o direito À propriedade das tribos indÍgenas À luz da corte interamericana de direitos humanos

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1 O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DO CASO DA COMUNIDADE DOS MOIWANA VS SURINAME. 1 Caroline Laura da Costa Ferreira Matos 2 Resumo: Em 2002, foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso da tribo indígena N’djuka de Moiwana vs o Estado do Suriname. Desde o século XVII, esta tribo vive no país e nunca teve problemas concernentes ao seu território até a chegada dos militares em 1986. Com o súbito ataque das forças armadas, seus membros perderam suas terras e tudo o que esta representava. O presente artigo científico tem como objetivo demonstrar a relação que as tribos indígenas, em especial a N’djuka, possuem com a sua terra e como a Corte Interamericana correlaciona esta relação com o direito à propriedade. Em um primeiro momento, será explanada a relação das tribos indígenas com a terra. Ao final, será abordado o entendimento da Corte sobre o direito à propriedade das tribos indígenas. Palavras-chave: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à propriedade. Tribos Indígenas. THE RIGHT TO OWN INDIGENOUS TRIBES OF THE LIGHT OF INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS: THE CASE ANALYSIS OF THE COMMUNITY FROM MOIWANA VS SURINAME Abstract: In 2002, it was submitted to the Inter-American Court of Human Rights the case of the N'djuka Indigenous Community from Moiwana vs. the State of Suriname. Since the XIX century this community lives in the country and never had problems concerning their territory until the arrival of the military in 1986. With the armed forces sudden attack, its members lost their land and all it represented. This article aims to demonstrate the relationship that the indigenous communities, especially N'djuka, have with their land and how the Inter-American Court correlates this relationship with the property right. At first, it will be explained the indigenous communities’ relationship with the land. At the end, it will be discussed the Court's view on the Indigenous property right. Key words: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Inter-American Court of Human Rights. Property Rights. Indigenous Communities. 1 Artigo científico apresentado ao Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, orientado pelo Prof. Paulo de Tarso Dias Klautau Filho. Belém, 2011 2 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário do Pará e Membro do Núcleo de Prática Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA.

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Page 1: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

1

O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DO

CASO DA COMUNIDADE DOS MOIWANA VS SURINAME.1

Caroline Laura da Costa Ferreira Matos2

Resumo: Em 2002, foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso da tribo indígena N’djuka de Moiwana vs o Estado do Suriname. Desde o século XVII, esta tribo vive no país e nunca teve problemas concernentes ao seu território até a chegada dos militares em 1986. Com o súbito ataque das forças armadas, seus membros perderam suas terras e tudo o que esta representava. O presente artigo científico tem como objetivo demonstrar a relação que as tribos indígenas, em especial a N’djuka, possuem com a sua terra e como a Corte Interamericana correlaciona esta relação com o direito à propriedade. Em um primeiro momento, será explanada a relação das tribos indígenas com a terra. Ao final, será abordado o entendimento da Corte sobre o direito à propriedade das tribos indígenas. Palavras-chave: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à propriedade. Tribos Indígenas.

THE RIGHT TO OWN INDIGENOUS TRIBES OF THE LIGHT OF

INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS: THE CASE ANALYSIS OF THE COMMUNITY FROM MOIWANA VS SURINAME

Abstract: In 2002, it was submitted to the Inter-American Court of Human Rights the case of the N'djuka Indigenous Community from Moiwana vs. the State of Suriname. Since the XIX century this community lives in the country and never had problems concerning their territory until the arrival of the military in 1986. With the armed forces sudden attack, its members lost their land and all it represented. This article aims to demonstrate the relationship that the indigenous communities, especially N'djuka, have with their land and how the Inter-American Court correlates this relationship with the property right. At first, it will be explained the indigenous communities’ relationship with the land. At the end, it will be discussed the Court's view on the Indigenous property right. Key words: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Inter-American Court of Human Rights. Property Rights. Indigenous Communities.

1 Artigo científico apresentado ao Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará

(CESUPA) como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, orientado pelo Prof. Paulo de Tarso Dias Klautau Filho. Belém, 2011 2 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário do Pará e Membro do Núcleo de Prática

Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA.

Page 2: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

2

1 INTRODUÇÃO

O caso fichado (ver Apêndice A) relata o acontecido no ano de 1986 e

envolve duas partes: o Estado de Suriname e a Comunidade de Moiwana. Antes de

adentrar no caso propriamente dito, é de suma importância que se faça um breve

contexto do momento histórico daquela época.

O Suriname foi colonizado pela Holanda, tendo se tornado independente em

1975. Em 25 de fevereiro de 1980, o General Desire Bouterse declarou que o País

deixaria de ter como forma de governo a democracia, passando a adotar o regime

da República Socialista. Entre 1982 e 1988 o Suriname foi governado pelos militares

e, neste período, ocorreram diversas violações de direitos humanos, a exemplo de

assassinatos de líderes da oposição e o aprisionamento de nativos da região, por

serem considerados opositores ao governo.

Dentre esses opositores existia um grupo armado chamado “Jungle

Commando”, liderado por um membro de uma comunidade indígena, que durante o

ano de 1986 atacou as bases militares que se localizavam na parte oriental do

Suriname. Em resposta a esses ataques, as forças armadas militares realizaram

diversas ações e, entre 1986 e 1987, aproximadamente duzentas pessoas morreram

em razão disto.

O regime militar terminou quando o General Bouterse foi obrigado, por um

grupo de resistência, a realizar eleições diretas em Janeiro de 1988, o que

transformou o regime de governo do Suriname em democracia.

Durante os ataques militares de 1986, a comunidade indígena de N’djuka

Maroon de Moiwana foi invadida pelas forças armadas do Estado do Suriname. No

dia 29 de Novembro daquele ano, soldados do Exército massacraram e

assassinaram mais de 39 membros da comunidade, sendo eles homens, mulheres e

crianças, e ainda destruíram o local onde eles viviam. A destruição fez com que os

sobreviventes do massacre fugissem e buscassem abrigo nas florestas próximas e

muitos conseguiram fugir para a Guiana Francesa, Estado vizinho ao leste do

Suriname. Porém, outros sobreviventes permaneceram dentro do Suriname, onde

alguns se alojaram em cidades do interior, e outros escaparam para a capital do

país, Paramaribo.

Page 3: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

3

Nunca houve uma apropriada investigação deste massacre, bem como um

julgamento condenando os culpados, pois, mesmo após o término do regime, os

militares ainda exerciam uma influência muito grande no Estado. Os sobreviventes

continuaram deslocados da sua terra - forçosamente - o que acarretou na

impossibilidade de retomarem o seu estilo de vida tradicional em comunidade.

Assim é que, em virtude da falta de uma jurisdição competente que julgasse

o caso, da permanente impossibilidade dos membros sobreviventes de retornarem

para a sua terra, e de uma legislação própria interna capaz de fornecer meios de

defesa apropriados para a resolução do conflito sobre a terra, o caso foi levado a

conhecimento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Contudo,

ao tentar entabular um acordo impondo obrigações de fazer ao Estado, a CIDH

fracassou, motivo pelo qual este caso foi remetido para a Corte Interamericana de

Direitos Humanos.

2 A COMUNIDADE N’DJUKA MAROON DE MOIWANA E SUA RELAÇÃO COM A

TERRA

A tribo N’djuka nasceu no século XVII, período este da colonização europeia

no território do Suriname. Nesta época, navios vindos da África desembarcaram no

Estado trazendo milhares de pessoas para trabalharem como escravos para os

senhores de terra. Muitos desses escravos conseguiram fugir para florestas na parte

oriental do país, onde estabeleceram a comunidade dos Maroons, que mais tarde se

dividiu em seis diferentes tribos, sendo a N’djuka uma delas.

No ano de 1760, a tribo N’djuka assinou um tratado de paz com as

autoridades coloniais, ocasião em que foi negociada a sua liberdade da condição de

escravos e foi concedida autorização para que a tribo permanecesse nas terras

onde se estabeleceram, realizando-se a demarcação de tais terras. Para os N’djuka,

esse tratado continua sendo válido, mesmo após o Suriname ter declarado sua

independência da Holanda.

Os N’djuka possuem um sistema matriarcal, base de organização de sua

comunidade. Este povo oferecia às mulheres o direito ao uso da terra. Elas tinham a

capacidade de realizar os serviços na terra, como o cultivo e a colheita de alimentos.

No final do século XIX, a aldeia de Moiwana foi fundada pela tribo, e esta se tornou o

Page 4: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

4

seu território para a caça, pesca e o cultivo, mas, como se verá a seguir, a terra

possuía um significado religioso para a tribo, já que, de acordo com a sua crença, os

seus ritos religiosos deveriam ser realizados na sua aldeia de origem, caso contrário,

acreditavam que não surtiriam efeito.

De acordo com a sua cultura, o direito à terra é adquirido desde o

nascimento de um membro da comunidade. Segundo a comunidade, existem dois

níveis deste direito, que seria o direito à propriedade comunitária, alegam que a terra

pertencia a todos; e o direito à propriedade em âmbito individual. Para os membros

da comunidade N’djuka, esses direitos são considerados perpétuos e inalienáveis.

Quando do massacre de 1986, que destruiu a aldeia de Moiwana e deslocou

os sobreviventes para outros lugares, a tribo N’djuka perdeu a sua identidade

cultural e sua integridade como comunidade. Desde o massacre, as terras

pertencentes aos N’djuka encontram-se vazias, sem moradia. Alguns membros da

tribo que retornaram ao Suriname não conseguiram ficar na terra por muito tempo.

Com a perda da sua terra de origem, os membros da comunidade sofreram

de maneira psicológica e econômica, já que a terra representava para a comunidade

a sua sobrevivência e o seu modo de vida. De acordo com a sua crença, eles só

poderão se re-estabelecer na terra após a realização de ritos religiosos e culturais

para purificar a terra, e enterrar os seus membros; e se eles não tiverem um local

para onde voltar, a sua sociedade será destruída, pois, sem a sua terra, seria difícil

manter a sua identidade cultural e suas obrigações sociais para com o povo.

3 DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS

O direito à propriedade é um dos mais antigos, sendo constituído no

jusnaturalismo e positivado com o passar dos séculos. Este direito, de um ponto de

vista patrimonialista, infere que o homem torna-se proprietário quando possui o

domínio natural da propriedade o que lhe permite usá-la em proveito próprio,

vedando a possibilidade de outra pessoa usufruí-la. Registre-se a positivação deste

direito no âmbito interamericano:

Page 5: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

5

Artigo 21 - Direito à propriedade privada 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3

A interpretação positiva deste artigo sugere esta visão patrimonialista,

porém, deve-se levar em consideração que a terra, para as tribos indígenas, vai

muito além desta visão individual; eles compreendiam que a terra onde viviam

pertencia a toda comunidade, não tão somente a um membro da tribo. Para as tribos

indígenas, a propriedade é vista como algo coletivo: todos usufruem da terra, seja

para retirar-lhe somente o necessário para a subsistência, seja para a prática de

rituais religiosos.

O artigo 13 (2) da Convenção nº 169 da Organização Internacional do

Trabalho (OIT) positiva que o conceito do “termo ‘terras’ [...] deverá incluir o conceito

de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos

interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.”4

Com base nesse entendimento, o artigo 14 da Convenção nº 169 assegura

que o direito à propriedade das tribos indígenas deverá ser reconhecido:

sobre as terras que [estas tribos] tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência.

5

O direito à propriedade, ao assegurar a posse e o acesso à terra, está

protegendo o uso do território ocupado pelos povos indígenas que, além de

abranger o local onde eles estabeleceram sua moradia, inclui as terras utilizadas

para o plantio, bem como os recursos que da natureza provêm, tais como, a caça, a

pesca, frutos, os locais de lazer e os espaços por onde se locomovem. Portanto,

percebe-se que o seu direito à propriedade garante a proteção do território dos

3 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos:

assinada na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. [Washington], 1969. 4 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organização

Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais. Brasília, 2004. 5 Id. Ibid.

Page 6: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

6

povos indígenas como um todo,6 não podendo ser limitado ao espaço usado para a

moradia e cultivo.

Além da importância que tem o território para a subsistência da comunidade

indígena, ele torna-se parte da sua história, sua cultura, sua espiritualidade e da

integridade do povo. Portanto, para as comunidades indígenas, a sua relação com o

território vai muito além do conceito de posse, já que a terra representa para eles

elementos materiais e espirituais que deverão ser passados para as gerações

futuras.

A Corte Interamericana e a Corte Europeia de Direitos Humanos entendem

que os tratados de direitos humanos devem ser interpretados de modo que se

adequem às condições de vida atuais7 e, seguindo esse entendimento, a Corte

Interamericana reconhece que deve ser garantido às tribos o direito à propriedade

comunitária, como nas seguintes decisões que envolvem o direito à propriedade de

tribos indígenas:

Caso Mayagna (Sumo) Comunidade Awas Tingni vs. Nicaragua, sentença de 31 de Agosto de 2001; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, sentença de 17 de junho de 2005; Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29 de março de 2006; Caso do Povo Saramaka vs. Suriname, sentença de 28 de novembro de 2007; Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, sentença de 24 de agosto de 2010.

8

Percebe-se, pela leitura do artigo 21 da Convenção Americana, que não há

uma referência expressa sobre o direito à propriedade de comunidades indígenas,

nem mesmo qualquer aspecto que demonstre haver um conceito de propriedade

comunitária. Acontece que a Corte IDH não pode interpretar tal artigo, ou qualquer

artigo da Convenção, de maneira a restringir o direito de outrem e, para isso, se

utiliza do artigo 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, o qual

estabelece que: “Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido

comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e

6 INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights

over their ancestral lands and natural resources: norms and jurisprudence of the Inter-American Human Rights Syste. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 30 de dezembro de 2009. p. 13. 7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Yakye Axa

vs Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. (Série C, n. 125). par. 125. 8 Id. Ibid.

Page 7: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

7

finalidade.”9 Também assim explana o artigo 29 (2) da Convenção Americana, que

determina o que segue:

Normas de interpretação. Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: Limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados Membros ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados.

10

Por conta desta limitação, a Corte, baseando-se no princípio pro homine, o

qual declara que será sempre aplicável a norma que mais amplia o gozo de um

direito,11 passa a interpretar o artigo 21 da Convenção Americana de maneira

holística, abrigando tanto a propriedade privada quanto a propriedade comunitária,12

fundamentando-se na Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, a

qual dispõe sobre o direito à propriedade comunitária das tribos indígenas. A Corte

assim afirma:

Al analizar el contenido y alcance del artículo 21 de la Convención, en relación con la propiedad comunitaria de los miembros de comunidades indígenas, la Corte ha tomado en cuenta el Convenio No. 169 de la OIT, a la luz de las reglas generales de interpretación establecidas en el artículo 29 de la Convención, para interpretar las disposiciones del citado artículo 21 de acuerdo con la evolución del sistema interamericano, habida consideración del desarrollo experimentado en esta materia en el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.

13

Ademais, o artigo 21 (2) prevê que ninguém poderá ser privado de usufruir

seus bens. A Corte já assinalou que “bens” podem ser compreendidos como

“elementos corpóreos e incorpóreos, como também qualquer outro objeto imaterial

suscetível de ter um valor”. 14 Os bens corpóreos podem ser identificados no

território indígena como sendo a própria terra usufruída e os recursos naturais

providos por esta, localizados tanto na superfície como no subsolo.15

9 CONVENÇÃO de Viena sobre Direito dos Tratados. [S.l.], 1969.

10 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos,

op. cit. 11

GOMES, Luiz Flávio. Direito dos direitos humanos e a regra interpretativa do pro homine. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 13 out. 2011. 12

MELO, Mario. Últimos avanços na justiciabilidade dos direitos indígenas no sistema interamericano de direitos Humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 3. n. 4, jun./ 2002. p. 34. 13

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). par. 117. 14

Id. Caso da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. (Série C, n. 79). par. 144. 15

INTER INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit. p. 13.

Page 8: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

8

Com relação aos bens incorpóreos, ou objetos imateriais, pode-se identificá-

los como sendo a religião, a cultura das tribos indígenas e sua estreita relação com

a terra, pois estes elementos possuem valores morais e de extrema importância para

os indígenas, já que é por meio destes que eles se identificam como uma

comunidade indígena, portanto, também devem ser protegidos.

Este entendimento é amparado pelo artigo 21 da Convenção Americana, em

concordância com o pronunciamento da Corte Interamericana, que afirma que tal

regra também assegura o direito ao acesso à terra tradicional e aos seus recursos

naturais vinculados à cultura indígena, bem como protege os bens incorpóreos

advindos desta cultura.16 Ou seja, a Corte já consolidou a ideia de que tanto a

cultura como a religião dos povos indígenas encontram-se abrangidas no artigo 21

da Convenção.

O direito à propriedade comunitária das tribos indígenas também pode ser

encontrado no artigo 23 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem e seu texto assim positiva: “Toda pessoa tem direito à propriedade particular

correspondente às necessidades essenciais de uma vida decente, e que contribua a

manter a dignidade da pessoa e do lar.” 17 Este, como o artigo 21 da Convenção,

não trata expressamente do direito à propriedade comunitária dos indígenas, mas

sim da propriedade privada.

Já foi consolidada pela Corte a noção de abrangência do artigo 21 sobre a

propriedade comunitária, e o mesmo acontece com a interpretação do artigo 23 da

Declaração Americana. Para esta interpretação abrangente, deve-se levar em

consideração outro princípio, o da não-discriminação, encontrado na Convenção

Americana de Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres

do Homem, bem como na Convenção nº169 da OIT. Baseando-se neste princípio, o

direto à propriedade comunitária deverá obter uma proteção igual ao direito à

propriedade privada, logo, os Estados membros deverão implantar mecanismos na

16

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. (Série C, n. 172). par. 88. 17

DECLARAÇÃO Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/tratados/declaracao_americana_dos_direitos_e_deveres_do_homem.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2011.

Page 9: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

9

sua legislação interna que permitam esta proteção igualitária para os direitos à

propriedade comunitária das tribos indígenas.

O direito à propriedade comunitária possui um conceito coletivo, mas não é

muito diferente da propriedade particular tratada no artigo 23. A Corte interpreta este

artigo de modo a não haver qualquer diferença entre os dois tipos de propriedade. A

base de tal direito é a mesma, todos os homens têm direito à propriedade para viver

em condições dignas. A única diferença encontra-se no modo como os indígenas

lidam com a sua propriedade. Como supracitado, os membros das comunidades

indígenas veem a terra como um bem que pertence a toda a comunidade e não a

um membro da tribo, porém, cada um tem o direito subsidiário de usufruí-la e ocupá-

la.18

Além dos princípios do pro homine e da não-discriminação¸ a Corte utiliza o

princípio da efetividade como parte fundamental de interpretação dos tratados.

Sugere que, quando da interpretação de um artigo a favor de tribos indígenas,

devem ser levados em consideração tratados que diferenciam os membros de

comunidades indígenas das outras pessoas, somente para assegurar uma “efetiva

proteção que dê importância para as suas especificidades, suas características

socioeconômicas, bem como sua situação de vulnerabilidade, suas leis, valores e

costumes”.19

Como instrumento de interpretação da Convenção Americana encontra-se a

Convenção nº 169 do OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada em 1989,

possuindo a assinatura de 22 países.20 A Convenção fundamenta-se no princípio da

não-discriminação, e apresenta em seus artigos: critérios para a identificação dos

povos indígenas e tribais; a adoção de medidas especiais para a proteção destes

povos; o reconhecimento da sua cultura, sua religiosidade e do seu modo de vida; e

a importância da participação dos indígenas em questões a que se encontram

relacionados. É considerada pela própria Corte Interamericana como “um dos mais

18

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 25. 19

Id. Ibid., p. 5. 20

Argentina (2000); Bolívia (1991); Brasil (2002); África Central (2010); Chile (2008); Colômbia (1991); Costa Rica (1993); Dinamarca (1996); Dominica (2002); Equador (1998); Espanha (2007); Ilhas Fiji (1998); Guatemala (1996); Honduras (1995); México (1990); Nepal (2007); Holanda (1998); Nicarágua (2010); Noruega (1990); Paraguai (1993); Peru (1994); Venezuela (2002). Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/ratifce.pl?C169>. Acesso em: 21 out. 2011.

Page 10: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

10

relevantes instrumentos de direitos humanos internacional para a proteção de

direitos dos indígenas”.21

Outro instrumento muito importante é a Declaração de Direitos dos Povos

Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 13 de Setembro de 2007 por 144

países.22 Em seu contexto, encontram-se medidas que devem ser adotadas pelos

Estados-membros para a implementação dos direitos dos povos indígenas,

prezando pela não-discriminação destes. Entre os direitos positivados na Declaração

estão o direito à participação política, o acesso à terra e seus recursos naturais, o

direito de auto-determinação dos indígenas, bem como o direito destes povos de

decidir sobre o seu desenvolvimento socioeconômico e político. Esta Declaração,

juntamente com a Convenção nº 169 são de enorme relevância para a interpretação

de artigos da Convenção Americana.

O conteúdo destes tratados, juntamente com a própria Convenção,

estabelece um forte componente para a proteção dos direitos dos povos indígenas,

mais especificamente da proteção e do reconhecimento do direito à propriedade

comunitária.23

Para que essa proteção internacional tenha uma verdadeira efetividade, é

necessário que os Estados membros da OEA se comprometam a promover uma

proteção mais hábil aos direitos das tribos indígenas na sua legislação interna. A

Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou a respeito de que

os Estados membros da OEA, uma vez que assinaram e ratificaram a Convenção,

devem adotar atos especiais que garantam às tribos indígenas o seu efetivo direito

fundamental de viver livremente, sem limitações, seguindo os seus costumes, sua

cultura, de ter respeitado os seus direitos de religião, seus direitos de tradição.

Corroborando tal entendimento está o artigo 2º da Convenção Americana

que, em seu texto, assegura que os seus Estados membros devem adotar medidas

legislativas em concordância com a Convenção para tornarem efetivos os direitos e

liberdades previstos nesta:

21

Id. Ibid. 22

DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 27 out. 2011. 23

Id. Ibid., p. 7.

Page 11: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

11

Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no "artigo 1º" ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Membros comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

24

Diz-se que tais atos devem ser “especiais” por conta das grandes violações

de direitos humanos que os membros de comunidade sofrem. Como os indígenas

são considerados minorias, a sua vulnerabilidade torna-se maior, fazendo com que

medidas de proteções especiais sejam necessárias, já que situações emergenciais,

como esta do caso da comunidade N’djuka, exigem medidas emergenciais.

Como já relatado anteriormente, a legislação do Estado do Suriname não

possui instrumentos legais ou administrativos eficazes para que os membros da

comunidade N’djuka demandem sobre o seu direito à propriedade comunitária, de

acordo com os seus costumes, valores e no seu uso da terra.

Esta ausência de medidas apropriadas gerou um sentimento de abandono

nos membros da comunidade N’djuka, que já se encontram no conceito de grupos

vulneráveis por serem minoria no país. Por não poderem retornar a sua terra

tradicional e nem ter acesso aos seus recursos naturais, os membros sobreviventes

da comunidade vivem hoje em condições de pobreza, tanto no Suriname quanto na

Guiana Francesa.

Contudo, a impossibilidade de retornar à terra tem um peso muito maior para

os membros da tribo, pois além de não serem capazes de utilizar mais os recursos

naturais que a sua terra tradicional proporcionava, não podem mais caçar, pescar e

nem cultivar seus alimentos, não podem mais se reunir no seu lugar sagrado, e tudo

isto, além de ser uma enorme violação ao seu direito ao acesso à terra, viola os

seus direitos à vida digna, a integridade da comunidade como um todo.

Para tanto, os Estados membros, para garantir uma proteção especial dos

direitos dos indígenas, devem revisar sua legislação para que estes se destaquem

de acordo com as normas estabelecidas nos instrumentos internacionais de

proteção de Direitos Humanos, especialmente o direito à propriedade dos indígenas.

Porém, inobstante a criação de instrumentos que regulem sobre o direito dos

24

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos, op. cit.

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12

indígenas, principalmente os relacionados ao direito à propriedade, é imperioso que

estes instrumentos sejam eficientes (mais uma vez percebe-se a influência do

princípio da efetividade) e para tal, os Estados devem instituir ações que assegurem

a eficácia dos instrumentos e a proteção destes direitos.25

Logo, para que a comunidade N’djuka possa ter seu direito assegurado, é

necessário que o Suriname estabeleça um mecanismo eficaz de defesa de direitos

dos indígenas, seja ele legal ou administrativo, e adote medidas que permitam que

os mecanismos se tornem realmente eficientes, tudo de acordo com os artigos da

Convenção Americana em conjunto com os instrumentos de Direitos Humanos

supracitados.

A Corte segue o entendimento de que os direitos das tribos indígenas

merecem uma proteção diferenciada, mais específica, principalmente no que

concerne ao direito à propriedade comunitária, e afirma que a leitura do artigo 21 da

Convenção, em conjunto com os artigos 1(1) e 2 deste instrumento normativo,

obriga os Estados membros a adotarem as medidas especiais necessárias para

garantir que os indígenas exerçam os seus direitos sobre o seu território

tradicional.26

As tribos indígenas têm o direito de ver a lei implementada e aplicada na

prática, especialmente em relação aos seus direitos ao território,27 pois somente a

letra da lei afirmando que os indígenas têm o direito à propriedade não significa

muita coisa se esta lei não for aplicada, ou seja, deve-se demarcar o território

indígena para que haja a verdadeira proteção especial deste direito. A demarcação,

o reconhecimento e o registro do território tradicional indígena são medidas

essenciais para que haja a sobrevivência da sua cultura e para manter a integridade

da comunidade indígena.28

Estas medidas são realizadas para garantir que a propriedade destas terras

esteja vinculada aos indígenas. Os organismos do Sistema Interamericano vêm

adotando a opinião de que os direitos da Convenção Americana são violados

25

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 14. 26

Id. Ibid., p. 19. 27

Id. Ibid., p. 15. 28

Id. Ibid, p. 21.

Page 13: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

13

quando as comunidades indígenas são impossibilitadas de conseguir o título de

registro da propriedade, e são impedidas de retornar a sua terra.

Todavia, deve-se levar em consideração que não são os títulos de registro

que garantem o direito à propriedade comunitária das comunidades, mas sim a

posse permanente do território ocupado tradicionalmente por estas comunidades. A

jurisprudência da Corte é muito clara ao afirmar que o direito à propriedade não

nasce do reconhecimento desta, mas sim do uso e da posse tradicional do território

e de seus recursos naturais, já que os territórios tradicionais pertencem às

comunidades pelo seu uso e pela sua ocupação antiga.29

Aqui, percebe-se que o conceito patrimonialista do direito à propriedade é

superado, passando a ser utilizado o seu conceito holístico, no qual não é

necessário o animus domini para se conseguir o título de propriedade, mas apenas a

posse para fins de moradia, de sobrevivência e cultural das comunidades

indígenas.30

A Corte já afirmou, em sua jurisprudência, que a posse tradicional das

comunidades indígenas sobre suas terras outorga o seu direito de exigir um título de

propriedade dado pelo Estado, sendo este título equivalente à posse tradicional.

Ademais, como no caso da comunidade N’djuka, membros de comunidades

indígenas que foram forçosamente deslocados e destituídos da posse de suas terras

mantêm o seu direito à propriedade, mesmo que eles não possuam um título legal

de propriedade. Logo, a Corte entende que a posse direta não é um requisito

condicionante para que a comunidade recupere suas terras tradicionais.31

4 CONCLUSÃO

O caso da comunidade N’djuka foi apenas um dos muitos em que a Corte

Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou sobre a violação do artigo 21 da

Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte sentenciou o Estado do

Suriname a indenizar por danos morais e materiais os membros sobreviventes da

29

Id. Ibid., p. 26. 30

ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 90. 31

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, op. cit., par. 128.

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14

comunidade, que fosse dado à comunidade os títulos de propriedade do seu

território, garantias de segurança para os membros que retornarem a viver na aldeia

de Moiwana, mas isso não vai retirar desta comunidade a ferida que foi aberta

quando houve o massacre.

A perda da sua identidade, da sua cultura, da sua religiosidade quando os

membros sobreviventes do massacre de 1986 foram deslocados para outra parte do

país e até mesmo para outro país, foi um golpe muito forte na vida dessas pessoas.

Mas, principalmente, o fato de eles não poderem retornar para a sua terra, tornou-se

algo desgastante para os membros da comunidade N’djuka, já que o seu território

tradicional significa muito mais do que apenas um lugar para morar e sobreviver.

O caso da aldeia de Moiwana e outros sentenciados na Corte, apresentam

um novo modo de se observar o direito à propriedade, que é a propriedade

comunitária das comunidades indígenas. Apesar de ser comunitária, não difere do

direito à propriedade privada, pois ambos se fundamentam na mesma tese de que

todos têm o direito de usufruir seus bens sem limitações. Mas, apesar deste

entendimento encontrar-se solidificado nas jurisprudências da Corte, ainda existem

lacunas na própria Convenção, impedindo que tal direito seja realmente consolidado.

Para resolver este problema, a Comissão Interamericana de Direitos

Humanos, em 1997, durante sua nonagésima quinta sessão, aprovou o projeto para

a realização da Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas. No

ano de 1999, houve uma reunião dos membros da OEA com profissionais

especializados no assunto, e decidiram convidar diversas comunidades indígenas

para participar da confecção da nova Declaração. As revisões textuais se iniciaram

em 2006, juntamente com as negociações sobre o conteúdo, que estão ocorrendo

até os dias de hoje.32

Espera-se que esta Declaração traga uma proteção mais eficaz para os

direitos das comunidades indígenas, em especial o seu direito à propriedade

comunitária.

32

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 8.

Page 15: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

15

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 2 ago. 2011. CONVENÇÃO de Viena sobre Direito dos Tratados. [S.l.], 1969. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>. Acesso em: 28 set. 2011. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Yakye Axa vs Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 17 de Junho de 2005. (Série C, n. 125). ______. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). ______. Caso da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. (Série C, n. 79). ______. Caso Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparação

e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. (Série C, n. 172).

______. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). DECLARAÇÃO Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Aprovada na IX

Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Disponível em:

<http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/tratados/declaracao_americana_dos_dir

eitos_e_deveres_do_homem.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2011.

DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 27 out. 2011. GOMES, Luiz Flávio. Direito dos direitos humanos e a regra interpretativa do pro homine. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 13 out. 2011.

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal

people’s rights over their ancestral lands and natural resources: norms and

jurisprudence of the Inter-American Human Rights Syste. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09.

30 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://cidh.org/countryrep/Indigenous-

Lands09/TOC.htm>. Acesso em: 27 ago. 2011.

Page 16: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

16

MELO, Mario. Últimos avanços na justiciabilidade dos direitos indígenas no sistema

interamericano de direitos Humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos,

São Paulo, v. 3. n. 4, jun./ 2002. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1806-

64452006000100003&script=sci_arttext>. Acesso em: 23 set. 2011.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos: assinada na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. [Washington], 1969. Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm>. Acesso em: 28 set. 2011. ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito

agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

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17

APÊNDICE A – FICHAMENTO

CASO DA COMUNIDADE MOIWANA VS. SURINAME DA CORTE

INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ⃰

1 ATORES ENVOLVIDOS

1.1 RÉU - ESTADO DO SURINAME

O Suriname é uma ex-colônia da Holanda e conseguiu sua independência

em 1975. Foi governado por um regime militar nos anos 1980 até que a democracia

foi restabelecida em 1988. No ano de 1987, no dia 12 de novembro, o Estado do

Suriname tornou-se signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos,

reconhecendo de imediato à competência da Corte Interamericana de Direitos

Humanos.

1.2 PETICIONÁRIOS - COMUNIDADE MOIWANA (ORGANIZAÇÃO DE DIREITOS

HUMANOS MOIWANA ’86)

Durante a colonização européia no século XVII uma grande quantidade de

africanos foi levada para o território hoje pertencente ao Suriname, onde foram

forçados a trabalhar como escravos nas plantações. Porém, muitas dessas pessoas

fugiram para as florestas da parte oriental do Suriname onde estabeleceram

comunidades autônomas. Por conta da sua tonalidade de pele mais escura, eles se

autodenominaram Maroons. Ao longo dos anos, os Maroons se dividiram em seis

grupos diferentes: os N’djuka, os Matawai, os Saramaka, os Kwinti, os Paamaka, e

os Boni ou Aluku.

Em 1760 foi firmado um tratado com a comunidade N’djuka no qual o

Estado os liberava da condição de escravos. Esse tratado foi renovado em 1837,

com um adendo que permitia aos N’djuka continuar residindo no território onde

haviam estabelecido moradia, além de demarcar os limites desta área.

A comunidade N’djuka possui diversos clãs que se encontram dispersos em

várias aldeias dentro do próprio território da comunidade. No final do século XIX, os

N’djuka fundaram a aldeia de Moiwana, que se tornou território tradicional para as

práticas da caça, agricultura e pesca.

2 ARTIGOS VIOLADOS ⃰ CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade indígena de Moiwana vs.

Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de junho de 2005. Serie C Nº

124.

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18

O Estado do Suriname violou os seguintes artigos da Convenção Americana

de Direitos Humanos: Artigo 5.1(Direito à integridade pessoal); artigo 22 (Direito de

circulação e de residência); artigo 21 (Direito à propriedade privada); 8.1 (Garantias

judiciais.) e artigo 25 (Proteção judicial). Todos esses artigos foram violados em

relação ao artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) também da Convenção

Americana.

3 NARRATIVA DOS FATOS

O caso relata o massacre da comunidade N’djuka Maroon de Moiwana em

29 de novembro de 1986 por membros das forças armadas do Suriname. Os

soldados invadiram e destruíram a aldeia de Moiwana, além de massacrarem mais

de 40 homens, mulheres e crianças. Os membros da comunidade que conseguiram

escapar fugiram para as florestas ao redor da aldeia, onde alguns membros

sobreviventes se refugiaram na Guiana Francesa e outros foram deslocados

forçosamente para a capital do Suriname.

Até a data da apresentação da demanda, supostamente não havia sido feita

uma investigação adequada sobre o massacre. Não houve julgamento dos culpados

e estes não sofreram qualquer penalidade. Os membros sobreviventes

permaneceram deslocados de suas terras e tornaram-se incapazes de retornar à

sua aldeia e ao seu estilo de vida tradicional.

O presente caso foi apresentado perante a Corte no dia 20 de dezembro de

2002.

4 ALEGAÇÕES PRELIMINARES

Em sua defesa, o Estado do Suriname fez as seguintes alegações

preliminares:

4.1 PRIMEIRA ALEGAÇÃO: A Corte não possui a competência ratione temporis,

pois a Convenção Americana não se aplica a República de Suriname no presente

caso;

4.1.1 Alegações da Comissão: a Corte possui plena competência sobre todos os

atos e omissões de Suriname ocorridos depois do dia 12 de novembro de 1987.

4.1.2 Alegações dos representantes: as violações alegadas perante a Corte são

de natureza continuada, e que o objeto da demanda foram ações e omissões do

Estado após o fato ter se consumado.

Page 19: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

19

4.1.3 Considerações da Corte: a Corte não deu provimento a esta alegação

preliminar por entender que no caso concreto, apesar do ataque ter ocorrido em

1986, as violações contra os direitos dos membros da comunidade possuíam

natureza continuada. Com a omissão do Estado, ele tornou-se responsável pela

violação dos direitos, e a Corte tem plena competência para julgar as suas ações e

omissões, que ocorreram depois de 12 de dezembro de 1987.

4.2 SEGUNDA ALEGAÇÃO: Os peticionários não esgotaram os recursos internos de

acordo com o Regulamento da Comissão Americana e a Convenção Americana;

4.2.1 Alegações da Comissão: o Estado não respondeu aos argumentos

apresentados pelos peticionários durante a oportunidade processual adequada.

Logo, o Suriname de forma tácita renunciou ao seu direito de objetar a falta de

cumprimento de requisitos tais como o esgotamento de recursos internos, em

conformidade com o artigo 46 da Convenção, em virtude do princípio de estoppel.

4.2.2 Alegações dos representantes: os representantes alegaram que buscaram

auxilio no judiciário do Suriname, mas não obtiveram nenhum resultado.

4.2.3 Considerações da Corte: a Corte não deu provimento a esta preliminar

alegando que a exceção dos esgotamentos dos recursos internos tem de ser

apresentada nas primeiras etapas do processo, caso o contrário, presume-se a sua

renúncia tácita. O Estado ao afirmar que não foram esgotados todos os recursos

internos tem a obrigação de demonstrar quais recursos eram cabíveis ao caso e sua

eficácia, o que não ocorreu.

4.3 TERCEIRA ALEGAÇÃO: Devido ao atraso da Comissão em apresentar a

demanda, a Corte carece de competência, em conformidade com o artigo 51.1 da

Convenção,

4.3.1 Alegações da Comissão: afirmou que o caso foi apresentado em

concordância com as disposições e práticas aplicáveis. Alegou que o Estado

solicitou prorrogação do prazo e que caso não fosse possível alcançar uma solução

amistosa, a Comissão poderia levar o caso para a Corte.

4.3.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.

4.3.3 Considerações da Corte: a Corte sustentou que a Comissão cumpriu o prazo

para a apresentação do caso dentro dos conformes do acordo que realizou com o

Estado, já que o prazo da segunda prorrogação terminava exatamente no dia 20 de

Page 20: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

20

dezembro de 2002. Por essas razões a Corte rechaçou a presente exceção

preliminar.

4.4 QUARTA ALEGAÇÃO: Em seu informe de fundo N° 35/02 a Comissão concluiu

outras violações diferentes daquelas pelas quais foi admitido o caso;

4.4.1 Alegações da Comissão: alegou que o fato de o peticionário não ter alegado

uma violação em particular, não significa que a Comissão e a Corte não podem

considerar uma violação por si mesmas, em conformidade com o princípio iura novit

cúria.

4.4.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.

4.4.3 Considerações da Corte: a Corte sustentou que faz parte da sua função

interpretar a Convenção Americana, e que as considerações da Comissão sobre as

supostas violações da Convenção Americana não são vinculadas a decisão da

Corte. Dessa forma, essa preliminar também não foi acatada.

4.5 QUINTA ALEGAÇÃO: A Comissão não apresentou todas as partes pertinentes

da denúncia ao Estado, tal como está estabelecido no artigo 42 de seu regimento.

4.5.1 Alegações da Comissão: afirmou não saber quais foram as partes

pertinentes que deixaram de ser enviadas ao Estado e que, como não houve

respostas às solicitações da Comissão, essa não sabia como o direito de defesa do

Estado tinha se comprometido.

4.5.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.

4.5.3 Considerações da Corte: entendeu que quando o Estado do Suriname

decidiu não exercer seu direito de defesa perante a Comissão no momento das

oportunidades processuais apropriadas, Estado não tem o direito de interpor tal

exceção perante a Corte.

5 FUNDAMENTAÇÃO DAS ALEGAÇÕES JUNTO À CORTE INTERAMERICANA

DE DIREITOS HUMANOS DAS QUESTÕES DE MÉRITO PRÓ-ESTADO E PRÓ-

VÍTIMAS.

5.1 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 5 DA CONVENÇÃO AMERICANA (DIREITO A

INTEGRIDADE PESSOAL) EM RELAÇÃO AO ARTIGO 1.1 DA MESMA

(OBRIGAÇÃO DE RESPEITAR OS DIREITOS)

As seguintes alegações foram apresentadas:

5.1.1 Alegações dos representantes: alegaram que o Estado violou o direito à

integridade pessoal, pelo fato das vítimas terem passado por um sofrimento físico e

Page 21: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

21

psicológico de maneira contínua, sem que o Estado tomasse providencias para

resolver o caso, deixando-o impune. Sustentaram ainda que as vítimas sofriam por

não poderem sepultar os seus mortos de forma digna, de acordo com a sua cultura,

e pelo fato de estarem, forçadamente, separados de suas terras que significam a

base de sua cultura e de seu bem-estar espiritual.

5.1.2 A comissão e o estado não se manifestaram quanto a essa alegação.

5.2 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 22 (DIREITO DE CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA)

As seguintes alegações foram apresentadas:

5.2.1 Alegações dos representantes: apesar destes não terem alegado

expressamente a violação deste artigo, eles afirmam que as vítimas foram privadas

de seus meios de subsistência devido à saída forçada de suas terras ancestrais e a

continuada impossibilidade de regressar a elas. Por conta deste obstáculo, os

membros sobreviventes vivem em condições de extrema pobreza.

5.2.2 A Comissão não se manifestou expressamente sobre esse ponto.

5.2.3 Alegações do Estado: não se manifestou expressamente sobre a violação

deste direito, porém, o Estado afirma que os sobreviventes do ataque à aldeia de

Moiwana tinham o direito de se movimentar livremente por todo o país e que o

governo de Suriname não recebeu nenhuma informação que diga respeito às

possíveis intimidações sofridas por eles e às violações de seus direitos.

5.3 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 21 (DIREITO À PROPRIEDADE)

As seguintes alegações foram apresentadas:

5.3.1 Alegações dos representantes: alegaram que a violação ao direito de

propriedade possui natureza continuada. Os representantes afirmam, ainda, que as

vítimas continuam sendo privadas de seus direitos à propriedade em conseqüência

da sua legislação não reconhecer o direito à propriedade comunitária, além do fato

de que o Estado do Suriname não possui mecanismos legais e administrativos

eficazes para que as vítimas assegurem seus direitos a terra em conformidade com

as suas normas baseadas nos costumes, valores e usos da comunidade N’djuka.

5.3.2 Alegações da Comissão: a Comissão não se manifestou expressamente

sobre a questão.

5.3.3 Alegações do Estado: o Estado não apresentou considerações.

5.4 VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 8 E 25 DA CONVENÇÃO AMERICANA

(GARANTIAS JUDICIAIS E PROTEÇÃO JUDICIAL)

Page 22: O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

22

As seguintes alegações foram apresentadas:

5.4.1 Alegações da Comissão: as vítimas não tiveram oportunidade de invocar e

exercitar seus direitos a um recurso judicial simples, rápido e efetivo para a proteção

de seus direitos, devido à falta de um recurso eficiente. Também não houve uma

investigação efetiva e adequada sobre o massacre e os responsáveis não foram

punidos. A Comissão afirmou que a obrigação do Estado de proporcionar proteção

judicial não é simplesmente de ter em sua legislação recursos legais, mas sim,

garantir que tais recursos assegurem uma proteção judicial efetiva.

5.4.2 Alegações dos representantes: afirmam que as provas apresentadas perante

a Corte demonstram a vontade das vitimas de buscarem justiça, para tanto se

utilizaram diversas vezes de recursos jurídicos, mas suas intenções de obter justiça

foram ignoradas. Disseram ainda, que o Estado do Suriname obstou a justiça

também através da Lei da Anistia de 1989.

5.4.3 Alegações do estado: alega que deu iniciou a uma investigação penal que

ainda em trâmite. Ademais, afirma que houve falta de vontade e nem de capacidade

do Estado para investigar, julgar e sancionar aqueles que supostamente violaram os

direitos dos habitantes da aldeia de Moiwana. De acordo com o Estado, apesar das

vítimas terem requerido do governo uma investigação penal independente, elas não

iniciaram um procedimento civil.

O Estado também alega que em 2002 foi aberta uma investigação penal,

sobre o acontecido no dia 29 de novembro de 1986, e está procedimento está em

conformidade com as normas legais nacionais para julgar e condenar os culpados.

Argumentou ainda que a Lei de Anistia não viola os direitos das vítimas.

6 PARECER EMITIDO PELA CORTE E SUAS ALEGAÇÕES

A Corte emitiu considerações para cada um dos artigos considerados

violados.

Com relação ao artigo 5, a Corte concluiu que houve a sua violação por

parte do Estado do Suriname, uma vez que, de acordo com os fatos provados, o

povo da aldeia de Moiwana não teve a oportunidade de realizar os devidos rituais

fúnebres em honra de seus entes mortos durante o massacre, e que esses rituais,

quando não realizados, geram uma transgressão moral profunda, provocando a

inquietação do espírito da pessoa que morreu, além de ofender a outros ancestrais.

A Corte considerou também que as pessoas da comunidade N’djuka ao serem

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23

impedidas de retornar a sua terra tradicional, sofreram privações e vivem em

condições de pobrezas haja vista a impossibilidade de desenvolver suas formas

tradicionais de subsistência e cultural. Salientou ainda que a terra tem para eles um

valor espiritual, cultural e material, muito além de um sentimento de posse. Pelo fato

das vítimas terem sofrido de maneira psicológica e econômica, a Corte decide que o

Estado violou o artigo 5 da Convenção.

Sobre o artigo 22, a Corte entendeu que o Estado não estabeleceu

condições, nem os meios que permitiriam aos membros da comunidade regressar

voluntariamente às suas terras tradicionais, de forma segura e com dignidade, haja

vista que não havia nenhuma garantia de que os seus direitos humanos seriam

respeitados, principalmente os seus direitos à vida e à integridade pessoal. Ao não

estabelecer tais condições, o Suriname não garantiu aos membros da comunidade

seus direitos de circulação e residência. A Corte alega, ainda, que Estado impediu

que os membros da comunidade que se encontravam na Guiana Francesa

regressassem e permanecessem no país. Por todo o exposto, a Corte estabelece

que o Estado violou o artigo 22 da Convenção.

No que concerne ao artigo 21, a Corte emitiu as suas considerações

definindo, primeiramente, que a aldeia de Moiwana, de fato, pertencia aos membros

da comunidade, nos conformes do conceito amplo de propriedade desenvolvido pela

jurisprudência da Corte. Nesse sentido, a Corte entende que em casos de

comunidades indígenas que carecem de um título formal de propriedade, a

possessão da terra é o suficiente para que elas obtenham o reconhecimento oficial

sobre a terra.

Sustentou, também, que mesmo que os habitantes da aldeia de Moiwana

não sejam originários daquela região, o tratamento jurídico dado aos povos

nômades deve ser estendido a eles haja vista a relação que eles possuem para com

terra na qual habitam.

Por impedir que os membros da comunidade utilizassem a sua terra

tradicional, a Corte considera que o Estado do Suriname violou o artigo 21 da

Convenção.

Em se tratando dos artigos 8 e 25, a Corte afirma que apenas certos atos

investigativos foram realizados pelo Estado desde o massacre de 29 de novembro

de 1986 e apresentou uma posição de indiferença, mesmo com os constantes

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24

pedidos de investigações referentes às violações de direitos durante o regime militar.

Entendeu que fatos provados mostraram que as vítimas, em sua busca por justiça,

foram hostilizadas.

Em resposta ao massacre ocorrido em novembro de 1986, o Estado deveria

ter aberto uma investigação e um processo judicial efetivo, que pudesse apurar os

fatos e responsabilizar os culpados de maneira eficaz.

Sobre a questão da lei da Anistia, a Corte afirmou nenhuma lei interna do

país pode impedir o cumprimento das decisões da Corte Interamericana sobre a

investigação e a sanção dos responsáveis pelas violações de direitos humanos.

Pelo fato do Estado ter realizado uma investigação penal insuficiente e sem

resultado sobre o ataque à aldeia de Moiwana, por ter impedido que as vítimas

alcançassem justiça, por todo o procedimento ter durado anos sem uma solução e

sem que os responsáveis fossem penalizados, a Corte considera que houve a

violação dos artigos 8 e 25 da Convenção.

7 SENTENÇA PROFERIDA

1- Condenação do Estado do Suriname a pagar indenização por danos materiais, na

quantia de US$ 3.000,00, para cada uma das vítimas (indicadas nos parágrafos 180

e 181 da sentença);

2- Condenação do Estado do Suriname a pagar indenização por danos imateriais,

na quantia de US$10.000,00 a cada uma das vítimas (indicadas nos parágrafos 180

e 181 da sentença);

3- Estado do Suriname tem obrigação de investigar os fatos do caso, identificar,

julgar e sancionar os responsáveis, assim como recuperar os restos mortais dos

membros da comunidade que faleceram em 1986;

4- Estado do Suriname tem obrigação de assegurar o direito de propriedade dos

membros da comunidade;

5- Criação de um fundo estatal de desenvolvimento no montante de

US$1.200.000,00 destinados a programas de educação e saúde dos membros da

comunidade;

6- O Estado do Suriname foi condenado a pedir desculpas de forma pública pelos

seus atos, responsabilizado internacionalmente e obrigado a construir um

monumento em homenagem aos habitantes da aldeia de Moiwana.