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O PROCESSO DE REFORMULAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA Neumar de Lima 1 Resumo: Considerando a escassez de material em língua portuguesa sobre a interpreta- ção simultânea e a dificuldade de acesso a fontes originais, este artigo se propõe a anali- sar o desafio envolvido no processo de re-expressão, ou reformulação, na interpretação simultânea e discutir treze técnicas de reformulação. O artigo estabelece como pano de fundo a Teoria Interpretativa (Théorie du Sens) de Seleskovitch, vista aqui como ponte essencial a uma prática de reformulação eficiente. Palavras-chave: Interpretação Simultânea; Re-expressão; Reformulação; Teoria Interpretativa THE REFORMULATION PROCESS IN THE SIMULTANEOUS INTERPRETATION Abstract: On account of a shortage of materials published in Portuguese related to simul- taneous interpretation, and the difficulty in having access to original sources, this article aims at analyzing the challenge involved in the process of re-expression, or reformulation, in this mode of interpretation as well as discussing thirteen reformulation techniques. The discussion has as theoretical background Seleskovitch’s Interpretative Theory (Théorie du Sens), understood here as an essential bridge for an efficient reformulation practice. Keywords: Simultaneous Interpretation; Re-expression; Reformulation; Interpretative Theory (Théorie du Sens) O intérprete sempre esteve presente em muitos momentos da história. No que diz respeito à interpretação simultânea, esta nasceu no pós-guerra dentro dos tribunais de Nuremberg, em que foram julgados os nazistas acusados de atrocidades e crimes durante a Segunda Guerra Mundial (JUNIOR, 1998). Nesse ponto da história, houve a neces- sidade de comunicação envolvendo até 14 línguas diferentes, e a tecnologia permitiu a transmissão em áudio do processo de julgamento a todos os ouvintes, simultaneamente. Interpretar é algo encantador, é quebrar barreiras culturais e unir povos. A interpretação simultânea é considerada a mais difícil e desafiadora para qualquer intérprete e, por esse motivo, faz com que seja estudada com mais afinco. Tendo em vista o desafio envolvido no processo de re-expressão na interpretação si- multânea, decidimos discorrer neste trabalho sobre treze técnicas relacionadas com o processo de “reformulação”, com base em Jones (1998). Como pano de fundo teórico, apresentaremos os postulados da Teoria Interpretativa de Seleskovitch (1978; 1980; 1984; 1995), pesquisadora europeia que deu legitimidade acadêmica à área da interpretação (PAGURA, 2003). 1 Mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Professor do curso de Letras e Tradutor e Intérprete no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: [email protected]

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O PROCESSO DE REFORMULAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA

Neumar de Lima1

Resumo: Considerando a escassez de material em língua portuguesa sobre a interpreta-ção simultânea e a dificuldade de acesso a fontes originais, este artigo se propõe a anali-sar o desafio envolvido no processo de re-expressão, ou reformulação, na interpretação simultânea e discutir treze técnicas de reformulação. O artigo estabelece como pano de fundo a Teoria Interpretativa (Théorie du Sens) de Seleskovitch, vista aqui como ponte essencial a uma prática de reformulação eficiente.Palavras-chave: Interpretação Simultânea; Re-expressão; Reformulação; Teoria Interpretativa

ThE REFORMULATION PROCESS IN ThE SIMULTANEOUS INTERPRETATION

Abstract: On account of a shortage of materials published in Portuguese related to simul-taneous interpretation, and the difficulty in having access to original sources, this article aims at analyzing the challenge involved in the process of re-expression, or reformulation, in this mode of interpretation as well as discussing thirteen reformulation techniques. The discussion has as theoretical background Seleskovitch’s Interpretative Theory (Théorie du Sens), understood here as an essential bridge for an efficient reformulation practice.Keywords: Simultaneous Interpretation; Re-expression; Reformulation; Interpretative Theory (Théorie du Sens)

O intérprete sempre esteve presente em muitos momentos da história. No que diz respeito à interpretação simultânea, esta nasceu no pós-guerra dentro dos tribunais de Nuremberg, em que foram julgados os nazistas acusados de atrocidades e crimes durante a Segunda Guerra Mundial (JUNIOR, 1998). Nesse ponto da história, houve a neces-sidade de comunicação envolvendo até 14 línguas diferentes, e a tecnologia permitiu a transmissão em áudio do processo de julgamento a todos os ouvintes, simultaneamente.

Interpretar é algo encantador, é quebrar barreiras culturais e unir povos. A interpretação simultânea é considerada a mais difícil e desafiadora para qualquer intérprete e, por esse motivo, faz com que seja estudada com mais afinco.

Tendo em vista o desafio envolvido no processo de re-expressão na interpretação si-multânea, decidimos discorrer neste trabalho sobre treze técnicas relacionadas com o processo de “reformulação”, com base em Jones (1998). Como pano de fundo teórico, apresentaremos os postulados da Teoria Interpretativa de Seleskovitch (1978; 1980; 1984; 1995), pesquisadora europeia que deu legitimidade acadêmica à área da interpretação (PAGURA, 2003).

1 Mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Professor do curso de Letras e Tradutor e Intérprete no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: [email protected]

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Conforme discutiremos adiante, acreditamos que as técnicas apresentadas por Jones constituem uma decorrência dos conceitos teóricos desenvolvidos por Seleskovitch, e o estudo dessas técnicas certamente melhorará o desempenho de intérpretes no exercício de sua profissão. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa de caráter bibliográfico, fundamentada, princi-palmente, em dois expoentes da interpretação simultânea: a já mencionada Danica Seleskovitch e Roderick Jones, tradutor e intérprete da União Europeia por mais de 25 anos (CAMERON, 2004), e autor da renomada obra Conference Interpreting Explained (JONES, 1998), nossa principal fonte de consulta. Todas as citações traduzidas da obra de Jones neste artigo são traduções nossas.

Reflexões preliminares sobre a interpretação simultâneaA interpretação simultânea exige grande concentração do intérprete, é difícil

e desafiadora. Ela se divide em dois níveis de discurso: o macro e o micro. No nível macro, “você não sabe a direção do discurso; no nível micro, você não sabe como uma única frase continuará, podendo ser um detalhe tão básico como saber se a forma será afirmativa ou negativa” (JONES, 1998, p. 77). Além disso, o intérprete está alheio à complexidade, à clareza, à velocidade ou à lógica do orador.

Outros desafios do intérprete envolvem a necessidade que ele tem de atentar para a concatenação de seu próprio discurso, de tomar decisões instantâneas o tempo todo e ad-ministrar uma comunicação silenciosa com um colega de cabine. Além disso, o intérprete precisa fazer consultas a documentos e dicionários, e muitas vezes retardar a interpretação de alguns trechos até que o entendimento esteja completo (JUNIOR, 2007).

A Teoria Interpretativa (Théorie du Sens)A teoria interpretativa ou, como é mais conhecida, théorie du sens foi desenvolvida

por Danica Seleskovitch na ESIT (Sorbonne Nouvelle-Paris III: Escola Superior de Intérpretes e Tradutores). Antes da teoria de Seleskovitch, o treinamento de intérpretes era associado ao ensino de línguas estrangeiras. Superando esse panorama metodológi-co vigente na época, a théorie du sens veio a contribuir para uma reflexão mais profunda do que é realmente interpretar (PAGURA, 2003).

Os pressupostos teóricos da teoria interpretativa afirmam que, para compreender um dis-curso oral ou escrito, não basta apenas o conhecimento da língua enquanto sistema. Com efeito, Seleskovitch, fundamentando-se em estudos linguísticos pós-sausurianos, desenvolveu uma te-oria que valoriza as estruturas pragmáticas da língua, enfatizando o princípio de que o estudo da língua e de seu funcionamento não pode ser dissociado do estudo do seu uso (PAGURA, 2003).

A teoria interpretativa trabalha diretamente com o processo de comunicação. O ato de comunicar se refere às mensagens transmitidas pela fala individual, sendo esta composta da língua e de conteúdos cognitivos ligados aos signos linguísticos apenas de maneira transitória. A habilidade de comunicação exige, portanto, não apenas competên-cia linguística, mas também bagagem cognitiva e capacidades lógicas.

Para que um intérprete possa compreender um discurso oral ou escrito, ele pre-cisa não somente identificar os conteúdos semânticos permanentes dos signos linguís-ticos, e atribuir a eles significado com base em suas combinações sintáticas nas fra-

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ses, mas também discernir os elementos cognitivos não linguísticos que, em uma dada situação, estão ligados ao enunciado (PAGURA, 2003).

A Teoria Interpretativa possui três postulados básicos: a percepção, a desverbaliza-ção e a reverbalização. O quadro abaixo explica cada uma dessas etapas:

Quadro 1: os postulados da Teoria Interpretativa

PercePção Envolve a escuta de uma mensagem e a apreensão de seu significado por meio de um processo contínuo de análise. Aqui, focaliza-se a compreensão do sen-tido (sens) da mensagem, que é a fusão do significado linguístico das palavras e frases com os complementos cognitivos.

Desverbalização

Corresponde ao abandono imediato e intencional das palavras, e retenção da re-presentação mental/cognitiva da mensagem (conceitos, ideias etc). Nessa fase, o intérprete fica apenas com a consciência do sentido; e é a partir dessa consciência que o intérprete pode espontaneamente expressar o sentido, sem estar preso à forma da língua de partida (SELESKOVITCH; LEDERER, 1995; PAGURA, 2003).

reverbalização

A reverbalização propicia a produção de um novo enunciado na língua-alvo, revestindo o sentido desverbalizado de uma nova roupagem. Neste estágio do processo de interpretação, o intérprete tem a oportunidade de dar uma nova feição à mensagem já compreendida, ou seja, revestir o sentido desverbali-zado de uma nova roupagem, e produzir um novo enunciado na língua-alvo.

A percepção constitui o primeiro passo do processo de interpretação, pois permite que o intérprete compreenda o sentido da mensagem, que é a fusão do significado linguístico das palavras e frases com os complementos cognitivos. O quadro abaixo sintetiza os três comple-mentos cognitivos que contribuem para o processo de percepção do enunciado linguístico:

Quadro 2: os complementos cognitivos

o contexto verbal

Refere-se à interação das palavras já ouvidas pelo intérprete no enunciado, as quais se encontram em sua memória imediata, com outras palavras que vão surgindo. Cada palavra contribui para o significado das palavras em seu entorno imediato e as torna mais específicas.

o contexto situacional

Refere-se ao fato de o intérprete ser parte integrante do evento do qual está participando, pois conhece o palestrante e o público ao qual este está se dirigindo. O contexto situacional permite que o intérprete compreenda significados relevantes, eliminando a polissemia.

o contexto cogni-tivo

Refere-se ao saber latente, desverbalizado, que o intérprete possui sobre o assunto sendo tratado e outros correlatos, que intervêm na compreensão das sequências verbais sucessivas.

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Outro conceito complementar é o da “bagagem cognitiva”, que corresponde ao conhecimento de mundo do intérprete, ou seja, seu “conhecimento enciclopédico”. Esse conhecimento, constituído de tudo aquilo que sabemos quer seja por experiência ou por meio da aprendizagem de toda uma vida, é mobilizado pela cadeia enunciativa e contribui para a compreensão do que foi escrito (LEDERER, 1990; 1994).

Dentre os três postulados da teoria de Seleskovitch, a “reverbalização” representa o clímax do trabalho do intérprete e a própria concretização e validação de sua profissão. Cremos que a reverbalização é a ponte que une a teoria interpretativa de Seleskovitch com as discussões de Roderick Jones sobre a reformulação, visto que esse terceiro postulado não passa de outro termo para se referir ao processo de reformulação, foco deste artigo.

A relevância das técnicas de reformulação de JonesAs técnicas de reformulação apresentadas por Jones não somente revelam que o

processo de interpretação é possível, mas oferecem ferramentas que auxiliam o intérprete a pensar como agir em diferentes circunstâncias. O pressuposto básico de todas as técnicas é que o intérprete deve desenvolver o hábito de nunca dizer algo sem sentido ou fora do contexto, livrando-o, assim, de uma grande quantidade de erros potenciais (JONES, 1998).

Passos preliminares da reformulaçãoA atenção compartilhada (split attention): o termo refere-se à habilidade de concentrar a

atenção em mais de uma atividade, pois o intérprete precisa escutar de forma crítica e cuidadosa dois discursos: o do palestrante e o seu próprio. Caso ele não monitore suas palavras, poderão ocorrer erros gramaticais, de pronúncia ou até de esquecimento de palavras (JONES, 1998).

Jones (1998) sintetiza dez importantes regras para uma reformulação eficiente. Segundo o autor, o intérprete deve:

1. Lembrar-se de que está engajado num processo de comunicação;2. Fazer bom uso dos recursos técnicos;3. Certificar-se de que está ouvindo a si mesmo e o orador;4. Nunca tentar interpretar algo que não ouviu ou não entendeu por razões acústicas;5. Maximizar a concentração;6. Evitar desviar a atenção por causa de palavras problemáticas;7. Cultivar a habilidade de split attention por meio de escuta ativa, analítica e por meio

de monitoramento crítico de sua própria produção;8. Usar orações curtas e simples;9. Falar com correção gramatical e lógica;10. Finalizar as frases.

Quando começar a interpretar?O intérprete precisa começar a falar assim que tiver material compreensível sufi-

ciente, e evitar ficar muito aquém do orador, pois correrá dois riscos: o de ficar o discurso

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todo tentando alcançar o orador, e o de perder conceitos importantes. Antes de começar a interpretar, o intérprete deve também levar em conta a natureza da língua de partida e da língua de chegada, cada uma tendo suas especificidades em termos de sintaxe e gramática. De qualquer forma, o intervalo não pode ser nunca maior do que alguns segundos, pois, segundo Jones (1998), em simultânea, cinco segundos é uma eternidade.

Natureza e vantagens da reformulaçãoA reformulação deve refletir as características da língua de chegada, o que significa

que uma interpretação do inglês para o português deverá parecer ter sido produzido ori-ginalmente em português, sem traços que denotem sua origem no inglês. O bom uso da reformulação ajudará o intérprete a saber lidar com as palavras desconhecidas, ou mesmo com aquelas que ele conhece mas não consegue encontrar uma equivalência imediata. Isso se torna possível pelo fato de o intérprete se manter a certa distância do orador e lidar com o discurso não como uma sequência lexical que deve ser traduzida palavra por palavra. Em síntese, a reformulação possui as seguintes vantagens:

1. O conteúdo pode ser moldado estilisticamente;2. As ideias se revestem de roupagem apropriada na língua alvo;3. Um conceito pode ser aprimorado no processo da reformulação;4. O intérprete tem a oportunidade de fazer uso efetivo da sua bagagem cognitiva;5. A reformulação promove o profissionalismo e a competência, já que eviden-

cia que o intérprete não apenas compreende, mas analisa e processa cognitivamente as ideias veiculadas pelo orador;

6. A reformulação propicia também a libertação da “tirania” das palavras. O in-térprete não deve adotar uma postura de subserviência em relação a elas, caindo numa letargia mental, mas procurar perceber as ideias que estão por detrás das palavras.

Como desenvolver a habilidade de reformulaçãoPara alcançar uma boa habilidade de reformulação, o intérprete precisa aprimorar

sua bagagem cognitiva e capacidades lógicas. Se o intérprete tiver um bom desempenho no processo de reformulação, ele estará em condição de expressar o sentido da mensagem de modo natural, usando suas próprias palavras na língua alvo de maneira variada e rica. Essa habilidade não se desenvolve da noite para o dia.

Cabe ao intérprete preparar-se, abastecer-se de conhecimento variado, manter-se atualizado por meio de jornais, atualidades, publicações de assuntos técnicos como pes-quisas médicas, computação etc. Apresentaremos a seguir as treze técnicas propriamente ditas da reformulação, conforme discutidas por Jones (1998).

A técnica do salameO conceito principal subjacente a essa técnica é o de fazer com que o intérprete se acos-

tume a dividir o discurso em frases simples, concisas, ou seja, em fatias, daí o termo “salame”. Essa técnica é especialmente útil em línguas com estruturas sintáticas longas e complexas, com

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muitas orações subordinadas que se encaixam dentro de uma estrutura principal. O quadro abaixo mostra como um período com orações subordinadas pode, no momento da interpre-tação, ser transformado em períodos simples ou orações coordenadas curtas:

Quadro 3: a técnica do salame na prática

PeríoDo falaDo em uma língua De PartiDa PeríoDo interPretaDo com o uso Da técnica Do salame

Tentamos entrar em contato com o fotógra-fo que identificou o homem que prestava aju-da ao ferido na cena daquele terrível acidente

Um homem foi visto na cena do acidente. Ele estava ajudando o ferido e foi identificado por

um fotógrafo. Tentamos entrar em contato com o fotógrafo

Essa técnica exige um bom uso da memória curta do intérprete, de sua capacidade de desverbalização-revebalização e de sua habilidade de dissecar ou “fatiar” o discurso de modo que se expresse de forma simples, sem criar dificuldades gramaticais, retomando informações deixadas para trás no discurso. Nesse processo, o intérprete deverá filtrar, es-pecialmente se o orador for mais veloz, palavras sem importância real para o discurso, tais como “realmente”, “de fato”, “bem”, “como estava falando”, “se vocês compreendem o que quero dizer” etc.; deverá filtrar também o uso abusivo de sinônimos. A maior parte das repetições de um orador é feita de forma gratuita. Assim, cabe ao intérprete evitar o uso exacerbado de sinônimos, ou seja, a redundância na interpretação.

O mesmo princípio se aplica a oradores prolixos. Por exemplo, se um orador disser: “Você terá oportunidade de apresentar questões orais para o Ministro com o objetivo de lhe informar sobre a atual situação das negociações”, a interpretação pode se limitar ao seguinte: “Você poderá perguntar ao Ministro sobre a situação das negociações’. Outro exemplo: se o presidente da reunião perguntar a um de seus assessores: “Você concorda?”, e este responder: “Gostaria de informar que minha posição perante tal questão é negati-va”, uma boa interpretação poderia ser simplesmente: “Não.”

Evidentemente, esse princípio não se aplica em casos em que o orador profere um discurso cheio de nuances delicadas ou diplomáticas. Por exemplo, se a resposta anterior fosse: “Infelizmente, Sr. Presidente, gostaria de salientar que para o momento a nossa opi-nião se mantém negativa’, ela não poderia ser interpretada como ‘não’, pois ela apresenta o conceito de ‘infelizmente’, o que significa certo arrependimento com relação à resposta. Além disso, o orador utiliza-se das palavras “para o momento”, o que transmite certa espe-rança para o futuro de que sua posição a respeito da problemática analisada possa mudar.

A técnica da simplificaçãoHá pelo menos duas razões para um intérprete usar a técnica da simplificação. Em

primeiro lugar, intérprete terá, muitas vezes, de lidar com discursos altamente técnicos, e, apesar da documentação disponível e seu preparo, ele não estará em condições de inter-pretar todos os detalhes técnicos. Nessas situações, cabe ao intérprete tentar transmitir o essencial por “simplificação”. Em segundo lugar, pode ocorrer de o orador fazer um dis-

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curso difícil e fora da compreensão de seu público alvo. Nesse caso, o intérprete poderá gerenciar a situação recorrendo também à simplificação. Se o público continuar confuso, o ônus da culpa deverá, então, recair não sobre o intérprete, mas sobre o orador, que peca em criar um discurso complicado e difícil de ser compreendido.

Há profissionais da área da interpretação ou tradução que afirmam que o intérprete, ou tradutor, não deve contornar tal situação, já que a falta é do orador, não cabendo ao intérprete julgar a compreensão do público ao tentar transmitir uma mensagem simplificada; essa atitude poderia parecer um ato de arrogância. O bom senso deverá ser o árbitro nessas situações de-licadas. Jones (1998) adota uma postura moderada, ressaltando que um dos primeiros deveres do intérprete não é ser tão fiel ao orador, mas, sim, maximizar a comunicação, ou seja, quebrar a barreira cultural e técnica para que o essencial da mensagem possa ser transmitido.

Jones (1998) salienta também que pode parecer contraditório pensar que o intérprete possa simplificar alguma coisa que não compreendeu plenamente. No entanto, cabe ao intér-prete fazer o máximo uso de todo contexto a sua disposição, e, mesmo não possuindo todo o contexto ou todo o vocabulário técnico em questão, fazer a reformulação recorrendo à simplificação a fim de transmitir o essencial da mensagem de maneira rápida e eficiente. Em suma, o intérprete deve saber sacrificar certas informações quando necessário. Isso implica uma constante análise do discurso para identificar o que é de maior ou menor importância.

A técnica da generalizaçãoA “generalização” requer uma troca de termos específicos por termos mais ge-

néricos, e deve ser utilizada quando se interpretam oradores velozes. O objetivo é ga-nhar tempo e ao mesmo tempo manter a coesão e sentido da mensagem. O exemplo abaixo e bastante ilustrativo:

Um orador pode dizer: “As pessoas veem como coisa corriqueira ter um refrigerador, freezer, máquina de lavar louça e roupas, centrífugas e um aspirador de pó”. Se o palestrante seguir por uma sequência de detalhes irrelevantes para a mensagem, o intérprete poderá dizer: “As pessoas veem como coisa corriqueira muitos dos aparelhos eletrodomésticos”, ou seja, o intérprete utilizou-se de um termo genérico (JONES, 1998, p. 112).

Contudo, essa técnica deve ser utilizada de forma apropriada. Se o orador passar uma lista de termos que são específicos e importantes para a mensagem, o intérprete deve fazer o máximo para retransmitir esses termos.

A técnica da omissãoA “omissão” deverá ser usada quando a simplificação ou a generalização não

forem efetivas. Isso ocorre em casos em que a interpretação se dá sob grande pres-são, devido ao nível técnico do assunto, ao modo de se expressar ou à velocidade do orador e, em certos casos, uma mistura de todos esses fatores. Em situações assim, é a omissão que permitirá que o intérprete mantenha o discurso fluindo. Para que a omissão seja eficaz, o intérprete deve manter-se a certa distância do orador, para que

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possa ter tempo de analisar o discurso, perceber os elementos essenciais a serem man-tidos na interpretação e descartar outros elementos assessórios da mensagem, como digressões, ilustrações, anedotas etc.

A técnica para lidar com oradores velozes na fala e na leituraOradores velozes dificultam o processo de reformulação, especialmente quando o

orador veloz está lendo seu discurso; ou pior ainda, quando o intérprete não tem acesso ao texto ou este lhe é entregue no último minuto. Os seguintes procedimentos da parte do intérprete são essenciais para lidar com oradores velozes:

• Manter-se o mais distante possível do orador;• Analisar cuidadosamente o discurso para se decidir a técnica de reformulação a

ser emprega — salame, simplificação, generalização ou omissão;• Procurar transmitir o máximo do sentido das palavras do orador em menos

sílabas possíveis;• Apresentar as informações de modo calmo, claro e simplificado. Esse procedimen-

to deixará o público impressionado com a capacidade do intérprete de apresentar com tranquilidade um discurso proferido em alta velocidade na língua de partida;

• Solicitar que orador reduza a velocidade, especialmente nos casos em que ele estiver falando numa velocidade impossível de ser interpretada;

• Fazer uso adequado do texto em mãos (o que nem sempre acontece), atendo-se às informações importantes e mais difíceis que complicam a arte de interpretar, como datas, estatísticas, nomes de lugares, referências etc. O texto escrito deve ser visto como um recurso adicional para auxiliar o intérprete a melhor compre-ender termos técnicos e dados específicos do discurso, e não um substituto para uma escuta atenta do discurso oral. Portanto, o intérprete deve evitar ler texto escrito palavra por palavra assim que o orador as pronuncia, já que esse procedi-mento pode desviar a atenção do intérprete do texto oral e causar confusão se o palestrante sair do texto escrito, o que geralmente acontece;

• Recusar-se a interpretar em situações críticas. Se o intérprete não tem o texto do orador cuja leitura é rápida, e se o tema tratado for impossível de ser interpretado sem alguma documentação, como é o caso de relatos de pesquisas especializadas com terminologia técnica específica, repleta de dados estatísticos, nome de regiões pouco conhecidas etc., o intérprete tem a obrigação de falar a seu público que não tem condições de interpre-tar e parar a interpretação.

A técnica do resumo e da recapitulaçãoEssa técnica deve ser usada quando o intérprete perceber que o público não acom-

panhou a mensagem adequadamente, ou quando existir a necessidade de acrescentar co-mentários extras para clarificar o que o orador não deixou bem claro. Entretanto, trata-se de uma técnica que não deve ser usada como desculpa para encobrir deficiências do intérprete.

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A técnica da explicaçãoA técnica da “explicação” pode ser utilizada para se romper alguma barreira de comuni-

cação, ou nos casos em que explicações se fazem necessárias. Se o intérprete não tiver tempo de explicar, deverá deixar passar e continuar normalmente com sua interpretação. Às vezes, porém, mesmo que leve tempo, o intérprete deveria estar pronto para fornecer explicações na hora certa, devendo essas serem objetivas e sem a apresentação de pontos de vista pessoais.

A técnica da antecipaçãoEssa técnica ajuda o intérprete a ganhar tempo e manter-se a certa distância do

orador. Ao usar a “antecipação”, o intérprete se adianta e interpreta trechos do discurso original antes de serem enunciados. Ela pode ser usada quando o orador inicia uma frase cujo final o intérprete julgue óbvio, ou quando a estrutura e o fluxo geral do discurso lhe dão dicas suficientes quanto a onde o orador quer chegar. Os seguintes fatores tornam essa técnica possível: 1) a segurança do intérprete por ele se manter próximo da fala do orador; 2) o conhecimento do andamento geral do assunto, devido à retomada constante de temas pelo orador; e 3) o bom nível de contexto cognitivo à disposição do intérprete, ou de sua bagagem cognitiva.

Para um uso efetivo dessa técnica, o intérprete deve 1) perceber os padrões dis-cursivos e estruturas retóricas usadas pelo palestrante, 2) aproveitar as dicas do orador sobre o que será dito a seguir, e 3) usar a intuição para saber como o orador irá concluir. A técnica, porém, apesar de constituir ferramenta preciosa para ganhar tempo, não é in-falível. Isso significa que o intérprete deve ficar atento ao contexto, ouvir atentamente, e evitar pré-julgar o assunto, correndo o risco de acabar fazendo seu próprio discurso.

A técnica para lidar com erros do intérprete e do oradorErros podem ser cometidos tanto pelo intérprete quanto pelo orador. Um intérpre-

te pode cometer erros sem consequências negativas para o sentido da mensagem; outros erros, porém, podem comprometer todo o significado do discurso. Existe uma variedade de erros: a) não ouvir ou entender corretamente uma palavra ou frase (o que pode ser grave se a palavra for um “não”), b) perceber erroneamente a ideia do orador, c) inter-pretar incorretamente uma referência dada pelo orador, principalmente quando ela estiver muito bem definida no discurso, d) falar algo perfeitamente compreendido, mas expresso erroneamente, ou seja: um deslize da língua.

Uma primeira atitude diante de erros do orador é ignorá-los, quando esses não prejudicam o sentido da mensagem, ou quando se trata de erros que o auditório conse-gue compreender, pelo contexto, o que o orador realmente quis dizer. Nesse último caso, se for possível corrigir rapidamente o equívoco, o intérprete pode fazê-lo, favorecendo, assim, uma melhor relação pessoal com o público. A correção, porém, deverá ser feita de maneira sutil e normal, em tom conversacional, usando frases do tipo: “Desculpe, o orador se refere à pagina 25 e não à 52.”

Há outras situações, porém, que o intérprete percebe que o orador realmente come-teu um erro que ele julga significativo. Antes de qualquer comentário nesse sentido, é bom

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lembrar que a probabilidade de um orador errar é bem menor, pois o conhecimento que ele tem do assunto geralmente é muito superior ao do intérprete. Assim, o intérprete deve ser extremamente cuidadoso antes de comentar algo com o orador, e intervir o menos possível. No entanto, em casos em que o intérprete tem absoluta certeza de que houve erro por parte do orador — por exemplo, a localização de um evento famoso num século errado, ou a menção errônea do número de um documento — a correção deverá ser feita.

No que diz respeito a erros do intérprete, se este comete um equívoco bem signifi-cativo que o público talvez não tenha percebido, ele deverá engolir seu orgulho e corrigir o erro o mais rápido possível. Convém ressaltar, no entanto, que as correções devem ser aplicadas quando ocorrerem erros de fato, e não por motivos estéticos ou literários. Al-guns intérpretes, por perfeccionismo ou no desejo de embelezar a interpretação, se corri-gem constantemente na tentativa de encontrar a melhor palavra. Essas correções, observa Jones (1998), são inúteis e ineficazes, pois atrapalham a concentração dos ouvintes ao ten-tarem captar a mensagem, e o próprio intérprete, que corre o risco de não se concentrar nas palavras subsequentes do orador.

Outro cenário possível de erros é quando o orador não estiver usando sua língua ma-terna. Nesse caso, o intérprete deve se esforçar para interpretar de modo claro e apropriado a mensagem do orador. Caso isso não seja possível, o intérprete deve fazer uma observação ao final da interpretação, advertindo o público de que, devido ao fato de o orador não estar se expressando em sua língua materna, houve perdas de significado na transmissão da mensagem.

A técnica do não comprometimentoEssa técnica faz com que o intérprete evite anunciar o que o orador diz que virá na

sequência. A melhor postura do intérprete nesses casos é fazer generalizações, evitando, assim, se comprometer, pois o orador pode vir a se esquecer de algum tópico previamente anunciado. Por exemplo, o orador pode mencionar que irá discutir cinco aspectos impor-tantes e, ao final, só mencionar três.

Se o orador deseja contar uma piada, o intérprete deve evitar anunciar a piada para não despertar nos ouvintes uma expectativa que pode não ser cumprida. Caso os ouvintes levem a sério a piada não anunciada, o intérprete deve acrescentar que era só uma brinca-deira. Afinal, piadas nem sempre podem ser traduzidas. Se for possível, o intérprete deve ficar bem perto da fala do orador, pois todos deverão rir ao mesmo tempo; se a tradução não for possível, há duas opções: substituir a piada do orador por outra, ou simplesmente avisar o público que o orador está contando uma piada intraduzível e indicar o momento quando todos deverão rir! A técnica é útil também nos casos de alusões literárias, uso de metáforas ou ditados. Nas alusões literárias, o melhor é não anunciá-las, nem a sua pro-cedência. Essas devem ser interpretadas da melhor forma possível, e, ao final, anuncia-se o escritor ou o pensador mencionado. Caso o orador estiver lendo a alusão, o intérprete pode dizer: “parafraseando”. Dessa forma, evita-se o risco de o intérprete se comprome-ter com o público ao tentar apresentar uma interpretação exata da alusão literária.

Para lidar com metáforas e ditados, o intérprete não deve também anunciar a procedên-cia, pois podem não ter equivalência na língua de chegada. Se for esse o caso, o intérprete deve

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se esforçar para explicar a moral do ditado. Se o intérprete não entendeu o ditado, o melhor é não falar nada, ou simplesmente traduzir literalmente a metáfora ou o ditado, se julgar realmen-te muito importante fazê-lo. Finalmente, o intérprete deve evitar criar seus próprios ditados.

A técnica das frases de consumo imediato (pat phrases)Essa técnica ajuda o intérprete a ganhar tempo para que possa se concentrar no

que é mais difícil. Trata-se de traduções já prontas que não exigem o processo de des-verbalização/reverbalização. Seguem alguns exemplos: no wonder that (não é de se admirar que), however (contudo), suffice to say that (basta dizer que), that’s why (é por isso que), notwi-thstanding (não obstante) etc. Além de expressões discursivas com essas, Jones (1998, p. 127) acrescenta que “há muitos jargões específicos que são usados frequentemente em reuniões internacionais, [e,] […] dependendo do cliente, algumas expressões surgem com muita frequência, para não dizer o tempo todo.” A grande vantagem dessa técnica é o fato de ela ajudar o intérprete a poupar suas energias mentais para usá-las em situações realmente problemáticas, propiciando ganho de tempo, já que essas frases de consumo imediato podem ser expressas com extrema rapidez.

Essa técnica estabelece um equilíbrio entre os postulados de Seleskovitch e a prá-tica do dia a dia do intérprete. A despeito da inegável eficiência dos postulados da Teoria Interpretativa de Seleskovitch, haverá momentos em que, na impossibilidade de se efetuar uma desverbalização/reverbalização adequada, o intérprete apelará a uma interpretação mais literal ou mecânica, até “pegar o fio da meada” e estar em condições de desverbalizar e re-verbalizar. Nesses momentos, conforme ressalta Pagura (2003, p. 229), com base em Lederer (1978), o intérprete estará fazendo uso de uma “transposição linguística ou transcodificação”. Essa interpretação mais literal e mais próxima da sintaxe e léxico da língua de partida é como um recurso de “sobrevivência” que permite ao intérprete continuar a interpretação até que ele alcance uma compreensão mais nítida da mensagem e possa, assim, se libertar das pala-vras e partir, uma vez mais, para uma re-expressão mais de acordo com a língua de chegada.

Técnicas de recursos suprassegmentais (entonação, acentuação e pausa)O trabalho de um intérprete não se resume a simplesmente ter conhecimento da lín-

gua fonte ou realizar uma reformulação a mais adequada possível na língua alvo. Ele precisa também saber explorar com eficiência a entonação, a acentuação e as pausas. Os recursos suprassegmentais ajudam o intérprete a realizar uma interpretação ainda mais eficaz. Em outras palavras, o intérprete deve procurar se envolver com a reunião, perceber a ênfase dada a palavras e expressões e não ignorar as pausas, pois estas o ajudam a pensar melhor.

Além disso, o intérprete deve evitar parecer muito calmo e tranquilo e evitar o hábito de enfatizar demasiadamente as palavras. Deve cuidar também para não levantar a voz no final das sentenças, pois tal procedimento deixa a frase em suspenso e transmite insegurança aos ouvintes. Além disso, o intérprete precisa levar em conta as pausas en-tre um parágrafo e outro, evitando, por outro lado, as pausas artificiais. Finalmente, ele precisa usar expressões adequadas quando o orador fizer uso da retórica de maneira que transmita ao público a emoção do orador.

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As técnicas para lidar com númerosOs números em uma interpretação simultânea exigem todo o cuidado e aten-

ção por não estarem sujeitos a uma interpretação linguística (JONES, 1998; PAGURA, 2003). Em primeiro lugar, o número não pode ser dito meramente em seu valor numé-rico, mas com sua ordem de magnitude; por exemplo, é erro grave falar de milhares de graus em fusão termonuclear, quando, na verdade, o orador está falando de milhões. Deve-se observar também a unidade do número mencionado, para não se correr o risco, por exemplo, de citar um preço em euros quando o orador mencionou, de fato, em dó-lares. Outro ponto importante é cuidar para ser específico a que o número realmente se refere, deixando claro para o auditório se o orador está se referindo a uma determinada quantidade de carros, ou ônibus, ou tratores etc. vendidos. Além disso, deve-se levar em conta o valor relativo do número, deixando claro se o orador está se referindo a um aumento ou a uma diminuição. Nesse contexto, o intérprete não pode deixar impreciso o ponto de referência do valor citado, especialmente em valores proporcionais; por exemplo: se o orador menciona uma taxa de juros de 4%, deve ficar claro para o ouvinte se é por mês ou por ano, e assim por diante. Apresentamos a seguir algumas sugestões práticas para lidar com números. O intérprete deve:

• Anotar os números assim que os ouvir, aliviando assim a sua memória a fim de reter outras informações que estão sendo passadas; avaliar a possibilidade de arredondamento caso os números apresentados forem quebrados;

• Repetir o número o mais próximo possível do orador;• Anotar ele mesmo, ou seu parceiro de cabine, o número imediatamente;• Dizer o número de modo diferente;• Omitir o número, se não for muito importante.

Considerações finaisTodas as treze técnicas apresentadas aqui possuem o objetivo comum de assegurar aos

ouvintes uma mensagem com sentido, simplificada e com o mínimo de perdas no momento da reformulação ou reverbalização. Elas se fundamentam em três princípios norteadores.

O princípio da “omissão”: isso significa que nem sempre é possível fornecer uma interpretação completa. Muitas vezes, o intérprete precisa sacrificar elementos do dis-curso para passar o que ele julga essencial. A omissão favorece, em primeiro lugar, a economia de expressão; em segundo, a diminuição da carga linguística, facilitando a atenção compartilhada do intérprete (split attention) e a compreensão por parte dos ou-vintes; e em terceiro lugar, a maximização da comunicação. As omissões podem ocorrer sob pressão ou por opção (JONES, 1998).

O princípio da “divergência”: se o intérprete prima pela boa comunicação, nem sempre será possível, ou melhor dizendo, nem sempre deverá falar do mesmo modo que o orador, já que a “divergência” constitui a própria essência da reformulação/

O PROCESSO DE REFORMULAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO SIMULTÂNEA

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Acta Científica, Engenheiro Coelho, v. 21, n. 1, p. 41-54, jan/abr 2012

reverbalização. A divergência, podendo ocorrer tanto no nível da forma quanto do conteúdo, valoriza a língua de chegada, pois permite que esta seja expressa sem as amarras morfossintáticas, estilísticas e idiomáticas da língua de partida; e valoriza também o intérprete como receptor ativo da intenção comunicativa do palestrante e como sujeito discursivo atuante, produtor de um discurso próprio, paralelo ao do orador, mas ao mesmo tempo totalmente fiel a ele.

O princípio da adaptação: esse princípio deve ser aplicado não somente em relação ao orador, mas especialmente em relação aos ouvintes e à situação. Na verdade, a prática da interpretação não é uma atividade voltada para o próprio intérprete, mas um trabalho de comunicação cuja missão primordial é servir os seus clientes: os ouvintes que dele depen-dem para que possam transpor as barreiras da comunicação.

Em suma, quer omitindo, divergindo ou adaptando, ao usar qualquer uma das téc-nicas de reformulação, o intérprete revela que interpretar vai muito além de simplesmente fazer “uma tradução oral imediata e mecânica”. Interpretar é uma arte de comunicação que deve ser cumprida com consciência, eficiência, ética e responsabilidade. Se o intérprete fizer menos do que isso, certamente estará traindo aqueles que dele dependem para terem acesso a um intercâmbio do pensamento humano, sem obstáculos linguísticos ou culturais.

Referências

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