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Páginas iniciais do livro "O que são os ervais" de Rafael Barrett. Tradução e prefácio ("Sobre fronteiras e ervais: cem anos sem Barrett") de Alai Garcia Diniz. Desterro: Cultura e Barbárie (coleção ARQUIVOS), 2012. 56pgs. http://www.culturaebarbarie.org/ervais.html

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O que são os ervais

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O que são os ervais

Rafael Barrett

Cultura e BarbárieDesterro, 2012

ColeçãoArquivos

Page 4: O que são os ervais, de Rafael Barrett

Editora Cultura e BarbárieR. José João Martendal, nº 145 / 304Carvoeira - 88040-420Florianopolis/[email protected]

Título OriginalLo que son los yerbales

TradutoraAlai Garcia Diniz

RevisãoRodrigo Lopes de Barros, Leonardo D’Avila

CapaRenato Wilmers de Moraes

B274o Barrett, Rafael O que são os ervais / Rafael Barrett ; tradutora Alai Garcia Diniz. – Desterro, Florianópolis : Cultura e Barbárie, 2012. 55 p. – (Coleção Arquivos)

Tradução de: Lo que son los yerbales Inclui bibliografia ISBN: 978-85-63003-04-1 1. Literatura hispano-americana. 2. Ensaios. I. Diniz, Alai Garcia. II. Título. CDU: 860(7/8)

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

Conselho EditorialAlexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila de Oliveira, Rodrigo Lopes de Barros

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Índice

Sobre fronteiras e ervais: cem anos sem BarrettAlai Garcia Diniz 7

O que são os ervais Rafael Barrett 25

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Sobre fronteiras e ervais: cem anos sem Barrett

Alai Garcia Diniz

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Como se escreve o terror? Há gêneros literários ou fílmicos que se dedicarão a provocar a sensação de medo e pavor nos leitores ou espectadores, mas como compreender a série de crônicas de tom ensaístico, publicadas em El Diario de Assunção entre 15 e 27 de junho de 1908, cuja edição levou o título de O que são os ervais? No começo do séc. XX, em uma região ainda marcada pelo pós-guerra, próximo do Centenário, que efeito busca essa crônica de denúncia contra as relações de trabalho transfronteiriças, que para a mentalidade europeia supõe um anacronismo? Mirando esse viver e fazendo circular o tema em uma rede rio-platense anarquista daquele tempo, esses textos têm como linhagem a escritura em ação do modelo francês de Émile Zola com a crónica J´accuse (1898) em defesa do oficial judeu Dreyfus, ao sustentar um certo tipo de periodismo intelectual de Rafael Barrett recondicionado na tríplice fronteira. E de onde vem esse

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discurso, se dificilmente o encontro nas mais conhecidas historiografias da literatura latino-americana? Barrett, engenheiro civil ainda que sem diploma, com escassa produção ensaística na Revista Contemporánea, por causa de um escândalo que involucra preconceitos e resquícios de uma fidalguia cavalheiresca que combina duelos e tribunais de honra, torna-se um transterrado e escolhe a América do Sul para refazer sua vida. Para sobreviver, ataca de periodista na Argentina, Uruguai e Paraguai. Imigrante espanhol que em 1903 aporta em Buenos Aires, deixa apenas dois livros publicados em vida, Moralidades Actuales e Lo que son los yérbales, no entanto, em 1911, depois de sua morte surge El dolor paraguayo, preparado por ele antes de sucumbir à tuberculose em Arcachon. No entanto, esses dados biográficos não implicam entender o discurso de múltipla heterogeneidade entre uma língua que se estabiliza hegemonicamente e uma busca de descentramento: uma língua que não se fecha sobre si mesma a não ser em uma função de impotência.1 A construção da fronteira entre línguas e produtos culturais demonstra a abertura que se firma entre o Centenário e o Bicentenário em termos fronteiriços.

Assim, as crônicas sobre os ervais marcam um discurso de protesto, carregado de exclamações, que oprime como

1  Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esqui-zofrenia. vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 16.

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11Sobre Fronteiras e Ervais

um manifesto e, mais que descrever um terror local que se desloca nas relaciones sociais, quer provocar uma reação. Nesse sentido, vigila e faz das letras arma em um intento quixotesco contra os gigantes (sejam ou não moinhos de vento). A essa classe de textualidade criada por Barrett – que se compõem de fragmentos, ou se preferirem, de breves relatos sobre um único tema (nesse caso, os ervais) que se pode ler separada ou conjuntamente, bem como em espiral, e que deseja provocar no leitor uma reação de cumplicidade – dou o nome de crônica ácrata. Ácrata por negar o poder que condicionaria a crônica ao espaço circunscrito da imprensa, cuja propriedade, em geral, marca-se em conexão com a elite; ácrata por desafiar um poder sem negociar por migalhas. Ácrata por apropriar-se de uma potência discursiva como poder. Ácrata pela utopia da modernidade.

Esse conjunto de textos breves sobre os ervais, por exemplo, interpela o poder e o otimismo da modernidade sul-americana e, ao obedecer à fragmentação do formato, suscita novas considerações, invocando o leitor a contemplá-lo com as suas próprias. Ao invés de contribuir a exaltação ao redor da modernidade, como aquela da indústria da extração de erva mate, a crônica atinge o leitor com o discurso contra a escravidão, tortura e morte do peão ervateiro. E o transgressivo dessa crônica ácrata é não vincular a denúncia a uma indústria

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específica, a Cia. Industrial Paraguaia ou a Matte Laranjeira e outros latifundiários, mas o texto atravessa e supera a fronteira, com tranquilidade, para denunciar os métodos transnacionais em uso por esse setor de extração vegetal. Nesse sentido, alcança nosso tempo. Numa publicação de 2008, alcança também o público europeu (no caso ibérico), com uma publicação quase um século mais tarde,2 e parece ser uma das primeiras intenções do enunciador que começa sua reportagem com a desconstrução do esquema de poder sobre a situação dos escravos ervateiros desde o estudo dos decretos do governo de Juan B. Gil Rivarola, de 1871, comprovando em seguida as relações de parentesco entre os governantes e os fiscais, e a análise de outro decreto de 1901 que agrega a proibição de que o peão abandone o trabalho “sob pena de danos e prejuízos aos patrões”.3 O “repórter” faz um percurso que vai da macro à micropolítica e passa do discurso crítico sobre a lei (Estado) aos modos de como se produziam o recrutamento: “de quinze a vinte mil escravos de diferentes sexos e idades se extinguem atualmente nos ervais do Paraguai, da Argentina e do Brasil. As três repúblicas estão sob idêntica ignomínia. São mães negreiras de seus filhos”.4

2  Barrett, Rafael. Hacia el porvenir. Cáceres: Periférica, 2008.3  Barrett, Rafael. O que são os ervais. Presente edição. p. 32.4  Ibidem, p. 34.

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13Sobre Fronteiras e Ervais

E aqui vem o impasse dos estudos transfronteiriços ou de comarcas culturais, já não me serve estudar apenas esse discurso como parte de um único âmbito, o paraguaio? Ou de um único texto, o barretiano? Mas buscar a cartografia de uma tríplice fronteira para circular textos invisíveis e que interpelem uns aos outros em uma espécie de raiz aérea que pode ler filmes, escrituras (que enunciam um prisma entre distintas naturezas), territórios cognoscitivos e arte, em uma política heterogênea sobre os procedimentos que circulam entre os produtos culturais, entre séculos e espaços híbridos, entre imaginários e coletivos, entre esquecimento e memória.

Em sua multiplicidade, vejo limiares e, como em um ritmo que aponta a outras lógicas, cosmogonias e montagens.

A certa altura, Barrett encontra a metáfora do “fardo que caminha” (peão ervateiro) e que impulsionado pela necessidade laboral atravessa a tríplice fronteira, e pinta-se o inferno em cores do Eldorado para instalar um tipo de mercado de brancos. E um dos métodos é a “antecipação” nas relações rurais que transcende a tríplice fronteira e chega com algumas distinções a outras comarcas latino-americanas (a Amazônia ficcionalizada por tantos, como o lusitano Ferreira de Castro em A selva (1930) e, no século XXI, com as chacinas na fronteira do norte do México em Ciudad Juárez por exemplo. Assim que, para

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Barrett, graças à antecipação, o peão chega ao “frenesi funerário [...] abraça-se a rameiras tão infelizes como ele, roída[s] pela sífilis, eis aqui o sorriso derradeiro do mundo dos condenados aos ervais”.5

Desde outro prisma, há o enfoque de José de Mello e Silva, que evoca: “em cerca de um terço de território de Dourados e Ponta Porã os altivos... ervais matogrossenses, orgulho nativo, morada de esperanças nacionais”.6 O recorte positivista do nacionalista exacerbado do lado brasileiro apela a uma figuração heroica e romântica para tratar do “guarani como o ser resistente e corajoso, lá ninguém o imita no trabalho dos ervais”.7 Embora em outros momentos, ele traga um discurso pródigo em preconceitos: “os guaranis paraguaios não encontram obstáculos em transpor as nossas fronteiras que são francamente abertas e abandonadas... vivem em nossa pátria como em sua própria terra. Talvez, até se compenetrem de que sua casa é todo o continente sul-americano”.8

O juiz cearense, embora tenha penetrado na fronteira guarani, não a legitima a partir da lei branca, civilizada e

5  Ibidem, p. 36.6  Mello e Silva, José de. Fronteiras guaranis (com um estudo so-

bre o idioma guarani ou Avañe-ê). São Paulo: Imprensa Metodista, 1939. p. 101.

7  Ibidem, p. 107.8  Ibidem, p. 121.

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15Sobre Fronteiras e Ervais

excludente que rechaça o nomadismo indígena e o direito ancestral ao movimento do caminhar sobre a terra como modo de possuí-la. E abrir a fronteira a muitos caminhos circulares conectados a uma cosmogonia, que vem da orientação do sol, da água e da busca de uma Terra sem Mal: “Yvy Marae ‘ỹ”.

Enquanto a crônica ácrata pinta com tintas escuras e graves o trato do peão recrutado pelos racoleurs para os ervais; de concepção integralista é o otimismo grandiloquente de Mello e Silva, em 1939, sobre a Companhia Matte Laranjeira e o novo papel desse ser “operário guarani”: “Mais ou menos nómade, ele se reveza num enxamear constante... e lá se encontra ele, sempre alegre, folgazão, antarolando ou gritando, quase alheiado ao seu destino, nas horas vagas casado a um violão, bebendo chimarrão ou tererê e sempre falando a sua língua – avañe-ê”.9

E pergunto-me: onde se encontra esse trabalhador indígena de que fala Mello e Silva trinta anos depois? O contato gradual e lento com o branco o trouxe desde a selva para os ervais, coisa que não havia no tempo de Barrett? Num olhar de jornalista cântabro há um modo subliminar de hierarquizar moralmente o indígena sobre o peão ervateiro?

9  Ibidem, p. 108.