

Não pode pedir mais que pão na mesa

E, aos poucos, o que diz o bolicheiro

Se multiplica em vozes pelo ar

E volta a se calar o forasteiro,

Junta o violão no peito pra cantar:

―Já vi quase de tudo em minha vida,

Há séculos que ando pela estrada

Vi a morte sobre a terra prometida,

E a vida sobre a terra abandonada

Vi um homem pondo fogo na colheita,

Enquanto outro semeava num deserto

Já vi perto o que ontem era um sonho,

E longe vi o que sempre fora certo

Um povo sonha Deus a sua imagem,

E Deus devolve a terra a cada povo

Moldada no trabalho e na coragem

Que o povo usou pra levantar o sonho

Aqui é nosso inferno e paraíso,

A vida é uma planta por cuidar

Há que morrer por ela se preciso,

O sul somente o sul pode salvar‖.

Assim falou pro povo o forasteiro,

Depois montou e envolto num clarão

Sumiu emoldurado pela tarde,

Bem como o sol dissipa a serração

Uns dizem que mais altos que os cerros

Ele segue abençoando este rincão

Mas muitos acreditam que essa gente

Ouviu a voz do próprio coração.

O certo é que um a um se foi às casas,

Porque havia uma planta por cuidar

Arar a terra a cada madrugada,

Para a semente que há de germinar

O homem faz seu Deus, que faz o sonho,

Um sonho azul maior que este lugar

Na luz que vem dos olhos dessa gente,

O sul um dia se iluminará.

Milongão pra assobiar desencilhando

Silhueta de um fim de tarde, prenunciando a mesma sombra

Do tarumã bem copado contra o lado do galpão

Que larga fumaça branca no mais alto se desenha

De certo é cambona e lenha na porfia do fogão

A gateada apura passo no acôo da cuscada

Que faz festa com o retorno dos campeiros na mangueira

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Silêncio se vai aos poucos pelas esporas nas pedras

E os tinidos da barbela nos escarceios da oveira

Aos poucos, ouvem-se coplas num assobio compassado

Que entram galpão à dentro, depois voltam mais sonoras

Se vão tirando a carona, o xergão e entram mais calmas

Parecem que campo e alma se mesclam bem nessa hora

Água nos lombos suados, mais águas pras cambonas

E o galpão se para quieto pra escutar um campeiro

Depois do dia de lida, de invernada e rodeio

Sobra tempo pra um floreio e um assobio milongueiro

Um mate recém cevado, silencia o galpão grande

Reverenciando quietudes nas sombras que aquerenciei

E quem refaz o seu dia de bem com a vida no campo

Um pelego sobre um banco é mais que um trono de rei

Ficou um resto de pasto agarradito no freio

Esporas, mangos e laços e um silêncio esperando

Alguém de alma lavada a debruçar-se no violão

E tocar um milongão pra assobiar desencilhando.

Clarim farrapo- 1989

Meu canto é mais de que um canto

É um clarim farroupilha que tenho no coração,

De vez em quando se solta

Do corredor da garganta em noites de solidão.

Corto aramados de rumo

Na direção que mais quero

Eu sou mais livre que o vento

E que o cantar do quero-quero

Dos pelego faço a cama

Pois sou igual à sariama

Onde anoitece me apodero.

Hei de vagar a vida inteira

Enquanto houver no meu peito

Vontade e voz pra cantar

E um sorriso encabulado

De algum beiço pintado

Que surgiu quando eu cruzava.

Sou gaudério sim senhor

Vivo nos corredores tomando café em cambona

Namorando às madrugadas

Desafogando minhas mágoas no focote da cordeona.

Meu canto é mais de que um canto

É um clarim farroupilha que tenho no coração,

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De vez em quando se solta

Do corredor da garganta em noites de solidão.

Tetéias de minha infância

Espora, estribo, bocal e rédea larga

Foram teteias que marcaram minha infância

Quando um potro saísse dando volta

Empurrando o lombo em frente da velha estância

Minha esporas de sete dentes cravadas

Que eu usava pra matungo que aporreava

Uma feria e a outra vinha cortando

E no caminho geralmente se encontrava,

De madrugada quando aponta a estrela d‘alva

De muito longe se ouvia um potro berrando

E um piazito que no seu lombo ia firme

Espora e mano de atrofia iam cantando.

Espora, estribo, bocal e rédea larga

Foram teteias que muito estimei

Hoje rapaz de trinta e poucos anos

Perdi a conta dos bagual que já domei.

MARIO RUBENS BATANOLLI - MANO LIMA

Minha pátria

Eu sou gaúcho e brotei do vento e da pampa

cresci peleando abraçadito num fuzil

de bombacha e de chapéu de aba larga

por muitas vezes já defendi meu Brasil.

Por igualdade já peleei com meus irmão

tive meu corpo todo coberto de chaga

mas enjeitei ajuda de outras nação

pra não ferir a pátria que eu tanto amava

E o que mais me deixa triste meus amigos

é que meu nome a história não escreveu

pra quem não sabe, eu sou o Rio Grande do Sul

e não existe mais brasileiro que eu.

Um homem fora do tempo

É na fumaça que se conhece um taura

É neste mundo que quero mostra quem sou

Se é na guerra que o soldado pega nome

Pois foi na guerra que o gaúcho se criou.

Tem o gaúcho da boca pra fora

Mas também tem o que é do coração pra dentro

Se tem o cerne na garganta, é de pau ferro

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Por isso berro e, quando canto, me sustento.

O homem foge dos seus princípios

E o mundo corre em direção à perversidade

Se vivo peleando solito é porque sou peão de estância

E trago de herança o respeito e a hombridade.

Quando a moral se entrega,

O homem chega ao seu próprio fim

Mas debaixo da macega

Se esconde o melhor do capim.

Debaixo do meu sombreiro tem um bugre missioneiro

peleando dentro de mim

Já de cavalo aplastado

Venho bem cortado

E não vou me entregar

Só com o cabo da adaga

Meu corpo é uma chaga

De tanto pelear!

Bolicheiro, me dê um trago

Pra me clarear a visão

E um punhadito e bala

Pra arrumar a fala do meu "nagão"

Que me valeria a vida

Se do perigo eu fosse disparar?

O que vale a liberdade

Pra quem é covarde e não sabe pelear?

Um homem o mundo não leva

Quando tem sangue nas veia

Eu venho vindo da terra

Onde o touro berra e o taura peleia,

Amigo, bote otro trago

E saiba porque peleei

Foi porque os home mudaram

E se acadelaram e eu não acompanhei.

Rancho de vidraça "A gente somos cada um universo"

disse uma prenda num princípio de namoro

e eu disse a ela: "Venho do Rio Grande véio,

da tropa alçada e dos índio marca-toro.

O meu bigode tá branco não é do tempo

bombeia bem, que isso é farinha de mandioca.

Eu me criei só com tutano de chibo

e galopeando cuiúdo com massaroca‖.

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Ela me disse "Há momentos maior aquele,

de circunstância e de principalmente...

A gente tem que mantê o nível e a cultura,

pras criatura não pisá em riba da gente.‖..

Eu disse a ela: "Só o que me cruza por riba,

é alguma égua, quando as vez plancha comigo.

Sai corcoveando, se quexando campo a fora,

igual muié quando apanha do marido.

E assim se fomo naquela seca baguala,

de "laranjóide" e de "pessigueróides"...

Eu dando pau tipo bicho em égua aporreada

E o namoro se arrumô bem nos conforme...

No rancho do coração

Deus após criar o mundo ficou pensando ao matear

Em que rincão escolher um ranchito pra morar

Depois de muito pensar solito na madrugada

Em cada coração humano se arranchou e fez morada.

Não deixa tua pessoa campear Deus só quando chora

Visite ele diariamente, não somente nesta hora.

Não siga falsos profetas que vendem ele aqui fora

No rancho do coração, dentro de ti que ele mora.

Siga o sinuelo do bem, derrame onde for seu unto

Para que o homem e poder um dia ainda vivam junto

Lute por um mundo justo sem ganância ou mexerico

Onde o pobre deixe de ser dominado pelo rico.

Por isso eu falo com Deus diariamente lado a lado

Num mundo já carcomido pelo cupim do pecado

Falado:

Não me venha com lorota de bruxa e de lobisomem

O pecado é sempre o mesmo embora tenha vários nomes;

Como dizia um paisano que por teres sede e fome

Que viu as desigualdades de cascatas e sobrenomes

Não tenho conta com Deus, minhas contas são com os homens.

JAYME CAETANO BRAUN

Meu Rancho

É a sina dos tapejaras

Essa de beber mensagens

Que o vento traz nas aragens

Do fundo da noites claras

Bordoneando nas taquaras

Ou pelas frinchas da porta

Porque reanima e conforta

O velho sangue guerreiro.

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E se eu nasci missioneiro

O demais pouco me importa.

Nasci no meio do campo

Na costa do banhadal

Dentro dum rancho barreado

De chão duro e desigual

Meu berço foi um pelego

Sobre um couro de bagual.

Bebi leite na mangueira

Numa guampa remachada

E acavalo num tição

Me aquentei de madrugada

Enquanto o vento assobiava

Nos campos brancos de geada.

Brinquei com gado de osso

Na sombra do velho umbu

E assim volteando um amargo

E o churrasco meio cru

Fui crescendo e me orgulhando

De ter nascido um chiru.

Depois de andar gauderiando

Por muita querência estranha

Hoje vivo no meu rancho

Na humildade da campanha

Junto à chinoca querida

E um cusco que me acompanha.

É meu vizinho de porta

Um casal de quero-quero

Por isso embora índio pobre

Bem rico me considero.

Tendo china, pingo e cusco

No mundo nada mais quero.

Na estaca em frente do rancho

Dorme o pingo, meu amigo

Companheiro que eu adoro,

Prenda guasca que bendigo

Pois alegrias e penas

Sempre reparte comigo.

E quando de noite, a lua

Vem destapando meu rancho

Agarro na gaita velha

Que guardo erguida no rancho

E dando rédeas ao peito

Num vanerão me desmancho.

E ali pela solidão

Onde meu canto escramuça

Parece que a noite velha

Cheia de mágoas soluça

E a própria lua pampeana

No santa fé se debruça.

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E meu verso é como o vento

Que vai dobrando as flexilhas

E floreia compadresco

O hino destas coxilhas

Entre os buracos de bala

Do pavilhão farroupilha.

É mesmo que bombeador

Dos piquetes de vanguarda

Que vem abrindo caminho

Pelas tropas da retaguarda.

Enquanto a cordeona chora

Meu cusco fica de guarda.

Mas pra deixar o sossego

Do meu rancho macanudo

Basta só a voz de um clarim

Com china e cusco me mudo

Pra defesa do Rio Grande

Que adoro acima de tudo.

Bochincho

A um bochincho - certa feita,

Fui chegando - de curioso,

Que o vicio - é que nem sarnoso,

nunca pára - nem se ajeita.

Baile de gente direita

Vi, de pronto, que não era,

Na noite de primavera

Gaguejava a voz dum tango

E eu sou louco por fandango

Que nem pinto por quireral.

Atei meu zaino - longito,

Num galho de guamirim,

Desde guri fui assim,

Não brinco nem facilito.

Em bruxas não acredito

'Pero - que las, las hay',

Sou da costa do Uruguai,

Meu velho pago querido

E por andar desprevenido

Há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé,

De pau-a-pique barreado,

Num trancão de convidado

Me entreverei no banzé.

Chinaredo à bola-pé,

No ambiente fumacento,

Um candieiro, bem no centro,

Num lusco-fusco de aurora,

Pra quem chegava de fora

Pouco enxergava ali dentro!

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Dei de mão numa tiangaça

Que me cruzou no costado

E já sai entreverado

Entre a poeira e a fumaça,

Oigalé china lindaça,

Morena de toda a crina,

Dessas da venta brasina,

Com cheiro de lechiguana

Que quando ergue uma pestana

Até a noite se ilumina.

Misto de diaba e de santa,

Com ares de quem é dona

E um gosto de temporona

Que traz água na garganta.

Eu me grudei na percanta

O mesmo que um carrapato

E o gaiteiro era um mulato

Que até dormindo tocava

E a gaita choramingava

Como namoro de gato!

A gaita velha gemia,

Ás vezes quase parava,

De repente se acordava

E num vanerão se perdia

E eu - contra a pele macia

Daquele corpo moreno,

Sentia o mundo pequeno,

Bombeando cheio de enlevo

Dois olhos - flores de trevo

Com respingos de sereno!

Mas o que é bom se termina

- Cumpriu-se o velho ditado,

Eu que dançava, embalado,

Nos braços doces da china

Escutei - de relancina,

Uma espécie de relincho,

Era o dono do bochincho,

Meio oitavado num canto,

Que me olhava - com espanto,

Mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio,

Pois era dele a pinguancha,

Bufando e abrindo cancha

Como dono de rodeio.

Quis me partir pelo meio

Num talonaço de adaga

Que - se me pega - me estraga,

Chegou levantar um cisco,

Mas não é à toa - chomisco!

Que sou de São Luiz Gonzaga!

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Meio na volta do braço

Consegui tirar o talho

E quase que me atrapalho

Porque havia pouco espaço,

Mas senti o calor do aço

E o calor do aço arde,

Me levantei - sem alarde,

Por causa do desaforo

E soltei meu marca touro

Num medonho buenas-tarde!

Tenho visto coisa feia,

Tenho visto judiaria,

Mas ainda hoje me arrepia

Lembrar aquela peleia,

Talvez quem ouça - não creia,

Mas vi brotar no pescoço,

Do índio do berro grosso

Como uma cinta vermelha

E desde o beiço até a orelha

Ficou relampeando o osso!

O índio era um índio touro,

Mas até touro se ajoelha,

Cortado do beiço a orelha

Amontoou-se como um couro

E aquilo foi um estouro,

Daqueles que dava medo,

Espantou-se o chinaredo

E amigos - foi uma zoada,

Parecia até uma eguada

Disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato

Dum bochincho - quando estoura,

Tinidos de adaga - espora

E gritos de desacato.

Berros de quarenta e quatro

De cada canto da sala

E a velha gaita baguala

Num vanerão pacholento,

Fazendo acompanhamento

Do turumbamba de bala!

É china que se escabela,

Redemoinhando na porta

E chiru da guampa torta

Que vem direito à janela,

Gritando - de toda guela,

Num berreiro alucinante,

Índio que não se garante,

Vendo sangue - se apavora

E se manda - campo fora,

Levando tudo por diante!

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Sou crente na divindade,

Morro quando Deus quiser,

Mas amigos - se eu disser,

Até periga a verdade,

Naquela barbaridade,

De chinaredo fugindo,

De grito e bala zunindo,

O gaiteiro - alheio a tudo,

Tocava um xote clinudo,

Já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim,

Balanceei a situação,

- Já quase sem munição,

Todos atirando em mim.

Qual ia ser o meu fim,

Me dei conta - de repente,

Não vou ficar pra semente,

Mas gosto de andar no mundo,

Me esperavam na do fundo,

Saí na Porta da frente...

E dali ganhei o mato,

Abaixo de tiroteio

E inda escutava o floreio

Da cordeona do mulato

E, pra encurtar o relato,

Me bandeei pra o outro lado,

Cruzei o Uruguai, a nado,

Que o meu zaino era um capincho

E a história desse bochincho

Faz parte do meu passado!

E a china - essa pergunta me é feita

A cada vez que declamo

É uma coisa que reclamo

Porque não acho direita

Considero uma desfeita

Que compreender não consigo,

Eu, no medonho perigo

Duma situação brasina

Todos perguntam da china

E ninguém se importa comigo!

E a china - eu nunca mais vi

No meu gauderiar andejo,

Somente em sonhos a vejo

Em bárbaro frenesi.

Talvez ande - por aí,

No rodeio das alçadas,

Ou - talvez - nas madrugadas,

Seja uma estrela chirua

Dessas - que se banha nua

No espelho das aguadas!

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Chimarrão do sem destino

Meu amigo - meu irmão,

de campo - serra e fronteira,

alma da terra e tronqueira,

da gaúcha tradição,

prepara o teu chimarrão

pra que o mundo inteiro tome.

Mate amargo! santo nome

na religião dos andejos,

os que beberam teus beijos,

não podem morrer de fome!

Poder não deve - mas pode,

não há quem dome o destino,

o índio do campo fino,

como o da barba de bode

que fez dum fio de bigode

seu código e documento,

agora é um paria ao relento,

sobra de tempo e de guerra,

porque os que domam a terra

não constam do testamento!

Tetraneto dos andantes

que domaram a lonjura,

testemunhas da escritura

das epopeias de dantes,

hoje - apenas retirantes,

sem nada - além de ser nada;

a tropilha desgarrada,

sem rumos - analfabetos

que se integram nos decretos

da história desmemoriada!

O mate é teu - desgarrado,

da esperança e da fortuna,

aqui no fogão - tribuna,

de todo o abandonado,

te vejo triste - atirado,

lembrando o pago - talvez,

e o que o destino te fez,

ao te apartar da querência,

sem quebrar - nem na indigência,

essa bárbara altivez!

Essa altivez que te resta

pode durar muito mais,

pois te sobram credenciais,

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além do ser que protesta,

a preocupação na testa

e os olhos queimando luz,

talvez pensando em gurus,

estranhos aos teus terreiros,

ou - talvez - nos entreveros

dos nazarenos sem cruz!

Atrás o tempo - a lembrança

do "não tem mais" da tapera,

na frente - a incerteza - a espera,

mas ninguém come a esperança;

o choro de uma criança,

o leite - o pão que não há,

salário - se tem - não dá,

teu viver não vale um real;

mísero inseto social

em qualquer parte onde vá!

Eu sonho - taura charrua,

te ver pelear - sem violência,

dentro da lei da consciência,

na pátria que é nossa - é tua;

sair como um livre à rua,

não pra matar ou morrer,

mas pra exigir - pra dizer

que tu mereces respeito

e - como tal - tens direito,

como os demais - de escolher!

Acredito nos escoros

que ainda firmam o garrão,

no primitivo padrão

desta querência de touros;

gringos - lusitanos - mouros,

dos quais a gente descende,

como a brasa que reacende,

dentro da cinza dormida:

uma vida - além da vida

que não morre - nem se vende!

Sangue farrapo

Foi sempre assim no campo aberto,

muitos anos guardando as linhas da fronteira

que empurrava os índios, tigres, as peleias,

castelhanos, primeiro sempre quando a pátria me chamava.

mas o descaso do império cresceu tanto

que alcei um grito de que querência e geografia

compondo um hino de legenda no meu canto

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que fez tremer de cima a baixo a tirania.

choraram mães, pelearam pais, irmãos e filhos

porque aos tiranos pouco importa a dor alheia

e andei dez anos no calvário da peleia

na guerra santa dos monarcas dos lombilhos.

até o negrinho das formigas compreendia

no pastoreio meus anseios de índio guapo

em cada nota do meu canto que dizia que eu era pátria, era Rio Grande, era

farrapo.

Levou dez anos para entender a monarquia

essa epopeia que escrevi de lança em punho

que a história presta com respeito o testemunho

que era ser pátria apenas mente o que eu queria.

Hoje quer seja funcionário, ou operário,

ou da cidade, ou da lavoura,

ou do rodeio, ante os que aviltam o trabalho

e o salário, se me obrigarem a escolher volto e peleio.

Querência tempo e ausência

No cartão de procedência,

Pouco importa onde nasci,

Busquei rumo e me perdi,

Querência, minha querência,

Desde então me chamo ausência,

Porque me apartei de ti.

Como cavaleiro andante,

Das léguas que caminhava,

Sempre que me aproximava,

Do sonho correndo adiante,

Mais me sentia distante,

Daquilo que procurava!

Quem vira mundo não para,

Nem tampouco desanima,

Há uma lei que vem de cima,

Na estrada do tapejara:

O tempo que nos separa,

É o que mais nos aproxima,

Quem vira mundo não para,

Nem tampouco desanima...

E nesse andejar em frente,

Sem procurar recompensa,

Fui vendo - na diferença,

Entre passado e presente,

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Que a lembrança de um ausente,

Tem mais força que a presença!

Já no final da existência,

Saudade - tempo e distância,

Pra conservar a fragrância,

Da primitiva inocência,

Me tornei canto de ausência,

Querência da minha infância.