o que É filosofia? - caio prado jr
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PRADO Jr., Caio.
O que é filosofia.
São Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37).
Créditos: Indisponíveis
Revisão: PDL
O que é filosofia* * Texto originalmente publicado no Almanaque, nº 4, Ed. Brasiliense, 1977.
Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de "Filosofia" , talvez um para cada autor de
certa expressão, e que à vagueza das formulações acrescentam às vezes até posições contraditórias,
não precisamos procurar aí a incerteza e imprecisão que reinam e, sobretudo em nossos dias, no que
concerne o objeto da especulação filosófica. Muito mais ilustrativa é a consulta aos, textos filosóficos
ou qualquer exposição ou análise do desenvolvimento histórico do assunto. De tudo se trata, pode-se
dizer, ou se tem tratado na "Filosofia", e até os mesmos assuntos, ou aparentemente os mesmos, são
considerados em perspectivas de tal modo apartadas uma das outras que não se combinam e
entrosam entre si, tornando-se impossível contrastá-las. Para alguns, essa situação é não apenas
normal, mas plenamente justificável.
A Filosofia seria isso mesmo: uma especulação infinita e desregrada em torno de qualquer
assunto ou questão, ao sabor de cada autor, de suas preferências e mesmo de seus humores. Há
mesmo quem afirme não caber à Filosofia "resolver", e sim unicamente sugerir questões e propor
problemas, fazer perguntas cujas respostas não têm maior interesse, e com o fim unicamente de
estimular a reflexão, aguçar a curiosidade. E já se afirmou até que a Filosofia não passava de uma
"ginástica" do pensamento, entendendo por isso o simples exercício e adestramento de uma função,
no caso, o pensamento em vez dos músculos , sem outra finalidade que essa.
Apesar, contudo, de boa parte da especulação filosófica, particularmente em nossos dias,
parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente não é verdadeiro. Há sem dúvida um terreno
comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem entendido como tal, se confunde com a literatura (no
bom sentido, entenda-se bem) e não objetiva realmente conclusão alguma, destinando-se tão
somente, como toda literatura, a par do entretimento que proporciona, levar aos leitores ou ouvintes, a
partir destes centros condensadores da consciência coletiva que são os profissionais do pensamento,
levar-lhes impressões e estados de espírito, emoções e estímulos, dúvidas e indagações. Mas esse
terreno que a Filosofia, ou pelo menos aquilo que se tem entendido por "Filosofia", compartilha com a
literatura, não é toda Filosofia, nem mesmo, de certo modo, a sua mais importante e principal parte. E
nem ao menos, a meu ver, com todo interesse que possa representar, constitui propriamente
"Filosofia", e deveria antes se confundir, na classificação, e às vezes até mesmo na designação, com a
mesma literatura com que já apresenta tantas afinidades.
Mas conserve embora a Filosofia literária sua qualificação e status, é necessário que a par dela
e com ela se desenvolva também uma Filosofia de outro teor que dê resposta, e na medida do
possível, precisa, às questões que efetivamente nela se propõem. A Filosofia pode a rigor ser tratada
literariamente, como pode sê-lo a Ciência e o conhecimento em geral. Mas que isso seja forma, e não
fundo. Esse fundo é outra coisa que, apesar de tudo, se percebe em todo verdadeiro filósofo, por mais
que se disfarce num pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que
se percebe sobretudo na Filosofia em conjunto como maneira específica de tratar dos assuntos de que
se ocupa, por mais variados e díspares que sejam. Com toda sua heterogeneidade, confusão e
hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acessível unicamente a iniciados,ou
antes, por eles julgados acessíveis, mais do que acessíveis de fato , com tudo isso, a Filosofia
encontra ressonância tal que, se não fosse outro o motivo, já por si bastaria para comprovar que nela
se abrigam questões que dizem muito de perto com interesses e aspirações humanas que devem, por
isso, ser atendidos, e não frustrados pela ausência ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros
da parte daqueles que se ocupam do assunto.
Mas onde encontrar esse "objeto" último e profundo da especulação filosófica para o qual
converge e onde se concentra a variegada problemática de que a Filosofia vem através dos séculos e
em todos os lugares se ocupando; e de que trata ? E muito importante determiná-lo, porque isso
pouparia esforços que tão freqüentemente se perdem em indagações inúteis ou mel propostas; e que,
concentrados na direção de um alvo legítimo e claramente definido, reuniriam um máximo de
probabilidades de atingirem esse alvo, ou pelo menos de o aproximarem. Existirá contudo esse objeto
central e legítimo de toda a especulação filosófica, um denominador comum que embora disfarçado e
mal explícito, orienta mais ou menos inconscientemente aquela especulação? Acredito que sim, e a
sua determinação constitui tarefa necessária e preliminar da indagação filosófica; e, certamente,
mesmo que não chegue logo a uma precisão rigorosa (se é que ela é possível), será por certo de
resultados altamente fecundos.
O ponto de partida dessa determinação deve ser, para nada perder em objetividade, a
consideração e exame do próprio conteúdo e desenvolvimento daquilo que se tem por pesquisa
filosófica e do Conhecimento em geral. Mais comumente a Filosofia é tida como uma complementação
da Ciência e da elaboração cognitiva em geral; como seu coroamento e síntese. Esse conceito da
Filosofia se encontra aliás mais ou menos expressamente formulado em boa parte das definições e
explicações que dela se dão, e partidas dos mais afastados e mesmo antagônicos quadrantes. Até
mesmo o séc. XVIII, e talvez o seguinte, Filosofia ainda se confundia com Ciência; e das filosofias
particulares (como por exemplo a "filosofia química", que não é senão a nossa Química,
simplesmente) passava-se imperceptivelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor
naquilo que hoje entenderíamos mais especificamente como "Filosofia".
Que a Filosofia é Conhecimento, e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as
ciências em geral, não há dúvida. Mas tudo está nessa restrição "de certa forma". isso porque a
Filosofia não é e não pode ser, logo veremos por que, simplesmente prolongamento da Ciência, uma
"superciência" que a ela se sobrepõe e que a completa. Não há lugar para esse simples
prolongamento. Ou melhor, qualquer legitimo prolongamento da Ciência é e sempre será, tudo indica,
Ciência e não outra coisa. Isso se pode concluir do fato que o desenvolvimento da Ciência, quando se
excluem indevidas extrapolações, se faz sempre num sentido único que é o da crescente
generalização. E não há nenhum ponto fixado, no passado, ou previsível no futuro, nem mesmo
fronteira difusa naquele processo além do qual não caberia mais falar em Ciência propriamente. A
história da Ciência nos mostra que sua marcha e progresso vão uniformemente no sentido da
elaboração de conceitos, ou melhor "conceituação" cada vez mais abstrata e geral. Isto é, de sistemas
conceptuais mais inclusivos, que por sso mesmo cobrem e representam conjuntos mais amplos da
Realidade universal ,não no sentido de ais extensos simplesmente, quantitativamente maiores, e sim
mais complexos e abrangentes, de feições mais diferenciadas. Comparam-se a esse propósito os dois
setores do Conhecimento que se encontram contemporaneamente nos extremos da linha ascendente
do progresso científico: de um lado as Ciências sociais, de outro as físicas. No primeiro desses setores
encontramo-nos em face de um conhecimento empírico ainda solidário, diretamente, com dados
imediatos da observação e experimentação. A conceituação representativa desses dados que refletem
os fatos sociais é de insignificante generalidade; os conceitos que a constituem se entrosam mal e
frouxadamente entre si, e não se englobam em sistemas amplos capazes de formarem, por sua vez,
outros tantos conceitos de mais elevado nível de abstração e generalidade.
Confronte-se essa situação com a das Ciências físicas e de seus imponentes sistemas
conceptuais que cobrem e compreendem, representando-os conceptualmente, extensos e
amplamente diversificados aspectos e feições da Realidade universal. Considere-se em particular o
progresso recente dessas Ciências no sentido de uma precipitada generalização, que já hoje
compreende (embora ainda falte um bom caminho para a complementaçáo e integração sistemática
total do assunto) o conjunto das Ciências fisico-quimicas que há algumas décadas passadas ainda se
confinavam em esferas estanques e impenetráveis uma à outra.
Observando-se esses fatos da marcha progressiva do Conhecimento e da Ciência, o que se
verifica é a homogeneidade desse progresso. E da i se pode concluir a respeito da homogeneidade
também do conhecimento científico, de sua natureza, caráter e estrutura, que são sempre uniformes e
do mesmo padrão. Onde pois o hiato ou transformação qualitativa suficientemente acentuado para
justificar, nesse processo de desenvolvimento e aprofundamento do Conhecimento, a eventualidade
da fixação de limites além dos quais já não se trataria mais de "Ciência" e sim de outra disciplina?
Outra ordem de Conhecimento que caberia à Filosofia? Essa indagação sem resposta plausível leva à
conclusão de que a Filosofia não é e não pode ser simples prolongamento do conhecimento científico,
nada mais que um ponto de vista mais geral e amplo, mas essencialmente de igual natureza, dos
mesmos objetos de que se ocupa a Ciência. E simplesmente Ciência e não há por que incluí-la em
outra ordem de conhecimentos além da Ciência. A Filosofia será outra coisa, ou então não tem razão
de existir. Aquilo de que se ocuparia um simples prolongamento ou generalização do conhecimento
científico não merece outro nome que "ciência" simplesmente.
Em outras palavras e mais sumariamente, é pelo objeto, pela matéria ou assunto de que se
ocupa, que a Filosofia, para ter existência própria e se legitimar, se há de distinguir. Não seria
simplesmente pela maneira, pelo método especifico de tratar do mesmo objeto das Ciências, que se
justificaria uma ordem distinta de conhecimentos que caberiam então à Filosofia. Se o objeto da
Filosofia é identicamente o mesmo que o das Ciências, a saber, os fatos e feições do Universo em
geral, não haveria mister dela; e a própria Ciência daria conta da tarefa. Isso porque a elaboração do
Conhecimento não segue caminhos diversos, ou não deveria segui-los: um que seria o ordinário da
Ciência, outro distinto deste que se observa correntemente na elaboração científica, e que por ser
assim distinto caberia à Filosofia. É certo que a elaboração científica se realiza através de
procedimentos vários, que a rigor se poderiam considerar métodos diferentes. Os tratados usuais da
Lógica elementar costumam considerar e enumerar esses "métodos", se é que merecem a
designação. Mas essas diferenças não são essenciais. Trata-se antes de técnicas, digamos assim, de
investigação e exame dos fatos considerados. Táticas ou estratégias, por assim dizer, de abordagem
desses fatos pela inquirição científica. O essencial do processo de elaboração científica digna desse
nome e legitima é fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno. O que se procura e o que se
obtém com essa elaboração não somente não apresenta disparidade essencial alguma, como não se
percebe ou concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar. Não é com ela pois
que se logrará discernir e determinar uma ordem de conhecimentos distintos dos da Ciência e
necessitando por isso de outra disciplina, que seria a Filosofia.
É assim pelo seu objeto, e somente por ele, que a Filosofia se há de distinguir da Ciência, e com
isso se legitimar como disciplina à parte. Mas se à Ciência cabe, como objeto, a Realidade Universal,
isto é, o Universo e seu conjunto de ocorrências, feições, circunstâncias que envolvem e também
compreendem o Homem, o que ficará de fora para eventual mente constituir objeto próprio da
Filosofia? Note-se que estamos aqui empregando a expressão "ciência" onde deveríamos com mais
propriedade dizer "Conhecimento". isso porque Ciência não é senão Conhecimento sistematizado, e
advertida e intencionalmente elaborado, não se distinguindo senão por essa sistematização em nível
elevado e elaboração intencional do Conhecimento comum ou vulgar, aquele de que todo ser humano
é titular, por mais rudimentar que seja seu nível de cultura. O Conhecimento é essencialmente de uma
só natureza, e por mais elementar e grosseiro que seja, tem fundamentalmente o mesmo caráter do
mais complexo e refinado conhecimento científico. Não há, aliás, nenhuma fronteira marcada, ou
possível de marcar, nessa complexidade, nem mesmo separação possível, pois o conhecimento
científico de hoje será o vulgar de amanhã.
Assim sendo, as nossas considerações acima se aplicam não especialmente ao conhecimento
científico, e sim ao Conhecimento em geral, ocupe ele o plano hierárquico e o nível de importância que
ocupar. E, reformulando nessa base a nossa questão, diríamos: qual o possível objeto do
Conhecimento que não seja objeto do Conhecimento? Pergunta aparentemente sem sentido dentro
dos cânones lógico-lingüisticos ordinários mas que se resolve simplesmente, e veremos que
historicamente também, no fato de que além do conhecimento dos objetos ordinários do
Conhecimento, as feições e ocorrências do Universo em que existimos e de que participamos,pode
haver, e efetivamente há ainda, reflexivamente, um Conhecimento do próprio Conhecimento.
Realmente é o que se verifica no desenvolvimento histórico do pensamento humano logo que o
progresso do Conhecimento atinge certo nível. Isto é, um retorno reflexivo da elaboração cognitiva
sobre si mesma, passando o próprio Conhecimento a se fazer objeto do conhecer. Fato esse
suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitações bem caracterizadas e distintas do
Conhecimento ordinário. E se bem que pensadores e elaboradores do Conhecimento não se tenham
desde logo dado plenamente conta da diferenciação e partição interior dos objetos de que se
ocupavam (do que aliás resultariam mal entendidos e confusões de largas conseqüências) a sua obra
não deixará de refletir a duplicidade do assunto tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e
elaboração do Conhecimento; isto é, a par do Conhecimento, a do Conhecimento do Conhecimento. O
que cronologicamente coincide no Mundo Antigo (e não terá sido por certo uma simples coincidência)
com a eclosão daquilo que seria havido como "filosofia".
Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto, assim penso,
numa sumária recapitulação, a largos traços, das linhas mestras e momentos culminantes e decisivos
do pensamento e elaboração do Conhecimento nas sociedades que mais contribuíram, até os nossos
dias, para a evolução em conjunto e conformação da cultura moderna; e que vem a ser aquela que,
brotada no seio das civilizações do Mediterrâneo oriental, se difundiria pela Europa ocidental e daí
para o mundo todo.
Mas em que consiste ou pode consistir esse Conhecimento do Conhecimento cuja gênese e
vicissitudes sofridas no curso de sua evolução se trata para nós aqui de examinar? Ou, em outras
palavras, que vem a ser Conhecimento como "objeto do Conhecimento"? Em primeiro lugar, está
claro, a natureza do Conhecimento, seu processamento. Dito de outro modo: o que vem a ser o fato
ou ato de "conhecer"; e como se realiza esse fato, qual a sua seqüência,sua gênese, seu
desenvolvimento e seu desenlace; em que vai dar. Isso é, como se apresenta e configura na sua
conclusão como corpo de conhecimentos para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna.
São essas as questões que se agrupam na disciplina ordinariamente conhecida por Teoria do
Conhecimento, epistemologia ou mais genericamente: gnosiologia. Disciplinas essas que constituem,
segundo consenso generalizado, capítulos da Filosofia. Até aí, portanto, não haverá divergências
apreciáveis que começam daí por diante. Há os que restringem a Filosofia a isso mesmo, e até menos,
como os logicalistas que fazem da própria Teoria do Conhecimento, e pois da Filosofia que a ele se
reduziria, uma simples análise lógico-crítica da linguagem ou simbolismo em que o Conhecimento e a
Ciência em particular se exprimem. Essa concepção, contudo, é restrita a reduzidos círculos. Em
regra, pelo contrário, a teoria do conhecimento, em si, ocupa oficialmente um lugar secundário e
diríamos quase marginal da Filosofia que, a julgar pelos assuntos nela tratados, ou pelo menos sob
sua responsabilidade, tem voz em qualquer terreno, duplicando de certa forma com isso o papel da
Ciência cujo objeto não se distinguiria essencialmente do seu. Filosofia e Ciência, distintas embora
quanto à perspectiva em que respectivamente se colocam, e ao método, ou antes "estilo" que adotam,
se ocupariam uma e outra da mesma Realidade universal. Já lembramos acima essa universalidade
da Filosofia, bem como a confusão reinante no seu ponto de partida entre os objetos respectivos do
Conhecimento (que seria em particular a Ciência) e o Conhecimento do Conhecimento, ou Filosofia.
Confusão essa que se prolongará sob muitos aspectos, embora progressivamente se atenuando, até
os dias de hoje.
Notamos também que em princípio e em frente aos fatos do desenvolvimento histórico da
Ciência, essa pretensão da Filosofia de se ocupar com assuntos da alçada da Ciência não se justifica.
Nesse ponto os logicalistas, que partem dessa questão para seu programa de limitação do campo da
Filosofia, têm plena razão. Quando a Filosofia se ocupa dos objetos da Ciência, a saber, das feições e
fatos do Universo, suas conclusões são sempre desmentidas em prazo mais ou menos dilatado, mas
sempre fatal. Como se depreende claramente da história da Ciência, e sobretudo da Física moderna, a
Filosofia, ou antes, os filósofos, no que se refere à sua atuação no campo científico, não têm feito mais
que consagrar velhas e ultrapassadas concepções, disfarçando-as em princípios absolutos com
pretensões à validade eterna. E sob esse disfarce que as rudimentares e grosseiras noções físicas de
Aristóteles atravessaram os séculos; e mais tarde a Mecânica newtoniana foi erigida em "verdade" final
e absoluta. Assim tem sido porque, tratando de objetos que não são seus, e portanto sem condições
para fazê-lo, a Filosofia não podia dar, como não deu, em outra coisa que vestir hipóteses científicas
de trajes filosóficos, fazendo deles "princípios" dentro dos quais aquelas hipóteses se "putrificam", na
sugestiva expressão de P. Franck.1
1 Philipp Franck. Modern Science and its Philosophy. Harvard University Press. Cambridge, 1950, p. 214.
A Filosofia, embora ultrapassando largamente aquilo que de ordinário se trata na teoria do
conhecimento, conserva-se dentro e no âmbito do Conhecimento como objeto. Isso é, enquanto a
Ciência e o Conhecimento em geral, em que a Ciência constitui o setor organizado e
sistematizado,têm por objeto as feições e ocorrências do Universo que envolvem o Homem e de que
ele também participa, o objeto da Filosofia é precisamente esse "conhecimento" de tais feições e
ocorrências. E assim Conhecimento desse Conhecimento. E isso não apenas por ser essa, para a`
Filosofia, a perspectiva própria para a consideração e exame das questões que nela legitimamente se
propõe. Mas ainda, e sobretudo porque esse tem sido o seu campo de ação, mesmo quando, por uma
falsa perspectiva e involuntária confusão, aparenta dela se afastar. A Filosofia sempre se ocupou, de
fato, do Conhecimento em si e todas suas implicações, embora freqüentemente julgue, ou melhor,
julgam os filósofos seus autores estarem tratando de outro objeto. É aliás dessa confusão que
resultam e sempre têm resultado os mal-entendidos que viciam a especulação filosófica e a tornam,
em tão grande parte e alto grau, imprecisa e ambígua, infestada de debates estéreis e questões inúteis
e insolúveis. O que, além do mais, faz perder de vista, ou propõe de forma defeituosa algumas das
questões essenciais da Filosofia. Bem como perturba a elaboração científica, como tão
frequentemente tem acontecido, como teremos ocasião de referir e já foi lembrado no caso da
Filosofia de Aristóteles e da Mecânica de Newton.
Vejamos como isso ocorre. Procurarei aqui clarear e explicar a confusão básica que vicia a
generalidade da especulação filosófica, para em seguida mostrar como ela efetivamente se vem
verificando no curso do desenvolvimento histórico da Filosofia. O Conhecimento, como objeto do
Conhecimento, se propõe em seqüência ao conhecimento da Realidade universal exterior ao
pensamento elaborador 2 Esse conhecimento da Realidade se apresenta na conceituação que,
elaborada na base da experiência do indivíduo pensante, reflete, ou melhor, representa na esfera
mental desse indivíduo pensante as feições e ocorrências da Realidade. Desse primeiro momento ou
nível da atividade cognitiva (isto é, a elaboração da conceituação representativa da Realidade), o
instrumento dessa atividade, que é o pensamento elaborador do Conhecimento, se volta sobre si
próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou Conhecimento por ele
elaborado. Trata-se de uma posição como que crítica, que objetiva de Um lado, e entre outros, aferir
de um modo geral a segurança, e ponderar o valor e alcance do Conhecimento adquirido e por
adquirir; e, de outro, visa e se propõe dar ao Conhecimento expressão conveniente (em especial e
fundamentalmente pela linguagem discursiva) e ordenar e sistematizar a conceituação que compõe o
Conhecimento. Isso tudo para, no contexto geral do processo cognitivo, alcançar o seu fim primordial
2 Essa restrição do pensamento "elaborador" é necessária, pois o pensamento em si, abstração feita do ato da
elaboração do Conhecimento, participa das ocorrências do Universo como as demais. E será objeto legitimo da Ciência, da Psicologia em particular.
(que é o do "conhecer" como função e constituinte essencial da natureza humana), fim primordial de
determinar e orientar devida o comportamento do Homem.
Não entraremos aqui no pormenor desses pontos a fim de não particularizar a exposição e
perder com isso de vista o conjunto e o essencial do assunto que diretamente aqui nos interessa, e
que vem a ser a duplicidade dos níveis em que opera o pensamento elaborador do Conhecimento, e o
que essa duplicidade significa. Repetindo, temos de um lado, como ponto de partida, o nível do
conhecimento direto e imediato das feições e ocorrências da Realidade que se trata de conhecer, isso
é, aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por "Conhecimento", e Ciência em particular.
Temos de outro, e em seguida, um segundo nível sobreposto ao primeiro, e no qual o pensamento se
ocupa já não diretamente com as feições e ocorrências da Realidade, mas com o Conhecimento
acerca dessas feições e ocorrências. No primeiro nível, o pensamento estará se aplicando à esfera
objetiva e exterior ao ato pensante 3, no outro, se aplicará a si próprio, ou antes, ao seu conteúdo , e,
note-se bem, propriamente como seu conteúdo, já desligado da Realidade que representa , conteúdo
de Conhecimento ou conceituação representativa da esfera objetiva, e elaborada no curso de sua
atividade no primeiro nível.
Mas, aplicando-se embora ao seu conteúdo de Conhecimento e conceituação, ou seja, à esfera
subjetiva, o pensamento irá por força se referir, embora indiretamente, aos objetos daquele
Conhecimento , que são, repetimos, as feições e ocorrências da Realidade que lhe são exteriores. isso
é óbvio, pois pensamento ou conhecimento não existem em estado "puro" e vazio de representação
conceptual das feições e ocorrências do Universo. Não existem mesmo, tais quais "faculdades"
potenciais do indivíduo pensante e conhecedor, à parte dessa representação que lhes concede a
substância de que se constituem.
Essa situação é por sua própria natureza fonte de confusão entre as duas esferas, a subjetiva e
a objetiva. E deriva daí a impressão e ilusão que tão fortemente se ancoraria na Filosofia, e que
consiste em tratar de um objeto julgando tratar-se de outro Ou melhor, simplesmente ignorar a
distinção e oscilar dubiamente entre um e outro; ocupar-se do Conhecimento e conceituação que o
compõe, como se tratasse das feições e ocorrências da Realidade exterior ao pensamento
representados conceptualmente por aquele Conhecimento. Caso flagrante disso, que refiro a título de
ilustração bem esclarecedora dessa confusão, é o conceito "matéria", que vem constituindo através
dos séculos um dos principais divisores do pensamento filosófico; e a respeito do qual as partes que
contendem incessantemente não conseguem sequer fixar com clareza o que está sendo debatido. O
3 Lembramos aqui novamente a observação já feita em nota anterior, que o pensamento em si pode ser e é de fato objeto
da Ciência, da Psicologia em particular. Mas nesse caso ele será considerado em abstrato e fora do ato pensante efetivo, isto é, na perspectiva de uma feição, ocorrência do Universo, tal como o restante da objetividade de que se ocupa a atividade cognitiva.
que torna o debate, no mais das vezes, em infindáveis monólogos que se desenrolam paralelamente
uns aos outros, e sem correspondência no mais das vezes entre si. Cada qual trata respectivamente
de assuntos que não coincidem, embora essa coincidência esteja sendo presumida.
O desentendimento nesse caso tem suas raízes na consideração de "matéria" de ângulos
distintos, em que se mesclam em proporções várias, conforme os filósofos, de um lado a perspectiva
de algo exterior e que a expressão "matéria" designaria (substância corpórea ou sensível...
componente primário e original do Universo... substratum de todas as coisas.), de outro lado o conceito
propriamente de "matéria",como se dá quando se trata de contrastar o conceito "matéria" com outros
conceitos, como seja "espírito", "idéia", "forma"; ou então quando com o conceito de matéria se integra
um sistema conceptual, como se dá com a noção aristotélica de "potencialidade para receber forma".
Note-se bem que não se trata aí unicamente, nem mesmo essencialmente, de diferença de sentido, de
acepção da palavra "matéria", pois se fosse apenas isso o acordo ainda seria possível, pelo menos no
que se refere às premissas da discussão, seu ponto de partida. A divergência é muito mais profunda,
pois diz respeito à "localização", digamos assim, daquilo que se designa por "matéria". Localização
essa que, nos casos extremos mais puros, será alternativamente: ou entre objetos ou feições naturais
exteriores ao pensamento; ou, no caso contrário, entre elementos conceptuais. Na maioria dos textos
filosóficos em que ocorre o conceito "matéria", um exame atento e devidamente alertado revela essa
indistinção entre o conceito propriamente e em si, de um lado; e doutro, o objeto da Realidade exterior
que ele representa, ou que deveria ou poderia referir e representar. Naturalmente os filósofos julgam
sempre, ou parecem julgar ao se referirem a "matéria", estarem tratando de objetos exteriores ao
pensamento e incluídos na Realidade e feições do Universo. Mas o que efetivamente estão
fazendo,no caso da matéria como no de outro conceito qualquer da mesma natureza ambígua,é
projetaram seu pensamento e conceituação no mundo exterior, e tratarem assim, como incluído nesse
mundo exterior, o que realmente constitui um fato de seu pensamento, um conceito. 4
A confusão entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projeção da primeira na segunda; a
projeção da conceituação no mundo exterior ao pensamento. Fato esse que tem papel essencial em
todo desenvolvimento histórico do pensamento humano. Pode-se mesmo dizer que o comum das
concepções gerais acerca da Realidade (isso tanto no nível da Filosofia e da Ciência, como no das
concepções vulgares) se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inversão idealista pela qual
se recria no exterior do pensamento um mundo feito à imagem desse pensamento. Isso é, modelado e
configurado segundo padrões conceptuais. Engels, o primeiro, que eu saiba, a assinalar essa inversão
4 Particularmente ilustrativo dos termos confusos em que se situa o debate acerca de "matéria", é a longamente
disputada distinção (entre os próprios escolásticos) que Tomás de Aquino faz entre "matéria-prima", que tem mais ares de puro conceito, e "matéria signata", que é matéria com extensão, e que portanto já lembra mais algo de "material" no sentido vulgar e mais corrente da palavra.
idealista, assim a descreve: "Primeiro fabrica-se, tirando-o do objeto, o conceito desse objeto; depois
inverte-se tudo, e mede-se o objeto pela sua cópia, o conceito". 5
Daqueles padrões conceptuais pelos quais se modela a Realidade, o mais importante é
naturalmente o da linguagem discursiva, na qual e através da qual a conceituação, no mais das vezes,
se formaliza e exprime. 6Essa a razão principal por que encontramos a nossa concepção corrente e
ordinária do Universo fundamentalmente conformada por estruturas verbais. E através de formas
verbais que o realismo ingênuo (que espontaneamente, e na base de nossa educação e formação
ordinária, é de todos nós) enxerga o Universo e o interpreta; e é na base delas que se dispõem as
feições e ocorrências da Realidade universal. E daí que deriva, entre outras, a noção de um mundo
constituído de "coisas' e "entidades" bem discriminadas e separadas entre si; coisas e entidades essas
de cujas "qualidades" e comportamento resultam os fatos, feições e circunstâncias em geral do
Universo Mal se disfarça nessa concepção ingênua e integrada tanto no pensamento filosófico
profissional, como no ordinário e vulgar, mal se disfarça aí o modelo que o inspira, a saber, a estrutura
gramatical do sujeito e predicado, e seus elementos constituintes essenciais: substantivo, adjetivo,
verbo Temos a; os materiais com que se constitui e concebe ordinariamente o Universo, com as
circunstâncias que nele se verificam e ocorrem. Os substantivos se farão nas coisas e entidades em
que o Universo é discriminado e dividido; os adjetivos serão as qualidades com que se revestem
aquelas coisas e entidades; e os verbos, finalmente, designarão (e a rigor "serão" mesmo) a ação das
mesmas coisas e entidades; ação essa com que se descreverá o comportamento do Universo .
Essa maneira de proceder, isso é, de inverter a ordem do processo do Conhecimento que,
originando-se na Realidade exterior ao pensamento elaborador, retorna e se projeta afinal sobre essa
mesma Realidade e a modela segundo seus padrões, esse procedimento tem na Filosofia raízes tão
fortes que a encontramos mesmo naqueles setores que mais diligentemente procuraram se libertar
dos preconceitos e distorções da Filosofia clássica - que vem a ser aliás a Metafísica aristotélica que
consagrou filosoficamente e projetou pelos séculos afora e até nossos dias, como aliás veremos
adiante, a confusão das esferas subjetiva e objetiva do pensamento e Conhecimento. Assim os
logicalistas que fundamentalmente visavam desfazer aquelas distorções através do correto emprego
da linguagem simbólica "perfeitamente" construída (e são essa correção e perfeição que sobretudo
visam em seus trabalhos) acabam concebendo e construindo com todas as peças esse mundo
idealmente modelado para ser adequadamente descrito por aquela linguagem "perfeita" por eles
5 Engels. M. E. Dühring bouleverse la science (anti-Dühring), trad. francesa. Paris, 1931, 1, 139. 6 Na acepção aqui adotada, reserva-se a designação de "conceito" ou "conceituação" à representação mental das
ocorrências ou circunstâncias em geral do Universo. Aquilo em suma que ordinariamente se entende por ''idéia". A linguagem discursiva , tal como outras verbais, gráficas e demais, como em particular a principal delas (depois da discursiva), e que é o simbolismo matemático, a linguagem discursiva constitui expressão formal, isso é, direta e imediatamente acessível aos sentidos, da conceituação.
pretendida. A abertura do Tractatus Logico" Philosophicus de Wittgenstein (o evangelho, pode-se
dizer, do logicalismo) nos dá conta desse mundo ideal, num encadeamento de proposições, tal qual
normas de um texto legal, segundo o estilo tão característico do autor,cuja inspiração em modelos e
padrões puramente gramaticais é patente e inconfundível.
Numa consideração bem alertada e atenta interpretação do desenvolvimento histórico da
Filosofia, vamos encontrar a comprovação não somente de que o verdadeiro objeto dela é o
Conhecimento em si, e não dos objetos desse Conhecimento que são os fatos, feições ou
circunstâncias em geral da Realidade exterior ao pensamento elaborador (embora freqüentemente, e
mesmo no mais das vezes isso tenha passado despercebido), veremos não somente isso, mas ainda
que foi e ainda é precisamente essa incompreensão ou falta de rigorosa discriminação entre as
esferas objetiva e subjetiva, que se encontra na base dos mal-entendidos e confusões que permeiam
e viciam o pensamento filosófico, tornando tão precária a realização da tarefa que lhe incumbe.
Como foi notado, e procuraremos comprova -lo agora com os fatos históricos, a Filosofia tem
suas origens e ponto de partida quando o pensamento investigador do Homem se volta reflexivamente
sobre si próprio e seu conteúdo de conhecimentos já elaborados e conceituados, ou em vias de
elaboração, a fim de aferi-los, compreender o processo de sua elaboração, conceder-lhe segurança e
orientação adequada para a utilização prática a que se destinam. E para realizar isso, organizá-los e
concatená-los devidamente na sua expressão verbal. Transfere-se então o pensamento investigador
para outro nível. Isso é, da consideração das feições e fatos da Realidade exterior, bem como da
atividade elaboradora do Conhecimento dessa Realidade, passa-se para a consideração desse
mesmo Conhecimento em si, e processo de sua elaboração. Isso, contudo, não se perceberá
plenamente desde logo, dando lugar à confusão das esferas subjetiva (objeto da Filosofia) e objetiva
(objeto da Ciência). E com isso se baralham os distintos níveis de elaboração do Conhecimento.
Observemos essa seqüência de fatos históricos e as primeiras manifestações do mal-entendido
e confusão que viciariam daí por diante o pensamento filosófico já no desabrochar da Filosofia grega.
Nesse prelúdio do que seria a matriz principal de todo pensamento ocidental através dos séculos,
verifica-se muito bem aquela transição da elaboração cognitiva para novo nível que será o da Filosofia
que então se inaugura.
Esse momento se situa nos chamados "físicos de Mileto", e vai-se sobretudo revelar na natureza
do problema central proposto por esses precursores da Filosofia grega, e que seria o seu ponto de
partida. A saber, o problema da "substância" Universal que daria origem a todas as coisas e as teria
constituído. Tales dirá, como se sabe, que é a água. Anaxímenes, o ar Anaximandro, uma
substância indefinida,apeiron.
Como se explica a proposição desse problema da existência de uma substância Universal
originária de todas as coisas? E o que não tem preocupado devidamente os historiadores da Filosofia,
como se a questão se apresentasse espontaneamente e fatalmente, sem necessidade de maior
explicação. Entretanto, as circunstâncias em que ela se propõe, tanto seus antecedentes como seu
desenvolvimento futuro nos dizem muita coisa a respeito, e mostram que o pensamento grego se
engajara aí em nova direção que embora preparada e condicionada pelo que a precedera, assumia
outro sentido bem diverso do anterior. Os milésios trouxeram grande contribuição, como se sabe, para
a Ciência e o Conhecimento dos fatos da Natureza. Mas o tema que os ocupa centralmente e que diz
respeito à "substância" constituinte do Universo representa sem dúvida alguma coisa bem diferente e
um novo caminho imprimido a seu pensamento. Constitui erro, assim penso, e imperdoável
anacronismo considerar,como freqüentemente se tem feito ou pelo menos insinuado,que os
pensadores gregos estivessem preocupados com a substância ou elemento constituinte do Universo
com o mesmo espírito com que os físicos da atualidade e de um século para cá investigam as
"partículas" ou outras ocorrências de cujas estruturas, disposição e comportamento no plano
microscópico, resultam os fatos observados no plano macroscópico que é o nosso usual de todos os
dias. Estruturas e comportamento esses com que se torna possível explicar tais fatos, ou antes
representá-los conceptualmente (mentalmente) e formalizar e exprimir essa representação que os
descreve através do simbolismo matemático. Evidentemente preocupações dessa natureza eram
completamente estranhas, como não podia deixar de ser, aos pensadores gregos. Nem possuíam eles
lastro suficiente de conhecimentos para cogitar delas, nem tampouco a maneira de propor o assunto e
em seguida desenvolvê-lo apresentam a mais remota analogia com o que ocorre nos procedimentos
da Ciência de nossos dias.
De fato, o que os pensadores que se ocupam do assunto têm em mira é essencialmente uma
questão que constituirá o pano de fundo de todo debate, e tema central da Filosofia grega em geral. Já
em outra oportunidade procurei desenvolver esse assunto 7 que consiste resumidamente no seguinte.
Trata-se em suma e esquematicamente de explicar como neste mundo tão variado e em
permanente fluxo e transformação; onde as feições naturais se apresentam aos sentidos não somente
sob tal multiplicidade de aspectos a ponto de nunca se assemelharem perfeitamente entre si; como
também porque se modificam sem cessar; trata-se assim de explicar como é possível neste mundo tão
variado e variável, multiforme e em fluxo e transformação permanentes, como é possível um
verdadeiro e legítimo Conhecimento que implica uniformidade e permanência, condições essas
indispensáveis para a caracterização e identificação dos objetos daquele Conhecimento. Todo
Conhecimento começa necessariamente por essa caracterização e identificação dos objetos que se
trata de conhecer, o que somente é concebível na uniformidade e estabilidade deles.
7 Dialética do Conhecimento, 1969 ( 5ªed.) I, 177.
Os milésios responderão a essa questão, que é, como se vê, fundamentalmente gnosiológica ,
trata-se no essencial de estabelecer e fixar as condições do Conhecimento8, responderão com a sua
substância material ou assemelhada que preencherá para eles a função de representar o substrato
permanente e estável do Universo que faz possível o Conhecimento Com isso os milésios davam bem
mostra da ingenuidade de suas concepções ainda presas inteiramente a um nível rudimentar e
grosseiro de Conhecimento não liberto do empirismo de seus começos, e confundido por isso com os
dados diretos e imediatos dos sentidos com que o Homem entra em primeiro e original contato com a
Realidade exterior
Uma nova geração de pensadores mais maduros que segue esses precursores e se inaugura na
segunda metade do VI séc. A.C. procurará dar à questão uma resposta mais profunda,embora a
mesclem ainda, em grandes proporções, com as grosseiras concepções derivadas dos milésios;
concepções essas que somente desaparecerão na obra de Platão. A multiplicidade e instabilidade das
feições naturais será por eles atribuída à ilusão enganadora dos sentidos. Por trás dessa ilusão, dirão
eles, se abriga a verdadeira Realidade, onde se encontram a uniformidade e permanência que se trata
de apreender e que proporcionarão o legítimo Conhecimento, A identidade desse princípio ideal (ou
pelo menos semi-ideal, como é o caso dos mais antigos pensadores dessa fase), principio unificador
da Natureza, variará segundo os filósofos: serão os números, para Pitágoras; o SER, para
Parmênides; o Logos para Heráclito; o Nous para Anaxágoras .. Mas seja qual for a natureza atribuída
ao principio unificador, ele mal disfarça e em última instância se confunde sempre com o pensamento.
E a solução do problema da Uniformidade na multiplicidade, e da permanência no fluxo das coisas e
feições do Universo, se transferirá para o plano do pensamento do Homem, exibindo-se com isso a
natureza do que seria a Filosofia e seu objeto, que não consistia, como poderia às vezes parecer à
primeira vista, e nas concepções grosseiras dos milésios podia mesmo iludir, não consistia nas feições
da Natureza. O objeto de que se ocupam os pensadores que mereceram, e com acerto, a qualificação
de "filósofos" (pois de outra forma seriam, como realmente os houve, simplesmente homens de
ciência), esse objeto eram o pensamento e o produto da elaboração desse pensamento que vem a ser
o Conhecimento. Isso é patente sobretudo, e por isso o destacamos aqui, naquela concepção que
mais se projetaria no futuro desenvolvimento da Filosofia, e durante séculos constituiria, podemos
dizer, seu tema central. Refiro-me ao SER de Parmênides, que é afinal, e sem embargo da
tempestade verborrágica que a Metafísica desencadearia em torno do assunto 9 não é senão
8 Mais tarde, mas sempre na mesma linha de pensamento, Platão usará como fundamento básico de sua doutrina
das Idéias (sobre o que voltaremos adiante} o argumento referido por Aristóteles que procura refutá-lo: "Se há ciência e conhecimento de alguma coisa, devem existir algumas outras naturezas além das naturezas sensíveis, realidades estáveis, pois não há ciência do que está em permanente fluxo". Aristóteles, Metafísica, trad. francesa de J. Tricot, I, 733.
9 Heldegger chega a considerar o "problema" do SER, o centro da Filosofia, e entende que se a palavra SER não
existisse, não existiria o Homem como tal.
expressão geral e formal da operação mental com que se qualificam e identificam as feições da
Natureza, e com isso se caracterizem, determinam e fixam. O SER é originariamente a cópula (verbo)
com que formalmente se exprime a qualificação e se designa a identificação (a árvore é Um vegetal, o
homem é racional, isto com que escrevo é uma esferográfica... ). Não pode haver duvida que
Parmênides pressentiu com sua concepção, confusamente embora, mas com mais clareza que
qualquer de seus contemporâneos, que a questão central proposta pelos milésios se situava
efetivamente no plano conceptual. Que se tratava, para empregarmos uma linguagem no caso
anacrônica, de um problema da "teoria do conhecimento". O pressentimento de Parmênides, que aliás
ficará nisso, degenerando em sua esdrúxula e grosseira imagem de uma "esfera imóvel, sem princípio
e sem fim" , encontrará seu intérprete, em seguimento aos Sofistas e sobretudo Sócrates , em Platão.
Não vamos aqui entrar no exame da filosofia platônica. Ela se resume no essencial, pode-se
dizer, na observação de Raphael Demos: "A filosofia de Platão se sumariza na vida da razão". 10 Não
importa que Platão tenha hipostasiado a Razão, fazendo dela um mundo supra-sensível à parte: o
mundo das idéias que faz contrapeso e contrasta com o mundo sensível; que constitui o protótipo de
que esse mundo sensível não é senão imperfeita reprodução. Esse mundo das idéias não é senão o
pensamento, a função pensante e a atividade racional do Homem. E é desse pensamento disfarçado,
sublimado e substancializado que o filósofo se ocupa. E se ocupa num exame que, desbastado do
floreio em que este poeta que foi Platão o envolve, revela efetivamente, e com precisão e segurança,
alguns dos aspectos essenciais da atividade do pensamento na estruturação do Conhecimento. Em
particular, o processo mental da identificação e qualificação fundamento e ponto de partida de toda
atividade racional na elaboração e expressão do conhecimento, encontra em Platão um analista
seguro, E foi a compreensão desse processo que permitiu a Platão abrir as perspectivas para a
formulação da lógica formal que, já delineada e potencialmente contida na obra do filósofo, será
desenvolvida por seu discípulo e sucessor Aristóteles, que lhe dará forma final e acabada.
Se alguma dúvida houvesse, nos filósofos que antecederam Platão e lhe prepararam o caminho,
acerca da natureza e do objeto da Filosofia nesta sua fase preliminar e ponto de partida do que seria o
pensamento grego, essa duvida se desfaz inteiramente na consideração e exame da obra platônica
que consistiu em continuar e prolongar a linha de desenvolvimento daquele pensamento, procurando,
e com grande sucesso, dar resposta às perguntas nele propostas. Aquilo de que Platão se ocupa, em
continuação aos pensadores que o precederam, e que constitui o objeto essencial e fundamental de
sua obra, contribuição máxima para a cultura, são o pensamento e o Conhecimento tal como nós hoje
o conceituamos. O seu ponto de partida e questão primeira que a ele se propõe, é a mesma de toda a
10 The Dialogues of Plato, translated into english by B. Jowett, M. A. Introdução, X, ,Weber dirá: "[Para Platão) o
mundo sensível todo inteiro não é senão um símbolo, uma figura, uma alegoria. É a coisa significada, a Idéia expressa pelas coisas que somente interessa ao filósofo". Alfred Weber. Histoire de la Philosophie europeènne. Paris, 1925, p, 62.
Filosofia grega desde seu nascedouro com os milésios e centralizada, como vimos, no problema
da unidade e permanência na diversidade e fluxo em que a Natureza se apresenta aos sentidos,
"unidade e permanência" essa que já se fixara (no consenso geral, ou pelo menos decisivamente
dominante) no SER de Parmênides, que não vem a ser senão, isso também se consagrara , o
universal, idêntico e permanente, em contraste com o particular dado na percepção sensível e diverso
e em transformação constante. Universal que se revela e representa na Idéia, no conceito.
É daí que Platão parte. O que, traduzido para nossa linguagem ordinária e corrente, vai dar em
que as Idéias do platonismo não são outra coisa mais que aquilo que entendemos por Conhecimento.
Platão exterioriza suas idéias e lhes concede uma existência extra-humana. Mas vistas mais de
perto e no quadro de nossas concepções atuais (que têm atrás de si a alimentá-las e a lhes darem
base, não o esqueçamos, a longa experiência, aprendizagem e progresso cultural e científico
milenares de que somos herdeiros) tais idéias são apenas e simplesmente as nossas "idéias"
vulgares; conceitos cujo conjunto constitui o Conhecimento. A análise que Platão faz das idéias,
procurando determinar a sua natureza e estruturação, a disposição relativa em que elas em conjunto
se articulam e entrosam entre si, sua derivação e filiação umas das outras,e aí Platão apresenta um
dos capítulos mais fecundos de sua obra, quando, entre outros no Sofista, considera a "classificação",
isto é, a operação mental de classificar, tudo isso significa na realidade análise do Conhecimento e da
sistemática conceptual em que os conhecimentos se apresentam. E desse Conhecimento, portanto,
que Platão, e mais que ele, a própria Filosofia para cujo embasamento e constituição o platonismo
tanto contribuiu, é disso que se trata. A Filosofia como Conhecimento do Conhecimento se revela aí
claramente.
Pode-se mesmo dizer que Platão, embora envolvendo suas concepções num manto de
misticismo e fantasia literária que lamentavelmente as ofusca e muitas vezes lhes torce o sentido
profundo, bem como disfarça o que deveria ser sua contribuição mais fecunda para a devida
proposição das verdadeiras questões da Filosofia, pode-se dizer que Platão teve a intuição e marcou,
com um máximo de clareza para um precursor, a distinção entre Conhecimento e Conhecimento do
Conhecimento; entre Ciência e Filosofia. Desenvolvendo uma noção já em germe nos filósofos seus
antecessores, e particularmente em Parmênides que separava o Conhecimento da simples opinião,
Platão, que emprega aliás as mesmas designações, acentua o objeto daquelas duas esferas. A
primeira objetivaria as "imagens" (dados sensíveis), a outra, as "idéias", constituindo esta outra a
"cumeeira do Saber".11
Não é difícil para nós hoje em dia identificar atrás dessa distinção aquela que efetivamente
11
Estamos naturalmente esquematizando, para fins de simples exposição sumária, o pensamento de Platão, na realidade mais complexo. Veja-se a respeito, em particular, a parte final do Livro IV de República.
ocorre entre o que designamos por "Ciência" e "Filosofia": a primeira ocupando-se com os dados
experimentais colhidos na consideração direta das feições e ocorrências da Realidade; e a Filosofia,
com as idéias (diríamos melhor "conceitos" ou representações mentais daquela Realidade exterior
carreada pela experiência). Só que Platão inverte a nossa ordem de precedência, processamento e
estrutura do Conhecimento: para ele as "imagens" ou dados da experiência são reflexos ou cópias
aproximadas e imperfeitas das "idéias"; enquanto para nós, isto é, à luz das concepções científicas de
nossos dias (se bem que ainda sobrem idealistas que pensam diferentemente, e, embora nem sempre
com muita consciência disso, aproximam-se mais de Platão), são as "idéias" que constituem
reprodução, ou melhor, "representação" da Realidade.
A distinção entre Conhecimento e Conhecimento do Conhecimento aí está. E tivessem os
sucessores de Platão insistido nesse ponto, logrando ao mesmo tempo despir o platonismo do véu
místico que o envolve, sem desprezar aquela distinção, e outra teria sido talvez a marcha da Filosofia.
Mas as coisas não estavam maduras para isso que viria gradualmente, muito mais tarde, na base do
progresso científico, como veremos adiante. E, pelo contrário, quem desembaraçará o platonismo,
nisso com todo acerto, de suas complicações místicas e envolvimento poético, será ao mesmo tempo
quem mais contribuirá para borrar a distinção nele feita entre Ciência e Filosofia. Ou antes, entre os
objetos respectivamente de uma e outra esfera do Saber. Será esse Aristóteles, que introduzirá, ou
pelo menos cuja obra servirá para fundamentar a grande confusão e mal-entendido que viciarão daí
por diante, e através dos séculos, o pensamento filosófico. E científico também. E que ainda hoje
encontram forte ressonância e reflexos poderosos. Aristóteles elimina a distinção estabelecida por
Platão entre os objetos da Ciência e da Filosofia, empreguemos, para cortar confusões, a nossa
terminologia moderna, em substituição à de Platão para quem só a Filosofia, ou Dialética (a dele,
Platão), constituía "Conhecimento". E trazendo as idéias platônicas da esfera supra-sensível em que
se encontravam, para as coisas do mundo sensível, confunde assim o objeto do Conhecimento com o
Conhecimento como objeto. De fato, Platão separara as "idéias" das coisas sensíveis que não seriam
mais que cópias deformadas da "verdadeira" realidade daquelas coisas. Tal como os círculos que
traçamos ou que encontramos na Realidade sensível (como por exemplo os círculos concêntricos
produzidos numa superfície d'água tranqüila pelo impacto de Uma pedra nela caída), círculos esses
que seriam uma reprodução aproximada mas imperfeita do círculo real que concebe a Matemática.
Aristóteles integra aquelas "idéias" nas próprias "coisas" da Realidade sensível. Para ele, o que Platão
designa por "Idéias" não são mais que diferentes maneiras com que concebemos as coisas , e com
isso Aristóteles descarta com grande acerto o misticismo platônico. Mas essas maneiras de conceber
as coisas, ou sejam, as "categorias" do entendimento (substância, qualidade, quantidade, relação,
lugar, tempo, situação, maneira de ser, ação sofrida), constituem para Aristóteles maneiras de ser das
próprias coisas. Isso é, elas são tudo isso , substância, qualidade, quantidade, etc. E não apenas se
concebem e denominam como tal. 12
Em suma, e exprimindo-nos em linguagem mais atualizada, os conceitos e a conceituação com
que representamos mentalmente a Realidade exterior ao pensamento, é incluída por Aristóteles nessa
própria Realidade. E o que denominamos acima de "inversão idealista", que consiste em projetar as
operações e fatos mentais na Realidade extramental e exterior ao pensamento e nela integrando-os.
As representações mentais (idéias ou conceitos) se elaboram pelo pensamento a partir da Realidade
exterior (que saio as feições e ocorrências da Natureza com que o indivíduo pensante se defronta). A
inversão idealista consiste em levar essas idéias ou conceitos, que evidentemente não são aquelas
feições e ocorrências, e sim i a sua representação no pensamento, levá-las de retorno às mesmas
feições e ocorrências, considerando-as como nelas incluídas. Lembramos acima, como exemplificação
da inversão idealista que ainda hoje é fator de não pouca confusão, o caso do conceito "matéria", que
de conceito se faz, ou antes é feito em constituinte das coisas que compõem o Universo. E ainda
voltaremos ao assunto mais adiante.
É isso que Aristóteles faz, e é o que viciará profundamente não só a Filosofia subseqüente, mas
ainda os hábitos ordinários de pensar e maneira de ver e de interpretar as coisas generalizadamente
arraigadas em toda a cultura ocidental para cuja conformação Aristóteles direta ou indiretamente tanto
contribuiu. Embaraçará também a marcha da elaboração científica que somente ganhará impulso
quando modernamente se libera da Filosofia, ou antes da Metafísica em que a Filosofia se envolvera.
Vejamos como Aristóteles desenvolve seu pensamento, as conclusões a que chega e as
conseqüências a que por elas é levado. Platão, seu mestre, concentrara a "uniformidade e
permanência",condição para os gregos, como referimos, do Conhecimento,no mundo das idéias fixas
e estáveis, e por isso distinto e separado do variegado mundo da percepção sensível, mundo instável
e em permanente fluxo e transformação. E Platão assim procedera, no depoimento do próprio
Aristóteles num texto que já referimos acima, porque "se existe a ciência e o conhecimento de algo,
devem existir outras realidades além das naturezas sensíveis; realidades estáveis, pois não há ciência
daquilo que está em perpétuo fluxo". Tais "outras realidades estáveis" além do mundo sensível, seriam
as "Idéias".
Mas para Aristóteles que tem os pés mais firmes na terra que o sonhador e poeta que é seu
mestre, embora reconhecendo a necessidade para o Conhecimento de uma base estável em que se
apoiar e fundar, para Aristóteles são precisamente outras realidades, mas ao alcance da percepção
sensível, que se trata de desvendar, conhecer e compreender. E esse mundo dos sentidos, variegado
12 Alfred Weber, op. cit, 77. Como bem demonstrou Zeller, as categorias aristotélicas tem um caráter metafísico e ontológico tanto quanto lógico: são formas do atributo, predicados e do ser, e não, como em Kant, formas subjetivas do pensamento, Cit. p. J. Tricot, La Métaphysique, I, 270, n. 2.
e aparentemente tão instável que cerca o Homem e onde ele vive, a "natureza sensível", como
Aristóteles a denomina, e que as idéias platônicas marginalizem, é isso que importa. E para o
conhecimento da natureza sensível, "as Idéias não saio de nenhum auxílio". 13 Não será isolando a
fonte do Conhecimento da natureza sensível e isolando-a num mundo à parte de idéias, como fez
Platão, não é assim que se alcançará aquela natureza sensível que é o que interessa, segundo
Aristóteles e que ele objetiva conhecer. "É graças aos princípios e com os princípios", afirma
Aristóteles, "que se conhece o resto". 14 E no esquema platônico, os "princípios" ficariam naturalmente
restritos ao mundo apartado e estanque de realidades estáveis, as idéias, que eles encarnam e
exprimem.
É preciso assim substituir o esquema platônico, e abrir caminho para comunicar o setor estável
da Realidade onde se situam o Conhecimento e os princípios, e que Platão apartara e isolara, é
preciso comunicá-lo com a natureza sensível que se trata de conhecer. E o que fará Aristóteles,
estabelecendo a comunicação por via da "dedução" do particular (que é o dado na percepção
sensível) a partir do universal que substitui de certa forma a Idéia platônica, e que é o verdadeiro SER
e seu conhecimento. Dedução essa cujo processamento e método (que será a sua grande realização)
Aristóteles vai buscar no exame do discurso, a linguagem discursiva, informando-se para isso, em
especial, nos modelos dialéticos (debates orais) de seus antecessores na matéria, os Sofistas; e
sobretudo nos diálogos de seu mestre Platão. E num tal exame que Aristóteles logrará destacar e
revelar os elementos ou "formas" essenciais da estrutura básica da linguagem discursiva. Ou seja, a
maneira ou forma como se dispõe e interliga nos seus termos a expressão verbal capaz de, pela sua
coerência, demonstrar, com segurança e sem contestação possível, opiniões ou teses defendidas; e
convencer com isso o interlocutor. Circunstâncias essas que se admitiam a priori como prova
incontestável do acerto , a "verdade" , das conclusões.
É com isso, reduzido a normas precisas, que Aristóteles constituirá a sua Lógica, que tem como
núcleo central, como se sabe, o silogismo. Precisamente o instrumento que Aristóteles necessitava
para realizar sua almejada "dedução" do particular a partir do universal. Isto é, o entrosamento e
seqüência verbal coerente (não contraditório), de Uma para outra, das expressões verbais daqueles
dois termos da operação dedutiva, respectivamente o Universal e o particular.
É na base e com a manipulação dessa sua Lógica, que Aristóteles procurará a sistematização
dos conhecimentos do seu tempo e entrosamento dedutivo da expressão verbal deles. Tarefa que
muito pouco tem de "científico" propriamente, no sentido que hoje se dá à Ciência e sua
elaboração,afora a coleção dos parcos dados empíricos existentes na época e ao alcance de
13 Aristóteles. La Metaphysique, trad. cit., M, 5, II. 14 Id., A, 2. I, 15.
Aristóteles no que aliás ele se mostra muito bem informado. E constitui de fato tentativa e ensaio, o
que era aliás o que Aristóteles pretendia, embora sem muito discernimento do que realizava , ensaio
de modelo de entrosamento dedutivo daqueles dados empíricos dentro da sistemática conceptual, e
sua expressão verbal, implícitas nos conhecimentos do seu tempo e que ele soube, em suas linhas
gerais, revelar. "O método que Aristóteles emprega para o estudo dos fenômenos [fatos físicos]",
observa um dos mais modernos tradutores e autorizados comentaristas dos textos aristotélicos, "é
antes de tudo dedutivo e sistemático. Nas Meteorológicas, como em toda sua obra, Aristóteles julga
que uma explicação verdadeira não pode ser senão racional." 15 isto é, apresentado de maneira
formalmente coerente, que vem a ser aquilo que ordinariamente chamaríamos de "lógico". E
poderíamos acrescentar o inverso: que a explicação racional é necessariamente verdadeira.
Em suma, o que Aristóteles de fato realiza é a organização e integração (na medida do possível,
bem entendido, e que não podia ser, como não foi, muito ampla e rigorosa) da conceituação de seu
tempo relativa aos objetos tratados no que hoje seriam a Física, a Astronomia, a Biologia, etc., em
sistemas lógico-formais. Isto é, expressos em forma verbal coerente, de modo a se poderem deduzir
logicamente (dentro dos cânones lógicos) os dados empíricos disponíveis.
Note-se de início, e isso é importante para o que nos interessa aqui centralmente, que assim
procedendo Aristóteles estará de fato e essencialmente ocupando-se não com os fatos propriamente e
os dados empíricos que a percepção sensível proporciona; e sim com a maneira de filiar esses dados,
seria a sua "dedução",a uma conceituação preexistente ou pelo menos presumida; ou melhor, dada a
priori. E dentro dela enquadrá-los. A maneira de justificá-los logicamente através de um
enquadramento e integração numa sistemática conceptual pré-formada. " Racionalização ", diríamos
hoje.
A atenção de Aristóteles numa tal tarefa estará assim primordialmente voltada, como logo se vê,
para aquela sistemática conceptual e sua estrutura, procurando alcançá-la pela aplicação do seu
método. Tanto é assim que seu resultado principal não será propriamente uma contribuição científica,
na acepção corrente de nossos dias,o que a obra de Aristóteles como já foi notado, não oferece, e sim
um exemplo de modelo de aplicação da Lógica na consideração dos dados sensíveis da observação
empírica, visando como que uma interpretação "lógica" do comportamento da Natureza tal como ela se
apresenta naqueles dados.
Em conclusão, o interesse de Aristóteles e a contribuição que oferece, afinal, se fixam
essencialmente não nos fatos que refere, e sim no Conhecimento deles, no Conhecimento em si. O
objeto é assunto de que Aristóteles se ocupa em seus tratados relativos aos fatos da Natureza ,
físicos, geológicos, astronômicos, biológicos, etc. , não são direta e essencialmente te is fatos, e sim a
15
J. Tricot. Les Météorologiques, introdução, VIII. Paris, 1941
maneira como esses fatos são concebidos, ou devem ser concebidos; os conceitos em que se
enquadram; e como esses conceitos se hão de entrosar uns com os outros, logicamente se
estruturarem e formalmente exprimirem no discurso. Aristóteles estará não elaborando conhecimentos
ou expondo seus procedimentos no processo de elaboração, o que consistiria em compor nova
conceituação, ou remodelar a existente na base de dados originais ou antes não considerados
devidamente e que se trataria de determinar e incluir na conceituação existente, dando-se assim conta
deles. Não é isso a obra de Aristóteles que estará antes e como que oferecendo e ilustrando um
modelo lógico. Ocupando-se, pois, não do Conhecimento propriamente, mas do Conhecimento do
Conhecimento. E faça-se de Aristóteles o juízo que for, e já sem falar na sua Lógica, o significativo da
obra que deixou e que tamanho papel desempenharia na evolução do pensamento humano, bem
como aquilo que se pode considerar nessa obra a sua "Filosofia", isso não será elaboração científica,
nem outra coisa senão um tal Conhecimento do Conhecimento.
É isso a obra de Aristóteles Obra que constituiu a complementação e encerramento de um cicio
decisivo do pensamento humano, e que vem a ser a tarefa empreendida pelos pensadores que
precederam Aristóteles no mesmo rumo, desde os pioneiros da Filosofia grega até os Sofistas,
Sócrates e Platão que foram sucessiva e progressivamente contribuindo para a ascensão do
pensamento e Conhecimento, do empirismo rudimentar e grosseiro que constitui a primeira e mais
primitiva etapa da evolução mental do indivíduo pensante e conhecedor que é o Homem, para o
racionalismo propriamente que faz então sua entrada decisiva na cultura humana. Do Conhecimento
limitado à simples constatação empírica e registro de fatos diretamente acessíveis à percepção
sensível, e de sua representação imaginativa segundo modelos sensíveis de fácil e imediata
identificação (como os arcos de uma roda com que Anaximandro ainda explicava os "fogos celestes";
ou a própria substância do Universo modelada com materiais comuns) 16 passam os pensadores
gregos a um plano abstrato, e vão ocupar-se reflexivamente do próprio pensamento em si, e da
sistematização do Conhecimento; procurando realizar no conjunto dele o que a Lógica designaria mais
tarde por 'coerência". A saber, o entrosamento disciplinado e não contraditório da conceituação e sua
expressão verbal. ou seja, a adequada estruturação conceptual e de suas formas expressivas, em
contraste com o simples registro empírico e disperso de representações sensíveis imediatas que
caracteriza a fase anterior. A obra de Aristóteles oferecerá assim, a par de sua Lógica e método de
pensamento que implica, o primeiro esboço e modelo, grosseiro embora, para uma tal racionalização
geral do Conhecimento. A sua "logificação", podemos assim denominar o processo. Em suma, o
16 Note-se que Aristóteles também lançava mão desses modelos sensíveis, como, entre outros, os quatro
elementos do mundo sublunar engendrados pelos princípios , o quente, o frio, o úmido, o seco (Da Geração o Corrupção, II, 2 e 3); ou as "axalacões" destinadas a dar conta dos fenômenos os mais estranhos uns a outros... Mas aí o pensamento central já e outro: como observa Tricot, trata se de reduzir essa variedade a uma "unidade fundamental da
Conhecimento se torna em sistema geral abstrato e de conjunto, e por isso mesmo de mais fácil
cesso, evocação, comunicação eficiente e utilização na ação, o que constitui afinal o objetivo da
função humana do Conhecimento.
Note-se que não seria isso certamente, nem poderia ser o que Aristóteles deliberadamente
objetivava. Aquilo de que julgava cuidar e de que pretendeu ocupar-se em seus tratados naturais, era
o conhecimento da Realidade da percepção, destes seres sensíveis que, por sua diversidade e
instabilidade, e nada mais que imperfeitas cópias dos verdadeiros Seres que seriam as Idéias, seu
mestre Platão deixara de lado e reputara impossíveis de legítimo Conhecimento, e objetos unicamente
da Opinião, Aristóteles em oposição a seu mestre, acreditava chegar a esse Conhecimento, como
vimos, pela dedução de que revelou o método, a sua Lógica, e precisamente para aquele fim. Mas
para justificar a legitimidade de sua dedução, havia que ligar o Ser, o conceito dado no universal, e que
Platão isolara nas suas idéias, ligá-lo com a Realidade sensível expressa no particular. Como realizá-
lo?
É o que Aristóteles desenvolve no que seria a sua Metafísica, a sua concepção geral e
fundamental da Realidade que se faria padrão do pensamento filosófico pelos tempos afora. E que,
embora retocado continuamente através dos séculos, torcido e retorcido pelas sucessivas gerações de
pensadores e escolas filosóficas na tentativa, de muito poucos resultados, de ajustá-la às novas
feições que o Conhecimento foi tomando, e harmonizá-la com o progresso desses conhecimentos;
embora tudo isso, a Metafísica aristotélica ainda conserva até hoje seus quadros fundamentais que
impregnam o pensamento moderno e lhe trazem toda sorte de dificuldades e deformações.
Vejamos esquematicamente os pontos essenciais e linhas mestras dessa Metafísica, e em
especial as circunstâncias que a inspiram em seu nascedouro, e que foram, como se notou, a
necessidade de fundamentar o método dedutivo com que Aristóteles julgava alcançar o conhecimento
da Realidade sensível. A atenta consideração de tais circunstâncias esclarece muita coisa dos rumos
que tomaria o pensamento filosófico; e contribui em particular para a compreensão dos principais
problemas e questões que a perspectiva metafísica, subjacente naquele pensamento, iria suscitar,
mesmo depois de formalmente e oficialmente posta de lado pelos principais setores do pensamento
moderno. O que não impediu que se conservasse latente em muito dele e em questões pendentes até
os dias de hoje. O interesse do assunto continua assim a ser da maior atualidade.
Na Metafísica, Aristóteles transfere a sua Lógica, e com ela o método dedutivo que implica.
Lógica e método que de fato não são senão sistemas derivados de formas lingüísticas 17, transfere sua
razão". Les Météorologiques, Intr., VIII. 17Já tem sido observada a coincidência das estruturas e categorias lógicas e gramaticais. Abordam o assunto dois
trabalhos incluídos no nº de 1958 de Les Études Philosophiques, Paris: Pensée et Grammaire, de Jean Fourquet; e Catégories do Pensée et Catégories do Langue de Émile Benveniste. Não se procurou todavia ainda, que eu saiba, concluir
Lógica para os fatos da Realidade concreta, para o mundo das "coisas sensíveis", designação com
que o próprio Aristóteles por vezes se refere às "realidades da percepção" que trata de conhecer pela
aplicação do método. Simples "transferência" de fato porque a nada mais que isso corresponde esta
concepção aristotélica, centro nevrálgico da Metafísica, que vem a ser a da geração das "coisas
sensíveis" (que afinal não são senão o "particular", em contraste com o "universal") pela"realização" da
forma,aquilo que faz a coisa ser o que é, na matéria, substância indeterminada das coisas sensíveis,
mas que reúne em cada caso as condições específicas necessárias para que a forma determinada
possa nela se concretizar ou gerar; que tenha a "potencialidade" para isso, que seja a "coisa em
potência", na terminologia aristotélica. Para usar Uma ilustração, entre outras do próprio Aristóteles tal
como se dá com o "lenho" relativamente ao "cofre" que é com ele confeccionado: o lenho seria a
matéria em potência na qual a forma "cofre" se realiza, é gerada. 18
Ora, a forma, que é essência ou "aquilo que faz a coisa ser o que é", se reduz na terminologia
aristotélica à idéia, ao universal. 19 E assim, tal como na Lógica aristotélica o particular se "deduz" do
universal, assim também a coisa sensível, que é o "particular", se "gera" pela realização da forma
potencial contida se emparelham; de na matéria; forma essa que vem a ser o "universal". Os dois
casos se emparelham: de um lado a operação lógica pela qual se alcança o conhecimento das coisas
sensíveis,o que as coisas são,; de outro, o fato concreto em que se geram as coisas. Ambos se
confundem; vêm no final a dar no mesmo.
E consuma-se com isso a inversão idealista aristotélica, a confusão das esferas subjetiva e
objetiva que se projetará pelos séculos afora e ainda impregna até hoje o pensamento filosófico ,e com
ele a maneira ordinária de pensar, e em muitos casos até mesmo a científica, ou que se pretende ou
presume científica. A confusão das "coisas" (que é a designação tradicional e consagrada da
Metafísica, e aliás corrente em todos os setores, para indicar as feições do Universo, e assim
fragmentá-lo, numa outra instância da inversão idealista, à imagem da expressão verbal) a confusão
das "coisas" com a maneira como se conhecem. E a confusão conseqüente do conhecido com o
Conhecimento; da esfera exterior ao pensar e objeto dele, com esse próprio pensar.
O que praticamente vem a consistir,na tarefa de interpretação da Realidade e elaboração do
Conhecimento e construção da Ciência ,vem a consistir na confusão do Conhecimento com o
Conhecimento do Conhecimento, com o embaraIhamento de seus respectivos objetos. O pesquisador,
mais precisamente o filósofo de formação aristotélica,e muitas vezes o cientista também, pretende
ocupar-se de ocorrências e circunstâncias da Natureza, e freqüentemente julga fazê-lo, quando de fato
daí o que me parece evidente, e se confirma historicamente, como aliás já foi notado acima , que a Lógica formei clássica se elaborou na base da linguagem discursiva. Nada tem a ver com "leis do pensamento", ou estruturas a priori, pré-formadas não se sabe onde. 18 Metafísica, IX, 7.
se encontra na perspectiva do Conhecimento do Conhecimento, e vai tratar não daquelas ocorrências,
e sim do conhecimento que se tem delas, de sua representação mental ou conceito, e de sua
expressão verbal que assim, inadvertidamente, se projeta na Realidade considerada. Já nos referimos
acima a essa confusão e projeção idealista ao lembrarmos o caso tão flagrante do conceito "matéria".
Outra instância característica no assunto, fartamente conhecida, debatida e de considerável papel na
história e evolução do pensamento filosófico, bem como do científico também, é a dos conceitos
"espaço" e "tempo". Em virtude daquela deformada perspectiva e inversão, o "espaço", de simples
relação de situação ou posição de uns objetos com respeito a outros; e o "tempo", de relação de
sucessão de situações 20, isto é, de simples conceitos mentalmente representativos de circunstâncias
particulares da Realidade, se farão, uma vez transpostos para essa Realidade e nela confundidos e
substancializados, se farão num espaço e tempo absolutos e de realidade e existência extramental
concreta e em si, independentemente de quaisquer objetos eventualmente neles presentes e
incluídos. Algo como, para o "espaço", um continente extenso e infinito predisposto para conter e
abrigar no seu interior as coisas de um Universo nele eventualmente introduzido; mas que dele
inteiramente independe, podendo ser concebido como sem esse conteúdo. E no que diz respeito ao
"tempo" seria como o desenrolar no vácuo desta outra entidade ad hoc inventada e que seria a
"Eternidade", a presenciar ou o vazio, ou o perpassar incidente de coisas e ocorrências eventualmente
presentes no correr de uma existência sem começo nem fim . . .
A literatura filosófica, com extensões traiçoeiras inclusive para o campo da Ciência,aí está para
exibir o infindável debate sem perspectivas, e os paradoxos sem conta, nem saída, a que levaram e
levam ainda hoje baralhamentos como esses das esferas subjetiva e objetiva. A confusão da
Realidade concreta, com o pensamento dessa Realidade, o que dá na confusão do Conhecimento
com o Conhecimento do Conhecimento.
Nesse sentido, e de certo modo, poderíamos dizer,possivelmente com alguma dose de
anacronismo,que a obra de Aristóteles constituiu um passo atrás nas realizações de seus
antecessores. Estes, embora sem muita clareza e precisão, muito pelo contrário, é força reconhecer, e
de forma grosseira no tratar o assunto, tinham ao menos vislumbrado a distinção entre as esferas
mental e extramental. Parmênides, p. ex., como foi lembrado, ocupa-se em separado daquilo que
respectivamente designa por "verdade" (que diria respeito à esfera mental) e por Opinião, que
constituiria o que hoje designaríamos por Conhecimento propriamente (em contraste com o
Conhecimento do Conhecimento) ou ciência empírica, isto é, dirigida direta e imediatamente para a
19 . Zeller. Outlines of the History of Greek Philosophy, trad. ingl. de L. R. Palmer. London, 173
20 Leibniz dirá do espaço e tempo que "são ambos uma ordem geral das coisas. O espaço é a ordem das
coexistências, e o tempo, a ordem das existências sucessivas. São coisas verdadeiras, mas idéias, como os números". Opera (ed. Dutens), III, 445.
Realidade exterior ao pensamento. Em Platão essa separação se faz ainda mais radical, e de tal modo
extremada que as idéias platônicas se substancializam num mundo supersensível bem destacado do
sensível que constituiria a Realidade de nossa experiência concreta ordinária.
Com toda sua fantasia poética e deformação mística, a concepção platônica tinha pelo menos o
mérito de distinguir as duas esferas respectivamente mental e extramental. Obviava-se com isso a
confusão em que incorreria Aristóteles e de tão danosas conseqüências que até nossos dias ainda
vicia o pensamento filosófico, fazendo-o tão freqüentemente perder de vista suas verdadeiras e
legítimas metas com a proposição de questões sem conteúdo real algum e incapazes de levar a outra
coisa senão um infindável e estéril debate em torno do significado de conceitos ou pseudoconceitos
reduzidos a simples formulações verbais que já há muito perderam qualquer ligação com a Realidade
em que vivemos e que condiciona a existência humana ,se é que jamais tiveram aquela ligação. Isso a
par dos empecilhos que tantas vezes opôs e ainda opõe a uma correta e adequada elaboração
científica.
Considere-se, para exemplificar, a famosa questão dos "Universais" que agitou, e dada a
posição central que ocupa, esterilizou em boa parte, durante séculos, o melhor do pensamento
filosófico. E ainda hoje, embora com alguns disfarces, tem os seus apreciadores. Os danosos efeitos
da confusão das duas esferas têm aí flagrante confirmação, pois o que se discute no assunto em
última instância, é precisamente o grau de "participação", digamos assim, dos conceitos numa ou
noutra esfera. A simples delimitação delas elimina a questão. Em vez disso, e enquanto os filósofos se
afogam em sutilezas que não passam no mais das vezes de puro jogo de palavras, a questão que se
pode dizer básica da Filosofia, que é a da caracterização e processamento da conceituação, premissa
essencial da Teoria do Conhecimento, e portanto de toda problemática da Filosofia em geral, se
obscurece e perde inteiramente num cipoal sem saída e debate sem solução nos termos em que a
questão é proposta.
A confusão das esferas subjetiva e objetiva do Conhecimento que deriva da Metafísica
aristotélica não vicia somente a Filosofia, mas ainda, e até nossos dias, atinge importantes setores da
elaboração científica; e até mesmo concepções correntes e hábitos usuais de pensamento.
Efetivamente, o fato de sobrepor o pensamento e seus sistemas e formas à Realidade que lhe é
exterior, e incluir nessa Realidade os quadros conceptuais em que pensamento e Conhecimento se
organizam e estruturam (e é nisso que vai dar a confusão aristotélica); e derivando por conseguinte a
elaboração do Conhecimento daqueles quadros, tais circunstâncias resultam forçosamente na
tendência, que acima referimos, ao enrijecimento e imobilização do Conhecimento. Isso porque, por
força delas passa-se a lidar com conceitos e as formas lógicas de sua expressão verbal, julgando
tratar de fatos da Realidade exterior ao pensamento, como aliás se vê tão claramente nas instâncias
acima lembradas dos conceitos "espaço" e "tempo" que, representando embora relações, se fazem,
porque expressos verbalmente por substantivos, em "coisas" ou "entidades" de existência substancial
incluída na Realidade exterior ao pensamento. Erigem-se assim, por força de confusão análoga,
simples operações mentais que vem a ser a "dedução" aristotélica, em fiel reprodução de ocorrências
da Realidade. O logicamente coerente, e pois corretamente "deduzido" e ajustável com isso ao
sistema ou sistemas conceptuais estabelecidos e consagrados, se reputa desde logo como
reprodução ou representação acertada da Realidade. Não é por simples acaso ou analogia que a
expressão vulgar e corrente tão em voga, que vem a ser "é lógico", tem o sentido de acerto e
segurança da afirmação formulada e assim qualificada. Tampouco constitui coincidência o emprego,
na terminologia consagrada da Lógica, do mesmo vocábulo para designar a "verdade" formal e a
"verdade" empírica, com o que se equipara em valor significativo, a articulação coerente da expressão
verbal ou simbólica (fato puramente mental), com a verificação empírica; a "verdade" do puro
pensamento e a verdade real. Pensamento e Realidade se confundem. E a transposição do
pensamento para a Realidade; ou inversamente, se preferirem, a interiorização da Realidade no
pensamento.
Em ambos esses casos exemplificativos citados, faz-se sentir a presença da velha concepção
aristotélica e confusão que nela se faz entre as duas esferas do Conhecimento, entre o mental e o
extramental. Bem como do complicado dispositivo metafísico que acima procurei esquematizar, e que
resulta dessa confusão e pretende justificá-la. Dispositivo esse com que Aristóteles introduziu as Idéias
platônicas nas "coisas sensíveis", tornando as em componentes delas: a forma realizando-se na
matéria e dando com isso a "coisa". "Forma" essa que vem a ser afinal o "conceito" que se trata de
alcançar pelo Conhecimento a ser obtido, na concepção aristotélica endossada em seguida pelos
séculos afora, com a descoberta daquele conceito no amálgama de "potência" e "ato" em que a coisa
sensível se realiza.
É assim na manipulação conceptual, através de operações lógicas, que se alcança o
Conhecimento.21 Quanto aos fatos reais, às feições e circunstâncias que compõem a Realidade
concreta exterior ao pensamento conhecedor e elaborador do Conhecimento, isso que constitui na
perspectiva moderna pós-metafísica o legítimo objeto do Conhecimento; se subestima, se não se
desconsidera por completo, ou então se manipula convenientemente a fim de acomodá-lo aos
esquemas conceptuais consagrados.
21
Não é aqui o lugar próprio para desenvolver a teoria desta excrescência da Metafísica que é a indução aristotélica cuja verdadeira natureza sempre se discutiu e discute ainda sem maior esclarecimento do assunto. O certo contudo é que com a indução aristotélica (não consideramos sua variante da indução "completa", que é puro truísmo verbal, e nada tem de significativo} com a indução aristotélica não se trata propriamente de elaborar, construir o conceito e representação menta. Das feições da Realidade,que é no que efetivamente consiste o Conhecimento. E trata-se sim de atinar com a "essência" das coisas que vem a ser o conceito que preexiste à operação de conhecer e que se trata de
É com esse rumo que a Metafísica de inspiração aristotélica intervirá na tarefa de elaboração
científica, com os resultados que se podem avaliar e que a história fartamente ilustra. Uma instância
flagrante desse procedimento, tanto mais esclarecedora como exemplo que já data dos tempos
modernos, e por isso além de largamente documentada e de fácil acesso e exame, melhor se destaca
no contraste com o novo pensamento antimetafísico que começava na época a dominar; essa
instância será a famosa questão da "essência das espécies" que tamanho papel, e papel altamente
negativo, representou no desenvolvimento das Ciências naturais. Ocupei-me do assunto em outra
oportunidade22 e lembrarei aqui apenas a observação de Darwin a respeito do assunto, lamentando os
naturalistas do seu tempo "incessantemente perseguidos pelas dúvidas insolúveis sobre a essência
específica desta ou daquela forma". Em suma, a elaboração científica se tornava essencialmente, na
base do modelo metafísico, um processo especulativo onde operações lógico dedutivas faziam as
vezes da observação empírica e conceptualização da experiência. E na forma lógica que se haveria de
desvendar a VERDADE.
Não é preciso insistir que é isso o observado no mundo ocidental, acentuando-se com a
Escolástica e a consagração da Metafísica aristotélica que iria daí por diante soberanamente inspirar e
orientar o pensamento da época. Assistiremos aí, a par de um intenso trabalho de elaboração lógica
(ou antes de refinamento e bizantinização da Lógica aristotélica) a Uma desenfreada especulação
abstrata orientada por aquela Lógica, e que no terreno da elaboração científica deixa a consideração
dos fatos reais num segundo e muito apagado plano. A ciência por isso marcará passo, e somente
ganhará impulso quando nos tempos modernos começa a gradualmente se desligar da Filosofia,ou
antes da Metafísica e dos esquemas lógicos estereotipados e especulações sem fim a que ela se
reduzirá. 23 E a elaboração do Conhecimento, em alguns de seus setores pelo menos, se orientará
diretamente para seu verdadeiro objeto: os fatos naturais exteriores ao pensamento elaborador, 24 e
não os fatos mentais que não fazem senão representar conceptualmente aqueles fatos naturais.
E abrem-se com isso as perspectivas para a separação das duas esferas do pensamento
confundidas pela Metafísica: de um lado o processo mental pelo qual se elabora o Conhecimento
desvendar. 22 Dialética do Conhecimento. 5a. ed. São Paulo, 1969, II, 361.
23 Há um beneficio contudo que talvez tenha sobrado dessa desenfreada especulação a que levou a Metafísica São
muitas gerações sucessivas que se terão exercitado na condução disciplinada das operações racionais a que levou aquela especulação, o que possivelmente teria contribuído, apesar de sua esterilidade em matéria de elaboração do Conhecimento, como ginástica mental adestradora do pensamento e educadora dele nos hábitos de rigor e precisão em que a cultura ocidental tão marcadamente se destaca.. O que teria possível mente preparado o terreno para o surto da Ciência moderna em que o pioneirismo dessa cultura é manifesto,
24 É preciso atenção para essa restrição: "pensamento elaborador", pois o próprio pensamento ou antes a atividade pensante pode constituir, e eventualmente constitui de fato objeto do Conhecimento como feição da Realidade que também é. Assim na Psicologia que numa certa perspectiva se ocupa do "Pensamento" como objeto. Do que se trata no texto é do pensamento como integrante do Sujeito do Conhecimento em confronto com o Objeto do mesmo Conhecimento.
propriamente, a saber, a representação mental das feições da Realidade exterior ao pensamento
elaborador. De outro, a consideração dessa mesma representação mental elaborada pelo
Pensamento e nele presente como conceituação constituinte do Conhecimento; da Ciência em
particular.
Para essa discriminação dos objetos da atividade pensante , discriminação essa que delimitará
as esferas objetiva e subjetiva, isto é, que os campos respectivos: do Conhecimento, de um lado; de
outro, do Conhecimento do Conhecimento que constitui ou deve constituir o próprio da Filosofia, para
essa discriminação, é importante notá-lo, contribui sobretudo a experimentação. Realmente na
experimentação as duas esferas se propõem desde logo separadamente e bem discriminadas uma da
outra. Diferentemente da simples observação passiva e contemplativa, o pensador e elaborador do
Conhecimento, na experimentação, intervém ativamente para dispor de maneira conveniente e em
perspectiva adequada o objeto de sua consideração e exame, para fazer com que se reproduza nesse
objeto o fato que se trata de compreender e representar mentalmente. intervir nele e como que
participar dele com sua ação. Ação pensada, e no outro extremo da ação reflexo, com o pensamento
alertado não somente visando o objetivo imediato de dirigir a ação, e sim também o de se integrar no
Conhecimento preexistente, torna-se ele próprio Conhecimento novo. Ação pensada em função do
objeto considerado, no curso da qual se desenrola o processo de elaboração cognitiva e em que essa
elaboração se realiza na base do duplo e conjugado impulso do pensamento conduzindo a ação para
amoldá-la ao objeto e reproduzi-la, e da ação inspirando e estimulando o pensamento e o ajustando
ao objeto. E esse o processo cognitivo (processo natural e espontâneo, mas que se vai tornando cada
vez mais consciente e deliberado no curso da experimentação científica e adestramento que
proporciona), é isso que se revelará sempre mais acentuadamente nos procedimentos da elaboração
científica moderna. Procedimentos esses que pela sua própria natureza e dinâmica, em contraste com
a especulação abstrata e a simples observação passiva, põem em confronto direto, e ao longo de
todas as suas operações, o sujeito e o objeto bem discriminados um do outro. Isso tanto mais
acentuadamente quanto, por força de circunstâncias históricas gerais notórias que não precisam ser
aqui repisadas, propõe-se crescentemente, no "conhecer", não apenas, como objetivo, o simples
deleite intelectual ou valor intrínseco e em si da atividade intelectual e do Saber, como se dava com os
filósofos gregos;] ou, como nos séculos que os separam do mundo moderno, o objetivo fixado no
sobrenatural e no conhecimento da Divindade e de seu comportamento com relação à humanidade. E
sim propõe-se o "conhecer", na expressão famosa de Descartes, como aquisição de "uma prática pela
qual conhecendo a força e as ações do fogo, da água, dos astros, dos céus e de todos os outros
corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diferentes misteres de nossos
artesãos, pudéssemos aplicá-los pela mesma forma a todos os usos para os quais são próprios, e
tornando-nos assim como senhores e possuidores do Universo". 25
Esse domínio do Homem sobre a Realidade que Descartes preconizava, e de fato se estava
realizando em ritmo acelerado com o progresso da Ciência moderna; esse "gerar" das coisas sensíveis
sem ser pela "forma" potencialmente preexistente e incluída nelas, nos termos da Metafísica; e sim
forjadas no Conhecimento construtor pelo próprio Homem, dirigindo a sua ação, e não desvendado
pela "dedução"; isso permite desde logo discriminar os objetos do Conhecimento e abrir claras
perspectivas para o Conhecimento do Conhecimento, para o objeto da Filosofia disfarçado na
confusão metafísica do ser e do conhecer.
Assim será efetivamente, e o objeto próprio da Filosofia começa a se definir. E que o problema
do Conhecimento, o como conhecer, premissa da Filosofia, se propõe de forma patente com o
progresso da Ciência e as perspectivas que esse progresso abria. Tratava-se de uma transformação
radical dos métodos de elaboração cognitiva. Galileu e seus sucessores, atirando objetos de alturas
para o solo, e fazendo rolar esferas sobre planos inclinados, contrastavam nitidamente seus métodos
com a anterior e habitual especulação inspirada na Metafísica aristotélica. Achavam-se pois
abertamente em jogo os procedimentos adequados para a elaboração do Conhecimento. E era
preciso não somente determinar esses procedimentos, mas trazer a sua justificação e reeducar-se na
condução dos novos métodos. Tanto mais que tais métodos iam chocar-se em última instância com
preconceitos profundamente implantados em concepções tradicionais que traziam o poderoso selo de
convicções religiosas. As necessidades do momento levavam assim os homens de pensamento a se
deterem atentamente nos problemas do Conhecimento. O que, afora as estéreis manipulações verbais
a que se reduzira a Lógica formal clássica, praticamente já não detinha a atenção de ninguém.
Abria-se com isso uma nova fase para a Filosofia, forçando-a a se voltar para seus objetos
próprios e neles se concentrar. Afirmam-se tais objetos que se farão patentes. Toda a Filosofia
moderna nos traz o testemunho disso, de Bacon e Descartes até o criticismo kantiano. Aquilo que
ocupará desde o séc. XVI (note-se a precisa coincidência com o grande surto da ciência moderna) o
centro das atenções filosóficas, serão expressamente as questões relativas ao Conhecimento e sua
elaboração. 26 A Filosofia encontrava seu caminho como Conhecimento do Conhecimento.
A indagação central e nevrálgica que se propõe será essencialmente determinar a relação entre
a mente humana (pensamento, Razão) e o mundo exterior da experiência sensível; e que
25
Discurso do Método. Sexta Parte. 26 Na Filosofia moderna, a partir de Descartes, "há uma inversão da pergunta clássica: Que são as coisas?, para
convertê-la na pergunta: Que é o conhecimento das coisas, e como se pode alcança-lo? (José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia. Buenos Aires, 1958, p. 647.) Só que o autor, como em geral os historiadores da Filosofia, não se dá muito ao trabalho de pesquisar a fundo e interpretar essa "inversão" no conjunto do processo evolutivo do pensamento filosófico, ligando o anterior ao posterior da ''inversão''. Com algumas exceções, bem entendido, mas raras. A história da Filosofia se apresenta em geral como o desfilar, num mesmo plano, das opiniões de sucessivos filósofos e suas escolas.
Conhecimento da Realidade tal relação pode proporcionar. O que vai dar no como e em que medida
contribuem respectivamente para o Conhecimento, e como para isso se combinam e associam entre si
os dois fatores cuja participação se podia observar na prática da elaboração científica moderna. Numa
palavra, tratava-se de determinar como se repartia e como se combinava a participação respectiva, de
um lado, da experiência sensível; de outro, do pensamento propriamente e independentemente de
qualquer outra contribuição.
É nesses termos que fundamentalmente se propõe o problema do Conhecimento, dando origem
às duas tendências para as quais se inclinam respectivamente as soluções propostas: no sentido, seja
da valorização e destaque da atividade pensante e racional, com a relativa desconsideração, e até
mesmo, nos casos extremos, eliminação da realidade sensível e dos dados que fornece; seja, em
sentido oposto, a subestimacão da atividade pensante, relegada a papel subsidiário e insignificante da
simples sensação.
Os dois pólos da Filosofia moderna, o idealismo e o materialismo, embora muitas vezes
reciprocamente se interpenetrando, sobrepondo-se um a outro e inextricavelmente se confundindo,
têm suas raízes nessa oposição, mais ou menos marcada e radicalizada conforme os autores, em que
se situa o problema do Conhecimento. E será em última instância sob a inspiração e na base das
respectivas posições em face de tal problema, que se vão constituir os sistemas filosóficos e
concepções ontológicas. Tudo isso naturalmente temperado e ajustado convenientemente em função
de concepções fideístas ditadas pelo hábito muito mais que por outra coisa (já fora ficando para trás a
verdadeira fé religiosa que o mundo medieval conhecera), preconceitos ideológicos, respeito à tradição
e conveniências políticas. O que neo deixa muitas vezes de complicar inextricavelmente os textos
filosóficos da época, tão marcados ainda pelos remanescentes da herança metafísica e o
característico estilo da especulação escolástica.27
Apesar disso, contudo, destacam-se linhas discriminatórias suficientemente marcadas. Os
materialistas, ou antes os mais voltados para a "substância material" como componente do Universo,
em contraste com a "substância ideal" dos idealistas, esses simplesmente equiparam o Conhecimento
elaborado ou por elaborar, ou mais precisamente a conceituação e a forma verbal em que tal
conceituação se exprime e apresenta, equiparam-na, em correspondência biunóvoca, à realidade
sensível. Cada coisa, entidade, qualidade, ação... que compõe o Universo e que os sentidos
percebem, terá sua "idéia" e expressão verbal própria a registrá-la no pensamento. Reduz-se assim ao
mínimo, se não se elimina de todo, o papel ativo do pensamento na elaboração do Conhecimento e
27
Não posso deixar aqui de chamar a atenção para Descartes, certamente a grande figura daqueles séculos. Ninguém como ele terá exibido melhor o modelo ilustrativo dessa confusão discursiva característica da época. E para senti-lo bem, nada melhor que a comparação, entre outros textos cartesianos, da clareza, rigor e precisão das Regras para a condução do espírito, e a divagação, o convencionalismo e o repetido ajustamento formal do texto para tais, presentes na
formação dos conceitos ou "idéias" que se tornam, com o Conhecimento que compõem, em simples
reflexo mental mais ou menos passivo da Realidade exterior. Locke (que destacamos aqui apenas
como pioneiro que foi do materialismo moderno) e aproximadamente na mesma esteira a generalizada
dos materialistas,28 Locke deriva as "idéias" de que se constitui o Conhecimento diretamente das
sensações que se marcariam na mente como "impressões na cera", não cabendo assim ao
pensamento nada mais, com aquele registro das sensações tornadas em idéias, que "combinar,
comparar e analisar" essas mesmas idéias. Desse modo o materialismo, se de um lado empresta o
devido valor à experiência sensível como fator primário da elaboração cognitiva, de outro lado tende a
fechar as perspectivas para uma apreciação adequada da função pensante e da natureza real do
Conhecimento.
Os idealistas vão em sentido contrário. Em vez de exteriorizarem o Conhecimento, segundo o
modelo do materialismo, fazendo dele algo a ser simplesmente copiado pelos sentidos, como que
desvendado, descoberto na Realidade onde já estaria pré-formado,29 os idealistas trazem o Universo
para dentro da esfera subjetiva, e ai irá buscá-lo o Conhecimento. Em alguns idealistas,
particularmente nos grandes precursores de Kant, e no próprio Kant, isso se disfarça ainda sob a
aparência de uma Realidade exterior que, embora incognoscível, assim mesmo existe e representa o
papel discreto de estimulante do pensamento: é a "coisa em si", o "número" kantiano. Mas como bem
dirá Fichte em seguimento a Kant, se esta pseudo-existência é incognoscível, é que verdadeiramente
não existe. E assim o idealismo tende necessariamente para a eliminação da Realidade exterior ao
Pensamento, e à subestimação, senão desprezo total da experiência sensível na formação do
Conhecimento.
Seja contudo qual for o tipo ou matiz do idealismo, em todo ele o que realmente ocorre, aquilo de
que os filósofos idealistas se ocupam,e é o que centralmente nos interessa aqui,é do pensamento e
seu produto que é o Conhecimento. E assim, revestindo embora seu exame e suas conclusões de
linguagem ambígua que nem sempre deixa muito claro o objeto a que se refere, o idealismo,
devidamente filtrado, vai oferecer algumas das principais premissas para a devida proposição do
problema do Conhecimento e a caracterização e definição do Conhecimento do Conhecimento. Isto é,
do papel da Filosofia. E essa em particular a contribuição de Kant e Hegel.
O criticismo kantiano coloca em plena luz o papel ativo e participante do pensamento, a Razão,
linha dominante do consagrado Discurso do Método. 28
Note-se bem que estamos aqui nos referindo ao chamado materialismo "vulgar" que Marx e Engels viriam mais tarde reformular no materialismo dialético.
29 Como vimos pelo nosso esquema, os conceitos ou idéias se apresentariam aos materialistas como que presentes
nas "coisas", etc. do Universo, uma vez que não há no caso senão percebê-las pelos sentidos e registrá-las sob forma de "idéias". O que x assemelha mais a uma simples "descoberta" e não elaboração como efetivamente se dá com os conceitos, e será obra da Dialética marxista.
na elaboração do Conhecimento. E desfaz com isso a falsa perspectiva dos materialistas e de sua
concepção de um Conhecimento simples reflexo passivo, através dos sentidos, da Realidade exterior;
e cuja elaboração consiste unicamente na descoberta de "verdades" já de antemão incluídas na
Realidade.
Quanto a Hegel, a sua dialética romperá pela primeira vez a tradição metafísica de conceitos
fixos e invariáveis, tradição essa também incorporada pelo materialismo vulgar,como aliás não podia
deixar de ser dentro das posições básicas desse materialismo e seu postulado implícito de uma
correspondência biunívoca entre a conceituação, os conceitos, ou antes, a expressão verbal desses
conceitos, e as feições e circunstâncias da Realidade. A dialética hegeliana apresentará, em contraste
com aquela velha e tradicional concepção metafísica, a verdadeira natureza da conceituação, a mútua
ligação e entrosamento dos conceitos em sistemas de conjunto através dos quais, e somente assim
adquirem conteúdo e sentido. Em outras palavras, os conceitos nada significam ou representam por si
e isoladamente. Essa significação e representação se realizam pelas ligações e no entrosamento
deles entre si. isto é, no sistema que formem em conjunto. 30
Revelou Hegel com isso, na sua intimidade, a constituição e estruturação da conceituação de
que o Conhecimento se compõe. E abriu com isso larga perspectiva para a interpretação das
operações do pensamento e processo de elaboração do Conhecimento e formação dos conceitos.
Hegel traz com isso a maior contribuição de todos os tempos para a elucidação do problema do
Conhecimento.
Não vamos aqui debater o fundo do pensamento hegeliano, de tão difícil penetração pelo
complexo e imaginativo estilo em que se envolve a obra de Hegel .Mas o certo é que o descrito nessa
obra consiste em suma e no essencial, para o que nos interessa aqui, na gênese e desenvolvimento
da racionalidade do Homem através do progresso do Conhecimento. A descrição que Hegel faz desse
progresso é fantasiosa, mais ou menos arbitrária no que diz respeito à realidade dos fatos, e
acompanhando muito mal o verdadeiro processo histórico tal como ele efetivamente se realizou. Além
disso, como idealista que é, Hegel encarna o progresso do Conhecimento e da Razão "na marcha do
Espírito", desde sua gênese na Certeza Sensível até sua plena eclosão no Saber Absoluto. "A
concepção histórica de Hegel, escreverá Marx, supõe um espírito abstrato ou absoluto que se
desenvolve de tal maneira que a humanidade não é senão uma massa dele impregnada mais ou
menos conscientemente. No quadro da história empírica, esotérica, Hegel faz pois operar uma história
especulativa, esotérica. A história da humanidade se torna a história do espírito abstrato da
humanidade, estranho por conseguinte ao homem real."31
Se contudo a descrição histórica de Hegel é arbitrária e fantástica, e a forma que lhe concede
30 Procurei desenvolver essa questão em Notas Introdutórias à Lógica Dialética.
essencialmente especulativa, a análise que faz do Pensamento e Conhecimento, e que se inclui
naquela descrição, isso nos dá o enquadramento e a estrutura do processo racional no ato de
apreensão e representação mental da Realidade exterior; ato no qual o processo é gerado e se
constitui em Razão conhecedora (Conhecimento). E é isso que Marx irá buscar no seu mestre, a saber
(na observação de Engels), "o núcleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel... o método
dialético na sua forma simples em que é a única forma justa do desenvolvimento do pensamento". 32
Não nos deteremos naturalmente aqui, por estar fora de nosso assunto, no tratamento especifico
que Marx, com o método dialético que foi buscar em Hegel, deu aos fatos econômicos, sociais e
políticos que resultaram na transformação histórica do mundo moderno, na eclosão e estruturação do
capitalismo industrial e no delineamento das premissas do socialismo. O que imediatamente nos
interessa agora, e é o que se observará com toda clareza na obra de Marx, consiste no fato que,
historicamente, é afinal na consideração do Conhecimento do Homem (aquilo que seriam as nossas
"ciências humanas" de hoje, e naturalmente o tema marxista por excelência) é ai, bem como no
método de elaboração desse Conhecimento, que se revelaria com precisão o conjunto e generalidade
do problema filosófico, isto é, a determinação em sua totalidade, e a caracterização do Conhecimento
do Conhecimento que vem a ser o conteúdo e objeto central e geral da Filosofia, e onde ela encontra,
em toda sua plenitude, o terreno que lhe é próprio e especifico no complexo geral do Conhecimento.
Tal como, desde suas origens nos primeiros passos do pensamento grego, e embora tão
confusamente como foi observado, se propôs à reflexão.
Os fatos sociais, que são os que se situem, ou devem ser situados no centro do objeto "real" do
Conhecimento do Homem, têm isto de singular em confronto com outros fatos , físicos, biológicos.. . -
que neles o Homem é simultaneamente agente e paciente, determinante e determinado; e o que é
mais característico e especifico é que, na perspectiva do Conhecimento, o Homem é, ao mesmo
tempo que o "conhecido", também o "conhecedor". E conhecido como conhecedor, tanto como, vice-
versa, conhecedor como conhecido. Considere-se a situação. O individuo humano determina seus
atos e dirige seu comportamento; e é desse comportamento que resultam afinal os fatos sociais. O
comportamento é mesmo o constituinte de tais fatos. O Homem é assim autor deles, seu motor e fator
determinante. Mas doutro lado, também resulta deles: são esses mesmos fatos sociais que
determinam o Homem, no sentido que ele é antes de tudo um produto da sociedade, e se comporta
em função do meio social de que participa, em que vive e que lhe modela a personalidade.
Essas relações sociais contudo, as instituições, tudo enfim que rodeia o Homem e o retém numa
31 Karl Marx. La Sainte Famille. Oeuvres Philosophiques, trad. J. Molitor, Paris, 1927. II, 151. 32 F. Engels. La "Contribution à la critique do l'economie politique" de Karl Marx, in Études Philosophiques. Paris.
Éditions Sociales (1951), p, 84.
densa e estreita malha de normas e modos de ser, de agir, e mesmo de pensar e até de sentir; tudo
aquilo que constitui o enquadramento dentro do qual o Homem desenrola sua existência e desenvolve
suas atividades, e que o condicionam, tudo é obra dele, do próprio Homem. Mas é obra que ele realiza
impulsionado e orientado pelo seu pensamento e Conhecimento,que afinal constituem sua Razão ,,
formados naquele mesmo enquadramento de relações e instituições sociais em que ele se educa e
forma, no qual e pelo qual se modela a sua própria maneira de ser. E em que ele faz propriamente o
indivíduo humano que é, com suas características próprias, tendência, impulsos, aspirações,
motivações em geral . . .
Como se verifica, o processo é nos dois sentidos, ou melhor, gira em circuito fechado sobre si
próprio, confundindo-se permanentemente o ponto de partida com a chegada. Ao Homem
determinante se sobrepõe o Homem determinado que parte em seguida para nova determinação de si
próprio. Os dois momentos da ação e comportamento humanos, a saber, de um lado, a maneira de
agir do individuo humano; de outro, o fator determinante dessa maneira de agir; ou, para empregar
expressões usuais, efeito e causa do comportamento humano se confundem no mesmo Homem
simultaneamente agente e paciente. E agente como paciente; e paciente como agente. É assim, de
forma tão específica e original no conjunto dos fatos em geral, que se propõe a questão relativamente
aos fatos humanos. Pergunta-se então: como enquadrar situação como essa, de aparência tão
aberrante do ordinário, dentro dos moldes correntes do pensamento científico? Como conceituá-la
devidamente, e dar conta teórica dos fatos sociais e humanos pela mesma forma que se vinha
praticando com os fatos físicos desde os primórdios da Ciência moderna no séc. XVI? É realiza-lo
note-se bem, não apenas com o objetivo de mais uma realização erudita, no estilo pré-moderno, e
sim,condição para o sucesso, tal como se dera com os fatos físicos,para alcançar também no
Conhecimento do Homem o ideal cartesiano já acima lembrado, de uma prática que tornasse os
homens em "senhores e possuidores do Universo"
Fazia-se para isso necessário contornar a dificuldade, ausente nos demais setores do
Conhecimento onde, ao contrário do que se passa com os fatos humanos, o elaborador do
Conhecimento, que é o Homem, não se situa fora dos acontecimentos que se trata de conhecer; e de
fora deles os observa e interpreta sem que com isso eles modifiquem o seu curso. No Conhecimento
do Homem, na observação e interpretação dos fatos humanos, sociais, todo conhecimento elaborado
se integra nesses mesmos fatos, se torna deles e vai configurar uma nova realidade social e humana
distinta da anterior. Isso porque, insistimos, os fatos sociais não se desenrolam, está visto,
independentemente da ação humana, porque se constituem dessa ação que tão pouco se realiza
independentemente do pensamento do Homem agente e do seu conhecimento. Inspira-se nesse
conhecimento e por ele se orienta e dirige. O conhecimento dos fatos sociais é assim ele próprio
participante e parte integrante e essencial dos mesmos fatos.
Nessa maneira de propor o assunto e de se situar em frente a ele na prática da elaboração do
Conhecimento,e é assim, como veremos, que se situa Marx, donde o alcance, que assinalamos, de
sua obra,nessa maneira já se encontra implícita a solução da questão. Bem como a resposta, ao
mesmo tempo, do problema filosófico essencial que tem sua principal origem, como se viu, na maior
ou menor confusão das duas esferas do Homem pensante e conhecedor, e que vêm a ser as esferas
subjetiva e objetiva. O pensar e o conhecer, de um lado; o pensado e o conhecido, de outro. Tal
confusão das esferas subjetiva e objetiva não consiste simplesmente na superposição ou indistinção
de ambas. Dessa indistinção deriva também a exclusão de uma ou outra. Quando não se as distingue
e discrimina devidamente entre si, determinando-se suas relações recíprocas, dá-se a
desconsideração de uma delas, com a conseqüente fixação na outra. É o que sempre fizeram, e
continuam muitas vezes a fazer, em campos opostos, idealistas e materialistas vulgares, isto é, não
dialéticos, acentuando cada qual, e respectivamente, ou a esfera subjetiva ou a objetiva, com a
desconsideração da outra.
Isso se verificará mais uma vez, e de maneira flagrante,mas agora se abrirá a perspectiva para
desfazer afinal, em definitivo, a confusão , se verificará no debate do problema do Homem e da sua
liberdade, equacionado pela Ciência moderna. Será o conflito entre a liberdade de escolha, pelo
indivíduo, o livre arbítrio, de uma parte; e doutra a premissa essencial da Ciência, a saber, a sujeição
do Universo e de todas suas ocorrências, inclusive no relativo ao Homem, a leis, isto é, à necessidade.
Considerada unicamente a esfera subjetiva, e não há senão afirmar a liberdade do Homem na
determinação de seus atos e comportamento; e portanto dos fatos sociais que em última instância
resultam desses atos e comportamento. A decisão, o impulso, o motor estão no Homem, não há como
negá-lo. É a subjetividade, pois, que configura o comportamento humano. O interior do Homem,
impenetrável e indeterminado. Ou antes, a sua razão, a sua racionalidade. O homem determinado,
privado de sua capacidade de escolha, é precisamente aquele em que se aboliu a Razão, aquela
racionalidade que faz dele o verdadeiro Homem sinônimo de "ser racional". O homem privado de
liberdade e livre escolha, deixa de ser verdadeiro "Homem".
É sobre essa base e à luz dessa concepção,o que mostra sua profundidade e universalidade de
seu reconhecimento, que se construíram todos os sistemas normativos da conduta humana, das
simples regras de civilidade até a Ética e o Direito. A saber, sobre a noção de responsabilidade que
implica, está visto, a liberdade.
Detendo-se ai, não há como introduzir o determinismo que a Ciência implica. Se nos fixamos e
imobilizamos na subjetividade, neo há, não pode haver verdadeira Ciência do Homem, no sentido
moderno da palavra. Isso porque considerada a Razão humana em si, irredutível e dada como um
todo desde logo completo e acabado, sem antecedente ou pré-formação,e é assim que se propõe a
Razão para quem se fixa na subjetividade, e parte daí para a ação e comportamento humano, sem
considerar o inverso: da ação e comportamento para a Razão; sem considerar a origem, as raízes, a
gênese e constituição dela, tomada assim a Razão, ela permanece fora do determinismo, e não há
como legitimamente nele incluí-la. "Determinismo" no sentido de premissa da Ciência; o determinismo
da necessidade.
É por isso que a generalidade dos filósofos quando procuram, como de fato se dá, propor o
problema do Homem em termos científicos, isto é, integrá-lo na Ciência moderna, tendem a "saltar"
para fora da subjetividade, para seu oposto, e consideram unicamente o homem-objeto da Ciência, o
homem determinado e neo determinante. Determinado apenas extra-humanamente, como outro
objeto físico qualquer. Consideram apenas a esfera objetiva.
Há posições intermédias em que entram em linha de conta uma e outra esfera. Mas sempre com
"saltos" de uma para outra, e escamoteação mais ou menos disfarçada, e com maior ou menor
habilidade e sutileza, ora de uma, ora de outra daquelas esferas. São tentativas de conciliação de
situações incompatíveis (nos termos em que a questão é proposta). A saber, de um lado, a livre
escolha e deliberação do Ser racional cuja Razão paira acima das contingências extra-racionais, e
delas independe, não sendo pois por elas determinado em sua vontade. De outro lado, essas mesmas
contingências, necessariamente incluídas no postulado determinista, e que seriam pois determinantes.
Marx segue outro caminho, e inspirando-se na dialética hegeliana, faz dela o seu "método" que
vai aplicar à consideração e interpretação da história, e em particular dos fatos que presencia e de que
participa; e que, como homem de ação e revolucionário, pretende orientar, necessitando para isso não
somente fixar-lhes o determinismo, mas com isso também as circunstâncias que modelam esse
determinismo e que a ação política e revolucionária seja capaz de orientar. E o que lhe permitirá situar
diferentemente a questão em foco, de maneira a articular num conjunto e totalidade, em outras
palavras, ligar dialeticamente, os termos do dilema. Isto é, Marx não começa por isolar, como fazem
seus predecessores, o Ser racional com a sua Razão, o Homem pensante e conhecedor; não o isola
das circunstâncias extra-racionais em meio às quais e em função de que o Homem é agente. Noutras
palavras, não absorve, e com isso anula o Homem agente no Homem pensante e conhecedor,
deixando em conseqüência de lado as circunstâncias exteriores em meio às quais 0 Homem é agente,
como fazem os idealistas e filósofos da liberdade humana, do livre arbítrio. Nem tampouco, e
inversamente, confunde o Homem pensante e conhecedor, no Homem agente, fazendo daquele
pensamento e conhecimento simples epifenômeno de uma ação e comportamento exteriormente
determinados. Marx fixa sua atenção,será o seu "método", não separadamente num ou noutro desses
termos, alternadamente ou no pensamento (Razão) ou na ação concreta. E sim considera-os em
conjunto; melhor: no processo em que ambos se conjugam, unificam; e que constitui precisamente o
essencial da História: o seu movimento. Processo e movimento da história, esses, que serão a
passagem, a transição de um para outro momento do mesmo processo, consistindo na permanente
transformação, nos dois sentidos, de um no outro. O pensamento fazendo-se ação, tanto como a ação
se fazendo pensamento. E Conhecimento.
Em outras palavras, é pelo pensamento, e Conhecimento que o constitui e inspira (pois não há
ensamento "puro" e vazio de Conhecimento. Pensamento e Conhecimento no final se confundem), é
ssim que o Ser racional que é o Homem, livremente se determina e delibera sua ação. Mas esse
pensamento e Conhecimento determinantes se forjam nas circunstâncias da vida e do meio físico e
humano em que o Homem, social por excelência, age, desenrola sua ação, e se torna com isso o Ser
racional que é. A ação dele se faz pensamento e Conhecimento, porque estes se estimulam e
informem nessa ação; tal como pensamento e Conhecimento se fizeram ação porque são eles que a
promovem e impulsionam. E o processo continua assim, ininterrupto, entrosando-se nele Homem
pensante e conhecedor, e Homem agente. O Homem pensante e conhecedor transformando se em
Homem agente; e inversamente este naquele. E trata-se aí, note-se bem, não de uma alternância
monótona e que se repete sempre igual. Longe disso, e muito pelo contrário, o processo (que é tanto
da história do indivíduo, o desenrolar de sua existência individual; como da coletividade em que os
indivíduos se comunicam, e da espécie em que eles se sucedem e continuem uns aos outros) o
processo, dizemos, se renova permanentemente, em cada cicio que é sempre diverso do anterior, mas
rico de ação, de experiência realizada, de pensamento desenvolvido, de Conhecimento acrescido
graças à acumulação de sucessivas aquisições. Acumulação essa cuja possibilidade constitui no
Universo privilégio do Homem e o fator que precisamente faz dele o Ser racional que é. E graças a
essa faculdade de se valer do seu passado a fim de utilizá-lo no presente e projetá-lo no futuro com o
acréscimo das novas aquisições do presente, é graças a esse privilégio que o Homem ocupa a
posição ímpar que é a sua no Universo. Que logra marchar para frente, progredir e se transformar e
renovar em ritmo quantitativo e qualitativo sem paralelo em outras feições da Natureza.
Essa é a perspectiva dialética do Homem que permite considerá-lo no ângulo adequado, e
devidamente conceituar em termos científicos este aspecto ou feição do Universo que é a
humanidade, o fato humano ,ou a Razão, que vem a dar no mesmo, e para empregar a terminologia
consagrada da Filosofia. É elaborar com isso o Conhecimento do Homem.
Nisso consistiu a obra filosófica de Marx: lançar as premissas desse Conhecimento com o
método adequado para elaborá-lo. E Marx realizou isso neo apenas teoricamente, nem teria sido
possível realizá-lo assim; e é importante notá-lo, para modelo e ensinamento, porque outro fosse o
caso, e Marx, com todo seu gênio e erudição, teria fracassado, ou avançado muito pouco, tal como se
deu e dá ainda com tantos que procuraram e outros que continuam procurando, sem dar com ele, o
caminho acertado. Marx não foi unicamente o cientista "puro", ou filósofo do velho estilo (e quantos
sobram ainda...) que de longe e sobranceiramente contempla os fatos que pretende interpretar e
conhecer. Marx envolveu-se nesses fatos, participou ativamente deles, e é por isso que logrou
compreendê-los e os tornar em "teoria". Abordou a questão simultaneamente como homem de
pensamento e homem de ação. Como filósofo e homem de ciência, e como revolucionário. Homem-
pensante e conhecedor, e homem agente. E o fez em plena consciência da obra que realiza e do
papel que desempenha. Ele o registra expressamente quando, na XI e última das Teses sobre
Feuerbach, escreve: "Os filósofos não fizeram até hoje senão interpretar o mundo de diferentes
maneiras. Trata-se agora de transformá-lo".
E foi o que fez: filósofo, propôs-se a tarefa de impulsionar a transformação socialista do mundo
capitalista, que era a direção para a qual apontavam os fatos que vivia. Fatos que soube
progressivamente entender e interpretar com acerto, graças a um pensamento e Conhecimento cuja
acuidade e nível trouxera em parte de sua formação num meio do mais alto teor. Mas que no essencial
e decisivo soube forjar no correr da própria realização da tarefa a que se dedicara de cabeça e
coração, o que lhe permitiu nesse amálgama de teoria e prática, prática e teoria, elaborar a "teoria" do
processo histórico em que se engajara, traçar-lhe as primeiras e fundamentais linhas da "prática" que
levaria à sua complementação. E dar com sua ação os passos preliminares de tal prática.
Espelha-se assim em miniatura, na vida de Marx, na qual pensamento e ação, ação e
pensamento se ligam num processo e conjunto indissolúvel e auto-estimulante, espelha-se aí a
premissa básica e ponto de partida do Conhecimento do Homem: o Homem ao mesmo tempo autor e
ator da história; seu ativista e como tal autor e determinante dela; mas simultaneamente também sua
criatura: nada mais fruto legitimo do mundo capitalista do séc. XIX em seus primeiros passos
revolucionários para o socialismo, e seu derivado, que Marx e sua obra. E assim, a par de
determinante, determinado também. Marx realiza com isso um modelo em relevo e grande destaque
da posição do Homem ao mesmo tempo autor e ator da história.
Será assim? Ou não será Marx senão um caso todo particular, especifico, inconfundível e
incomparável com o da massa de seus contemporâneos? E certo que o plano em que se situam os
indivíduos humanos, e o grau de participação de cada qual, pelo seu pensamento e ação, na marcha
da História, não são os mesmos, e muito pelo contrário divergem consideravelmente. A generalidade
se conserva no modesto plano de uma vida privada que se encerra em estreitos horizontes familiares
e ocupacionais modestos, e de relações sociais e atividades de ordem pública relativamente restritas.
Os indivíduos nessa situação terão naturalmente, cada qual por si, papel muito reduzido na marcha da
História. Mas nem por isso deixam de trazer a sua contribuição, porque é da totalidade dessas
contribuições individuais, em conjunto, que a História se faz. Sem ela, a História não existiria com a
feição que foi a sua. Todos os indivíduos, embora em proporções largamente distintas, trazem a sua
parte de pensamento e ação que esse pensamento determina, para a resultante final que será a
história da coletividade, que serão os fatos sociais de que participam e no conjunto compõem. Marx
terá sido apenas um indivíduo entre muitos milhares que, agindo embora cada qual por conta própria e
por linhas distintas, contribuíram todos eles com alguma coisa para aquela resultante final. A própria
projeção de Marx e sua obra é função da mesma resultante.
Em Marx naturalmente se atinge elevada e excepcional culminância. Nele se reúnem e
conjugam o filósofo de larga visão e imensa erudição, um pensamento e Conhecimento, pois, de alto
teor, e o político revolucionário que pôs aquele pensamento e Conhecimento a serviço de intensa
atividade desenrolada no cenário dos mais amplos e decisivos fatos de sua época: no coração da
História de seu tempo, que é o embate das classes fundamentais geradas pelo capitalismo, burguesia
e proletariado ,em torno de cuja luta se configura o essencial da história do séc. XIX. É essa
excepcional e quase singular conjugação de um pensamento poderoso e ação de raio imenso que
alcança o principal da vida social de seu tempo, é isso que permitirá a Marx, no seu papel de ator e
autor da História que desempenhará com plena consciência dele (o que também neo é dado à
generalidade dos indivíduos), é isso que permitirá a Marx situar-se na posição de verdadeiro
experimentador social, reproduzindo no terreno dos fatos sociais algo análogo, mutatis mutantis, dos
processos experimentais em que se elaboraram as Ciências físicas modernas. Efetivamente Marx, na
base de sua observação e experiência colhidas no mais vivo do desenrolar dos fatos históricos de seu
tempo e de que intensamente participa, Marx logra elaborar a "teoria" desses fatos, isso é, determinar
suas ligações mútuas e sistema de relações no qual em conjunto eles se dispõem; desvendando com
isso a dinâmica essencial que os anima e impulsiona, a saber, a luta do proletariado em suas
diferentes formas, da simples desinteligência entre empregados e empregadores, à greve e à
insurreição. E apreende as motivações dessa luta: as reivindicações dos trabalhadores assalariados
como contrapartida da acumulação de capital gerada pela mais-valia subtraída pelos detentores do
capital no jogo das transações de compra e venda da força de trabalho. Apreende mais o progressivo
despertar no trabalhador de uma consciência de classe adquirida na luta em que se engaja;
consciência essa que vai dar em sua expressão mais alta quando nela se configura o fim último a que
a luta se dirige e que vem a ser a transformação da ordem capitalista.
Marx tem com isso os elementos necessários para o fim de, como dirigente político, estimular a
luta, organizá-la e a orientar, determinar as suas formas preliminares e etapas sucessivas, e conceder-
lhe o conteúdo ideológico necessário para que se dirija certeiramente a seus fins próprios.
Nessa ação prática, e em face dos efeitos que produz, e resultados nela alcançados, positivos
ou negativos, Marx vai enriquecendo sua experiência, e na base desse enriquecimento, vai retificando,
reajustando e precisando suas conclusões teóricas e determinando suas posições práticas. Isso
porque em Marx, como homem de pensamento que é, a ação tem não somente sentido praticista , isto
é, os efeitos revolucionários imediatos que se almejam,, mas inclui também, conscientemente, o
conteúdo de experiência que traz para o embasamento, elaboração e desenvolvimento da teoria.
Reproduzem-se assim na obra politico-social de Marx, e no que se refere aos fatos humanos e à
Realidade história-social, circunstâncias que se podem comparar e emparelhar às verificadas na
experimentação física. A saber, a intervenção deliberada e planejada do observador e elaborador do
Conhecimento no desenrolar dos fatos considerados, a fim de os dispor, ou dispor-se em relação a
eles da maneira mais favorável à observação e exame. Marx, tanto como o físico experimentador, e
como ele orientado por seus conhecimentos anteriores, age sobre os fatos, ele, Marx, como político e
homem de ação que é, procurando dispô-los em perspectiva conveniente e atuar sobre eles,
reajustando com isso suas observações, ampliando o Conhecimento dos mesmos fatos e aprimorando
sua ação de político. Comporta-se com isso como experimentador, unindo a teoria à prática e a prática
à teoria, e iluminando-as ambas e reciprocamente cada qual pela outra. E leva com isso para o terreno
dos fatos sociais procedimentos metodológicos que se assimilam àqueles empregados na elaboração
moderna das ciências físicas que já tinham dado, e continuavam dando comprovação de seu alcance.
Logra assim assentar as bases para a elaboração científica do Conhecimento do Homem.
Ao mesmo tempo, abram-se com isso as perspectivas para a proposição do problema filosófico,
a começar pela liminar que é a determinação precisa do objeto da Filosofia. Situado o Homem na sua
História no evoluir de sua existência,nela simultaneamente autor e ator, agente e paciente, torna-se
possível situá-lo no conjunto do Universo. Também. ai autor e ator. Determinado por esse Universo e
totalidade de que participa; mas também determinante. Isto é, atuando sobre ele, modificando-o e o
transformando à feição de suas necessidades e aspirações dele Homem. Parte integrante da Natureza
e suas feições, ele próprio, com sua especificidade racional constituindo uma dessas feições, e
determinado embora por aquele conjunto de que é parte, o Homem não é a ocorrência passiva que se
submete e docilmente adepta às contingências em meio às quais se encontra e que o afetam e assim
determinam, como se dá com a generalidade das feições e circunstâncias que com ele compõem a
Natureza. Ou antes, deixa progressivamente, no desenrolar de sua evolução, de ser aquela ocorrência
passiva. E deixa de sê-lo na medida em que graças a suas peculiaridades anatomofisiológicas, e
conseqüentemente psíquicas, a saber, o grande desenvolvimento adquirido por seu sistema nervoso
superior, ele, Homem, se racionaliza, isto é, logra transformar as experiências que colhe no curso de
suas atividades e prática no contato com o meio natural em que vive, e também e sobretudo o humano
das relações sociais, logra transformar tal experiência em Conhecimento consciente que vai
acumulando e acrescendo para si próprio e seus semelhantes, e que se transmite de geração em
geração. E Conhecimento esse que deliberadamente se faz e sistematiza em normas de ação e
condução daquela prática.
Nisso precisamente consiste a especificidade e singularidade do Homem: a sua potencialidade
racional que, da indistinção e confusão originárias no seio do Universo, o faz emergir e
progressivamente destacar como Ser racional em que se torna não somente conhecedor, mas
sobretudo plenamente consciente de seu Conhecimento, o que lhe permite utilizá-lo intencionalmente,
e não apenas como simples reflexo nervoso; e isso em nível e extensão cada vez mais elevados e
amplos. E na mesma medida e progressão, o faz imprimir sua marca na Natureza, inclusive a humana,
sua última conquista, em plena eclosão, nos dias de hoje, em moldes científicos modernos,
transformando-a e se fazendo com isso senhor dela e de seu destino próprio. "Senhor e possuidor do
Universo", na predição de Descartes.
É nesse devenir racional que consiste a dialética do Homem e de sua "história". E é na
consideração dessa dialética que se esclarece o problema filosófico. Nela se configura o verdadeiro
Homem, o seu Ser real e integral que não é o Homem situado, com uma Razão "absoluta", à parte do
Universo que, como de fora e sobranceiro, ele contempla, interpreta e assim domina , à feição do
racionalismo clássico. Não é tampouco o Homem confundido no conjunto da Natureza e com ela
nivelado; dominado por contingências a que passivamente se submete, sem mesmo a consciência
disso, arrastado por rígido determinismo geral e igual para todas as coisas. Do que se trata é do
Homem simultaneamente nessas duas situações, ou antes passando permanentemente de uma para
outra, tornando-se uma e outra em eterno devenir. Ao mesmo tempo parte e parcela do todo universal,
mas também nele progressivamente se discriminando e destacando; fazendo-se pelo pensamento e
Conhecimento no Ser racional que consciente e intencionalmente modifica e transforma com a sua
ação e para seus fins, o meio físico e o humano das relações sociais de que participa; e
conseqüentemente se transformando também ele próprio com as transformações que determina, e
que passam a determiná-lo.
Esse o tema central da Filosofia, a saber, o desenvolvimento dessa dialética do Ser humano que
a partir de sua indiferenciação no seio da Natureza em que se emparelha com as demais feições e
ocorrências com as quais nela coabita como simples parcela envolvida no conjunto universal em pé de
igualdade, e nele arrastado passivamente na mesma determinação geral que é do todo e transcende
as suas partes; a partir daí vai (o Ser humano) progressivamente e de forma cada vez mais acentuada
e generalizada, fazendo-se ele próprio, em si e por si, poderoso fator determinante, e consciente dessa
sua determinação do todo universal de que participa. Fator determinante em particular naquele setor
que mais proximamente o atinge e envolve, e que vem a ser o da convivência humana, das relações
sociais. Setor esse em que ensaia apenas, em nossos dias, seus primeiros, ainda tímidos, hesitantes e
incertos passos.
É essa dialética que cabe essencialmente à Filosofia considerar e compreender, pois é dessa
compreensão que resultará 0 coroamento da tarefa de verdadeiro Conhecimento integral do Ser
humano em suas possibilidades e limitações. E ter-se-á o que afinal mais importa para a projeção
futura do processo dialético em que o Homem se acha engajado.
Essa matéria não é nem pode ser objeto do Conhecimento ordinário, da Ciência propriamente,
uma vez que esta tem por objetivo específico a simples representação mental da Realidade, o como
essa Realidade, com suas feições e ocorrências, se há de representar no pensamento e se tornar com
isso conhecida pelo indivíduo pensante. Isso inclusive no que respeita o terreno do Conhecimento do
Homem.
Esse o objetivo do Conhecimento ordinário, do Conhecimento em seu primeiro nível, e não a
participação daquela própria representação mental, ou Conhecimento elaborado em seu conjunto e
generalidade, na conformação do Homem e determinação de sua dialética nas circunstâncias acima
consideradas. Isto é, o entrosamento e relacionamento dialético do Conhecimento e do
comportamento do Homem situado no todo universal de que participa.
Essa é matéria que vai além daquela que cabe à Ciência propriamente. Nem é acessível
simplesmente aos procedimentos ordinários da elaboração científica. Pertence assim necessariamente
a outra ordem de conhecimentos que, a respeitar nomenclatura consagrada, não pode ser senão
aquilo que se tem entendido por "Filosofia", sob cuja designação se reúne de ordinário, embora de
maneira no geral informe e dispersa, particularizada e confusa, boa parte das questões que
precisamente, direta ou indiretamente, dizem respeito à matéria que estamos considerando.
Mas esse último ponto é de segunda importância. Mais uma questão de nomenclatura. O que
importa é a delimitação com um mínimo de precisão, e a sistematização, naquilo que é aproveitável,
deste variegado material que se tem entendido por "Filosofia", é que de fato corresponde nos seus
traços gerais, embora no mais das vezes vagamente apenas, com a fundamental dialética humana.
Uma tal sistematização se fará, assim penso, sobre a base e em torno da consideração metódica do
processo em que se centraliza a atividade racional do Homem, e que vem a ser o fato do
Conhecimento como circunstância especifica da dialética humana. É no Conhecimento e por ele que
se gera a potencialidade humana como motor da dialética do Homem. O objeto da Filosofia seria
assim o fato do Conhecimento considerado em toda sua amplitude, a partir do processo da elaboração
cognitiva, que é propriamente o pensamento; e a comunicação dessa atividade pensante. Em especial
pela sua expressão verbal, a linguagem discursiva que torna o pensamento plenamente consciente e o
faz amplamente comunicável e registrável, e pois socializa o processo de elaboração cognitiva e
concede permanência ao Conhecimento elaborado. E temos aí o que ordinariamente se entende por
Teoria do Conhecimento.
Daí, a consideração e exame do fato do Conhecimento se estenderia para a função dele, seu
objetivo e papel que desempenha na existência humana, e que vem a ser a sua utilização, ou seja, a
determinação e orientação da ação. Determinação e orientação essas que se realizem pela mediação
do Conhecimento reduzido a diretivas da ação, normas de comportamento: hábitos, costumes, normas
de civilidade, princípios éticos, instituições jurídicas, técnicas... O conjunto enfim de diretivas que
regulam a ação e conduta humanas. Ação e comportamento que relacionam o Homem com o meio
que o envolve, e com isso o situam no Universo de que participa.
Esse exame do Conhecimento, do fato cognitivo em sua generalidade, se reduz, como se vê, à
consideração sistemática do essencial dos sucessivos fatos ou momentos em que se compõe e
desdobra a dialética humana: da prática ao Conhecimento, e desse Conhecimento de retorno à
prática. O que representaria, esquematicamente, a linha de desenvolvimento teórico do que haveria de
ser a Filosofia