o homem sem qualidades, mesmo

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O HOMEM SEM QUALIDADES, MESMO Elida Tessler 1 Resumo Este artigo desenha um diálogo entre duas obras emblemáticas da produção artística do século XX: a literatura de Robert Musil e o trabalho plástico de Marcel Duchamp. Mostro a radicalidade destes dois processos de criação que colocam em cena um exemplar trabalho com a linguagem. Estas obras nos permitem ver o inacabado e a dimensão de equivoco presente em toda produção de linguagem. Palavras-chaves: Robert Musil, Marcel Duchamp, literatura , artes visuais Abstract This article draws a dialogue between two emblematic works of the artistic production of the twentieth century: the literature of Robert Musil and the plastic work of Marcel Duchamp. Show the radicalism of these two processes of creation that put on the scene un exemplary working with the language. These works allow us to see the unfinished and the dimension of equivocal throughout the production of language. Key-words: Robert Musil, Marcel Duchamp, literature, visual arts. “Aliás, são sempre os outros que morrem” 2 Marcel Duchamp O artista é um inventor de lugares. Todo o seu empenho é concentrado em criar situações específicas de onde se pode ver e re-configurar um espaço, abrindo frestas por onde seja possível passar e mudar de posição. A arte propõe questões de 1 Artista plástica, professora no Instituto de Artes da UFRGS. Pesquisadora do CNPq. Atualmente realiza pós-doutorado na EHESS- Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales e Université de Paris I com bolsa CAPES. Fundadora e coordenadora, junto com Jailton Moreira, do TORREÃO, centro de produção e pesquisa em arte contemporânea, Porto Alegre. 2 Frase escolhida por Marcel Duchamp para estar inscrita em seu túmulo, no cemitério de Rouen, França.

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testo de Elida Tessler o Homem Sem Qualidades, Mesmo

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  • O HOMEM SEM QUALIDADES, MESMO

    Elida Tessler 1

    Resumo

    Este artigo desenha um dilogo entre duas obras emblemticas da produo artstica do

    sculo XX: a literatura de Robert Musil e o trabalho plstico de Marcel Duchamp.

    Mostro a radicalidade destes dois processos de criao que colocam em cena um

    exemplar trabalho com a linguagem. Estas obras nos permitem ver o inacabado e a

    dimenso de equivoco presente em toda produo de linguagem.

    Palavras-chaves: Robert Musil, Marcel Duchamp, literatura , artes visuais

    Abstract

    This article draws a dialogue between two emblematic works of the artistic production

    of the twentieth century: the literature of Robert Musil and the plastic work of Marcel

    Duchamp. Show the radicalism of these two processes of creation that put on the scene

    un exemplary working with the language. These works allow us to see the unfinished

    and the dimension of equivocal throughout the production of language.

    Key-words: Robert Musil, Marcel Duchamp, literature, visual arts.

    Alis, so sempre os outros que morrem2

    Marcel Duchamp

    O artista um inventor de lugares. Todo o seu empenho concentrado em criar

    situaes especficas de onde se pode ver e re-configurar um espao, abrindo frestas por

    onde seja possvel passar e mudar de posio. A arte prope questes de

    1 Artista plstica, professora no Instituto de Artes da UFRGS. Pesquisadora do CNPq. Atualmente realiza

    ps-doutorado na EHESS- Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales e Universit de Paris I com bolsa

    CAPES. Fundadora e coordenadora, junto com Jailton Moreira, do TORREO, centro de produo e

    pesquisa em arte contempornea, Porto Alegre.

    2 Frase escolhida por Marcel Duchamp para estar inscrita em seu tmulo, no cemitrio de Rouen, Frana.

  • posicionamento e de deslocamento. Portanto, o tempo elemento indissocivel em toda

    criao artstica. Vejamos: o melhor comear pela minha posio de hoje.

    Estou em uma biblioteca, com todos os meus livros, caderno de anotaes,

    caneta azul e vermelha, como tubos de ensaio colocados sobre uma mesa branca, ampla,

    diante de uma janela. Estou em uma ambiente cuja arquitetura me oferece vidros por

    todos os lados, e paisagens de um tempo que eu no vivi. Estou fora? Estou dentro?

    Pode a arte e a literatura provocar tamanha transposio? Com tantos livros ao meu

    redor, considero legtimo evocar mais uma vez a imagem de um tubo de ensaio. Tubo

    de cultura, onde dois ou mais elementos distintos esto destinados a nos revelar o sim e

    o no de uma tentativa de amlgama.

    Intuitivamente, percebi relaes fortes entre o romance O homem sem

    qualidades de Robert Musil e a obra de Marcel Duchamp La marie mise nu par ss

    clibataires, mme.3 De fato, estas obras so colocadas lado a lado na histria da

    cultura ocidental como marcas fundamentais, na literatura e nas artes plsticas por

    serem, ambas, obras inacabadas. Tentei condensar, assim, os dois ttulos em um s,

    propondo um trabalho artstico desenvolvido no perodo de um ano, entre 2007 e 2008,

    com o seguinte ttulo: O homem sem qualidades, mesmo. Procurarei relatar um pouco

    do trabalho e como este inusitado encontro ocorreu em meio s minhas pesquisas

    daquele momento.4

    Desde muito cedo, tanto eu como vocs escutamos dizer: A pintura uma

    janela aberta para o mundo. Pois bem, pelo menos desde que inventaram a perspectiva,

    e a partir de ento, questes de representao tornaram-se fundamentais para a histria

    da arte. A pintura deveria remeter realidade com o mximo de detalhes possvel. A

    partir do sculo XV, o que vemos no quadro deve reproduzir com exatido aquilo que

    visto pela janela. O lance deixar-se confundir. Trompe-loeil.

    Robert Musil, atravs da voz de sua personagem Ulrich, procura nos esclarecer

    acerca das relaes entre o senso de realidade e o senso de possibilidade: Quem o

    possui (o senso de possibilidade), no diz por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer,

    tem que acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui poderia, deveria ou teria de

    acontecer isto ou aquilo; e se lhe explicarmos que uma coisa como , ele pensa: bem,

    provavelmente poderia ser de outro modo. (Musil, 2006, p. 34) Eis o que tanto

    aproxima Marcel Duchamp e Robert Musil.

    3 MARCEL DUCHAMP e ROBERT MUSIL so contemporneos, com produes que marcam a histria da cultura ocidental do sculo XX. Duchamp nasceu em 1887, na cidade de Blanville e morreu

    em 1968, em Neuilly, Frana. Musil nasceu em 1880, em Klagenfurt, Austria, e morreu em 1942, em

    Genebra, Suia. 4 A partir deste momento, adotaremos somente a traduo para o portugus do ttulo da obra de Marcel

    Duchamp A NOIVA DESNUDADA POR SEUS CELIBATRIOS, MESMO, preferindo a proposio

    de Donaldo Schler que mantm a evocao da nudez na palavra desnudada, ao invs de despida,

    proposta por tantos outros tradutores.

  • Meu desejo aqui de evocar um encontro que me antecede. Eis a origem de

    uma histria. Em todo caso, cabe aqui remontar a proposio do prprio Marcel

    Duchamp a respeito do conceito de readymade, quando o deslocamento de um objeto

    faz a obra. Readymade seria o j feito, o j pronto, um objet-trouv que, segundo o

    artista, foi encontrado com alguma espcie de atraso. Marcel Duchamp tambm

    considera o Grande vidro como uma espcie de encontro, um rendez-vous entre a

    noiva e os seus celibatrios, como o readymade o encontro (amoroso?) entre o criador

    e a criao. como se Duchamp quisesse colocar como equivalentes os dois atos

    criadores implicados no amor e na arte.

    Hoje eu olho pela janela, mas j no vejo atravs. Esqueo a sua transparncia e

    distraio-me em sua consistncia vtrea. Esbarro na superfcie, no a atravesso. Invisto

    em meu senso de possibilidade. Por uma terrvel coincidncia, o vidro est quebrado, ou

    melhor, rachado. Fissuras delatam uma tenso. Por alguns segundos, tive a impresso de

    que tudo o que eu gostaria de dizer neste texto, aproximando Marcel Duchamp e Robert

    Musil, j estaria escrito no vidro trincado da janela minha frente. O texto se

    encontraria aqui terminado, ponto final, eis tudo. Fala inacabada. E agora?

    Provavelmente eu no saberei dizer melhor, nas prximas pginas, do que esta espcie

    de marca de um impacto. Algo fez presso. Um disparo? Uma trepidao? Uma

    vrgula? Imagino Marcel Duchamp, quando declara no poder fazer melhor do que o

    incidente com seu trabalho durante um transporte de caminho. Sobre este acaso,

    falaremos mais tarde. Por enquanto, sigo o desenho das linhas: cinco traos que se

    expandem a partir de um ponto, chegando cada um a uma distncia diferente da

    esquadria. Para fornecer mais dados imaginao de vocs, eu diria que este desenho

    que vejo agora assume a estrutura inicial de uma teia de aranha.

    Mas o que h de to terrvel na coincidncia do vidro trincado? Eu vim

    biblioteca com o objetivo, justamente, de escrever o texto a partir das anotaes do

    trabalho por mim apresentado no Congresso da Angstia, quando tentei compartilhar

    com vocs a intuio que tive de que haveria um caso de amor entre um homem sem

    qualidades e uma noiva desnudada. Ora, j tnhamos o ttulo do trabalho: O HOMEM

    SEM QUALIDADES, MESMO. Era preciso falar de uma vrgula. Com este intuito,

    iniciei minha apresentao, e a repito aqui, com um fragmento literrio que me

    acompanha a cada novo livro que abro para ler:

    Caminhos... A floresta tem mil caminhos e no tem caminho nenhum.

    Caminhos que se abrem e se fecham. Para caminhar na floresta, preciso conhecer a

    floresta: cada pinheiro, cada p de angico, cada rancho. Tudo se individualiza: os

    sulcos da casca, a curvatura do galho, o cinza do telhado. A esto escrita, mapa. Voc

    conhece gramtica e vocabulrio ou por aqui voc no anda. A floresta o geral, mas

    isto no lhe basta. como se voc conhecesse o livro s de capa. Voc tem que entrar

    nele. Vagarosamente, freqentemente. Cada vrgula importa(...). (Schuler, 2004, p.

    xx)

  • ,

    O artista respira. O artista prope pausas, tanto para si mesmo, quanto queles

    que da obra usufruem. O artista aspira e transpira ao mesmo tempo. O artista, tal qual a

    aranha, produz com suas secrees. Como colocar uma vrgula na histria da arte?

    Considero o trabalho Fontaine de Marcel Duchamp uma grande vrgula.5 S

    podemos falar de arte contempornea, na cultura ocidental, considerando o antes e o

    depois desta proposio que, em si, constituda por um deslocamento: do espao

    comum da vida cotidiana para o espao sacralizado do museu. Se a inveno da

    perspectiva nos fez valorizar as questes de representao, eis que a inveno do

    readymade pe em evidncia as formas de apresentao dos objetos que, em si, contm

    as questes fundamentais e caras ao pensamento contemporneo, fragmentado e

    ordenado artificialmente por estruturas impostas por um sistema de valores cujos

    critrios quase sempre nos escapam.

    Uma das mais conhecidas definies de readymade aquela proposta por Andr

    Breton em seu artigo Le phare de la Marie 6 , escrito em 1934. Ali ele conceitua:

    Readymades: objetos manufaturados promovidos dignidade de objeto de arte pela

    escolha do artista. (Breton, 1935, p. 45) Mas o gesto no to simples, e no

    podemos reduzi-lo a uma leviandade em relao aos cnones artsticos tradicionais. A

    questo muito mais elaborada do que podemos aprofundar aqui, mas o que queremos

    dizer que esta uma estratgia que envolve tempo e espao especficos, com critrios

    de escolha por parte do artista, escolha esta que dispensa as qualidades estticas

    reconhecidas como feio ou belo.

    Vocs conhecem este trabalho, se no a obra em si, pelo menos o seu registro

    fotogrfico, realizado por Alfred Stanglitz em 1917, publicado na revista Dada The

    Blind man .Talvez vocs no tenham escutado ainda o ttulo Fontaine ou Fonte, e

    sim, o seu hilrio apelido O urinol de Duchamp.

    A escolha deste objeto foi estabelecida por Marcel Duchamp para configurar um

    trabalho de sua autoria a ser enviada para a Sociedade dos Artistas Independentes,

    formada em 1916, com a seguinte finalidade: montar uma exposio em Nova York nos

    moldes do Salo dos Independentes em Paris, questionando os seus critrios de seleo

    e apresentao de obras artsticas naquela poca. Duchamp escolheu e comprou um

    5 Fontaine, 1917. Este trabalho assinado por Richard Mutt, pseudnimo de Marcel Duchamp, e enviado

    ao Salo dos Artistas Independentes de Nova York. O comit de seleo recusou o trabalho, temendo o

    descrdito que esta obra traria ao Salo. Marcel Duchamp, que fazia parte, como presidente, do comit

    de montagem pede demisso e torna pblica a sua autoria da obra

    6 O farol da noiva

  • mictrio de porcelana, modelo Bedfordshire, na loja J.C.Mutt Iron Works, que vendia

    equipamentos sanitrios.

    Duchamp levou o mictrio para seu estdio, virou-o de cabea para baixo e

    pintou, na borda inferior esquerda, o nome R. MUTT e ps a data 1917. Mesmo o seu

    pseudnimo j seria uma espcie de readymade.7 Marcel Duchamp estava cansado de

    conviver com as premissas de um sistema de arte que no condiziam com os desafios

    que a vida moderna oferecia sociedade em geral, e aos artistas em particular. A

    manuteno das fronteiras entre distintas categorias da arte, tal como pintura, escultura,

    desenho, fotografia, j no convinha s produes recentes.

    A criao de Robert Musil tambm nos apresenta um homem que est cansado:

    Ulrich. Seu pai um homem com qualidades, e prev para o filho uma srie de xitos

    que exigem disposio. Cansado de seu prprio cansao, a personagem principal do

    romance O homem sem qualidades decide tirar frias de si mesmo por um perodo de

    um ano. De si mesmo, reforo. Um si mesmo que no faz sentido, a no ser pelo

    apontamento de uma civilizao inteira em esgotamento de valores, j que o romance

    inicia em 1913, s vsperas de uma primeira guerra. em 1919 que Musil comea a

    elaborar o romance, com o ttulo provisrio de O espio. A primeira parte do romance

    concluda em 1930 e todo o decorrer da elaborao de O homem sem qualidades

    abarca o perodo entre-guerras, e por conseqncia, a ascenso do nazismo. Entre 1919

    e 1931, ele trabalha intensamente em seu romance. A publicao do segundo volume se

    d em 1933. Com Hitler j no poder, Musil deixa Berlin e passa a viver em Viena. O

    mal estar dos indivduos decorrente de situaes da vida moderna que impe desafios,

    e estes devem ser enfrentados, porm sem os recursos de subjetividade suficientes para

    crises sucessivas que se desenrolam, seja de identidade, seja da capacidade de narrar s

    novas experincias pelas quais o homem est passando. Pelo menos, deste mal que

    Ulrich sofre: uma incapacidade de integrar-se exatamente quilo que ele vive, de

    realizar um elo entre si e o mundo exterior. Frias de si mesmo, que atitude tentadora!

    Suas frias, que duram exatamente 1267 pginas na traduo do romance para o

    portugus, constituem tambm uma grande e bonita vrgula:

    A questo que coloca Ulrich, quando ele assume a impossibilidade de ligar os

    acontecimentos a si mesmo traduz uma inquietude cujas implicaes so, ao mesmo

    tempo ticas, pessoais e histricas. Esta inquietao, em sua simplicidade conjuga, no

    seio da mesma exigncia, duas questes grandes, questes que do ao romance a sua

    plena significao: Como viver? e por que no fazer histria? (Cometti, 1997, p.

    109)

    Nos dirios de Musil, anotaes acerca das personagens que circulam em torno

    de Ulrich acabam por mesclar-se prpria biografia do autor, de maneira to estreita

    que tudo nos leva a acreditar no carter sempre auto-referente de toda obra de arte. Mas

    7 Ver o livro de TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp: uma biografia. SP, Cosacnaify, 2005, p. 204/205

  • as dificuldades esto ali colocadas: em uma das notas, entre 1939 e 1941, encontramos:

    Eu no sei porque, no consigo mais escrever. Eu seco 8

    Voltamos aqui a nossa questo da vrgula como pausa, como respirao. Musil

    seca, a saliva falta, e sem esta secreo orgnica, o homem sem qualidades encontra o

    destino de uma obra inacabada. Enquanto isso, Marcel Duchamp respira: Gosto mais

    de viver, de respirar, do que de trabalhar. Eu no considero que o trabalho que eu fao

    possa ter alguma importncia do ponto de vista social no futuro. Ento, se voc quiser,

    minha arte seria a de viver : cada segundo, cada respirao uma obra que no est

    inscrita em parte alguma, que no nem visual nem cerebral. uma espcie de euforia

    constante9

    A inveno do readymade um ato diante do abandono da pintura no sentido de

    ser uma ao deflagrada pela pausa. Com esta parada Marcel Duchamp agiu sobre a

    histria da arte. Segundo Thierry du Duve, o abandono da pintura por Marcel Duchamp

    foi uma estratgia similar ao abandono do claro/escuro por Monet, do abandono da

    perspectiva por Czanne, do abandono da figura por Kasimr Malvitch.10

    O que est em

    questo aqui so gestos de ruptura fundamentais para quem no assume as polaridades

    to tirnicas da histria da arte, que nos fazem conceber isto ou aquilo, sem considerar a

    possibilidade de convivncia de diferentes atitudes artsticas configurando uma s

    linguagem.

    Ser interessante reproduzir neste momento um fragmento de dilogo entre

    Marcel Duchamp e Pierre Cabanne, pois este tambm nos aproxima de algumas

    proposies distradas de Ulrich. Pierre Cabanne pergunta a Duchamp: Como voc

    chega a escolher um objeto de srie, um readymade, para fazer uma obra de arte? Ao

    que o artista responde: Eu no queria fazer uma obra de arte, observe. A palavra

    readymade s apareceu em 1915, quando eu cheguei aos Estados Unidos. Ela me

    8 Ver esta citao no livro de COMETTI, Jean Pierre.Lhomme exact Essai sur Robert Musil, Paris,

    Editions du Seuil, 1997. p.93

    9 Ver esta citao no livro de CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. SP,

    Perspectiva, 2008, p. xx

    10 Ver o livro de DE DUVE, Thierrry. Nominalisme Pictural Paris, Ed. Minuit, 1984 p.222

  • interessou como palavra, mas quando eu coloquei uma roda de bicicleta sobre um

    banquinho de cozinha, de cabea para baixo, no havia nenhuma idia de readymade,

    nem mesmo qualquer outra coisa. Era simplesmente uma distrao. Eu no tinha

    nenhuma razo determinada para fazer aquilo, nem inteno de exposio, de

    descrio, no, nada disso!(Cabanne, 2008, p. 79)

    Nesta mesma entrevista, encontraremos: Toda minha vida consegui viver com

    muito pouco dinheiro. Eu preencho meu tempo muito facilmente, mas no saberia

    contar o que eu fao (...) um respirador. Sinto o maior prazer nisto.(Cabanne, 2008, p.

    xx)

    m

    Aqui, a virgula no separa: ela une. Rene duas obras contemporneas, com

    caractersticas prprias. A primeira, j vimos, O homem sem qualidades de Robert

    Musil. A segunda, que talvez muitos de vocs conheam pelo apelido de O grande

    vidro uma das mais radicais proposies da arte contempornea, de autoria de Marcel

    Duchamp, sob o ttulo A noiva desnudada pelos seus celibatrios, mesmo. Lembrem-se

    de que este trabalho composto por duas superfcies de vidro contendo entre elas todos

    os materiais utilizados pelo artista para conceber a obra: p, fios de chumbo, pigmentos,

    fragmentos de desenhos realizados anteriormente. Duchamp j trabalhava neste projeto

    h oito anos, quando algo da ordem do acaso aconteceu. No Brooklin, em 1923, as duas

    placas de vidro foram colocadas em um caminho, uma sobre a outra, para que fossem

    transportadas Califrnia. Diz o artista que o motorista ignorava totalmente as

    qualidades fsicas, e portanto a fragilidade, daquilo que transportava. O resultado das

    intercorrncias deste trajeto o que fez Duchamp gostar ainda mais de seu trabalho,

    considerado at ento inacabado: o vidro trincou: Mas eu gosto destas rachaduras

    porque elas no parecem vidro quebrado. Elas tem uma forma, uma arquitetura

    simtrica. Melhor, eu vejo a uma inteno j pronta, de maneira que eu as respeito e

    gosto.11

    importante falar aqui destas duas obras inacabadas que desafiam a nossa

    aspirao completude. Sabe-se que Marcel Duchamp nunca considerou O Grande

    11 Registro do filme sonoro realizado em 1955 pela National Broadcasting Company e apresentado pela

    TV americana. A entrevista foi realizada por James Johson Sweeney e publicada no livro de escritos de

    Marcel Duchamp DUCHAMP DU SIGNE Paris, Flammarion, 1994, p.175/176

  • Vidro uma obra terminada. Sua ltima interveno neste trabalho data de 1923.

    Duchamp respeita as rachaduras como o resultado do acontecimento. Assume o vidro

    trincado. Mas, para ele, esta uma obra sempre incompleta, pois a cada olhar, ela

    prope novos acrscimos. Por exemplo, o seu posicionamento no Museu da Filadelfia

    proposital: a obra colocada no centro da sala, de modo que se possa circular em torno

    e ver, atravs de sua transparncia, outras transparncias, como a de uma janela com

    vista para o jardim. Aqui, poderamos tambm retomar uma das proposies mais

    conhecidas de Duchamp: So aqueles que olham que fazem o quadro (Duchamp,

    1994, p. 23). A cada um de ns cabe uma interpretao.12

    O romance de Robert Musil tambm uma obra inacabada. Os seus primeiros

    manuscritos datando de 1919, a publicao do primeiro volume s aconteceu em 1930.

    Em 1933, o segundo volume foi publicado. Musil sentiu a necessidade de revisar e

    modificar a primeira parte do romance, o que acarretou uma nova publicao, aps

    1933, em Genebra. Obra em progresso. Obra em processo. Obra inacabada. E ainda:

    passou a fazer parte da lista de livros prejudiciais e indesejveis de 1938, estabelecida

    pelo III Reich.

    Marcel Duchamp sempre colocava bastante nfase na questo da elaborao da

    obra, e por esta razo, no vejo como separar os seus escritos, as suas anotaes acerca

    da realizao de seus trabalhos e tambm ensaios crticos a respeito da obra de outros

    artistas seus contemporneos. O processo de elaborao de uma obra equivale ao da

    criao de um pensamento. Podemos mesmo sublinhar aqui o valor de um trabalho em

    processo, de um work in progress, seja em Marcel Duchamp, seja em Robert Musil, ou

    ainda em James Joyce, para no ir muito longe. A vida, como a arte, um processo,

    mesmo.

    Todo o trabalho de Duchamp auto-referente. Como j assinalei, seus escritos

    no podem ser distanciados de suas proposies artsticas. Eis que encontramos o seu

    nome prprio no ttulo de um primeiro livro, com notas organizadas por Michel

    Senouillet, com a colaborao do prprio artista, revistas e ampliadas inmeras vezes

    em 1958: Marchand du Sel. 13

    A traduo literal nos oferece: Mercador de Sal. Mas e a

    presena do nome? Vamos acompanhar a sonoridade do ttulo, deslocando algumas

    slabas: Mar Sel du chand = Marcel Duchamp.14

    Ora, encontraremos tambm o nome do

    artista no ttulo que j tanto nos intrigou at este momento: La marie mise par ses

    clibataires mme. Como em um caa-palavras, podemos aqui reconhecer e demarcar

    as slabas: La MARie mise nu par ses CELibataires, mme. Para quem j assumiu o

    pseudnimo feminino Rrose Slavy, fica evidente a atitude irnica, com carter ertico,

    deste artista que marcou to profundamente a histria da arte moderna e contempornea.

    12

    Ver a citao de Duchamp: Somme tout, lartiste nest pas seule accomplir lacte de creation car le

    spectateur tablit le contact de loeuvre avec le monde extrieur en dchiffrant et en interprtant ses

    qualifications profondes et par l ajoute sa propre contribution au processus creative (Duchamp, 1994, p.

    189)

    13 MARCHAND DU SEL o mercador de sal , o primeiro conjunto de textos de Marcel Duchamp

    publicados em 1958 Editions du Terrain Vague em Paris. 14

    Ver DUCHAMP, Marcel. Duchamp du Signe.Paris, Flammarion,1994. Notas de apresentao do livro.

  • Na segunda publicao de Marchand du sel, j com o ttulo Duchamp du signe

    Senouillet abre o seu prefcio com a seguinte proposio de Robert Desnos: Rrose

    Slavy conhece bem o mercador de sal. (Duchamp, 1994, p.11) Temos novamente

    aqui um encontro marcado, indicando um envolvimento de Duchamp com questes de

    identidade. Para quem no sabe, em 1929, o artista faz nascer em Nova Iorque, com a

    sua fina ironia de sempre, Rrose Slavy. Rose vem tambm de um quadro de Francis

    Picabia, Loeil cacodylate no qual pediu para que muitos outros artistas assinassem seu

    nome. Duchamp assinou: Pi Quhabilla Rrose, ainda deleitando-se na sonoridade do

    nome de seu amigo. Em portugus, teramos simplesmente: PI que vestiu Rrose.

    Duchamp est mais interessado em despir do que vestir.15

    Mas eis o que ele mesmo diz:

    Eu quis mudar de identidade e a primeira idia que me veio foi a de tomar um nome

    judeu. Eu era catlico, e j seria uma mudana passar de uma religio a outra. Eu no

    encontrava um nome judeu que eu gostasse ou que me tentasse, e de repente, tive uma

    idia: por que no mudar de sexo. Rose sendo o nome mais feio para o meu gosto

    pessoal (Duchamp, 1994, p. 151)

    Para ns Slavy, um jogo de palavras fcil: Cest la vie!. a vida! Simples

    constatao. Mas h a duplicao do R que nos intriga. Talvez a mesma repetio que

    nos oferece Gertrude Stein: Uma rosa uma rosa uma rosa. Mas uma rosa a ser

    regada. importante notar que em francs ou em ingls, rose anagrama de Eros. Eis

    que o amor tambm deve ser regado, arros, Rrose. Nossa leitura possvel: A vida

    cor-de-rosa. Rrose Slavy. A vida puro Eros.

    Em algumas proposies artsticas, busca-se uma espcie de reunio de distintas

    idias em um s trabalho. Escolhemos apresentar Tu m obra de Marcel Duchamp de

    1918, pelo que o seu prprio ttulo indica de reflexividade e, sem dvida, pela

    sonoridade elucidativa que nos evoca. Mme, me ame, mesmo....

    Aps ter se proposto a no mais pintar, Marcel Duchamp aceita uma encomenda

    de Katherine Dreier, que gostaria de ter um quadro em sua biblioteca. Havia uma srie

    de indicaes, por exemplo, ele deveria caber em um espao estreito, acima de uma

    estante de livros. Da, que o ttulo poderia tambm manifestar uma indignao do

    artista, j que a contrao pode significar, na lngua francesa, T memerde. Voc me

    incomoda! Voc me chateia! Tu m o ltimo quadro de Marcel Duchamp e pode ser

    tambm ser considerado como um resumo de suas preocupaes. Neste trabalho, com a

    tcnica do desenho e pintura, fixou as sombras projetadas de sua roda de bicicleta, de

    seu porta-chapus, de um saca-rolhas e das rguas de um de seus trabalhos anteriores,

    denominado Trois stoppages talon. No meio, Marcel Duchamp acrescentou uma mo

    pintada por um profissional de tabuletas, incluindo a sua assinatura - A. Klang - O que

    diz Duchamp:Era uma espcie de resumo das coisas que eu havia feito antes, posto

    que o ttulo no tem nenhum sentido.16

    Alm dos elementos j citados, a obra tambm

    15

    A ttulo de curiosidade, eis alguns ttulos de trabalhos de Marcel Duchamp evocando a nudez: Nu em

    meias pretas (1910), Nu descendo a escada n1 (1911), Nu descendo a escada n2 (1912), O rei e a

    rainha atravessados por nus rpidos (1912), A noiva despida... (1923)

    16 Ver CHALUMEAU, Jean-Luc. Marcel Duchamp 1887-1968. Coleo Dcouvron lart, Cercle d'art,

    1995 Ctait une sorte de resume des choses que javais fait plus tt, puisque Le titre na aucun sens.p.36.

  • apresenta uma srie de amostras de tintas em formato romboidal, que percorrem uma

    escala de cores que vai do amarelo brilhante ao cinza plido. Duchamp deixou para

    Yvonne Chastel o tedioso trabalho de pintar esta parte. Mais uma vez algo referente ao

    incmodo: T m! Calvin Tomkins, bigrafo de Duchamp que afirma ser esta uma das

    quatro grandes obras primas do artista, assim a descreve: A primeira mostra (amarela)

    est presa na tela por um pino de verdade, no pintado; do lado direito do

    quadriltero amarelo est o que parece ser um rasgo na tela; embora o rasgo seja

    pintado, ele est fechado por dois alfinetes de segurana reais. Uma escova de

    limpar garrafas de verdade foi inserido no rasgo trompe-loeil; ela se estende cerca

    de 60 cm para fora da superfcie do quadro. Embaixo do rasgo e um pouco

    esquerda, v-se uma mo grosseiramente pintada; o dedo indicador est estendido e

    aponta para a direita (Tomkins, 2005, p. 204/205)

    O homem sem qualidades a sntese final, tanto da obra quanto da vida de

    Robert Musil. Todas as obras anteriores do autor so uma espcie de preparao ao

    Homem sem qualidades, toda sua vida parece ter sido direcionada para a escritura final

    do romance. Como j dissemos a primeira parte foi publicada em 1930 e a segunda em

    1933. A terceira parte, ainda organizada pelo autor, seria publicada em 1943, na Sua.

    A edio de 1952 traz o acrscimo de um quarto volume, organizado por Adolf Fris e

    baseado nas notas deixadas pelo autor.

    Maime

    O que que separa os celibatrios, os solteiros, da noiva? Quem despiu a noiva?

    A noiva foi despida mesmo? A vrgula diz que a noiva foi despida mesmo. A vrgula

    aqui pontua apenas um tempo de retardamento. Marcel Duchamp considera a pintura

    retiniana, com cheiro de terebentina, um atraso. Chega a chamar seu trabalho por um

    retard em verre, um atraso em vidro. Um comentrio acerca da pintura, ou o prprio

    silncio em torno da atividade do pintor, se quisermos fazer valer uma de suas

    fantsticas aliteraes: comment taire?17

    Como um comentrio poderia fazer calar as

    reflexes crticas e descabidas a respeito de uma obra sempre inacabada?

    Em 1912, Marcel Duchamp declara:Chega de pintura! Procure trabalho! E

    empregou-se na Biblioteca Sainte Genevive em Paris, como bibliotecrio. Em seus

    17 Em francs vemos o jogo de palavras : comment taire? Como calar?

  • escritos encontramos suas indicaes sobre a necessidade de estudar perspectiva na

    referida biblioteca.18

    Bem, o Grande Vidro uma espcie de janela. A noiva, neste caso, poderia ser

    uma janela aberta para o mundo moderno, tanto quanto as pernas abertas pintadas por

    Gustave Courbet, no quadro intitulado A origem do mundo ou da figura (masculina?

    feminina?) atrs da porta do ltimo trabalho de Duchamp tant donns, uma obra que

    foi inteiramente confeccionada em segredo, no perodo de 1946 a 1966. Somente sua

    mulher Tennie e seu assistente conheciam o projeto e acompanharam sua execuo.

    Para todos os seus amigos ou pblico em geral, Duchamp havia realmente parado de

    trabalhar e apenas jogava xadrez. O trabalho foi construdo em um apartamento em

    Nova Iorque. Foi todo pensado para ser deslocado para qualquer outro lugar. Ele s foi

    definitivamente instalado em julho de 1969, no Philadelphia Museum of Art, na

    Filadlfia, aps a morte do artista, seguindo as suas instrues. Alis, so sempre os

    outros que morrem.

    tant donns no uma pintura ou uma escultura no sentido tradicional. No

    um readymade nem uma vitrine, apesar de fazer apelo ao nosso olhar e interceptar,

    como condio sine qua non o nosso toque. uma instalao tridimensional, um espao

    construdo, um environment. E s saberemos disso se formos suficientemente corajosos

    para espiar o trabalho de perto. Muitos passam pelo trabalho sem se aproximar. Afinal

    de contas, nada to banal quanto uma porta. Se formos curiosos, devemos parar,

    observar, examinar, procurar o buraco da fechadura naquela imensa porta de madeira.

    No vamos esquecer que os primeiros esboos do romance de Musil receberam o ttulo

    provisrio O espio, que mais tarde definira-se por O homem sem qualidades. No

    esta uma coincidncia que faz pensar? Porm, em Etant donn no h fechadura, no h

    chave. O que faz uma porta de madeira velha em um museu de arte? O que haver atrs

    dela? Algo para ver? H alguma coisa ali...

    Associa-se a este trabalho deciso de parada, uma vrgula, na atividade de

    pintor, quando ele declara, a partir de ento, dedicar-se ao jogo de xadrez. : No houve

    uma deciso, eu posso voltar a pintar amanh, se eu quiser. Eu no acho que a pintura,

    ou a idia de pintura, ou do pintor, ou do artista, convm hoje a minha atitude diante da

    vida. Em outros termos, a pintura somente um instrumento. Uma ponte para ir alm.

    Onde, eu no sei. E eu no posso saber, porque isso seria um pensamento to

    revolucionrio em sua essncia, que eu no poderia nem mesmo formular. 19

    18

    Ver livro de Duchamp, Marcel. Duchamp du Signe. Encontrei um emprego como bibliotecrio na

    Sainte-Genevive em Paris. Era um emprego remarcvel, no sentido que me deixava muitas horas de

    lazer. Eu procurei um emprego a fim de pintar para mim (moi-mme). P. 179-180

    19 Ver livro de SCHWARTZ, Arturo. Duchamp. Paris, Hachette-Fabbri, 1969, p. xx

  • moi-mme

    A gente pode fazer o que quiser, disse o homem sem qualidades para si

    mesmo, dando de ombros que isso no tem importncia neste emaranhado

    de foras.

    Robert Musil

    Fao agora, eu mesma, um exerccio: coloco-me perguntas acerca de um

    processo de criao de um trabalho. Arrisco um movimento de oroboro: a cobra que

    morde o prprio rabo, aludindo ao processo dinmico e transformador da vida. Meu

    fim meu comeo, diz a cobra neste ato mgico de devorar-se e cuspir-se

    representando a unidade indiferenciada da vida e seu carter divino implcito na

    perfeio do crculo . A palavra oroboro pode ser lida de trs para frente, transmitindo a

    idia de algo que se expressa ciclicamente. A serpente pensa. A serpente intelecto,

    sendo o pensamento levado s ltimas conseqncias. O pensamento que se devora a si

    mesmo tal a cobra que morde a prpria cauda. Foi Augusto de Campos que nos apontou

    o sonoro palndromo silbico entre penser e serpent, que em francs opera

    perfeitamente, Aqui, em transcriao ao invs de traduo, poderamos dizer: um

    pensamento em serpentina, no eliminando a figura da serpente, e muito menos a de

    uma fita de moebius que se alonga e, ao longo do discurso, cerca uma obra com

    espirais, o que possibilita um contorno aerado.

    Decido ento sublinhar todos os adjetivos do romance de Robert Musil.20

    Preciso pensar o que define um atributo. Como eu poderia identificar as qualidades de

    um homem sem qualidades? Percebo minhas dvidas e assim vou criando uma

    gramtica intuitiva. Preciso confiar em uma listagem. Esta uma lista que deixa rastros.

    De toda forma, h um tateamento do texto, pgina por pgina, linha por linha, quando

    decido rasurar as palavras. Musil me ajuda em momentos importantes de dvida. Em

    primeiro lugar, na pgina 335: sempre se procura o homem para os adjetivos. E mais

    para o final, na pgina 1262: um corte sempre arbitrrio. A caneta esferogrfica

    calca o papel-pele do livro. Reafirmo com a rasura a fragmentao presente no romance

    de Robert Musil e a nossa vida mesma. O inacabado aponta a incompletude em cada um

    20 Refiro-me aqui ao trabalho por mim realizado O homem sem qualidades caa palavras, apresentado

    na Galeria Oeste em So Paulo em 2007. Para visualizar algumas imagens ver www.elidatessler.com.br

    http://www.elidatessler.com.br/

  • de ns. A exposio era composta por 134 telas de tecido de algodo recobrindo toda a

    superfcie das paredes da galeria. As letras foram impressas em preto, com formato

    correspondente quelas das revistas de passatempo encontradas em bancas de jornal e a

    escala da reproduo dos jogos foi ampliada em dez vezes. Todos os quadros contm

    quarenta adjetivos retirados do romance de Musil. Embora todos os quadros paream

    iguais, nenhum apresenta as mesmas palavras e as mesmas solues dos problemas. A

    apresentao das telas foi acompanhada pela publicao de um livreto contendo todos

    os jogos, apresentando ao pblico a listagem de 5360 adjetivos, transcritos aps uma

    primeira leitura do livro.

    Este trabalho integra o projeto que venho desenvolvendo h quinze anos

    intitulado Falas Inacabadas, onde as noes de tempo e memria assumem um eixo

    importante de investigao. Em todos os meus trabalhos, a relao com a literatura e

    com os objetos do cotidiano fundamental. Nos ltimos anos, acentuou-se o carter de

    listagem de palavras, incorporadas aos objetos

    Integram tambm a exposio dois objetos-caixa reunindo, cada um, dois

    exemplares do livro O Homem Sem Qualidades de Robert Musil . Assumindo o

    carter de readymade e readymade aid (readymade ajudado) proposto por Marcel

    Duchamp, os livros so retirados de seu contexto habitual e apresentados como

    trabalhos de arte. Lado a lado em uma caixa especialmente concebida para este trabalho,

    um dos livros apresenta todos os adjetivos rasurados em esferogrfica preta, ampliando

    a lista de adjetivos nesta segunda leitura. Ainda fazendo referncia a Marcel Duchamp,

    o ttulo da obra com as rasuras ficou definido como O Homem sem qualidades, mesmo.

    J para o segundo objeto-caixa, ao invs da rasura, fiz uso de corretivo branco para

    cobrir todos os adjetivos do romance, em um total de 30.301 adjetivos. Considerado

    por mim, ento, como um trabalho de pintura, este recebe o ttulo de O Homem sem

    qualidades, mesmo assim.

    ,mesmo

    Marcel Duchamp escolheu uma frase como ttulo para o seu trabalho que aqui

    nos dedicamos a aproximar do romance de Robert Musil: A noiva desnudada por seus

    celibatrios, mesmo. Como o prprio artista comenta, esta frase, ao invs de descrever

    o objeto, como muitas vezes faz um ttulo, apenas conduz os leitores/espectadores a

    outros universos verbais. Por esta razo, encontramos mesmo, precedido de uma vrgula.

    Para Duchamp, o mesmo no est relacionado nem noiva, nem aos celibatrios.

    Duchamp afirma ter simplesmente acrescentado uma vrgula e um advrbio sem

    nenhum sentido. Diz ele: Esta falta de sentido me interessa muito sobre o plano

    potico, do ponto de vista da frase (...) Quando traduzimos para o ingls, ns colocamos

  • even, e este igualmente um advrbio absoluto, e aqui tambm no h sentido... A

    possibilidade de desnudar a noiva um non-sense .21

    A ltima frase do livro pstumo de Musil nos traz o elemento oroboro da

    narrativa: E escreveu assim o que pensara. ( Musil, 2006, p. xxx) Musil morre em 15

    de abril de 1942, em pleno trabalho de preparao, reviso e correo do que seriam os

    vinte captulos finais. Alis, so sempre os outros que morrem. Mesmo.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BRETON, Andre. Le phare de marie, Revista Minotaure II, n 6, Paris, 1935.

    CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. SP, Perspectiva,

    2008

    COMETTI, Jean Pierre.Lhomme exact Essai sur Robert Musil, Paris, Editions du

    Seuil, 1997

    DUCHAMP, Marcel. Duchamp du signe. Paris, Flammarion, 1994

    MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. RJ, Nova Fronteira, 2006

    SCHLER, Donaldo. O imprio caboclo. Porto Alegre, Ed.Movimento/Florianpolis,

    Ed.UFSC, 2004.

    TOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp: uma biografia. SP. Cosacnaify, 2005

    21

    Ver livro de CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp lingnieur du temps perdu. Paris, Belfond, 1977,

    p 50.