historia economica do brasil - caio prado jr

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História Econômica do Brasil - Caio Prado Jr.

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  • SUMRIO

    PRELIMINARES (1500-1530)

    1. O meio geogrfico

    2. Carter Inicial e Geral da Formao Econmica Brasileira

    3. Primeiras Atividades. A Extrao do Pau-Brasil

    A OCUPAO EFETIVA (1530-1640)

    4. Incio da Agricultura

    5. Atividades Acessrias

    EXPANSO DA COLONIZAO (1640-1770)

    6. Novo Sistema Poltico e Administrativo na Colnia

    7. A Minerao e a Ocupao do Centro-Sul

    8. A Pecuria e o Progresso do Povoamento no Nordeste

    9. A Colonizao do Vale Amaznico e a Colheita Florestal

    APOGEU DA COLNIA (1770-1808)

    10. Renascimento da Agricultura

    ll. Incorporao do Rio Grande do Sul Estab. da Pecuria

    12. Smula Geral Econmica no Fim da Era Colonial

    A ERA DO LIBERALISMO (1808-1850)

    13. Libertao Econmica

    14. Efeitos da Libertao

    15. Crise do Regime Servil e Abolio do Trfico

    O IMPRIO ESCRAVOCRATA E A AURORA BURGUESA (1850-1889)

    16. Evoluo Agrcola

    17. Novo Equilbrio Econmico

    18. A Decadncia do Trabalho Servil e Sua Abolio

    19. Imigrao e Colonizao

    20. Sntese da Evoluo Econmico do Imprio

    A REPUBLICA BURGUESA (1889-1930)

    21. Apogeu de um Sistema

    22. A Crise de Transio

    23. Expanso e Crise da Produo Agrria

    24. A Industrializao

    25. O Imperialismo

    A CRISE DE UM SISTEMA (1930-?)

    26. A Crise de um Sistema

    27. A Crise em Marcha

    POST SCRIPTUM EM 1976

    ANEXOS

    Moeda Brasileira

    Populao do Brasil em Diferentes pocas

    Comrcio Exterior do Brasil de 1821 a 1965

    Bibliografia

  • PRELIMINARES

    1500-1530

    1

    O Meio Geogrfico

    EM CONJUNTO, o Brasil se apresenta em compacta massa territo-

    rial, limitada a leste por uma linha costeira extremamente regu-

    lar, sem sinuosidades acentuadas nem endentaes, e por isso, em

    geral, desfavorvel aproximao humana e utilizao nas co-

    municaes martimas; e a oeste, por territrios agrestes, de pe-

    netrao e ocupao difceis (e por isso, at hoje ainda, muito

    pouco habitados), estendidos ao longo das fraldas da Cordilheira

    dos Andes, e barrando assim as ligaes com o litoral Pacfico do

    continente. O Brasil, embora ocupe longitudinalmente a maior parte

    do territrio sul-americano, volta-se inteiramente para o Atlnti-

    co.

    Passemos rapidamente em revista este cenrio geogrfico imenso

    (mais de 8 milhes de km2) onde se desenrola a histria econmica

    que vamos analisar. Sua primeira unidade regional, e historicamen-

    te a mais importante, constituda pela longa faixa costeira que

    borda o Oceano. De largura varivel, mas no excedendo nunca algu-

    mas dezenas de quilmetros de profundidade (alm dos quais o meio

    geogrfico j muda de feio), ela conserva aprecivel unidade de

    condies desde o Extremo-Norte at aproximadamente o paralelo de

    26, onde a influncia da latitude mais elevada j comea a se fa-

    zer sentir no clima, e se refletir por conseguinte na vida econ-

    mica. Esta faixa, embora com variaes locais mais ou menos impor-

    tantes, , em regra, formada de terras baixas, submetidas a clima

    nitidamente tropical, de calores fortes e regulares, e com chuvas

    abundantes (salvo, quanto a este ltimo elemento, em trecho rela-

    tivamente curto, compreendido entre os paralelos de 230' e 6,

    que extremamente seco). Seus solos so frteis, e prestam-se ad-

    miravelmente, por tudo isto, agricultura tropical que efetiva-

    mente servir de base econmica no somente da sua ocupao pelos

    colonos europeus, mas de ponto de partida e irradiao da coloni-

    zao de todo o pas.

    Para trs desta faixa litornea estendem-se as demais regies

    brasileiras. Com uma exceo apenas, o Extremo-Norte, a bacia ama-

    znica, elas se apartam nitidamente, do ponto de vista geogrfico,

    do litoral. Na salincia do Nordeste, grosseiramente entre os pa-

    ralelos de 2 e 15, seguem-no para o interior extensos ter-

    ritrios semi-ridos, imprestveis em geral para a agricultura

    corrente. Tal circunstncia deteve a expanso do povoamento que se

  • aglomerou nos ncleos litorneos, ficando o interior quase ao a-

    bandono, e apenas ralamente ocupado por dispersas fazendas de ga-

    do.

    Ao sul do paralelo de 15, outra circunstncia geogrfica opo-

    r uma barreira penetrao: o relevo. Acompanhando a faixa cos-

    teira, estende-se da para o sul o desenvolvimento abrupto da Ser-

    ra do Mar que forma o rebordo oriental de um elevado planalto de

    altitudes mdias oscilando entre 600 e mais de 1.000 metros, e que

    em vez de inclinar-se para o mar, volta-se para o corao do con-

    tinente; o que faz com que os rios excepcionalmente se dirijam pa-

    ra a costa. A maior parte deles, e sobretudo os de maior volume,

    correm para o interior em demanda da bacia do rio Paran.

    As condies para a penetrao do territrio no so portanto,

    a, muito favorveis. E at hoje constituem srio embarao oposto

    s comunicaes para alm do litoral. Mas ao contrrio do interior

    nordestino, o planalto centro-meridional brasileiro oferece es-

    plndidas condies naturais para o estabelecimento do homem. Alm

    do clima temperado pela altitude, solos frteis e bem regados por

    chuvas regulares e um sistema hidrogrfico normal ao contrrio

    do interior nordestino semi-rido, onde a maior parte dos rios

    de curso intermitente. Finalmente, o planalto brasileiro encerra

    abundantes recursos minerais. Tudo isto atraiu para ele a colo-

    nizao, que o procurar desde o incio, mas particularmente, em

    grandes massas humanas, a partir do sculo XVIII. Ele concentra

    hoje a maior parcela da populao brasileira.

    Compreende-se nele o territrio de vrios dos atuais Estados:

    a parte ocidental do Rio de Janeiro, Minas Gerais, grande parte de

    Gois (a outra pertence mais bacia amaznica), sul de Mato Gros-

    so, e a maior parcela (com exceo apenas do litoral) dos quatro

    Estados meridionais: So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Gran-

    de do Sul.1 muito varivel na sua paisagem geogrfica. Pode ser

    grosseiramente dividido em trs setores: um setentrional, de gran-

    de altitude (at mil metros e mais) e relevo acidentado. Compreen-

    de-se a sobretudo o Estado de Minas Gerais, cujo nome j indica

    sua funo econmica essencial: a minerao, do ouro e dos diaman-

    tes no passado, e hoje em dia, principalmente do ferro, alm de

    outros minerais. O setor meridional do planalto estende-se de So

    Paulo para o sul. Desaparecem a as serranias alcantiladas de Mi-

    nas Gerais, substitudas por um relevo mais uniforme e unido que

    se reveste de uma sucesso de florestas sub-tropicais (os excessos

    da latitude so corrigidos pela altitude) e de campos naturais. No

    lugar daquelas, onde o solo mais frtil, instalou-se a agricul-

    tura, avantajada por um clima privilegiado em que se do perfeita-

    mente, lado a lado, as mais variadas espcies vegetais, desde as

    dos trpicos at as das zonas temperadas. Os campos se aproveita-

    ram para a pecuria.

    A parte ocidental do planalto, onde ele descamba para o rio

    Paraguai (que corre em altitude inferior a 300 m), forma um setor

    parte, composto de um conjunto de plancies herbosas e terrenos

    alagadios. Localizado em situao de difcil acesso, sem grandes

    1 Em rigor, a parte meridional deste ltimo fica alm do planalto, cujo rebordo sul atravessa o Estado, pelo centro, de leste para oeste.

  • recursos naturais, este setor esperar at o sc. XIX para ser e-

    fetivamente ocupado pela colonizao; ser a pecuria sua princi-

    pal e quase nica atividade econmica.

    Resta-nos, para completar este rpido esboo da geografia bra-

    sileira, o Extremo-Norte. Nesta altura, o interior, ao contrrio

    das outras partes do pas, abre-se para o mar pelo delta do Ama-

    zonas, desembocadura de um imenso sistema hidrogrfico, sem pa-

    ralelo no mundo, que se estende sobre uma rea de 6.400.000 km2

    (dos quais 3.800.000 em territrio brasileiro) e formado de cur-

    sos d'gua de grande volume, em boa parte perfeitamente navegveis

    at por embarcaes de vulto. A penetrao foi, por isso, muito

    fcil. a isto alis que a colonizao luso-brasileira deveu o

    domnio sobre o vasto interior do continente sul-americano que de

    direito cabia aos hispano-americanos segundo os primeiros acordos

    ajustados entre as duas coroas ibricas. Mas estes ltimos, vindos

    do Ocidente, esbarraram com o obstculo da Cordilheira dos Andes,

    onde os detiveram, alis, as minas de metais preciosos e a abun-

    dante mo-de-obra indgena que l encontraram. No se opuseram por

    isso ao avano de seus concorrentes to avantajados pela geografi-

    a. Mas se os rios amaznicos oferecem esplndida via de penetrao

    e trnsito, e so assim altamente favorveis ao homem, doutro lado

    a floresta equatorial que os envolve, densa e semi-aqutica nas

    enchentes as guas fluviais alagam extenses considerveis das

    margens. representa grande obstculo instalao e progresso

    humanos. Em particular ao europeu, afeioado a climas mais frios e

    desconcertado ante as asperezas da selva bruta. A colonizao ape-

    nas encetar muito modestamente o ataque da floresta, e estender-

    se- numa ocupao rala e linear pelas margens dos rios, caminho

    da penetrao e nica via possvel de comunicaes e transportes

    at os dias de hoje.

    So estas as condies naturais que os colonizadores europeus

    encontraram no territrio que formaria o Brasil. Outra circunstn-

    cia ainda pesar muito nos seus destinos econmicos: a populao

    indgena que o habitava. Ao contrrio do Mxico e dos pases andi-

    nos, no havia no territrio brasileiro seno ralas populaes de

    nvel cultural muito baixo. No seria grande, por isso, o servio

    que prestariam aos colonos que foram obrigados a se abastecer de

    mo-de-obra na frica. Os indgenas brasileiros no se submeteram

    com facilidade ao trabalho organizado que deles exigia a coloniza-

    o; pouco afeitos a ocupaes sedentrias (tratava-se de povos

    semi-nmades, vivendo quase unicamente da caa, pesca e colheita

    natural), resistiram ou foram dizimados em larga escala pelo des-

    conforto de uma vida to avessa a seus hbitos. Outros se defende-

    ram de armas na mo; foram sendo aos poucos eliminados, mas no

    sem antes embaraar consideravelmente o progresso da colonizao

    nascente que, em muitos lugares e durante longo tempo, teve de a-

    vanar lutando e defendendo-se contra uma persistente e ativa a-

    gressividade do gentio.

  • 2

    Carter Inicial e Geral

    da Formao Econmica Brasileira

    PARA SE compreender o carter da colonizao brasileira pre-

    ciso recuar no tempo para antes do seu incio, e indagar das cir-

    cunstncias que a determinaram. A expanso martima dos pases da

    Europa, depois do sc. XV, expanso de que a descoberta e coloni-

    zao da Amrica constituem o captulo que particularmente nos in-

    teressa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas a

    efeito pelos navegadores daqueles pases. Deriva do desenvolvimen-

    to do comrcio continental europeu que at o sc. XIV quase uni-

    camente terrestre e limitado, por via martima, a uma mesquinha

    navegao costeira e de cabotagem. Como se sabe, a grande rota co-

    mercial do mundo europeu que sai do esfacelamento do Imprio do

    Ocidente, a que liga por terra o Mediterrneo ao mar do Norte,

    desde as repblicas italianas, atravs dos Alpes, dos cantes su-

    os, dos grandes emprios do Reno, at o esturio do rio onde es-

    to as cidades flamengas. No sc. XIV, merc de uma verdadeira re-

    voluo na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, ou-

    tra rota ligar aqueles dois plos do comrcio europeu: ser a ma-

    rtima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. Rota

    que subsidiria a princpio, substituir afinal a primitiva no

    grande lugar que ela ocupava. O primeiro reflexo desta transforma-

    o, a princpio imperceptvel, mas que se revelar profunda e re-

    volucionar todo o equilbrio europeu, foi deslocar a primazia co-

    mercial dos territrios centrais do continente, por onde passava a

    antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada ocenica, a Ho-

    landa, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha, a Pennsula Ibrica.

    Este novo equilbrio firma-se desde princpios do sc. XV. De-

    le derivar, no s todo um novo sistema de relaes internas do

    continente como, nas suas conseqncias mais afastadas, a expanso

    europia ultramarina. O primeiro passo estava dado, e a Europa

    deixar de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano.

    O papel de pioneiro nesta nova etapa caber aos portugueses, os

    melhores situados, geograficamente, no extremo desta pennsula que

    avana pelo mar. Enquanto os holandeses, ingleses, normandos e

    bretes se ocupam na vida comercial recm-aberta, e que bordeja e

    envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vo mais lon-

    ge, procurando empresas em que no encontrassem concorrentes mais

    antigos j instalados, e para o que contavam com vantagens geogr-

    ficas apreciveis: buscaro a costa ocidental da frica, trafican-

    do a com os mouros que dominavam as populaes indgenas. Nesta

    avanada pelo Oceano descobriro as Ilhas (Cabo Verde, Madeira,

    Aores), e continuaro perlongando o continente negro para o sul.

    Tudo isso se passa ainda na primeira metade do sc. XV. L por me-

    ados dele, comea a se desenhar um plano mais amplo: atingir o O-

    riente contornando a frica. Seria abrir para seu proveito uma ro-

    ta que os poria em contacto direto com as opulentas ndias das

  • preciosas especiarias, cujo comrcio fazia a riqueza das repbli-

    cas italianas e dos mouros, por cujas mos transitavam at o Medi-

    terrneo. No preciso repetir aqui o que foi o priplo africano,

    realizado afinal depois de tenazes e sistemticos esforos de meio

    sculo.

    Atrs dos portugueses lanam-se os espanhis. Escolheram outra

    rota: pelo Ocidente, ao invs do Oriente. Descobriro a Amrica,

    seguidos de perto pelos portugueses que tambm toparo com o novo

    continente. Viro depois dos pases peninsulares, os franceses,

    ingleses, holandeses, at dinamarqueses e suecos. A grande navega-

    o ocenica estava aberta, e todos procuravam tirar partido dela.

    S ficaro atrs aqueles que dominavam o antigo sistema comercial

    terrestre ou mediterrneo, e cujas rotas iam passando para o se-

    gundo plano: mal situados geograficamente com relao s novas ro-

    tas, e presos a um passado que ainda pesava sobre eles, sero os

    retardatrios da nova ordem. A Alemanha e a Itlia passaro para

    um plano secundrio a par dos novos astros que se levantavam no

    horizonte: os pases ibricos, a Inglaterra, a Frana, a Holanda.

    Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta

    era a que se convencionou com razo chamar de "descobrimentos",

    articulam-se num conjunto que no seno um captulo da histria

    do comrcio europeu. Tudo que se passa so incidentes da imensa

    empresa comercial a que se dedicam os pases da Europa a partir do

    sc. XV e que lhes alargar o horizonte pelo Oceano afora. No tm

    outro carter a explorao da costa africana e o descobrimento e a

    colonizao das Ilhas pelos portugueses, o roteiro das ndias, o

    descobrimento da Amrica, a explorao e ocupao de seus vrios

    setores. este ltimo o captulo que mais nos interessa aqui; mas

    no ser, em sua essncia, diferente dos outros. sempre como

    traficantes que os vrios povos da Europa abordaro cada uma da-

    quelas empresas que lhes proporcionaro sua iniciativa, seus es-

    foros, o acaso e as circunstncias do momento em que se achavam.

    Os portugueses traficaro na costa africana com marfim, ouro, es-

    cravos; na ndia iro buscar especiarias. Para concorrer com eles,

    os espanhis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e de-

    mais, procuraro outro caminho para o Oriente; a Amrica, com que

    toparam nesta pesquisa, no foi para eles, a princpio, seno um

    obstculo oposto realizao de seus planos e que devia ser con-

    tornado. Todos os esforos se orientam ento no sentido de encon-

    trar uma passagem cuja existncia se admitiu a priori. Os espa-

    nhis, situados nas Antilhas desde o descobrimento de Colombo, ex-

    ploram a parte central do continente: descobriro o Mxico; Balboa

    avistar o Pacfico; mas a passagem no ser encontrada. Procura-

    se ento mais para o sul: as viagens de Solis, de que resultar a

    descoberta do Rio da Prata, no tiveram outro objetivo. Magalhes

    ser seu continuador, e encontrar o estreito que conservou o seu

    nome e que constitui afinal a famosa passagem to procurada; mas

    ela se revelar pouco praticvel e ser desprezada. Enquanto isto

    se passava no sul, as pesquisas se ativam para o norte; a inicia-

    tiva cabe aqui aos ingleses, embora tomassem para isto o servio

    de estrangeiros, pois no contavam ainda com pilotos bastante pr-

    ticos para empresas de tamanho vulto. As primeiras pesquisas sero

    empreendidas pelos italianos Joo Cabto e seu filho Sebastio. Os

  • portugueses tambm figuraro nestas exploraes do Extremo Norte

    com os irmos Corte Real, que descobriro o Labrador. Os franceses

    encarregaro o florentino Verazzano de iguais objetivos. Outros

    mais se sucedem, e embora tudo isto servisse para explorar e tor-

    nar conhecido o novo mundo, firmando a sua posse pelos vrios pa-

    ses da Europa, no se encontra a almejada passagem que hoje sabe-

    mos no existir2. Ainda em princpios do sc. XVII, a Virgnia Com-

    pany of London inclua, entre seus principais objetivos, o desco-

    brimento da brecha para o Pacfico que se esperava encontrar no

    continente.

    Tudo isto lana muita luz sobre o esprito com que os povos da

    Europa abordam a Amrica. A idia de povoar no ocorre inicialmen-

    te a nenhum. o comrcio que os interessa, e da o relativo des-

    prezo por estes territrios primitivos e vazios que formam a Am-

    rica; e inversamente, o prestgio do Oriente, onde no faltava ob-

    jeto para atividades mercantis. A idia de ocupar, no como se fi-

    zera at ento em terras estranhas, apenas com agentes comerciais,

    funcionrios e militares para a defesa, organizados em simples

    feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de arti-

    culao entre rotas martimas e os territrios cobiados, mas ocu-

    par com povoamento efetivo, isto s surgiu como contingncia, ne-

    cessidade imposta por circunstncias novas e imprevistas. Alis,

    nenhum povo da Europa estava em condies naquele momento de su-

    portar sangrias na sua populao, que no sc. XVI ainda no se re-

    fizera de todo das tremendas devastaes da peste que assolara o

    continente nos dois sculos precedentes. Na falta de censos preci-

    sos, as melhores probabilidades indicam que em 1500 a populao da

    Europa ocidental no ultrapassava a do milnio anterior.

    Nestas condies, "colonizar" ainda era entendido como aquilo

    que dantes se praticava; fala-se em colonizao, mas o que o termo

    envolve no mais que o estabelecimento de feitorias comerciais,

    como os italianos vinham de longa data praticando no Mediterrneo,

    a Liga Hansetica no Bltico, mais recentemente os ingleses, ho-

    landeses e outros no Extremo-Norte da Europa e no Levante, como os

    portugueses fizeram na frica e na ndia. Na Amrica a situao se

    apresenta de forma inteiramente diversa: um territrio primitivo,

    habitado por rala populao indgena incapaz de fornecer qualquer

    coisa de realmente aproveitvel. Para os fins mercantis que se ti-

    nham em vista, a ocupao no se podia fazer como nas simples fei-

    torias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negcio, sua

    administrao e defesa armada; era preciso ampliar estas bases,

    criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que

    se fundassem, e organizar a produo dos gneros que interessavam

    seu comrcio. A idia de povoar surge da e s da.

    Aqui, ainda Portugal foi um pioneiro. Seus primeiros passos

    neste terreno so nas ilhas do Atlntico, postos avanados, pela

    identidade de condies para os fins visados, do continente ame-

    ricano; e isto ainda no sc. XV. Era preciso povoar e organizar a

    produo: Portugal realizou estes objetivos brilhantemente. Repe-

    2 Tambm se tentou, a partir de meados do sc. XVI, a passagem para o Oriente pe-las regies rticas, a Europa e sia. A iniciativa cabe ao mesmo Sebastio Cab-

    to, que j encontramos na Amrica, e mais uma vez a servio dos ingleses (1553).

  • ti-lo- na Amrica.

    Os problemas do novo sistema de colonizao, implicando a ocu-

    pao de territrios quase desertos e primitivos, tero feio va-

    riada, dependendo em cada caso das circunstncias particulares com

    que se apresentam. A primeira delas ser a natureza dos gneros

    aproveitveis que cada um daqueles territrios proporcionar. A

    princpio, naturalmente, ningum cogitar de outra coisa que no

    sejam produtos espontneos, extrativos. ainda quase o antigo

    sistema de feitorias puramente comerciais. Sero as madeiras de

    construo ou tinturarias (como o pau-brasil entre ns), na maior

    parte deles; tambm as peles de animais e a pesca no Extremo-

    Norte, como na Nova Inglaterra; a pesca ser particularmente ativa

    nos bancos da Terra Nova onde, desde os primeiros anos do sc.

    XVI, possivelmente at antes, se renem ingleses, normandos, vas-

    conhos. Os espanhis sero os mais felizes: toparo desde logo nas

    reas que lhes couberam com os metais preciosos, a prata e o ouro

    do Mxico e do Peru. Mas os metais, incentivo e base suficiente

    para o sucesso de qualquer empresa colonizadora, no ocupam na

    formao da Amrica seno um lugar relativamente pequeno. Impulsi-

    onaro o estabelecimento e a ocupao das colnias espanholas ci-

    tadas; mais tarde, j no sc. XVIII, intensificaro a colonizao

    portuguesa da Amrica do Sul e lev-la-o para o centro do conti-

    nente. Mas s.3 Os metais, que a imaginao escaldante dos pri-

    meiros exploradores pensava encontrar em qualquer territrio novo,

    esperana reforada pelos prematuros descobrimentos castelhanos,

    no se revelaram to disseminados como se esperava. Na maior ex-

    tenso da Amrica ficou-se, a princpio, exclusivamente nas madei-

    ras, nas peles, na pesca; e a ocupao de territrios, seus pro-

    gressos e flutuaes subordinam-se por muito tempo ao maior ou me-

    nor sucesso daquelas atividades. Viria depois, em substituio,

    uma base econmica mais estvel, mais ampla: seria a agricultura.

    No meu intuito entrar aqui nos pormenores e vicissitudes da

    colonizao europia na Amrica. Mas podemos, e isto muito inte-

    ressa nosso assunto, distinguir duas reas diversas, alm daquela

    em que se verificou a ocorrncia de metais preciosos, em que a co-

    lonizao toma rumos inteiramente diversos. So elas as que cor-

    respondem respectivamente s zonas temperada, de um lado, tropical

    e subtropical, do outro. A primeira, que compreende grosseiramente

    o territrio americano ao norte da Baa de Delaware (a outra ex-

    tremidade temperada do continente, hoje pases platinos e Chile,

    esperar muito tempo antes de tomar forma e significar alguma coi-

    sa), no ofereceu realmente nada de muito interessante, e permane-

    cer, ainda por muito tempo, adstrita explorao de produtos es-

    pontneos: madeiras, peles, pesca. Na Nova Inglaterra, nos primei-

    ros anos da colonizao, viam-se at com maus olhos quaisquer ten-

    tativas de agricultura que desviavam das feitorias de peles e pes-

    ca as atividades dos poucos colonos presentes. Se esta rea tempe-

    rada se povoou, o que alis s ocorre depois do sc. XVII, foi por

    circunstncias muito especiais. a situao interna da Europa, em

    particular da Inglaterra, as suas lutas poltico-religiosas que

    desviam para a Amrica as atenes de populaes que no se sentem

    3 Se excetuarmos, quase em nossos dias, o rush da Califrnia e do Alasca.

  • vontade e vo procurar ali abrigo e paz para suas convices.

    Isto durar muito tempo; pode-se mesmo assimilar o fato, idntico

    no fundo, a um processo que se prolongar, embora com intensidade

    varivel, at os tempos modernos, o sculo passado. Viro para a

    Amrica puritanos e quakers da Inglaterra, huguenotes da Frana,

    mais tarde morvios, schwenkjelders, inspiracionalistas e menoni-

    tas da Alemanha meridional e Sua. Durante mais de dois sculos

    despejar-se- na Amrica todo o resduo das lutas poltico-

    religiosas da Europa. certo que se espalhar por todas as col-

    nias; at no Brasil, tanto afastado e por isso tanto mais ignora-

    do, procuraro refugiar-se huguenotes franceses (Frana Antrtica,

    no Rio de Janeiro). Mas concentrar-se- quase inteiramente nas da

    zona temperada, de condies naturais mais afins s da Europa, e

    por isso preferidas para quem no buscava "fazer a Amrica", mas

    unicamente abrigar-se dos vendavais polticos que varriam a Europa

    e reconstruir um lar desfeito ou ameaado.

    H um fator econmico que tambm concorre na Europa para este

    tipo de emigrao. a transformao econmica sofrida pela Ingla-

    terra no correr do sc. XVI, e que modifica profundamente o equi-

    lbrio interno do pas e a distribuio de sua populao. Esta

    deslocada em massa dos campos, que de cultivados se transformam em

    pastagens para carneiros cuja l iria abastecer a nascente inds-

    tria txtil inglesa. Constitui-se a uma fonte de correntes migra-

    trias que abandonam o campo e vo encontrar na Amrica, que come-

    a a ser conhecida, um largo centro de afluncia. Tambm estes e-

    lementos escolhero, de preferncia e por motivos similares, as

    colnias temperadas. Os que se dirigem mais para o sul, para as

    colnias includas na zona subtropical da Amrica do Norte, porque

    nem sempre lhes foi dado escolher seu destino com conhecimento de

    causa, f-lo-o apenas, no mais das vezes, provisoriamente; o mai-

    or nmero deles refluir mais tarde, e na medida do possvel, para

    as colnias temperadas.

    So assim circunstncias especiais que no tm relao direta

    com ambies de traficantes ou aventureiros, que promovero a ocu-

    pao intensiva e o povoamento em larga escala da zona temperada

    da Amrica. Circunstncias alis que surgem posteriormente ao des-

    cobrimento do novo continente, e que no se filiam ordem geral e

    primitiva de acontecimentos que impelem os povos da Europa para o

    ultramar. Da derivar tambm um novo tipo de colonizao que to-

    mar um carter inteiramente apartado dos objetivos comerciais at

    ento dominantes neste gnero de empresas. O que os colonos desta

    categoria tm em vista construir um novo mundo, uma sociedade

    que lhes oferea garantias que no continente de origem j no lhes

    so mais dadas. Seja por motivos religiosos ou meramente econmi-

    cos (estes impulsos alis se entrelaam e sobrepem), a sua sub-

    sistncia se tornara l impossvel ou muito difcil. Procuram, en-

    to, uma terra ao abrigo das agitaes e transformaes da Europa,

    de que so vtimas, para refazerem nela sua existncia comprometi-

    da. O que resultar deste povoamento, realizado com tal esprito e

    num meio fsico muito aproximado do da Europa, ser naturalmente

    uma sociedade que embora com caracteres prprios, ter semelhana

    pronunciada com a do continente de onde se origina. Ser pouco

    mais que um simples prolongamento dele.

  • Muito diversa a histria da rea tropical e subtropical da

    Amrica. Aqui a ocupao e o povoamento tomaro outro rumo. Em

    primeiro lugar, as condies naturais, to diferentes do habitat

    de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como

    simples povoador, da categoria daquele que procura a zona tempera-

    da. Muito se tem exagerado a inadaptabilidade do branco aos trpi-

    cos, meia verdade apenas que os fatos tm demonstrado e redemons-

    trado falha em um sem-nmero de casos. O que h nela de acertado

    uma falta de predisposio em raas formadas em climas mais frios,

    e por isso afeioadas a eles, em suportarem os trpicos e se com-

    portarem similarmente neles. Mas falta de predisposio apenas,

    que no absoluta e se corrige, pelo menos em geraes subseqen-

    tes, por um novo processo de adaptao. Contudo, se aquela afirma-

    o, posta em termos absolutos, falsa, no deixa de ser verda-

    deira no caso vertente, isto , nas circunstncias em que os pri-

    meiros povoadores vieram encontrar a Amrica. So trpicos brutos

    indevassados que se apresentam, uma natureza hostil e amesquinha-

    dora do homem, semeada de obstculos imprevisveis, sem conta, pa-

    ra o que o colono europeu no estava preparado e contra o que no

    contava com defesas suficientes. Alis, a dificuldade do estabele-

    cimento de europeus civilizados nestas terras americanas entregues

    ainda ao livre jogo da natureza, comum tambm zona temperada.

    Respondendo a teorias apressadas e muito em voga (so as contidas

    no livro famoso de Turner, The frontier in American History) um

    recente escritor norte-americano analisa este fato com grande a-

    teno, e mostra que a colonizao inglesa na Amrica, realizando-

    se embora numa zona temperada, s progrediu custa de um processo

    de seleo de que resultou um tipo de pioneiro, o caracterstico

    ianque, que dotado de aptido e tcnica particulares, foi marchan-

    do na vanguarda e abrindo caminho para as levas mais recentes de

    colonos que afluam da Europa.4 Se assim foi numa zona que afora o

    fato de estar indevassada, se aproxima tanto por suas condies

    naturais do meio europeu, que no seria dos trpicos?

    Para estabelecer-se a o colono tinha que encontrar estmulos

    diferentes e mais fortes que os que o impelem para as zonas tem-

    peradas. De fato assim aconteceu, embora em circunstncias espe-

    ciais que, por isso, tambm particularizaro o tipo de colono

    branco dos trpicos. A diversidade de condies naturais, em com-

    parao com a Europa, que acabamos de ver como um empecilho ao po-

    voamento, revelar-se-ia por outro lado um forte estmulo. que

    tais condies proporcionaro aos pases da Europa a possibilidade

    da obteno de gneros que l fazem falta. E gneros de particular

    atrativo. Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao sc. XVI, iso-

    lada dos trpicos, s indireta e longinquamente acessveis, e ima-

    ginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de pro-

    dutos que se hoje pela sua banalidade, parecem secundrios, eram

    to prezados como requintes de luxo. Tome-se o caso do acar, que

    embora se cultivasse em pequena escala na Siclia, era artigo de

    grande raridade e muita procura; at nos enxovais de rainhas ele

    chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado. A pimen-

    4 Marcus Lee Hansen, The immigrant in American History veja-se o captulo Immi-gration and Expansin.

  • ta, importada do Oriente, constituiu durante sculos o principal

    ramo do comrcio das repblicas mercadoras italianas, e a grande e

    rdua rota das ndias no serviu muito tempo para outra coisa mais

    que para abastecer dela a Europa. O tabaco, originrio da Amrica,

    e por isso ignorado antes do descobrimento, no teria, depois de

    conhecido, menor importncia. E no ser este tambm, mais tarde,

    o caso do anil, do arroz, do algodo e de tantos outros gneros

    tropicais?

    Isto nos d a medida do que representariam os trpicos como

    atrativo para a fria Europa, situada to longe deles. A Amrica

    por-lhe-ia disposio, em tratos imensos, territrios que s es-

    peravam a iniciativa e o esforo do homem. isto que estimular a

    ocupao dos trpicos americanos. Mas trazendo este agudo interes-

    se, o colono europeu no traria com ele a disposio de pr-lhe a

    servio, neste meio to difcil e estranho, a energia do seu tra-

    balho fsico. Viria como dirigente da produo de gneros de gran-

    de valor comercial, como empresrio de um negcio rendoso; mas s

    a contragosto, como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.

    Nesta base realizar-se-ia uma primeira seleo entre os colo-

    nos que se dirigem respectivamente para um e outro setor do novo

    mundo: o temperado e os trpicos. Para estes, o europeu s se di-

    rige de livre e espontnea vontade quando pode ser um dirigente,

    quando dispe de recursos e aptides para isto; quando conta com

    outra gente que trabalhe para ele. Mais uma circunstncia vem re-

    forar esta tendncia e discriminao. o carter que tomar a

    explorao agrria nos trpicos. Esta se realizar em larga esca-

    la, isto , em grandes unidades produtoras fazendas, engenhos,

    plantaes (as plantations das colnias inglesas) que renem,

    cada qual, um nmero relativamente avultado de trabalhadores. Em

    outras palavras, para cada proprietrio (fazendeiro, senhor ou

    plantador), haveria muitos trabalhadores subordinados e sem pro-

    priedade. Voltarei em outro captulo, com mais vagar, sobre as

    causas que determinaram este tipo de organizao da produo tro-

    pical. A grande maioria dos colonos estava assim, nos trpicos,

    condenada a uma posio dependente e de baixo nvel; ao trabalho

    em proveito de outros e unicamente para a subsistncia prpria de

    cada dia. No era para isto, evidentemente, que se emigrava da Eu-

    ropa para a Amrica. Assim mesmo, at que se adotasse universal-

    mente nos trpicos americanos a mo-de-obra escrava de outras ra-

    as, indgenas do continente ou negros africanos importados, mui-

    tos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto,

    quela condio. vidos de partir para a Amrica, ignorando muitas

    vezes seu destino certo, ou decididos a um sacrifcio temporrio,

    muitos partiram para se engajar nas plantaes tropicais como sim-

    ples trabalhadores. Isto ocorreu particularmente, e em grande es-

    cala, nas colnias inglesas: Virgnia, Maryland, Carolina. Em tro-

    ca do transporte, vendiam seus servios por um certo lapso de tem-

    po. Outros partiam como deportados; tambm menores, abandonados ou

    vendidos pelos pais ou tutores, eram levados naquelas condies

    para a Amrica a fim de servirem at a maioridade. uma escravi-

    do temporria que ser substituda inteiramente, em meados do

    sc. XVII, pela definitiva de negros importados. Mas a maior parte

    daqueles colonos s esperava o momento oportuno para sair da con-

  • dio que lhes fora imposta; quando no conseguiam estabelecer-se

    como plantador e proprietrio por conta prpria o que exceo

    naturalmente , emigravam logo que possvel para as colnias tem-

    peradas, onde (ao menos tinham um gnero de vida mais afeioado a

    seus hbitos e maiores oportunidades de progresso. Situao de

    instabilidade do trabalho nas plantaes do Sul que durar at a

    adoo definitiva e geral do escravo africano. O colono europeu

    ficar ento a na nica posio que lhe competia: a de dirigente

    e grande proprietrio rural.

    Nas demais colnias tropicais, inclusive no Brasil, no se

    chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isto porque nem na Es-

    panha, nem em Portugal, a quem pertencia a maioria delas, havia,

    como na Inglaterra, braos disponveis e dispostos a emigrar a

    qualquer preo. Em Portugal, a populao era to insuficiente que

    a maior parte do seu territrio se achava ainda, em meados do sc.

    XVI, inculto e abandonado; faltavam braos por toda parte, e em-

    pregava-se em escala crescente mo-de-obra escrava, primeiro dos

    mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominao rabe,

    como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princ-

    pios do sc. XV para seus domnios do norte da frica; como de-

    pois, de negros africanos, que comeam a afluir para o reino desde

    meados daquele sculo. L por volta de 1550, cerca de 10% da popu-

    lao de Lisboa era constituda de escravos negros. Nada havia,

    portanto, que provocasse no Reino um xodo da populao; e sabi-

    do como as expedies do Oriente depauperaram o pas, datando de

    ento, e atribuvel em grande parte a esta causa, a precoce deca-

    dncia lusitana.

    Alm disso, portugueses e espanhis, particularmente estes l-

    timos, encontram nas suas colnias indgenas que se puderam apro-

    veitar como trabalhadores. Finalmente, os portugueses tinham sido

    os precursores desta feio particular do mundo moderno: a escra-

    vido de negros africanos; e dominavam os territrios que os for-

    neciam. Adotaram-na por isso, em sua colina, quase de incio

    possivelmente de incio mesmo , precedendo os ingleses, sempre

    imitadores retardatrios, de quase um sculo.5

    Como se v, as colnias tropicais tomaram um rumo inteiramente

    diverso do de suas irms da zona temperada. Enquanto nestas se

    constituiro colnias propriamente de povoamento (o nome ficou

    consagrado depois do trabalho clssico de Leroy-Beau-lieu, De la

    colonisation chez les peuples modernes) escoadouro para excessos

    demogrficos da Europa, que reconstituem no novo mundo uma organi-

    zao e uma sociedade semelhana do seu modelo e origem euro-

    peus; nos trpicos, pelo contrrio, surgir um tipo de sociedade

    inteiramente original. No ser a simples feitoria comercial que

    j vimos irrealizvel na Amrica. Mas conservar, no entanto, um

    acentuado carter mercantil; ser a empresa do colono branco que

    rene natureza prdiga em recursos aproveitveis para a produo

    de gneros de grande valor comercial, o trabalho recrutado entre

    5 No se sabe ao certo quando chegaram os primeiros negros ao Brasil; h grandes probabilidades de terem vindo j na primeira expedio colonizadora em 1531. Na

    Amrica do Norte, a primeira leva de escravos africanos foi introduzida por tra-

    ficantes holandeses em Jamestown (Virgnia) em 1619.

  • raas inferiores que domina: indgenas ou negros africanos impor-

    tados. H um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis

    que assinalam o incio da expanso ultramarina da Europa, e que

    so conservados, e as novas condies em que se realizar a empre-

    sa. Aqueles objetivos, que vemos passar para o segundo plano nas

    colnias temperadas, manter-se-o aqui, e marcaro profundamente a

    feio das colnias do nosso tipo, ditando-lhes o destino. No seu

    conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonizao

    dos trpicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais

    complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo carter que

    ela, destinada a explorar os recursos naturais de um territrio

    virgem em proveito do comrcio europeu. este o verdadeiro senti-

    do da colonizao tropical, de que o Brasil uma das resultantes;

    e ele explicar os elementos fundamentais, tanto no social como no

    econmico, da formao e evoluo histrica dos trpicos ameri-

    canos. Se vamos essncia da nossa formao, veremos que na rea-

    lidade nos constitumos para fornecer acar, tabaco, alguns ou-

    tros gneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodo, e em

    seguida caf, para o comrcio europeu. Nada mais que isto. com

    tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do pas e sem

    ateno a consideraes que no fossem o interesse daquele comr-

    cio, que se organizaro a sociedade e a economia brasileiras. Tudo

    se dispor naquele sentido: a estrutura social, bem como as ativi-

    dades do pas. Vir o branco europeu para especular, realizar um

    negcio; inverter seus cabedais e recrutar a mo-de-obra de que

    precisa: indgenas ou negros importados. Com tais elementos, arti-

    culados numa organizao puramente produtora, mercantil, constitu-

    ir-se- a colnia brasileira.

    Este incio, cujo carter manter-se- dominante atravs dos

    sculos da formao brasileira, gravar-se- profunda e totalmente

    nas feies e na vida do pas. Particularmente na sua estrutura

    econmica. E prolongar-se- at nossos dias, em que apenas come-

    amos a livrar-nos deste longo passado colonial. T-lo em vista

    compreender o essencial da evoluo econmica do Brasil, que passo

    agora a analisar.

  • 3

    Primeiras Atividades

    A Extrao do Pau-Brasil

    DESDE OS ltimos anos do sc. XV as costas brasileiras comeam

    a ser freqentadas por navegantes portugueses e espanhis. No in-

    teressa discutir aqui prioridades, o que muitos historiadores, o-

    cupados mais em procurar glrias nacionais que em escrever hist-

    ria verdadeira, j fizeram saciedade; alis sem maiores resulta-

    dos. De incio aquelas viagens eram apenas de explorao. Tratava-

    se no momento, como foi lembrado, de resolver um problema geogr-

    fico de grande importncia: descobrir o caminho das ndias. Os

    portugueses tinham procurado a soluo na rota do Oriente, contor-

    nando a frica; os espanhis, partindo da premissa de que a Terra

    era redonda, dirigem-se para o Ocidente. Uns e outros topariam com

    a Amrica: os espanhis, porque ela se encontrava em seu caminho

    natural; e perlongando-a em busca da passagem que os levaria s

    ndias, tocariam as costas brasileiras. Os portugueses, por seu

    turno, arrastados pelos azares da navegao, e interessados em ob-

    servar o que os espanhis estavam realizando, afastar-se-o da sua

    rota ao longo da frica e tambm chegaro ali.

    Descoberto assim o territrio que haveria de constituir o Bra-

    sil, no se tardou muito em procurar aproveit-lo. As perspectivas

    no eram brilhantes. O famoso Amrico Vespcio, que viajou como

    piloto alternadamente com espanhis e portugueses, e que nos deu

    com suas cartas a primeira descrio do novo mundo, escrever a

    respeito: "Pode-se dizer que no encontramos nada de proveito". E

    devia ser assim para aqueles navegantes-mercadores que se tinham

    lanado em arriscadas empresas martimas unicamente na esperana

    de trazerem para o comrcio europeu as preciosas mercadorias do

    Oriente. Que interesse tinha para eles uma terra parcamente habi-

    tada por tribos nmades ainda na idade da pedra, e que nada de -

    til podiam oferecer? Assim mesmo contudo, o esprito empreendedor

    daqueles aventureiros conseguiu encontrar algo que poderia satis-

    fazer suas ambies. Espalhada por larga parte da costa brasilei-

    ra, e com relativa densidade, observou-se uma espcie vegetal se-

    melhante a outra j conhecida no Oriente, e de que se extraa uma

    matria corante empregada na tinturaria. Tratava-se do pau-brasil,

    mais tarde batizado cientificamente com o nome de Caesalpinia e-

    chinata. Os primeiros contactos com o territrio que hoje consti-

    tui o Brasil, devem-se quela madeira que se perpetuaria no nome

    do pas.

    So os portugueses que antes de quaisquer outros ocupar-se-o

    do assunto. Os espanhis, embora tivessem concorrido com eles nas

    primeiras viagens de explorao, abandonaro o campo em respeito

    ao tratado de Tordesilhas (1494) e bula papal que dividira o

    mundo a se descobrir por uma linha imaginria entre as coroas por-

    tuguesa e espanhola. O litoral brasileiro ficava na parte lusita-

    na, e os espanhis respeitaram seus direitos. O mesmo no se deu

  • com os franceses, cujo rei (Francisco I) afirmaria desconhecer a

    clusula do testamento de Ado que reservara o mundo unicamente a

    portugueses e espanhis. Assim eles viro tambm, e a concorrncia

    s se resolveria pelas armas.

    Mas, com ou sem direitos, o certo que at quase meados do

    sc. XVI, encontraremos portugueses e franceses traficando ativa-

    mente na costa brasileira com o pau-brasil. Era uma explorao ru-

    dimentar que no deixou traos apreciveis, a no ser na des-

    truio impiedosa e em larga escala das florestas nativas donde se

    extraa a preciosa madeira. No se criaram estabelecimentos fixos

    e definitivos. Os traficantes se aproximavam da costa, escolhendo

    um ponto abrigado e prximo das matas onde se encontrava a essn-

    cia procurada, e ali embarcavam a mercadoria que lhes era trazida

    pelos indgenas. graa alis presena relativamente numerosa

    de tribos nativas no litoral brasileiro que foi possvel dar in-

    dstria um desenvolvimento aprecivel. S as tripulaes dos navi-

    os que efetuavam o trfico no dariam conta, a no ser de forma

    muito limitada, da rdua tarefa de cortar rvores de grande porte

    como o pau-brasil, que alcana um metro de dimetro na base do

    tronco e 10 a 15 m de altura, transport-las at a praia e da s

    embarcaes. No foi difcil obter que os indgenas trabalhassem;

    miangas, tecidos e peas de vesturio, mais raramente canivetes,

    facas e outros pequenos objetos os enchiam de satisfao; e em

    troca desta quinquilharia, de valor nfimo para os traficantes,

    empregavam-se arduamente em servi-los. Para facilitar o servio e

    apressar o trabalho, tambm se presenteavam os ndios com ferra-

    mentas mais importantes e custosas: serras, machados. Assim mesmo,

    a margem de lucros era considervel, pois a madeira alcanava

    grandes preos na Europa. O negcio, sem comparar-se embora com os

    que se realizavam no Oriente, no era desprezvel, e despertou

    bastante interesse.

    Indiretamente, a explorao do pau-brasil deu origem a alguns

    estabelecimentos coloniais. A concorrncia de franceses e portu-

    gueses, que se resolvia sempre em luta armada quando os conten-

    dores se deparavam uns com os outros, o que acontecia freqente-

    mente apesar da extenso da costa, levou ambas as faces a procu-

    rar fortificar certos trechos da costa mais ricos e proveitosos.

    Construram, para isto, pequenos fortins onde se abrigavam em caso

    de ataque. Serviam igualmente para armazenar o pau-brasil espera

    de transporte. Tambm se utilizavam para a defesa contra alguma

    tribo hostil de ndios. Porque de notar que embora estes a prin-

    cpio recebessem amigavelmente os europeus, sem distino de na-

    cionalidade, no tardou que as rivalidades que dividiam os brancos

    os contaminassem. Separam-se ento em tribos aliadas respectiva-

    mente aos portugueses e franceses, e cada parcialidade defendia

    contra a outra os interesses de seus amigos.

    Tais estabelecimentos militares, contudo, no tiveram futuro.

    Eram guarnecidos unicamente quando os respectivos traficantes an-

    davam recolhendo seus produtos, o que s vezes durava meses. De-

    pois eram abandonados. De sorte que a explorao do pau-brasil,

    mesmo desta forma indireta, no serviu em nada para fixar qualquer

    ncleo de povoamento no pas. Nem era de esper-lo. No havia in-

    teresse em localizar-se num ponto, quando a madeira procurada se

  • espalhava aos azares da natureza e se esgotava rapidamente pelo

    corte intensivo. A indstria extrativa do pau-brasil tinha neces-

    sariamente de ser nmade; no era capaz, por isso, de dar origem a

    um povoamento regular e estvel.

    No so muitos os dados que possumos sobre esta primeira for-

    ma de atividade econmica no Brasil. No que se relaciona com os

    portugueses, sabemos que a extrao do pau-brasil foi, desde o i-

    ncio, considerada monoplio real. Para dedicar-se a ela tornava--

    se necessria uma concesso do soberano. Era esse alis o sistema

    empregado por Portugal com relao a todas as atividades comer-

    ciais ultramarinas. Assim foi com o comrcio das especiarias na

    ndia, do ouro, marfim ou escravos na frica, e agora com o pau-

    brasil na Amrica. Tudo isto constitua privilgio da coroa, que

    cobrava direitos por sua explorao. A primeira concesso relativa

    ao pau-brasil data de 1501 e foi outorgada a um Fernando de No-

    ronha (que deixou seu nome a uma ilha do Atlntico que hoje per-

    tence ao Brasil), associado a vrios mercadores judeus. A conces-

    so era exclusiva, e durou at 1504. Depois desta data, por moti-

    vos que no so conhecidos, no se concedeu mais a ningum, com

    exclusividade, a explorao da madeira que passou a ser feita por

    vrios traficantes.

    Os franceses tiveram sempre uma poltica mais liberal que os

    portugueses. Embora conheamos ainda menos de suas atividades, sa-

    be-se que nunca instituram monoplios ou privilgios reais. O que

    se explica, porque era sem direito algum que traficavam na costa

    brasileira, concedida como ela estava ao Rei de Portugal pela au-

    toridade do Papa, ento reconhecida universalmente entre povos

    cristos. No podia pois o soberano francs arrogar-se um direito

    que ningum lhe reconhecia; e as atividades de seus sditos no

    Brasil representavam iniciativa puramente individual que o Rei,

    alis, nunca endossou oficialmente.

    Foi rpida a decadncia da explorao do pau-brasil. Em alguns

    decnios esgotara-se o melhor das matas costeiras que continham a

    preciosa rvore, e o negcio perdeu seu interesse. Assim mesmo

    continuar-se- a explorar esporadicamente o produto, sempre sob o

    regime do monoplio real, realizando uma pequena exportao que

    durar at princpios do sculo passado. Mas no ter mais impor-

    tncia alguma aprecivel, nem em termos absolutos, nem relativa-

    mente aos outros setores da economia brasileira. So estes, que

    passaremos agora a analisar, que ocuparo depois de 1530 o cenrio

    econmico do pas.

  • A OCUPAO EFETIVA

    1530-1640

    4

    Incio da Agricultura

    NO TERCEIRO decnio do sc. XVI o Rei de Portugal estar bem

    convencido que nem seu direito sobre as terras brasileiras, funda-

    do embora na soberania do Papa, nem o sistema, at ento seguido,

    de simples guardas-costas volantes, era suficiente para afugentar

    os franceses que cada vez mais tomam p em suas possesses ameri-

    canas. Cogitar ento de defend-las por processo mais amplo e se-

    guro: a ocupao efetiva pelo povoamento e colonizao. Mas para

    isto ocorria uma dificuldade: ningum se interessava pelo Brasil.

    A no ser os traficantes de madeira e estes mesmos j comeavam

    a abandonar uma empresa cujos proveitos iam em declnio ningum

    se interessara seriamente, at ento, pelas novas terras; menos

    ainda para habit-las. Todas as atenes de Portugal estavam vol-

    tadas para o Oriente, cujo comrcio chegara neste momento ao apo-

    geu. Nem o Reino contava com populao suficiente para sofrer no-

    vas sangrias; os seus parcos habitantes, que no chegavam a dois

    milhes, j suportavam com grande sacrifcio as expedies orien-

    tais. Nestas condies, realizar o povoamento de uma costa imensa

    como a do Brasil era tarefa difcil. Procurou-se compensar a difi-

    culdade outorgando queles que se abalanassem a ir colonizar o

    Brasil vantagens considerveis: nada menos que poderes soberanos,

    de que o Rei abria mo em benefcio de seus sditos que se dispu-

    sessem a arriscar cabedais e esforos na empresa. Assim mesmo,

    poucos sero os pretendentes. Podemos inferi-lo da qualidade das

    pessoas que se apresentaram, entre as quais no figura nenhum nome

    da grande nobreza ou do alto comrcio do Reino. So todos (doze

    apenas, alis), indivduos de pequena expresso social e econmi-

    ca. A maior parte deles fracassar na empresa e perder nela todas

    as suas posses (alguns at a vida), sem ter conseguido estabelecer

    no Brasil nenhum ncleo fixo de povoamento. Apenas dois tiveram

    sucesso; e um destes foi grandemente auxiliado pelo Rei.

    O plano, em suas linhas gerais, consistia no seguinte: divi-

    diu-se a costa brasileira (o interior, por enquanto, para todos

    os efeitos desconhecido), em doze setores lineares com extenses

    que variavam entre 30 e 100 lguas.6 Estes setores chamar-se-o ca-

    pitanias, e sero doadas a titulares que gozaro de grandes re-

    galias e poderes soberanos; caber-lhes- nomear autoridades admi-

    nistrativas e juzes em seus respectivos territrios, receber ta-

    xas e impostos, distribuir terras, etc. O Rei conservar apenas

    6 Lgua uma antiga medida portuguesa equivalente aproximadamente a 6 quilme-tros.

  • direitos de suserania semelhantes aos que vigoravam na Europa feu-

    dal. Em compensao, os donatrios das capitanias arcariam com to-

    das as despesas de transporte e estabelecimento de povoadores.

    Somas relativamente grandes foram despendidas nestas primeiras

    empresas colonizadoras do Brasil. Os donatrios, que em regra no

    dispunham de grandes recursos prprios, levantaram fundos tanto em

    Portugal como na Holanda, tendo contribudo em boa parte banquei-

    ros e negociantes judeus. A perspectiva principal do negcio est

    na cultura da cana-de-acar. Tratava-se de um produto de grande

    valor comercial na Europa. Forneciam-no, mas em pequena quantida-

    de, a Siclia, as ilhas do Atlntico ocupadas e exploradas pelos

    portugueses desde o sculo anterior (Madeira, Cabo Verde), e o O-

    riente de onde chegava por intermdio dos rabes e dos traficantes

    italianos do Mediterrneo. O volume deste fornecimento era contudo

    to reduzido que o acar se vendia em boticas, pesado aos gramas.

    J se conhecia o bastante do Brasil para esperar que nele a

    cana-de-acar dar-se-ia bem. O clima quente e mido da costa ser-

    lhe-ia altamente favorvel; e quanto mo-de-obra, contou-se a

    princpio com os indgenas que, como vimos, eram relativamente nu-

    merosos e pacficos no litoral. Estas perspectivas seriam ampla-

    mente confirmadas; o nico fator ainda ignorado antes da tenta-

    tiva, a qualidade do solo, revelar-se-ia surpreendentemente prop-

    cio, em alguns pontos pelo menos da extensa costa. Foi o caso,

    particularmente do Extremo-Nordeste, na plancie litornea hoje

    ocupada pelo Estado de Pernambuco; e do contorno da baa de Todos

    os Santos (o Recncavo baiano, como seria chamado). No seriam a-

    lis os nicos: de uma forma geral, toda a costa brasileira pres-

    ta-se ao cultivo da cana-de-acar.

    nesta base, portanto, que se iniciaro a ocupao efetiva e

    a colonizao do Brasil. Sem entrar nos pormenores das vicissi-

    tudes sofridas pelos primeiros colonos, seus sucessos e fracassos,

    examinemos como se organizar sua economia. O regime de posse da

    terra foi o da propriedade alodial e plena. Entre os poderes dos

    donatrios das capitanias estava, como vimos, o de disporem das

    terras, que se distriburam entre os colonos. As doaes foram em

    regra muito grandes, medindo-se os lotes por muitas lguas. O que

    compreensvel: sobravam as terras, e as ambies daqueles pio-

    neiros recrutados a tanto custo, no se contentariam evidentemente

    com propriedades pequenas; no era a posio de modestos campone-

    ses que aspiravam no novo mundo, mas de grandes senhores e lati-

    fundirios. Alm disso, e sobretudo por isso, h um fator material

    que determina este tipo de propriedade fundiria. A cultura da ca-

    na somente se prestava, economicamente, a grandes plantaes. J

    para desbravar convenientemente o terreno (tarefa custosa neste

    meio tropical e virgem to hostil ao homem) tornava-se necessrio

    o esforo reunido de muitos trabalhadores; no era empresa para

    pequenos proprietrios isolados. Isto feito, a plantao, a co-

    lheita e o transporte do produto at os engenhos onde se preparava

    o acar, s se tomava rendoso quando realizado em grandes volu-

    mes. Nestas condies, o pequeno produtor no podia subsistir.

    So sobretudo estas circunstncias que determinaro o tipo de

    explorao agrria adotada no Brasil: a grande propriedade. A mes-

    ma coisa alis se verificou em todas as colnias tropicais e sub-

  • tropicais da Amrica. O clima ter um papel decisivo na discri-

    minao dos tipos agrrios. As colnias inglesas do Norte, pela

    contiguidade a de zonas diferentes e variedade de tentativas e

    experincias ensaiadas, bem como pelo fato de serem todas da mesma

    origem nacional, nos oferecem esplndido campo de observao. Nas

    de clima temperado (Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvnia, No-

    va Jrsei, Delaware) estabeleceu-se a pequena propriedade do tipo

    campons; s vezes encontramos a grande propriedade, como em Nova

    Iorque, mas parcelada pelo arrendamento; a pequena explorao em

    todo caso, realizada pelo prprio lavrador, proprietrio ou arren-

    datrio, auxiliado quando muito por um pequeno nmero de subordi-

    nados. Ao sul da baa de Delaware, nesta plancie litornea mida

    e quente, onde j nos encontramos em meio fsico de natureza sub-

    tropical, estabeleceu--se pelo contrrio a grande propriedade tra-

    balhada por escravos, a plantation. Na mesma altura, mas para o

    interior, nos elevados vales da cordilheira dos Apalaches, onde a

    altitude corrige a latitude, reaparece novamente a colonizao por

    pequenas propriedades. A influncia dos fatores naturais to

    sensvel nesta discriminao de tipos agrrios que ela acaba se

    impondo mesmo quando o objetivo inicial e deliberado de seus pro-

    motores outro. Assim na Gergia e Carolina, onde nos achamos em

    zona nitidamente subtropical, a inteno dos organizadores da co-

    lonizao (neste caso, como em geral nas colnias inglesas, compa-

    nhias ou indivduos concessionrios) foi constituir um regime de

    pequenas propriedades de rea proporcional capacidade de tra-

    balho prprio de cada lavrador; com este critrio iniciou-se a co-

    lonizao e a distribuio das terras. Mas frustrou-se tal objeti-

    vo, e o plano inicial fracassou, instituindo-se em lugar dele o

    tipo geral das colnias tropicais.

    Nas ilhas de Barbados passou-se qualquer coisa de semelhante.

    A primeira organizao que se estabeleceu a foi de propriedades

    regularmente subdivididas, e no se empregou o trabalho escravo em

    escala aprecivel. Mas pouco depois, introduzia-se na ilha a cul-

    tura eminentemente tropical da cana-de-acar: as propriedades se

    congregam, transformando-se em imensas plantaes; e os escravos,

    em nmero de pouco mais de 6.000, em 1643, sobem, 23 anos depois,

    para mais de 50.000.

    A grande propriedade ser acompanhada no Brasil pela monocul-

    tura; os dois elementos so correlatos e derivam das mesmas cau-

    sas. A agricultura tropical tem por objetivo nico a produo de

    certos gneros de grande valor comercial, e por isso altamente lu-

    crativos. No com outro fim que se enceta, e no fossem tais as

    perspectivas, certamente no seria tentada ou logo pereceria.

    fatal portanto que todos os esforos sejam canalizados para aquela

    produo; mesmo porque o sistema da grande propriedade trabalhada

    por mo-de-obra inferior, como a regra nos trpicos, e ser o

    caso no Brasil, no pode ser empregada numa explorao diversifi-

    cada e de alto nvel tcnico.

    Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o

    trabalho escravo. No somente Portugal no contava com populao

    bastante para abastecer sua colnia de mo-de-obra suficiente, co-

    mo tambm, j o vimos, o portugus, como qualquer outro colono eu-

    ropeu, no emigra para os trpicos, em princpio, para se engajar

  • como simples trabalhador assalariado do campo. A escravido torna-

    se assim uma necessidade: o problema e a soluo foram idnticos

    em todas as colnias tropicais e mesmo subtropicais da Amrica.

    Nas inglesas, onde se tentaram a princpio outras formas de traba-

    lho, alis uma semi-escravido de trabalhadores brancos, os inden-

    tured servants, a substituio pelo negro no tardou muito. ali-

    s esta exigncia da colonizao dos trpicos americanos que ex-

    plica o renascimento, na civilizao ocidental, da escravido em

    declnio desde fins do Imprio Romano, e j quase extinta de todo

    neste sc. XVI em que se inicia aquela colonizao.

    Assinalei que no Brasil se recorreu, a princpio, ao trabalho

    dos indgenas. Estes j se tinham iniciado na tarefa no perodo

    anterior da extrao do pau-brasil; prestar-se-iam agora, mais ou

    menos benevolentemente, a trabalharem na lavoura de cana. Mas esta

    situao no duraria muito. Em primeiro lugar, medida que aflu-

    am mais colonos, e portanto as solicitaes de trabalho, ia de-

    crescendo o interesse dos ndios pelos insignificantes objetos com

    que eram dantes pagos pelo servio. Tornam-se aos poucos mais exi-

    gentes, e a margem de lucro do negcio ia diminuindo em proporo.

    Chegou-se a entregar-lhes armas, inclusive de fogo, o que foi ri-

    gorosamente proibido, por motivos que se compreendem. Alm disto,

    se o ndio, por natureza nmade, se dera mais ou menos bem com o

    trabalho espordico e livre da extrao do pau-brasil, j no a-

    contecia o mesmo com a disciplina, o mtodo e os rigores de uma

    atividade organizada e sedentria como a agricultura. Aos poucos

    foi-se tornando necessrio for-lo ao trabalho, manter vigilncia

    estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa em que

    estava ocupado. Da para a escravido pura e simples foi apenas um

    passo. No eram passados ainda 30 anos do incio da ocupao efe-

    tiva do Brasil e do estabelecimento da agricultura, e j a escra-

    vido dos ndios se generalizara e institura firmemente em toda

    parte.

    Isto no se fez, alis, sem lutas prolongadas. Os nativos se

    defenderam valentemente; eram guerreiros, e no temiam a luta. A

    princpio fugiam para longe dos centros coloniais; mas tiveram lo-

    go de fazer frente ao colono que ia busc-los em seus refgios.

    Revidaram ento altura, indo assaltar os estabelecimentos dos

    brancos; e quando obtinham vitria, o que graas a seu elevado n-

    mero relativamente aos poucos colonos era freqente, no deixavam

    pedra sobre pedra nos ncleos coloniais, destruindo tudo e todos

    que lhes caam nas mos.

    Foi este um perodo agitado da histria brasileira. s guerras

    entre colonos e indgenas acrescentaram-se logo as intestinas des-

    tes ltimos, fomentadas pelos brancos e estimuladas pelo ganho que

    dava a venda de prisioneiros capturados na luta. De toda esta agi-

    tao eram os ndios naturalmente que levavam o pior; mas nem por

    isso os colonos deixaram de sofrer muito. So inmeros os casos

    conhecidos de destruio total dos nascentes ncleos; certos seto-

    res do litoral brasileiro sofreram tanto dos ataques indgenas que

    nunca chegaram a se organizar normalmente; e vegetaram na medio-

    cridade, assistindo periodicamente destruio de suas lavouras e

    povoaes. Esto no caso o sul do atual Estado da Bahia e o Esp-

    rito Santo. At princpios do sculo passado ainda sofrero dura-

  • mente da agressividade dos ndios.

    Para fazer frente a este estado de coisas, a metrpole procu-

    rar legislar na matria. Data de 1570 a primeira carta rgia a

    respeito. Estabelece-se nela o direito da escravido dos ndios,

    mas limitada aos aprisionados em "guerra justa". Era entendida co-

    mo tal aquela que resultasse de agresso dos indgenas, ou que

    fosse promovida contra tribos que recusavam submeter-se aos colo-

    nos a entrarem em entendimentos com eles. A esta lei sucederam-se,

    a jato contnuo, outras sucessivas que seria muito longo analisar

    aqui. Mas todas mantiveram em princpio a escravido dos ndios,

    que somente ser abolida inteiramente em meados do sc. XVIII.

    Manter-se-, alis, mesmo depois, embora mais ou menos disfarada.

    A questo indgena e os atritos dela resultantes nunca sero

    resolvidos no Brasil seno indiretamente pelo recurso a outras

    fontes de trabalho, como veremos abaixo, o que aliviar os ndios.

    Mesmo assim, sobretudo em regies mais pobres que no podero pa-

    gar o elevado preo dos escravos africanos, os colonos nunca abri-

    ro mo de sua pretenso de constranger os ndios ao trabalho; e

    no houve lei ou limitao que os detivesse. Este ser, entre ou-

    tros, o caso de So Vicente (hoje So Paulo). A luta a continuar

    vivssima pelo sc. XVII adiante, e os paulistas iro buscar os

    ndios em fuga nos mais longnquos territrios. Da estas expedi-

    es conhecidas por "bandeiras", que percorrero todo o interior

    do continente e que alargaro consideravelmente, embora sem cons-

    cincia disto, os limites das possesses portuguesas. Entre suas

    vtimas estaro as misses dos Jesutas, que se tinham localizado

    com seus ndios domesticados numa sucesso de ncleos estendidos

    pelo corao do continente, desde o rio Uruguai, no Sul, at o al-

    to Amazonas. Periodicamente, estas misses sero atacadas pelas

    bandeiras, que levaro os ndios encontrados em cativeiro. Em mui-

    tos casos, os padres desalojados abandonaro a partida; e o terri-

    trio, antes ocupado por eles (e includos por isso at ento,

    porque eles eram de origem espanhola, nos domnios castelhanos)

    ficar livre para a expanso da colonizao portuguesa. A caa ao

    ndio ser um dos principais fatores da grandeza atual do Brasil.

    Alm da resistncia que ofereceu ao trabalho, o ndio se mos-

    trou mau trabalhador, de pouca resistncia fsica e eficincia m-

    nima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa coloniza-

    dora levada em grande escala. Est a o exemplo da Amaznia, onde

    no chegou a ser substitudo em escala aprecivel por outro traba-

    lhador e onde, em grande parte por isso, a colonizao estacionou

    at quase nossos dias. que, de um lado, seu nmero era relativa-

    mente pequeno; doutro, o ndio brasileiro, saindo de uma civiliza-

    o muito primitiva, no podia adaptar-se com a necessria rapidez

    ao sistema e padres de uma cultura to superior sua, como era

    aquela que lhe traziam os brancos. O Brasil, neste assunto, estava

    em situao radicalmente diversa do Mxico e dos pases andinos.

    Aqui ser o negro africano que resolver o problema do traba-

    lho. Os portugueses estavam bem preparados para a substituio; j

    de longa data, desde meados do sc. XV, traficavam com pretos es-

    cravos adquiridos nas costas da frica e introduzidos no Reino eu-

    ropeu onde eram empregados em vrias ocupaes; servios domsti-

    cos, trabalhos urbanos pesados, e mesmo na agricultura. Tambm se

  • utilizavam nas ilhas (Madeira e Cabo Verde), colonizadas pelos

    portugueses na segunda metade daquele sculo. No se sabe ao certo

    quando apareceram pela primeira vez no Brasil; h quem afirme que

    vieram j na primeira expedio oficial de povoadores (1532). O

    fato que na metade do sculo eles so numerosos.

    O processo de substituio do ndio pelo negro prolongar-se-

    at o fim da era colonial. Far-se- rapidamente em algumas regi-

    es: Pernambuco, Bahia. Noutras ser muito lento, e mesmo imper-

    ceptvel em certas zonas mais pobres, como no Extremo-Norte (Ama-

    znia), e at o sc. XIX em So Paulo. Contra o escravo negro ha-

    via um argumento muito forte: seu custo. No tanto pelo preo pago

    na frica; mas em conseqncia da grande mortandade a bordo dos

    navios que faziam o transporte. Mal alimentados, acumulados de

    forma a haver um mximo de aproveitamento de espao, suportando

    longas semanas de confinamento e as piores condies higinicas,

    somente uma parte dos cativos alcanavam seu destino. Calcula-se

    que, em mdia, apenas 50% chegavam com vida ao Brasil; e destes,

    muitos estropiados e inutilizados. O valor dos escravos foi assim

    sempre muito elevado, e somente as regies mais ricas e florescen-

    tes podiam suport-lo.

    Mas seja com escravos africanos, escravos ou semi-escravos in-

    dgenas, a organizao das grandes propriedades aucareiras da co-

    lnia foi sempre, desde o incio, mais ou menos a mesma. ela a

    da grande unidade produtora que rene num mesmo conjunto de traba-

    lho produtivo, um nmero mais ou menos avultado de indivduos sob

    a direo imediata do proprietrio ou seu feitor. a explorao

    em larga escala, que conjugando reas extensas e numerosos traba-

    lhadores, constitui-se como uma nica organizao coletiva do tra-

    balho e da produo. Ope-se assim pequena explorao parcelaria

    realizada diretamente por proprietrios ou arrendatrios.

    O seu elemento central o engenho, isto , a fbrica propria-

    mente, onde se renem as instalaes para a manipulao da cana e

    o preparo do acar. O nome de "engenho" estendeu-se depois da f-

    brica para o conjunto da propriedade com suas terras e culturas:

    "engenho" e "propriedade canavieira" se tornaram sinnimos. Embora

    o proprietrio explore, em regra, diretamente suas terras (como

    ficou entendido acima), h casos freqentes em que cede partes de-

    las a lavradores que se ocupam com a cultura e produzem a cana por

    conta prpria, obrigando-se contudo a moerem sua produo no enge-

    nho do proprietrio. So as chamadas fazendas obrigadas; o lavra-

    dor recebe metade do acar extrado da sua cana, e ainda paga pe-

    lo aluguel das terras que utiliza urna certa porcentagem, varivel

    segundo o tempo e os lugares, e que vai de 5 a 20%. H tambm os

    lavradores livres, proprietrios das terras que ocupam, e que fa-

    zem moer a sua cana no engenho que entendem; recebem ento a mea-

    o integral. Os lavradores, embora estejam socialmente abaixo dos

    senhores de engenho, no so pequenos produtores, da categoria de

    camponeses. Trata-se de senhores de escravos, e suas lavouras, se-

    jam em terras prprias ou arrendadas, formam como os engenhos

    grandes unidades.

    A razo por que nem todas as propriedades dispem de engenho

    prprio so as propores e o custo das instalaes necessrias. O

    engenho um estabelecimento complexo, compreendendo numerosas

  • construes e aparelhos mecnicos: moenda (onde a cana espremi-

    da); caldeira, que fornece o calor necessrio ao processo de puri-

    ficao do caldo; casa de purgar, onde se completa esta purifica-

    o. Alm de outras, o que todas as propriedades possuem , em re-

    gra, a casa-grande, a habitao do senhor; a senzala dos escravos;

    e instalaes acessrias ou suntuarias: oficinas, estrebarias,

    etc. Suas terras, alm dos canaviais, so reservadas para outros

    fins: pastagens para animais de trabalho; culturas alimentares pa-

    ra o pessoal numeroso; matas para fornecimento de lenha e madeira

    de construo. A grande propriedade aucareira um verdadeiro

    mundo em miniatura em que se concentra e resume a vida toda de uma

    pequena parcela da humanidade.

    O nmero de trabalhadores naturalmente varivel. Nos bons

    engenhos, os escravos so de 80 a 100. Chegam s vezes a muito

    mais; h notcias, embora isto j se refira ao sculo XVIII, de

    engenhos com mais de 1.000 escravos. Os trabalhadores livres so

    raros, apenas nas funes de direo e nas especializadas: feito-

    res, mestres, purgadores, caixeiros (so os que fazem as caixas em

    que o acar acondicionado), etc. So, alis, mais freqentemen-

    te, antigos escravos libertos.

    Alm do acar, extrai-se tambm da cana a aguardente. um

    subproduto de grande consumo na colnia, e que se exportava para

    as costas da frica, onde servia no escambo e aquisio de escra-

    vos. A par das destilarias de aguardente anexas aos engenhos, h

    os estabelecimentos prprios e exclusivos para este fim; so as

    engenhocas ou molinetes, em regra de propores mais modestas que

    os engenhos, pois as instalaes para o preparo da aguardente so

    muito mais simples e menos dispendiosas. A aguardente uma produ-

    o mais democrtica que o aristocrtico acar. H no entanto

    destilarias com dezenas de escravos.

    Durante mais de sculo e meio a produo do acar, com as ca-

    ractersticas assinaladas, representar praticamente a nica base

    em que assenta a economia brasileira. Alis sua importncia, mesmo

    internacional, considervel. At meados do sc. XVII o Brasil

    ser o maior produtor mundial de acar, e somente ento que co-

    mearo a aparecer concorrentes srios: as colnias da Amrica

    Central e Antilhas. Contando com tal fator, a colonizao brasi-

    leira, superados os problemas e as dificuldades do primeiro momen-

    to, desenvolveu-se rpida e brilhantemente, estendendo-se cada vez

    mais para novos setores. E cada extenso corresponde efetivamente

    a um alargamento da rea canavieira. Os dois grandes ncleos ini-

    ciais esto, como j foi referido, na Bahia e em Pernambuco. Num

    segundo plano est So Vicente. De Pernambuco, a colonizao se

    alargou para o sul e norte, acompanhando sempre a fmbria costei-

    ra; para o interior esbarraria com a zona semi-rida do serto

    nordestino. Na direo setentrional interrompe-se a expanso no

    Rio Grande do Norte; alm, desaparecem os solos frteis, que so

    substitudos por extenses arenosas imprprias para qualquer forma

    de agricultura. Somente pequenos ncleos de importncia mnima vo

    surgir esparsos na costa setentrional do Brasil: no Maranho, na

    foz do rio Amazonas.

    Na Bahia o movimento mais ou menos estacionou em torno da baa

    de Todos os Santos; mas tomar tamanho vulto que no ser superado

  • por nenhum outro setor da colnia. Localiza-se a o maior centro

    produtor. Na costa meridional da Bahia (Porto Seguro, Ilhus) for-

    mam-se pequenos centros aucareiros; mas a hostilidade permanente

    dos ndios, bem como outras condies menos favorveis, como a

    qualidade do solo, impediram qualquer progresso aprecivel. No Es-

    prito Santo d-se mais ou menos a mesma coisa. Para o sul, final-

    mente, a produo de acar concentrar-se- na vizinhana do Rio

    de Janeiro e em So Vicente. Tambm estes centros, devido sobretu-

    do sua posio excntrica e afastamento dos mercados europeus

    onde se consumia o acar brasileiro, no gozaro nesta primeira

    fase da histria brasileira de grande prosperidade. At o sc.

    XVIII permanecero num apagado segundo plano.

    Alm do acar, embora em escala relativamente pequena, come-

    ar a cultivar-se tambm, desde princpios do sc. XVII, o taba-

    co. Trata-se, como se sabe, de uma planta indgena da Amrica, e

    cujo produto teve logo crescente aceitao na Europa. Mas no s

    com este objetivo que se cultivou no Brasil, e sim tambm para ser

    utilizada no trfico de escravos; o tabaco servir para adquiri-

    los pelo escambo na costa da frica, e ser em grande parte em

    funo deste negcio que se desenvolver a cultura brasileira.

    Quando em princpios do sc. XIX comeam a se estabelecer restri-

    es ao trfico, a produo entrar paralelamente em crise. Mas

    at esta poca ser prspera, e embora de segundo plano e muito

    inferior do acar, merece algum destaque.

    O centro principal da produo na Bahia, e como a do acar

    desta regio, no contorno do Recncavo, particularmente na vila de

    Cachoeira. Outras zonas produtoras sero em Sergipe e Alagoas.

  • 5

    Atividades Acessrias

    NUMA ECONOMIA como a brasileira particularmente em sua pri-

    meira fase preciso distinguir dois setores bem diferentes da

    produo. O primeiro dos grandes produtos de exportao, como o

    acar e o tabaco, que vimos no captulo anterior; o outro das

    atividades acessrias cujo fim manter em funcionamento aquela

    economia de exportao. So sobretudo as que se destinam a forne-

    cer os meios de subsistncia populao empregada nesta ltima, e

    poderamos, em oposio outra, denomin-la economia de subsis-

    tncia. A distino muito importante, porque alm das caracte-

    rsticas prprias que acompanham um e outro setor, ela serve para

    concluses de grande relevo na vida e na evoluo econmica da co-

    lnia. No primeiro captulo em que procurei destacar o carter ge-

    ral da colonizao brasileira, j se verificou que ele o de uma

    colnia destinada a fornecer ao comrcio europeu alguns gneros

    tropicais de grande expresso econmica. para isto que se cons-

    tituiu. A nossa economia subordinar-se- por isso inteiramente a

    tal fim, isto , se organizar e funcionar para produzir e expor-

    tar aqueles gneros. Tudo mais que nela existe, e que, alis, ser

    sempre de pequena monta, subsidirio e destinado unicamente a

    amparar e tornar possvel a realizao daquele objetivo essencial.

    Inclui-se a a economia de subsistncia de que trataremos ago-

    ra. Ao contrrio da cana-de-acar, onde encontramos a explorao

    em larga escala, neste setor so outras formas e tipos de organi-

    zao que vamos observar. Eles so alis variveis. Encontramos a

    produo de gneros de consumo, em primeiro lugar, includa nos

    prprios domnios da grande lavoura, nos engenhos e nas fazendas.

    Estes so em regra autnomos no que diz respeito subsistncia

    alimentar daqueles que os habitam e neles trabalham. Praticam-se

    a, subsidiariamente, as culturas necessrias a este fim, ou nos

    mesmos terrenos dedicados cultura principal, e entremeando-a, ou

    em terras parte destinadas especialmente a elas. Parte reali-

    zada por conta do proprietrio, que emprega os mesmos escravos que

    tratam da lavoura principal e que no esto permanentemente ocupa-

    dos nela; outra, por conta dos prprios escravos, aos quais se

    concede um dia por semana, geralmente o domingo, e at s vezes,

    no caso de um senhor particularmente generoso, mais outro dia

    qualquer, para tratarem de suas culturas. Assim, de um modo geral,

    pode-se dizer que a populao rural da colnia ocupada nas grandes

    lavouras e que constitui a quase totalidade dela, prov suficien-

    temente a sua subsistncia com culturas alimentares a que se dedi-

    ca subsidiariamente, e sem necessidade de recorrer para fora.

    No est nestas condies a urbana. certo que no primeiro

    sculo e meio da colonizao os centros urbanos so muito peque-

    nos. Assim mesmo, incluem uma populao dedicada sobretudo admi-

    nistrao e ao comrcio que no tem tempo nem meios para ocupar-se

    de sua subsistncia, e cujo nmero suficiente para fazer sentir

  • o problema da sua manuteno. Em parte, abastecem-na com seus ex-

    cessos os grandes domnios. Parte pequena, freqentemente nula. O

    acar se encontra numa fase de prosperidade ascendente; os preos

    so vantajosos", e os esforos se canalizam no mximo para sua

    produo. No sobra assim grande margem para atender s necessida-

    des alimentares dos centros urbanos. Por este motivo constituem-se

    lavouras especializadas, isto , dedicadas unicamente produo

    de gneros de manuteno. Forma-se assim um tipo de explorao ru-

    ral diferente, separado da grande lavoura, e cujo sistema de orga-

    nizao muito diverso. Trata-se de pequenas unidades que se a-

    proximam do tipo campons europeu em que o proprietrio que tra-

    balha ele prprio, ajudado quando muito por pequeno nmero de au-

    xiliares, sua prpria famlia em regra, e mais raramente algum es-

    cravo. A populao indgena contribuiu em grande parte para esta

    classe de pequenos produtores autnomos. Os primeiros colonos che-

    gados tiveram naturalmente que apelar, de incio, para os ndios a

    fim de satisfazerem suas necessidades alimentares; ocupados em or-

    ganizarem suas empresas, no lhes sobrava tempo para se dedicarem

    a outras atividades. Os ndios, que no seu estado nativo j prati-

    cavam alguma agricultura, embora muito rudimentar e seminmade,

    encontraram neste abastecimento dos colonos brancos um meio de ob-

    ter os objetos e mercadorias que tanto prezavam. Muitos deles fo-

    ram-se por isso fixando em torno dos ncleos coloniais e adotando

    uma vida sedentria. Mestiando-se depois aos poucos, e adotando

    os hbitos e costumes europeus, embora de mistura com suas tradi-

    es prprias, constituiro o que mais tarde se chamou de "cabo-

    clos", e formaro o embrio de uma classe mdia entre os grandes

    proprietrios e os escravos.

    Quanto aos produtos desta pequena agricultura de subsistncia,

    eles foram em grande parte procurados na cultura indgena. Assim,

    diferentes espcies de tubrculos, em particular a mandioca (mani-

    hot utilissima, Pohl). Este gnero ser a base da alimentao ve-

    getal da colnia, e cultivar-se- em toda parte. Depois da mandio-

    ca vem o milho, cujo valor acrescido pelo fato de tratar-se de

    excelente forragem animal. O arroz e o feijo seguem nesta lista.

    As verduras, pelo contrrio, sempre foram pouco consumidas na co-

    lnia. A abundncia de frutas substituiu suas qualidades nutriti-

    vas; no somente a flora nativa do Brasil conta com grande nmero

    de frutas comestveis e saborosas, como algumas espcies exticas

    (a banana e a laranja, sobretudo), introduzidas desde o incio da

    colonizao, foram largamente disseminadas.

    O papel secundrio a que o sistema econmico do pas, absor-

    vido pela grande lavoura, vota agricultura de subsistncia, de-

    terminou um problema dos mais srios que a populao colonial teve

    de enfrentar. Refiro-me ao abastecimento dos ncleos de povoamento

    mais denso, onde a insuficincia alimentar se tornou quase sempre

    a regra. Naturalmente a questo aparece mais seriamente no sc.

    XVIII, quando os centros urbanos adquirem relativa importncia;

    mas o problema j existe desde o princpio da colonizao, e a le-

    gislao preocupa-se muito com ele. Estabelecem-se medidas obri-

    gando os proprietrios a plantarem mandioca e outros alimentos;

    gravam-se as doaes de terras com a obrigao de se cultivarem

    gneros alimentares desde o primeiro ano da concesso. E assim ou-

  • tras. Todas estas medidas eram mais ou menos frustradas na prti-

    ca. As atenes estavam fixas no acar, cuja exportao deixava

    grande margem de lucros, e ningum dar importncia aos gneros

    alimentares. Um grande senhor de engenho chegar a lanar seu for-

    mal desafio s leis que o compeliam ao plantio da mandioca; "No

    planto um s p de mandioca, escrever ele dirigindo-se. s auto-

    ridades, para no cair no absurdo de renunciar melhor cultura do

    pas pela pior que nele h..." Compreende-se alis esta atitude

    dos grandes proprietrios e senhores de engenho. O problema da ca-

    restia e da falta de alimentos no existia para eles, e convinha-

    lhes muito mais plantar a cana, embora pagassem preos mais eleva-

    dos pelos gneros que consumiam. E como eram eles que detinham a

    maior e melhor parte das terras aproveitveis, o problema da ali-

    mentao nunca se resolver convenientemente. A populao coloni-

    al, com exceo apenas das suas classes mais abastadas, viver

    sempre num crnico estado de subnutrio. A urbana naturalmente

    sofrer mais; mas a rural tambm no deixar de sentir os efeitos

    da ao absorvente e monopolizadora da cana-de-acar que reserva-

    ra para si as melhores terras disponveis.

    As importantes conseqncias deste fato, que podem ser ava-

    liadas sem necessidade de maior insistncia na matria, justifica

    suficientemente s por si a necessidade de distinguir na economia

    brasileira aqueles dois setores em que se dividem suas atividades

    produtivas: o da grande lavoura e o da subsistncia. Se no, no

    se explicaria este quadro caracterstico da vida colonial: de um

    lado abastana, prosperidade e grande atividade econmica; doutro,

    a falta de satisfao da mais elementar necessidade da grande mas-

    sa da populao: a fome.

    Neste setor da subsistncia tambm entra a pecuria. Ela tam-

    bm se destina a satisfazer as necessidades alimentares da po-

    pulao. A carne de vaca ser um dos gneros fundamentais do con-

    sumo colonial. Mas a pecuria, apesar da importncia relativa que

    atinge, e do grande papel que representa na colonizao e ocupao

    de novos territrios, assim mesmo uma atividade nitidamente se-

    cundria e acessria. Havemos de observ-lo em todos os caracteres

    que a acompanham: o seu lugar ser sempre de segundo plano, subor-

    dinando-se s atividades principais da grande lavoura, e sofrendo-

    lhe de perto todas as contingncias.

    A comear pela sua localizao. A cultura da cana no permitiu

    que se desenvolvesse nos frteis terrenos da beira-mar. Relegou-a

    para o interior mesmo quando este apresentava os maiores inconve-

    nientes vida humana e suas atividades, como se d em particular

    no serto do Nordeste. Alia-se a uma baixa pluviosidade grande

    irregularidade das precipitaes. Estas se concentram em dois ou

    trs meses do ano; e isto nos casos mais felizes, porque so fre-

    qentes as secas prolongadas, de anos seguidos de falta completa

    de chuvas. Um tal regime determinou condies fisiogrficas parti-

    culares e muito desfavorveis. Com a exceo de uns rarssimos ri-

    os, todos os cursos d'gua desta vasta regio que abrange mais

    1.000.000 km2, so intermitentes, e neles se alterna a ausncia

    prolongada e total de gua, com cursos torrenciais, de pequena du-

    rao, mas arrasadores na sua violncia momentnea. A vegetao

    compe-se de uma pobre cobertura de plantas hidrfilas em que pre-

  • dominam as cactcias. Unicamente nos raros perodos de chuvas ne-

    las se desenvolve uma vegetao mais aproveitvel que logo depois

    das precipitaes crestada pela ardncia do sol.

    nesta regio ingrata que se desenvolve a pecuria que abas-

    tecer os ncleos povoados do litoral norte, do Maranho at a Ba-

    hia Pode-se avaliar como seria baixo seu nvel econmico e ndice

    de produtividade. Basta dizer que neste milho de quilmetros qua-

    drados, praticamente todo ocupado, o nmero de cabeas de gado no

    alcanar talvez nunca 2 milhes, umas duas cabeas em mdia por

    quilmetro. Quanto qualidade, ela tambm nfima: as reses, em

    mdia, no fornecero mais de 120 kg de carne por animal; e carne

    de pouco valor.

    Apesar das condies desvantajosas em parte graas a elas

    porque foraram uma grande disperso , as fazendas de gado se

    multiplicaram rapidamente, estendendo-se, embora numa ocupao

    muito rala e cheia de vcuos, por grandes reas. Seu centros de

    irradiao so a Bahia e Pernambuco. A partir do primeiro, elas se

    espalham sobretudo para norte e noroeste em direo d