o cancioneiro ibérico em josé de anchieta: um enfoque musicológico
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O CANCIONEIRO IBRICO EM
JOS DE ANCHIETA:
UM ENFOQUE MUSICOLGICO
ROGRIO BUDASZ
Dissertao apresentada Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Musicologia. Orientador: Prof. Dr. Slvio Augusto Crespo Filho
SO PAULO
1996
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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Agradecimentos
Harry Lamott Crowl, Jr.
Joo Pedro dAlvarenga
Manuel Carlos de Brito
Maurcio Soares Dottori
Paulo Augusto Castagna
Slvio Augusto Crespo Filho
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
Fundao das Casas de Fronteira e Alorna
Fundao Calouste Gulbenkian
Instituto Cames
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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RESUMO
Um dos aspectos da atividade didtica de Jos de Anchieta envolvia a
composio de letras e preparao de cantigas adaptadas a melodias populares
ibricas, ou contrafacta, segundo a tcnica de contrafaco ao divino,
amplamente conhecida e estudada na poesia espanhola do sculo XVI. O estudo
das referncias musicais contidas no cdice ARSI OPP NN 24 e das
correspondncias verificadas entre poesias de Anchieta e canes e danas
ibricas contribui para uma compreenso maior deste aspecto de sua obra
literria, alm de possibilitar o estabelecimento de um repertrio de msicas
possivelmente executadas no Brasil do sculo XVI.
Palavras-chave: Jos de Anchieta, Brasil, msica, cancioneiro, contrafactum,
jesutas, teatro.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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ABSTRACT
An outstanding field in Jose de Anchietas pedagogic work was the composition
of lyrics and the teaching of songs adapted to Iberian popular melodies, the
contrafacta, or a lo divino versions, a kind of sacred parody fairly known and
studied in the sixteenth century Spanish literature. The musical references
existing in ARSI OPP NN 24 codex and the study of correspondences between
Anchietas works and Iberian songs and dances contribute to enlarge our
knowledge of his work. Furthermore, it makes possible the establishment of a
Brazilian sixteenth century musical repertoire.
Keywords: Palavras-chave: Jos de Anchieta, Brazil, music, cancionero,
contrafactum, Jesuits, theater.
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NDICE
1. INTRODUO 1
Apresentao
Reviso dos estudos
Objetivos 8
Metodologia 9
2. O CANCIONEIRO IBRICO EM ANCHIETA 10
O cancioneiro divinizado 10
Anchieta ao divino 22
Danas 60
3. CONCLUSO 73
BIBLIOGRAFIA 78
ANEXOS 87
Ilustraes 87
Reprodues facsimilares 87
Transcries musicais 152
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O Cancioneiro Ibrico em Jos de Anchieta:
Um Enfoque Musicolgico
1 Introduo
Apresentao
Em 14 de julho de 1945 foi aberta a sesso inaugural da Academia Brasileira de
Msica. Ao acadmico fundador Heitor Villa-Lobos foi honrosamente concedida a cadeira
n 1, sob o patronato de Jos de Anchieta.
A escolha de uma figura como Anchieta para ocupar tal lugar de honra entre os
expoentes do universo musical brasileiro culto , no mnimo, intrigante. No se justifica
pela qualidade de suas composies musicais. A respeito destas nada se pode comentar, j
que no sobreviveram aos nossos dias, possivelmente porque nunca existiram. Muito
menos por ter sido precursor da atividade musical no Brasil. Antes dele outros religiosos, e
no somente da Companhia de Jesus, fizeram uso da msica em suas atividades
missionrias, como o prprio Manuel da Nbrega, alm de Juan de Azpilcueta Navarro e
Leonardo Nunes.
O fato que a figura de Anchieta desempenha uma funo simblica muito mais
importante do que a de qualquer outra personagem ligada msica no Brasil colonial.
Desde cedo foi cultivada a imagem do Anchieta artista, o poeta-msico-santo, sempre
explorada por seus bigrafos, embora de importncia histrica menor no conjunto de suas
realizaes.
costume, mesmo entre seus bigrafos atuais, ressaltar esta imagem por se fazer
referncia a seus supostos dotes musicais, s vezes esboando o quadro de um ambiente
musical familiar. Viotti, por exemplo, cita o depoimento de um certo Andr do Sim, que
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dizia que em Tenerife dois irmos de Anchieta, sacerdotes, tocavam cravo e rgo.1 Juan
de Anchieta, capelo e cantor de Isabel, a Catlica e um dos principais compositores
espanhis do perodo tambm freqentemente includo neste quadro. Sabe-se que era
parente prximo de Jos de Anchieta. Mais que isso, a hiptese mais comumente aceita
quanto ascendncia paterna do jesuta, com certeza por ser a mais tentadora, aponta o
mestre-de-capela como seu av.2
Que o jesuta conhecia msica no h dvida. A prpria formao sacerdotal exige
um certo conhecimento de canto e leitura musical. Entretanto, era msico em que nvel?
No dispomos de relatos seguros quanto sua atividade como compositor, nem da msica
de suas prprias cantigas e muito menos de msica polifnica. Nada existe, contudo, em
negao destas hipteses, da o motivo da permanncia do mistrio.
Muito melhor documentada est sua atividade didtica, que inclua a composio e
preparao de cantigas destinadas a serem cantadas sobre melodias populares ibricas.
Dispomos de um conjunto expressivo destas cantigas preservado no manuscrito OPP NN
1 ANCHIETA, Poesias, So Paulo/Braslia, 1989, p. 25: Em Tenerife, dois irmos seus, sacerdotes - diz o depoimento de Andr do Sim -, ensinaram uns irmos dle, testemunha, tambm sacerdotes, a tanger cravo e rgo (Proc. Apost. do Rio de Janeiro, 83 v). 2 A hiptese, rejeitada por Viotti e Cardoso, foi primeiramente levantada em forma de sugesto por Afrnio Peixoto, sendo mais tarde aceita por Antnio Alcntara Machado, Serafim Leite e, mais recentemente, por Quintn Aldea. Francisco Gonzlez LUIS, Jose de Anchieta, vida y obra, Laguna, 1988, p. 22-24, observa que a idia tem origem num estudo de Adolphe Coster (Juan de Anchieta et la famille de Loyola, Paris, 1930), onde se transcreve o testamento do msico, datado de 1522-23. Neste se encontra a notcia da existncia de um filho seu chamado Juan, a quem deixa uma quantidade de dinheiro para con que se cre y alimente y tenga con qual estudiar, e para su casamiento. Alm disso, referindo-se ausncia de qualquer meno paternidade de Juan de Anchieta, pai de Jos, nos arquivos canrios, Luis nota que en unos archivos donde aparecen tantos testimonios y detalles no slo de la decendencia de la primera familia Anchieta de La Laguna, sino tambin de la ascendencia materna del Apstol del Brasil, no se menciona en ningn momento el nombre del padre del fundador de la estirpe. De la impresin, afirman stos [os que defendem a hiptese], que no era conveniente para las informaciones de hidalgua de sus descendientes que se conociera ese nombre por alguna razn especial, la cual poderia ser, por ejemplo, su condicin de hijo natural. Entre os argumentos contrrios, o mais forte o de Francisco Mateus, que insiste no fato de que o Juan de Anchieta ali mencionado era um menino em 1522 e que, portanto, no poderia ser o fundador da casa Anchieta canria. Cioranescu e Millares refutam o argumento, j que o testamento no faz meno a nenhuma idade determinada, mas especifica todas as etapas da vida de um filho, que o pai tem o dever de atender. Alm disso, como observa Luis, admitir que seu filho fosse um menino em 1522 supone admitir que el msico Juan de Anchieta engendrara este hijo cuando, viejo y enfermo, se retir a su aldea de Urrestilla, lo que no parece demasiado lgico. De qualquer maneira, o prprio Luis no partidrio da hiptese do Anchieta mestre de capela como av de nosso jesuta, embora reconhea que ainda no pode ser descartada, havendo a necessidade de aguardar-se testemunhos mais seguros.
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24 do Archivum Romanum Societatis Iesu - o caderno de poesias - em grande parte
autgrafo do prprio missionrio.
E se persiste o vazio referente msica composta no Brasil dos sculos XVI e
XVII, existe a possibilidade de indiretamente virmos a conhecer algo mais da prtica
musical daquela poca atravs de um estudo direcionado aos aspectos musicais do caderno
de poesias de Anchieta.
Reviso dos estudos
Desde a publicao da primeira biografia de Anchieta em 1598, apenas um ano
aps sua morte, suas qualidades poticas e inclinaes musicais tm sido destacadas por
bigrafos,3 ao lado de consideraes sobre a vida exemplar, feitos milagrosos e
acontecimentos sobrenaturais. claro que no vamos encontrar nas obras deste primeiro
perodo a preocupao com o rigor cientfico e histrico e a iseno nos comentrios. A
ideologia de tais biografias era a mesma que norteava as vidas de santos que circulavam
durante a idade mdia: provar que o candidato a santo era merecedor de tal honra por
destacar sua vida virtuosa e modelar, alm de ilustrar por seus atos extraordinrios e
milagrosos como era divinamente favorecido. Entretanto, abstraindo-se os aspectos
sobrenaturais, estes relatos de seus contemporneos revelam-se fundamentais para a nossa
compreenso do papel da msica na obra de Anchieta. Em vrios deles, por exemplo,
encontramos depoimentos a respeito de seu costume de compor cantigas em portugus,
espanhol e lngua braslica. Um dos relatos fala inclusive que teve um livro que ele
comps de cantigas ao divino, assim na lngua portuguesa, como pela do gentio [...] as
quais todos cantavam.4
3 CAXA, Breve relao da vida e morte do P. Jos de Anchieta, 1598; RODRIGUES, Vida do Padre Jos de Anchieta da Companhia de Jesus, 1607; VASCONCELOS, Vida do venervel Padre Joseph de Anchieta, Lisboa, 1672. 4 Depoimento de Diogo Teixeira de Carvalho que tratou com Anchieta em So Vicente, antes de 1576 e mais tarde no Esprito Santo. Proc. inform. do Rio de Janeiro f. 107, conf. Cardoso, em ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 40.
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Em 1730 o arcebispado da Bahia enviou a Roma documentos para serem
examinados no processo de beatificao do jesuta. Entre eles encontrava-se um caderno
de poesias do qual era fama antiga e constante ser autor o venervel Padre Jos de
Anchieta.5 Foi somente na segunda metade do sculo XIX que brasileiros tiraram as
primeiras cpias manuscritas do cdice, Franklin Massena e o Baro de Arinos.
Imperfeitas e incompletas, foram divulgadas em 1882 por Melo Morais Filho6 e em 1923
pela Academia Brasileira de Letras.7 Finalmente em 1930 o cdice foi inteiramente
fotografado pelo Pe. Jos da Frota Gentil.
A publicao do caderno de poesias em 1954 por Maria de Lourdes de Paula
Martins marca o incio de uma fase mais cientfica de estudos da obra de Anchieta.
Compreendendo em sua primeira parte a reproduo diplomtica de todo o cdice ARSI
OPP NN 24 e acompanhada de reprodues em tamanho reduzido das fotografias obtidas
pelo Pe. Gentil, a edio permanece como obra de consulta fundamental, apesar de certos
comentrios inexatos e alguns erros na transcrio dos originais. Muitos destes, como
observa a prpria pesquisadora, devidos pouca nitidez das fotos de que dispunha. Quanto
traduo da lrica tupi, seus esforos ainda no foram superados.
Embora tenha-se concentrado mais na transcrio e traduo dos textos, vez por
outra Martins oferece algumas consideraes acerca da estrutura dos autos e utilizao de
cantos e danas. Tambm observa a prtica de Anchieta de reaproveitar suas prprias
composies e adaptar composies de outros autores.
Hlio de Abranches Viotti, autor do prefcio da edio de M. de L. de Paula
Martins, um dos principais bigrafos atuais de Anchieta,8 e muito da importncia de sua
obra deve-se utilizao de documentao indita a que teve acesso no Arquivo Secreto
5 Cdice ARSI Opp NN 24 , nota prvia pgina de rosto. 6 MORAIS FILHO, Curso de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1882. 7 Primeiras Letras: Cantos de Anchieta, Rio de Janeiro, 1926. 8 VIOTTI, Anchieta, o apstolo do Brasil, So Paulo, 1980.
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do Vaticano. De interesse especial para ns o fato de que muitos dos depoimentos em
prol da beatificao de Anchieta coligidos por Viotti fazem meno atividade musical e
potica do jesuta, especificando situaes em que a msica era utilizada e de que maneira
e com que finalidade era praticada.
O uso por Anchieta das formas tradicionais ibricas de versificao oriundas da
idade mdia observado por Leodegrio Amarante do Azevedo Filho,9 que defende
tambm a perfeita regularidade mtrica das poesias. Quanto msica, seus comentrios
resumem-se identificao de um ou outro trecho cantado, alm de reconhecer a
importncia da prosdia musical, muitas vezes responsvel por aparentes irregularidades
mtricas. A tese defendida por Azevedo a de que o jesuta move-se num plano esttico
de transio entre a idade mdia e o barroco, sem qualquer influncia renascentista. Se a
sua obra simples, popular e s vezes primitiva, porque vem marcada pela ideologia
religiosa da Companhia de Jesus e pela esttica inicial da contra-reforma, marcada pelo
sentido de repopularizao das artes, a fim de levar o catolicismo ao seio das massas. A
escolha dos gneros populares de composio, como os vilancetes, seguidilhas, hinos,
cantigas e danas exploraria ento o gosto natural dos a quem se destinavam as poesias, os
catecmenos e colonos, a fim de atingir seus objetivos de catequese.
J Eduardo Portella10 acredita que, em certo sentido, Anchieta deva ser entendido
como manifestao da cultura medieval no Brasil. Tanto pela simplicidade de sua poesia,
de timbre didtico, como pela sua forma potica, seus ritmos, sua mtrica e mesmo sua
linguagem. Observa ainda que, com respeito possvel influncia do cancioneiro popular
na obra de Anchieta, persistem elementos to comprometedores que vm salientar a
necessidade de um estudo dessa possvel dvida ou ligao. Infelizmente, o prprio carter
9 AZEVEDO FILHO, Anchieta, a idade mdia e o barroco, Rio de Janeiro, 1966; As poesias de Anchieta em portugus, Rio de Janeiro/Braslia, 1983. 10 ANCHIETA, Poesia, Rio de Janeiro, 1977.
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antolgico e resumido da obra de Portella no lhe permite um aprofundamento maior nesta
questo.
Maior compreenso do assunto revela possuir Armando Cardoso,11 que o
primeiro a dar-se conta da importncia do processo de divinizao de canes populares, a
transposio ao divino, na poesia de Anchieta. Plenamente atualizado com estudos sobre o
assunto, como deixam notar as vrias revises bibliogrficas contidas em suas obras,
Cardoso , na verdade, a figura de maior destaque na pesquisa da obra literria do
missionrio, estando empenhado na publicao de suas obra completas.
Em recente edio antolgico-biogrfica patrocinada pela prefeitura de La Laguna,
Francisco Gonzlez Luis12 tambm observa a prtica de Anchieta de adaptar letras
religiosas a canes populares, lamentando a pouca ateno dada at hoje ao tema. Jos
Gonzlez Luis, o responsvel nesta obra pela anlise da lrica espanhola acredita mesmo
que esta a essncia da poesia anchietana.13 A publicao, alm de conter estudos
originais de vrios autores, apresenta uma anlise bastante completa sobre o estado atual
das pesquisas anchietanas, discutindo inclusive, como h pouco citado, as vrias hipteses
e mais recentes consideraes acerca da ascendncia do jesuta.
Os aspectos musicais da obra de Anchieta e a influncia de elementos do
cancioneiro popular ibrico vm interessando tambm a pesquisadores no campo da
musicologia. O fato de que a prtica musical jesutica no Brasil foi sempre bem
documentada contribui igualmente para fazer do estudo desta literatura uma das poucas
formas possveis de se entrar em contato com a msica praticada no Brasil quinhentista.
Todavia, a exemplo dos estudos literrios e biogrficos, as pesquisas musicolgicas ainda
vem tratando o assunto de forma secundria. Alguns destes trabalhos, mesmo no sendo
11 ANCHIETA, Teatro de Anchieta, So Paulo, 1977; Lrica portuguesa e tupi, So Paulo, 1984; Lrica espanhola, So Paulo, 1984. 12 Citado nota 2. 13 LUIS, op. cit., p. 271.
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direcionados especificamente msica na obra de Anchieta, revestem-se de importncia
pela originalidade e tratamento cientfico em questes como a funo da msica na
atividade missionria e a transformao cultural ou entropia verificada no contato entre
os povos indgenas e os colonizadores.
Os trabalhos do jesuta Serafim Leite,14 embora demonstrando pouca iseno,
ofereceram pela primeira vez uma viso clara do ensino da msica pelos jesutas no Brasil
colonial, enriquecida por farta documentao. Podemos, com a ajuda de seus estudos
contextualizar melhor a ao didtica de Anchieta.
Nesse sentido so de interesse especial tambm as pesquisas de Clement McNaspy
e Thomas Culley,15 apresentando a posio oficial da Companhia de Jesus quanto ao
emprego e cultivo da msica no sculo XVI. Demonstram os jesutas, em artigo de 1971,
como a situao peculiar das colnias justificava uma liberdade maior nestas questes do
que a usufruda na Europa durante o mesmo perodo. O trabalho lana ainda alguma luz
sobre o tipo de msica praticada no Brasil por apresentar um quadro, um pouco
fragmentado, das atividades musicais dos jesutas na Europa contempornea. Fica
evidente, por exemplo, a difuso entre estes da prtica do canto em fabordo, justificada
pelo fato de no exigir demasiado tempo para a preparao.
Jos Ramos Tinhoro16 analisou a msica jesutica sob um ponto de vista
sociolgico, deixando bem claro seu papel funcional. Encara as atividades didticas dos
jesutas no campo da msica como parte dos esforos de substituir os valores culturais
indgenas pelos europeus. Papel de destaque cabe a Anchieta nesta pr-histria da
msica brasileira, por ter sido o primeiro compositor cujas letras sobreviveram.
14 LEITE, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1938; A msica nas primeiras escolas do Brasil, Brotria, Lisboa, 1947; Cantos, msicas e danas nas aldeias do Brasil, Msica sacra, Petrpolis, 1943; Artes e ofcios dos jesutas no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1953. 15 McNASPY e CULLEY, Music and the early jesuits, Archivum Historicum Societatis Iesu, Roma, 1971. 16 TINHORO, A deculturao da msica indgena brasileira, Revista brasileira de cultura, Rio de Janeiro, 1972, e Msica popular de ndios, negros e mestios. Petrpolis, 1972.
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O musiclogo Paulo Castagna17 vem se destacando no sentido de situar a prtica
dentro do esforo geral de catequese, apresentando as diversas formas de aplicao da
msica no processo, suas funes, resultados prticos e conseqncia na deculturao dos
povos submetidos coroa portuguesa.
Nos ltimos anos vem-se aprofundando o estudo de questes referentes ideologia
da obra de Anchieta e transformao de sua prpria linguagem durante o processo de
converso do indgena. Em captulo de recente livro,18 Alfredo Bosi detecta a existncia
como que de dois poetas distintos em Anchieta, um cuja finalidade a converso do
nativo e outro que escreve sobre sua prpria experincia espiritual. Inclui-se a msica
neste quadro por ter sido utilizada pelo jesuta em ambas as categorias, tanto no teatro, de
cunho persuasivo ou didtico, quanto na poesia de carter pessoal, como veculo de sua
prpria expresso mstica.
Objetivos
Como observamos, vrios pesquisadores tm comentado a influncia da poesia
popular em Anchieta e o papel desempenhado pela msica em suas obras. Graas a esses
esforos o quadro vem se tornando cada vez mais claro nos ltimos anos. Entretanto, no
existe ainda uma plena compreenso quanto ao nvel em que a influncia teria se
processado e muitos dos prprios pesquisadores mencionados reconhecem a necessidade
de um estudo mais especificamente direcionado ao assunto.
, portanto, objetivo deste trabalho contribuir para o melhor esclarecimento destas
questes buscando aproximaes entre a poesia de Jos de Anchieta e o cancioneiro
ibrico, desde o nvel da inspirao popular, pelo uso de temas e formas potico-musicais,
17 CASTAGNA, Paulo Augusto. Fontes bibliogrficas para a pesquisa da prtica musical no Brasil nos sculos XVI e XVII, So Paulo, 1991 e A msica como instrumento de catequese no Brasil dos sculos XVI e XVII, D. O. Leitura, So Paulo, 1994. 18 BOSI, Anchieta ou as flechas opostas do sagrado, em Dialtica da Colonizao, So Paulo, 1993.
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at o da transposio ao divino, verso por verso, de canes populares e danas cantadas.
Objetivo secundrio e conseqncia natural do anterior, o de apresentar uma
contribuio ao estabelecimento de um repertrio de msicas executadas no Brasil do
sculo XVI, baseada em paralelos existentes entre suas poesias e canes e danas
registradas em obras ibricas do perodo.
Metodologia
O trabalho foi dividido em duas etapas principais. Primeiramente foi conduzida
uma pesquisa bibliogrfica em fontes literrias e musicais ibricas de fins do sculo XV a
incio do sculo XVII, com vistas identificao de paralelos entre poesias de Anchieta e
canes e danas populares do perodo. A pesquisa foi realizada em bibliotecas e arquivos
de So Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Lisboa, Porto, vora, Coimbra, Madri e Barcelona.
Por correio foram efetuados contatos com o Archivum Romanum Societatis Iesu, em
Roma.
As obras selecionadas foram analisadas e comparadas s poesias de Anchieta a que
supostamente corresponderiam em aspectos referentes forma, mtrica, acentuao e
rimas. s obras cujo texto musical foi preservado, foram adaptadas as verses ao divino
do jesuta e efetuadas as transcries em notao musical moderna, apresentadas em anexo
juntamente com reprodues facsimilares. Nesta segunda etapa foi tambm utilizada a
bibliografia de referncia, fornecendo subsdios em aspectos como o histrico das canes
e danas recolhidas e possveis solues quanto transcrio e interpretao.
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2. O Cancioneiro Ibrico em Anchieta
O Cancioneiro Divinizado
Que a obra potica de Jos de Anchieta apresenta evidncias de uma forte influncia
do cancioneiro popular ibrico fato observado por muitos dos que se dedicaram ao estudo
da lrica do jesuta.
Se num primeiro nvel esta notada pela utilizao de formas potico-musicais como
a cantiga, o romance e as trovas, os depoimentos de pessoas que conheceram Anchieta em
vida, registrados por seus primeiros bigrafos, nos ajudam a ampliar em muito este quadro.
De Pero Rodrigues,19 por exemplo, temos a declarao de que Anchieta
mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, honra de Deus e dos Santos, que se cantavam nas igrejas e pelas ruas e praas, todas mui devotas, com que a gente se edificava, e movia ao temor e amor de Deus. Tambm Simo de Vasconcelos20 nos informa que o padre
traduziu em romances pios, com muita graa e delicadeza, as cantigas profanas que andavam em uso. Finalmente Joo de Souza Pereira,21 num dos primeiros processos cannicos
institudos, relata que
Ouvindo o Pe. Jos algumas cantigas profanas, logo compunha outras ao divino, contrafazendo-as e as fazia cantar; e a ele, testemunha, lhas dava escritas e as fazia cantar em lugar das profanas De fato, Anchieta adaptava textos religiosos de sua autoria a melodias cantadas pelos
ndios e colonos do Brasil quinhentista. At a nenhuma novidade. Mesmo assim, seria til
atentarmos novamente s informaes de Pero Rodrigues e Simo de Vasconcelos. Ora,
mudar cantigas profanas ao divino e traduzir em romances pios [...] as cantigas profanas
so definies perfeitas de um processo amplamente utilizado na literatura espanhola dos
sculos XVI e XVII: a poesia vertida a lo divino, isto , a divinizao de obras profanas, ou 19 Anais da Biblioteca Nacional, vol. XXIX, 1907, p. 209. 20 VASCONCELOS, op. cit. (1672), 1943, p. 34. 21 Proc. inform. do Rio de Janeiro, f. 79 v., conf. ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 40.
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a criao de verses de carter religioso para canes populares. Mas exatamente o que
caracteriza uma verso ao divino? Trata-se simplesmente de adaptar um texto religioso a
uma cano popular? E at que ponto teria Anchieta feito uso deste processo?
caractersticas da poesia vertida ao divino
O processo consistia em se introduzir determinadas modificaes no texto original de
alguma poesia ou cano escolhida, a fim de transformar seu sentido profano em espiritual.
Isto se realizava geralmente com uma certa facilidade: algumas palavras eram substitudas e
o texto adquiria um novo sentido religioso. As fontes preferidas para a divinizao
revelaram ser as canes populares, e o motivo simples: j que todos as cantavam, seria
um timo meio de propagao do sentimento religioso.
Num dos estudos mais completos sobre o assunto, Bruce Wardropper define o
contrafactum - termo latino que prope22 para a verso ao divino - como uma obra literria
(s vezes uma novela ou um drama, mas geralmente um poema lrico de curta extenso) cujo
sentido profano foi substitudo por outro sagrado. Se trata, pois, da refundio de um texto
que, s vezes, conserva do original o metro, as rimas, e mesmo - desde que no contradiga o
propsito divinizador - o pensamento.23
Tomemos como exemplo o clebre romance de Don Gaiferos:
Caballero, si a Francia ides, por Gaiferos preguntad.
22 A escolha do termo contrafactum, em lugar do espanhol contrahechura, justificada pelo fato de que, como amplamente demonstrado no estudo, o processo no era fenmeno exclusivo da literatura espanhola. 23 WARDROPPER, Historia de la poesia lrica a lo divino en la cristandad occidental, Madrid, 1958, p. 6.
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Dmaso Alonso, em seu estudo sobre a poesia ao divino em San Juan de la Cruz e
Santa Tereza de Jesus,24 nota que existem verses em Lpez de beda:
ngeles, si vais al mundo, por mi Esposa preguntad.
em Pedro de Padilla:
Sospiros que al cielo ides, por Dios Hombre preguntad.
e em Lope de Vega:
Lgrimas que al cielo ides, por mi Esposo preguntad.
De Portugal Carolina Michalis de Vasconcelos apresenta-nos a verso de Sor
Micaela Margarida de SantAnna (1581-1662):25
Angeles, si al cielo ide[s] por mi esposo perguntade, e dizedle que su esposa se le enbia encomendar.
Citando ainda outro exemplo,26 Lope de Vega incluiu em sua comdia El caballero
de Olmedo uma cano recolhida da poesia tradicional:
Que de noche le mataron al caballero, la gala de Medina, la flor de Olmedo.
24 ALONSO, Poesia Espaola - Ensayo de mtodos y lmites estilsticos, Madrid, 1976, p. 228-229. 25 Que, segundo dizem, repetia hinos e formava ex-tempore romances e coplas inspiradas pela veia fecunda da piedade. E dizem mais que, poucos momentos antes de expirar, cantou com voz suave a copla acima. VASCONCELOS, Romances velhos em Portugal - estudos sobre o romanceiro peninsular, Porto, 1980, p. 131. 26 WARDROPPER, op. cit., 169-170.
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Que foi por ele prprio divinizada, e em duas formas distintas. A primeira delas,
contida no Auto de los Cantares
Que de noche le mataron al caballero, la gala de Mara, la flor del Cielo.
mudando muito pouco, apenas os nomes, mas de forma acertadssima. Numa
segunda verso, includa no auto sacramental del Pan y del Palo, optou por uma versificao
regular:
Que de noche le mataron al divino caballero que era la gala del Padre y la flor de tierra y cielo
Muitas vezes o divinizador indicava, na forma de epgrafe, a fonte da composio
e/ou a melodia a ser utilizada,27 o tono, ou som, sobre a qual deve ser cantada. Assim,
encontramos no Cancioneiro de Montesino,28 de 1527, entre outras a indicao:
Cantanse al son que dice A la puerta esta Pelayo Y llora.
para a composio que se inicia com os versos:
Desterrado parte el Nio, Y llora, Dijole su madre as, Y llora, Callad, mi seor agora.
27 Prez Gomez, citado por WARDROPPER, op. cit., p. 137, acredita que este foi a princpio um simples recurso para indicar ao jogral a melodia em que a copla ou o romance deveria ser cantado. Wardropper comenta ainda que esse costume j era conhecido nas sinagogas hebraicas desde o sculo VIII e estabelecido na liturgia crist na forma do incipit que encabea uma seqncia ou um salmo 28 SANCHA, Romancero y cancionero sagrados, 1950, p. 459.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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Evidentemente a indicao do tono ou melodia em que se deveria cantar a verso
contrafeita atravs da simples meno do primeiro verso era uma soluo bastante prtica e
acabava produzindo o mesmo resultado que a reproduo em notao musical. Chamamos a
ateno tambm para o fenmeno conhecido como centonizao, que o que ocorre em
grande parte destes casos, onde um texto completamente novo adaptado melodia pr-
existente. No existe a a refundio do texto, caracterstica da verso contrafeita ao divino.
Outro processo bastante comum de divinizao consistia em se glosar ao divino, isto
, tomando como mote um estribilho de determinada poesia ou cano popular, compor uma
estrofe explicativa sobre cada um dos versos ou simplesmente compor um novo texto
potico finalizando cada estrofe com um ou s vezes dois dos versos do mote.29
difuso da literatura ao divino
As formas tradicionais, especialmente o vilancico e o romance, eram as preferidas
para a divinizao. No primeiro caso o mais importante para o divinizador era a cabea da
composio, o estribilho, que por transmisso oral chegou aos sculos XV e XVI e
permaneceu vivo na tradio popular. Quanto ao romanceiro tradicional, nota Menndez
Pidal30 que todo romance muito divulgado provocava uma imitao religiosa, para ser
cantada com a melodia que andava em voga, da em boa parte a origem do romanceiro
sagrado.
De qualquer maneira, o principal fator que indica se a cano, quer seja vilancico,
romance ou outro gnero adequada divinizao o fato de ser bem conhecida. Esta
utilizao interessada, devida no somente a motivos estticos ou dramticos salientada
29 ALONSO, op. cit., p. 231, tambm nos lembra que, embora de forma menos freqente, ainda ocorria a "profanizao" de oraes litrgicas ou poesias religiosas, parodiadas em sentido ertico ou satrico. 30 Menndez PIDAL, Romancero hispnico, Madrid, 1953, vol. I, p. 345. Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 186.
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por Jos Maria Aln,31 embora de forma generalizada, quando observa que os poetas
divinizadores no sentem nenhum embarao em acudir, e portanto adaptar-se, a qualquer
que seja - despreocupando-se de sua qualidade ou bondade, tanto musical como textual -
contanto que cumpram o requisito bsico e prioritrio: o de ser bem conhecida. Ilustrando,
Aln cita o exemplo de Francisco de Ocaa que utiliza sem rubor algum uma cano de
amor de frade
No me digais, madre, mal del padre fray Antn que es mi enamorado y yo tngole en devocin.
como tono de canes religiosas. No se surpreende tambm com o fato de que, para
cantar um vilancico pastoril que comea com
Pascualejo, que has habido? Como ests tan aturdido?
Ocaa tenha indicado o uso da melodia de
Mi marido anda cuitado yo jurar que est castrado
De fato, a grande voga do gnero no sculo XVI, aliada aparente facilidade com
que podem ser compostas as verses acabou resultando tambm numa literatura de
qualidade inferior, quando no absolutamente disparatada, satirizada por Polo de Medina no
Hospital de incurables. Entre os incurveis encontra-se um divinizador literrio, que
pergunta ao diretor do manicmio:
31 ALN, ed. Cancionero tradicional, Madrid, 1991, p. 20-21.
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-- Hay mandamiento de no poetars? No por cierto. Pues por qu me traen aqu? -- No os han trado por poeta [se le contesta], sino porque sois poeta de volver romances, y andis trabucando las coplas de humano en divino, diciendo en ellas cosas indignas. Bellaco, en qu pensabais cuando dijisteis:
Helas, helas por d vienen Madalena, Mara y Marta, a ms no poder mujeres, fembras de la vida harta?32
claro que estes eram casos extremos. Mais comumente procurava o divinizador
uma transio delicada, conservando tambm o ethos da composio. Neste sentido, j
consideramos o caso exemplar de Lope de Vega.
poesia e msica cultas
No somente no plano do cancioneiro tradicional ocorria a divinizao. Na Frana,
por exemplo, a poesia de Ronsard mudada ao divino, e de forma bastante dramtica.
Charles Conte e Paul Lamounnier33 notam que sem pudor, ou melhor, por excesso de
pudor, se transformavam os sonetos amorosos e odes bquicas em canes devotas e em
stiras contra a embriaguez. Estas verses foram tambm musicadas por vrios
compositores, entre eles Orlando Lassus. Encontramos, por exemplo, no Thresor de
musique dOrlande de Lassus (Kln, 1593) o texto original
Ores que je suis dispos Je veux boire sans repos
convertido em
Ores que tu sois dispos Faut-il boire sans repos?
32 Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 185-186. 33 CONTE e LAMOUNNIER, Ronsard et les musiciens du XVIe sicle, Revue dHistoire Littraire, VII, 1900, p. 341-381. Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 279-280.
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Exemplos em maior quantidade ainda existem na Itlia, como as divinizaes do
Canzoniere e dos Trionfi de Petrarca, das Rime amorose de Tasso e do Orlando de
Ariosto, transformado em Il Furioso spirituale por Vincenzo Marini em 1596. Tambm
Monteverdi teve, em 1608, seu quinto livro de madrigais publicado em latim pelo cannico
Coppini "para que se pudessem cantar nas Igrejas".34 Isto sugere ainda que, no plano da
msica e poesia cultas, o fenmeno de divinizao possivelmente ocorreu na Itlia de forma
mais ampla ainda do que na Espanha. Entretanto, gostaramos de destacar mais um exemplo
espanhol.
Em 1589 Francisco Guerrero publicou em Veneza sua coleo de Canciones y
villanescas espirituales, contendo vrias verses ao divino de poesias musicadas por ele
prprio em sua juventude, a includos, entre outros, textos de Garcilaso de da Vega,
Gutierre de Cetina e Baltasar de Alczar. O prlogo, de Mosquera de Figueroa justifica a
publicao da seguinte forma:
y no pudiendo resistir a la importunacin de sus amigos, y gente curiosa, y aficionada Msica, que hizieron instancia con l, para que sacara en publico este libro, por que andando de mano en mano, se iba con el tiempo perdiendo en sus obras la fidelidad de su compostura, o no quedaba en ellas mas, que el nombre del autor, suele forzoso condescender con lo que todos le pidieron, con condicin, que las Canciones profanas se convertissen lo divino, y otras, que por ser morales se quedaron en su primero estado.
A obra de especial interesse para este estudo pois nos permite observar as
modificaes feitas tambm no texto musical quando da divinizao. De fato, a mudana do
texto de determinada obra musical gera o problema esttico ao qual nos referimos
anteriormente: adapta-se o novo texto com naturalidade msica pr-existente? E isto no
apenas no campo da prosdia, pois a msica j leva consigo toda uma carga de afetos.
Notemos, por exemplo o caso de Ojos claros, serenos:
34 Citado por Miguel Querol Gavald, em GUERRERO, Opera omnia, vol. 1 - Canciones y villanescas espirituales, Barcelona, 1955, p. 22.
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verso profana
Ojos claros, serenos, si de un dule mirar sois alabados, por qu, si me miris, mirais airados? Si, quanto ms piadosos, ms bellos pareeis a quin os mira, no me miris con ira, porque no parezcis menos hermosos. Ay, tormentos raviosos! Ojos claros, serenos, ya que ans me miris, miradme almenos.
verso ao divino
Ojos claros, serenos, que vuestro apstol Pedro an ofendido, mirad y reparad lo que perdido. Si, atado fuertemente, queris sufrir por m ser aotado, no me miris ayrado, porque no parezcis menos clemente: pues lloro amargamente, bolved, ojos serenos, y, pues mors por m, miradme al menos.
A considervel modificao do texto levou Guerrero a revisar a parte musical desta
pea, o que no ocorre no restante da coleo, onde as verses seguem muito mais de perto
o modelo original. A partir de uma comparao entre o primeiro tiple de ambas as verses,
observamos algumas das mudanas efetuadas:
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Europa e mais alm
A maioria dos estudos sobre o processo de divinizao de obras profanas concentra-
se na literatura e msica espanholas. Dmaso Alonso,35 justifica:
en ningun sitio el proceso de divinizacin de obras profanas haya durado tanto tiempo, tenido tal desarrollo, alcanzado a tantos gneros distintos y ofrecido tantos matices como en Espaa. Mas o fenmeno atingiu tambm outros pases, e no s os de cultura latina. Tambm
no se restringiu ao sculo XVI. novamente Wardropper36 quem demonstra a difuso
35 ALONSO, op. cit., p. 222. 36 WARDROPPER, op. cit., p. 233-253.
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deste tipo de literatura notando que as verses ao divino, em geral, so um fenmeno da
cristandade inteira, tanto protestante como catlica, e que parecem haver existido desde o
primeiro milnio. Considera que sua idade de ouro deu-se na Frana do sculo XIII, na
Espanha, Alemanha e Itlia de fins do sculo XV e durante todo o sculo XVI, enquanto que
na Inglaterra houve casos espordicos em vrias pocas.
Note-se o caso do Greensleeves. Publicado pela primeira vez em 1580, menos de dez
dias depois desviado de seu uso profano para servir ao elogio divino. No Stationers
register descrito como Greensleeves, moralizado em conformidade com a Sagrada
Escritura para declarar as mltiplas vantagens e bendies que outorga Deus ao homem
pecaminoso. Verses divinizadas desta cano continuam a ser compostas at em nosso
sculo.
de se destacar na Frana a figura de Margarita de Navarra, cujas chansons
spirituelles, publicadas em 1547, muitas vezes so destinadas a ser cantadas sobre melodias
populares, como:
sus Sur le pont dAvignon, joys chanter la belle. Sur larbre de la croix dune voix clere et belle Jay bien ouy chanter une chanson nouvelle. onde no apenas a melodia preservada, como tambm as rimas e alguns detalhes
temticos.
Na Florena do sculo XV era costume alternar-se as mascaradas e canzoni a ballo do
carnaval com as sacre rappresentazioni e as canes espirituais sobre melodias profanas
executadas pelos jovens das fraternidades religiosas. A prtica se acentuou no sculo XVI, a
ponto de vermos numa coleo de laudi spirituali de 1512 que o hino Jes sumo diletto
deveria ser cantado com a melodia de Leggiadra damigella; Genetrice di Dio com a de
Dolce anima mia e Crucifisso a capo chino com a de Una donna damor fino, uma das mais
indecentes das canzoni a ballo.
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E da Alemanha, onde at as canes de beber eram s vezes divinizadas, Wardropper
cita o exemplo de uma cano ainda hoje bastante popular nos pases germnicos:
Innsbruck, ich muss dich lassen, ich fahr dahin mein Strassen, in fremde Land dahin. Mein Freund ist mir genommen, die ich nit weiss bekommen, wo ich im Elend bin.
contrafeita pelo reformista Johan Hesse (1490-1547), em:
O Welt, ich muss dich lassen, ich fahr dahin mein Strassen ins ewig Vaterland. Mein Geist will ich aufgeben dazu mein Leib und Leben setzen gndig in Gottes Hand.
Voltando ao mundo ibrico, so encontrados exemplos em Portugal entre outros na
citada Sor Micaela Margarida de SantAnna e especialmente nas Vrias rimas ao Bom
Jesus (1594) de Diogo Bernardes, que consideraremos mais adiante.
Finalmente, agora passando ao novo mundo, vamos encontrar no Peru a figura de Santa
Rosa de Lima (1586-1617), que verte a cano
La media noche es pasada, y no viene: sabedme si otra amada lo detiene
citada em La Celestina, que parece reminiscncia da popular Si la noche hace escura, em
Angel de mi guarda, vuela y dile a mi Dios que por qu tarda; la media noche es pasada, y no viene; sabedme si hay otra amada que lo entretiene.37
37 WARDROPPER, op. cit., p. 179-180.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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Indcios da utilizao deste processo to comum em toda a cristandade do sculo XVI
encontraremos tambm em terras brasileiras, mais especificamente na parcela espanhola da
produo literria de Jos de Anchieta.
Anchieta ao divino
estudos sobre o processo de divinizao em Anchieta
Na apresentao de seu estudo sobre a poesia de Jos de Anchieta, Eduardo
Portella38 j sugeria que
Talvez pudssemos estabelecer uma relao da poesia de Anchieta com o cancioneiro ibrico, tantos devem ter sido os romances por ele escutados na infncia ou adolescncia. Jos Gonzlez Luis.39 vai um pouco mais adiante ao afirmar que o metamorfosear ao
espiritual constitui a essncia da maioria das poesias anchietanas. Colocando nosso poeta
entre os altos representantes do fenmeno de divinizao de obras profanas, sugere que o
modelo principal de inspirao das poesias anchietanas deve ser buscado numa original
imitao da poesia cancioneiril e na divinizao de letras profanas Todavia, como no caso
de Portella, seus comentrios permanecem apenas no nvel da sugesto e o assunto no
desenvolvido.
O mesmo no ocorre com Armando Cardoso, que demonstra uma maior compreenso
do fenmeno. Em, sua introduo lrica espanhola, por exemplo, busca evidenciar uma
srie de paralelos entre as poesias do jesuta e obras de autores espanhis do sculo XVI.40
38 ANCHIETA, op. cit., 1977, p. 10. 39 LUIS, op. cit., p. 271. 40 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 19-29.
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Nestas comparaes, seu objetivo foi, como ele prprio explica, o de "rastrear alguns
exemplos do que o nosso poeta podia ter lido nessas colees, cotejando-o com o que ele
prprio escreveu, quase como uma possvel e longnqua reminiscncia".41 Dentre estes,
destacamos o confronto entre a poesia Maria, luz del da, de Fernn Prez de Guzmn e a
cano de Anchieta Recemos, Ruben, la prima:
Lpez de Guzmn
Cual balada e cancioneta bastara a te loar, con perfecta meloda?
Anchieta
Nuestra prima y nuestra hermana es Mara, que cubri con nuestra lana al Mesa
Armando Cardoso nota que Anchieta parece ter imitado a estrofe, os versos e at as
rimas do poema de Guzmn. No entanto, como em todos os exemplos apontados em seu
estudo, os paralelos so encontrados entre poemas de contedo religioso, tanto no texto
supostamente original como no de Anchieta. J que o teor moral no sofre modificaes,
no podemos ainda falar em transposio e o prprio Cardoso procura, mais adiante,
dissipar qualquer sugesto de que Anchieta tivesse criado verses para poesias alheias:42
no se deve ver propriamente uma dependncia literria direta, mas um sentir comum, com expresses s vezes semelhantes, mas tambm com suas caractersticas a definir um estilo particular.
Todavia, em sua anterior obra Teatro de Anchieta, de 1977, Cardoso apresentava
um exemplo dessa negada "dependncia direta", que constitui-se na primeira evidncia
41 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 21. 42 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 29.
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detectada do processo de divinizao de obras profanas em Anchieta. Trata-se da
comparao entre a pea O Pelote Domingueiro, do jesuta e as Trovas do Moleiro:43
O assunto das trovas do moleiro vem da idade mdia. Guardam-se na Biblioteca do Porto quatro composies, transcritas por Tefilo Braga em sua Antologia Portuguesa. [...] Anchieta refaz toda a letra da cantiga e aprimorou-se em dar-lhe magnfico sentido bblico.
A Biblioteca Nacional, em Lisboa tambm possui outra edio, praticamente
idntica, das Trovas do Moleiro. Tanto estas quanto a verso de Anchieta so baseadas no
mesmo mote:44
J furtaram ao moleyro seu/o pelote domingueiro.
Comparando as obras, notamos que algumas estrofes so muito semelhantes:
Trovas do moleiro45
[29] Furtaram-lhe um pelote que chegou a trez tostes j no falo dos botes, que eram de pano mui forte; um debrum de chamalote tinha um quarto dianteiro o pelote domingueiro.
O pelote domingueiro46
[52] Tinha um monte de botes em o quarto dianteiro, que lhe deram sem dinheiro, que so os divinos des. Por menos de dois tostes, foi o parvo do moleiro a vender tal domingueiro.
Tais similaridades, aliadas existncia de um mote comum, parecem confirmar a
possibilidade aventada por Cardoso. Entretanto, somos mais propensos a crer que tanto
Anchieta como os quatro autores das Trovas do Moleiro reportam a uma mesma composio
anterior, tomando-a como modelo, e isso no apenas no que se refere ao uso do mote. No
segundo caso a confirmao parece ser dada pelo prprio ttulo: trovas novamente feytas do
43 ANCHIETA, op. cit., 1977, p. 63. 44 Ver anexos, p. 117-121. A verso que utilizamos a de BRAGA, Antologia portugueza, Porto, 1876, p. 247. Em colchetes a nica variao no mote de Anchieta. 45 BRAGA, op. cit, p. 248. 46 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 425.
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moleyro. Lembramos entretanto que na literatura desta poca a indicao novamente feito
nem sempre significa refeito, ou feito mais uma vez, mas apenas que uma nova obra
impressa. Existem outras razes, contudo, que indicam que estas Trovas do Moleiro no so
exatamente as que Anchieta conheceu.
Referimo-nos data de impresso destes folhetos: 1602, segundo Barbosa Machado.
A informao dada por Inocncio Francisco da Silva, no Dicionrio bibliogrfico
portugus,47 onde conclui que o impressor Antnio Alvarez s comeou a trabalhar em
Lisboa muitos anos depois de 1544 e que em 1621 j havia sido substitudo por seu filho de
mesmo nome. Todavia, Barbosa Machado s menciona uma impresso das Trovas do
Moleiro e nem o exemplar do Porto e nem o de Lisboa apresentam informaes sobre o ano
e local da impresso, existindo a possibilidade de se tratarem de duas ou mesmo trs datas
diferentes. Notamos, porm, que os caracteres tipogrficos e gravuras dos dois exemplares
em questo so os mesmos utilizados por Antnio Alvarez e seu filho durante toda a
primeira metade do sculo XVII, bastante diversos do estilo do sculo anterior. Quanto aos
autores, Barbosa Machado informa apenas a respeito da procedncia de um deles, Lus
Brochado, natural de Tnger.
Acreditamos que a verso das Trovas do Moleiro conhecida por Anchieta anterior
s duas impresses de que dispomos, provavelmente transmitida oralmente e que constituiu-
se em base para as variaes posteriores.
De qualquer forma, todas estas consideraes nos fazem concluir que o processo de
divinizao de obras profanas na obra de Anchieta tenha ocorrido de forma mais ampla e
mais explcita do que at hoje tem sido demonstrado.
47 SILVA, Dicionrio bibliogrfico portugus, Lisboa, 1860, vol. 5, p. 234.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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verses ao divino de canes populares
A exemplo dos poetas divinizadores espanhis, tambm Anchieta fornece indicaes
do tono, ou melodia a ser utilizada, na forma de epgrafe em vrios de seus poemas.
Consideraremos a seguir cada uma delas.
S. Tom de Mira
A epgrafe encontra-se s folhas 13-13v do cdice de poesias de Anchieta,
encabeando a poesia que tem como primeira de dez estrofes:48
S. tomedemira Oh Dios infinito por nos humanado, voos tan chiquito que estoy espantado! .............................
O ttulo interpretado como So Tom de Mira pela maioria dos crticos. Maria de
Lourdes de Paula Martins lembra tambm que Mira uma vila de Portugal, no Douro,
freqentada por romarias, especialmente a de So Tom, em 24-25 de julho. J Viotti l So
Tom admira,49 Entretanto, a poesia no dedicada a So Tom, nem a ele se refere.
Cardoso sugere que poderia ser, portanto, o ttulo de um hino, sob cuja melodia se devia
cantar esta composio. Isto parece bem provvel, tambm porque mtrica do ttulo igual
dos versos.
48 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 464-465. 49 VIOTTI, op. cit., p. 242-243.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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cantiga por o sem ventura / el sin ventura
folha 25 do cdice encontramos a seguinte poesia em tupi:50
Cantiga por o sem ventura a N. Sra. Tupansy poranget, oropb oromanmo, or moigob jep nde membyra moyrmo, inongatubo; or rarmo, or nga pysyrmo. ..............................
Me de Deus muito formosa, conforta-nos na nossa morte, fazendo manso o teu filho e compassivo; defende-nos, salva a nossa alma.
prosseguindo por mais quatro estrofes e sob a mesma epgrafe, folha 26, outra em
quatro estrofes, iniciando com a seguinte51
Cantiga por el sin ventura Jand rubet Iesu, jande rekob meegara oimomboreausukat jand amotareimbra anga aba morapitira jand nga jukasra. ..............................
Jesus, nosso verdadeiro pai, senhor de nossa existncia, aniquilou nosso inimigo, o anjo mau, o corruptor, assassino de nossa alma.
Cardoso p. 68 nota que Jand rubet Jes e Tupansy poranget possuem o mesmo
estribilho de Oh nia, hermosa estrella (f. 132v-133) e Aquel que tiene por nombre (f. 133v-
134), sendo provvel que fossem cantadas com a mesma melodia.
50 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 569-570. As tradues do tupi neste exemplo e nos seguintes so de Maria de Lourdes de Paula Martins. 51 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 573-574.
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Quanto sua identificao podemos somente fazer algumas conjecturas. El que
naci sin ventura / solo va sin compaia so os primeiros versos de um romance de Nuez
de Reynoso, impresso em 1552.52 No corresponde exatamente epgrafe e tampouco h a
identificao morfolgica. A temtica do desdichado, contudo, bastante comum na
literatura da poca, mesmo no cancioneiro tradicional, e o fato de que o tono indicado em
duas lnguas faz-nos pensar que o ttulo usado por Anchieta aludisse ao assunto da cano,
no sendo apenas a reproduo do primeiro verso. Partindo desta hiptese, voltemos nossa
ateno para um dos mais populares romances ibricos no estilo das endechas:53
Parime mi madre una noche escura, cubrime de luto faltome ventura .......................
[29] Muriendo, mi madre, con voz de tristura psome por nombre hijo sin ventura. .........................
Impresso e citado vrias vezes durante os sculos XVI e XVII, o romance ainda
persiste no folclore sefard.54 Muito sugestivas so as endechas ao som de Parime mi
madre, de Pero de Andrade Caminha, pois nos permitem constatar a popularidade do tema
entre os poetas portugueses e a difuso da prtica de se compor poesias sobre canes
conhecidas.55
52 Reproduzido em DURN, Romancero general, Madrid, 1945, vol. 2, p. 418, n 1362. 53 Impresso em Flor de enamorados, 1550, totalizando dez estrofes. Citado na antologia de ALN, op. cit., p.231-233, n 306. 54 Segundo FRENK, Corpus de la antigua lrica popular hispnica, p. 357, n 772, supervivencias, que cita ALVAR, Endechas judeo-espaolas, Granada, 1953, n 11b; cf. 11a:
Parime mi madre en una noche oscura ponme por nombre nia y sin fortuna.
55 VASCONCELOS, Pero de Andrade Caminha, Lisboa, 1982, p. 38-39, acha mesmo que a cano Do la mi ventura / que no veo ninguna, de Cames, era cantada com a mesma msica. Tambm Antonio Prestes cita o romance na representao que precede o Auto dos dois irmos, conf. VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 203-204.
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29
Admitindo a hiptese de ser esta a cantiga por El sin ventura, confrontamo-nos com
a divergncia mtrica entre o romance e as correspondentes poesias de Anchieta. claro
que, dependendo do carter silbico ou melismtico da cano original, possvel a
adaptao de textos de mtrica diversa a uma mesma melodia. Alm disso existem exemplos
de divinizaes com modificao da mtrica e mesmo da estrutura originais.56 Infelizmente
no localizamos nenhuma verso musical das endechas, nem contempornea do jesuta e
nem das remanescentes na tradio popular, o que por hora impossibilita novas
comparaes.
querendo o alto Deus
A seguir o primeiro quarteto de uma cantiga em tupi, registrada s folhas 25v-26 do
cdice, que perfaz seis estrofes:57
Cantiga por querendo o alto Deus Jand kaemyra, jand rauspa, Tup am kuangat mongi. Ab sos pabe imomorngi tekokat res imojekospa. ..............................
Amando-nos, a ns condenados, Deus criou uma santa. Mais linda que toda a gente, pela virtude a enalteceu.
56 Para citar um, encontramos no Cancioneiro D. Maria Henriques, atribudo a D. Francisco da COSTA, Lisboa, 1956, a cano
En la pea y sobre la pea duerme la nia y suea
indicada p. 356 como tono para
En la pea firme, Cristo, y sobre tan firme pea, duerme Agustino y suea
e p. 418 para
Francisco, nosso professo, pobre, casto e obediente exemplo sers da gente.
57 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 571-572.
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30
A mtrica diferente nos faz pensar que epgrafe no representa o primeiro verso
completo. A este respeito, valem aqui as observaes feitas no tpico anterior. Esta epgrafe,
juntamente com O sem ventura, difere das demais por se apresentar em portugus e, ao lado
de Quin tiene vida en el cielo e S. tomedemira (no caso de se tratar mesmo de cano), por
ser das poucas de carter religioso. Talvez estas cantigas j fossem divinizaes.58
Novamente, embora exista um romance de ttulo parecido - queriendo el Seor del cielo59 -
no foi possvel a identificao.
cantiga polo tom de quien tiene vida en el cielo
a outra epgrafe de teor religioso, tambm usada para indicar a melodia de um
poema em tupi (f. 74v) integrante do Auto de S. Loureno. Neste caso a mtrica da epgrafe
equivale dos versos. Devido sua curta extenso, reproduzimo-lo integralmente:60
Cantiga polo tom de Quien tiene vida enel cielo Tasory jand rayra Tup opysyronspe! Guaixar tos tatpe!... Guaixar tos tatpe!... Guaixar, Aimbir, Saraui tos tatpe...
Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado! Guaixar v para o inferno!.. Guaixar v para o inferno!.. Guaixar, Aimbir, Saravaia vo para o inferno...
Volta
[7] Tasoryb, oikokatubo, tek poxy pura tyma, Tup mokaemeyma, anga rausupebo.
Alegrem-se, vivendo bem, enterrando os velhos maus hbitos, no afugentando a Deus, e repudiando ao diabo.
[11] Tasoryb, oputugubo, Tup opysyronspe! Guaixar tos tatpe!.. Guaixar tos tatpe!.. Guaixar, Aimbir, Saraui tos tatpe...
Alegrem-se, em paz, por Deus os ter libertado! Guaixar v para o inferno!.. Guaixar v para o inferno!.. Guaixar, Aimbir, Saravaia vo para o inferno...
58 Como o caso de Quin te visit, Isabel?, que consideraremos adiante. 59 SANCHA, op. cit., p. 303. 60 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 719-720.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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sobre el ciego amor
Esta epgrafe encontrada em duas das poesias em espanhol, localizadas s folhas
94v-95v do cdice de Anchieta, ambas em cinco estrofes. Reproduzimos as primeiras de
cada um dos poemas61
sobre el ciego amor El buen Jesus me prendi, y me di por madre aquella que yo moria, sin ella, y ella vida me di. ..............................
Outra pola mesma toada Esta se cantou estando S. L.o nas grelhas Por Ies, mi salvador, que muere por mis mancillas, me aso en estas parrillas, con fuego de su fuerte amor. ..............................
mais uma vez Cardoso quem v nessas palavras no um ttulo, mas a indicao da
msica que, para o pesquisador, comeava com o verso El ciego amor me prendi. Imagina
que seria uma cano popular da poca mudada ao divino por Anchieta.62
O tema do cego deus de amor tambm foi bastante explorado na poca,
especialmente no campo da poesia culta. Encontramos, por exemplo, no romanceiro de
Durn, ttulos como Cuando el ciego dios de amor e Forzado del ciego amor.63 Na esfera
tradicional, assunto muito mais comum o do cego de amor, ainda presente no romanceiro
61 Ver anexos, p. 99. 62 Em ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 91, nota 1, Cardoso sugere: A 1 estrofe profana ou primitiva devia ser algo assim:
El ciego amor me prendi, y me di por dona aquella que yo mora sin ella, y ella vida me di. 63 DURN, op. cit, ns 1881 e 494 respectivamente.
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popular ibero-americano. Nenhum destes apresenta qualquer similaridade com as cantigas
de Anchieta.
por graci gco gtz
Aparecendo por trs vezes no manuscrito, a mais utilizada e tambm a mais
enigmtica das epgrafes. Encontramo-la primeiramente encabeando o poema s folhas
131-131v:
por graci gco gtz Cuando la muerte quera combatir al rey del cielo, l, con mortal agona, de rodillas se pona con su rostro por el suelo64 ..............................
que prossegue por mais oito quintilhas. O poema de quatro estrofes imediatamente
seguinte (f. 131v-132), embora sem indicao de tono, deve ter sido cantado com a mesma
melodia. A semelhana bvia especialmente na primeira quintilha:
Cuando la Virgen Mara quiso vencer el corsario, que las almas destrua, orden que, cada da, se rezasse su rosario. ..............................
64 Ver anexos, p. 100. H uma certa semelhana entre os primeiros versos desta composio e uma cano de Mira de Amescua citada na antologia de FRENK, op. cit., p.393, n 870A, correspondencias:
Qundo ser aquel da Seor de tierra y cielo que deste fuego libres vuestra vista gocemos
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A epgrafe surge novamente s folhas 147v. e 171v, agora em um poema de nove
quintilhas em tupi. Da composio, que aparece repetida no cdice, apresentamos a primeira
estrofe da segunda verso:65
Da Conceio de N. S.a por graci gco gtz
Eva, jand sy ypy oemomotaret yb pornga res, mbia enga rupi ijikybo, igubo e. ..............................
Eva, nossa primeira me, cobiou muito a bela fruta, pelas palavras da cobra colhendo-a, comendo-a.
No se pode afirmar com certeza de que se trate de uma indicao de melodia.
Existem mesmo vrias hipteses a respeito. Viotti sugere que se trate da abreviatura de um
nome, talvez Graci Gonalo Gutirrez. A hiptese de Martins, que imagina o ttulo Por
graciar Jes Cristo, decididamente mais fraca, o que por ela reconhecido ao incluir a
abreviatura entre os problemas que em seus estudos no lograram soluo cabal. Cardoso,
novamente, acredita que se trate das primeiras palavras de uma cano popular de seu tempo
que, talvez por profana demais, o jesuta no quis nunca desdobrar. No nos parece muito
fcil, substituindo as abreviaturas por palavras correspondentes em espanhol ou portugus,
formar algum verso que faa sentido. Talvez em idioma basco, lngua materna do pai de
Anchieta. Na falta de outras solues optamos por uma mescla das hipteses de Viotti e de
Cardoso: a abreviatura significaria um nome prprio, contido no primeiro verso da cantiga
ou indicando o compositor. Devemos reconhecer, contudo, que o segundo caso seria
bastante incomum, pois de fato existem canes citando nomes pessoais, mas no
localizamos nenhum caso de meno do compositor como indicao de tono.
65 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 663-664.
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polo moleiro
O significado desta epgrafe, para a composio em tupi s folhas 169v-170,
revelado pela comparao com as j citadas Trovas do moleiro. Notemos apenas a primeira
das treze estrofes:66
polo Moleiro
Pitangi morausubra jand rba, jand jra.
O meninozinho querido nosso pai, Nosso Senhor.
Pitangi pa Iesu oguejy jand rekope. Jand nga rausuppe, ybat su o jand rausba kat, pitangi morausubra jand rba, jand jra. ..............................
O meninozinho Jesus desceu nossa morada. Por amar a nossa alma, veio do cu o nosso grande amor, o meninozinho querido, nosso pai, nosso senhor.
Cardoso j havia concludo que a poesia seria cantada com a msica do Pelote
domingueiro, da a razo da mesma mtrica, a quintilha com o estribilho, no mesmo
esquema de rimas. Ora, isso implicaria em que tanto o Pelote domingueiro, de Anchieta
como ainda as Trovas do moleiro portuguesas fossem tambm musicadas. Se servir de apoio
a esta hiptese, destacamos que uma das trs gravuras impressas na pgina de rosto das duas
edies das trovas apresenta um tocador de gaita de foles. Como comum nos autos
impressos da poca, as gravuras representariam as personagens, indicando tambm a
destinao cnica das trovas.67
Assim como a temtica do desventurado e do cego amor so muito comuns na
literatura dos sculos XVI e XVII, tambm proliferam canes de moleiro, especialmente na
66 ANCHIETA, op. cit., 1989., p. 655-660. 67 Ver anexos.
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msica tradicional. Orellana, Padilla, Lope de Vega e Tirso de Molina, entre outros,
incluram canes deste tipo em obras para o teatro. H at uma ensalada potico-musical -
El molino - de Chacn, uma espcie de pout-pourri de canes sobre o assunto. Nada h,
entretanto, que nem de longe lembre as Trovas do moleiro.
Mira Nero
A interpretao do ttulo desta composio (f. 94-94v) tem gerado alguns mal-
entendidos. J em 1948 Maria de Lourdes de Paula Martins, referindo-se possibilidade de
a poesia pertencer ao auto de So Loureno, contestava algumas opinies estabelecidas:
Nero no parece personagem do auto. [...] Aps o Finis com que se encerra a pea
encontra-se, no manuscrito, uma poesia intitulada Mira Nero!. Mas nada informa sobre a
presena do imperador. Para Cardoso,68 o ttulo indicaria as primeiras palavras de uma
cano de amor incorrespondido, em que Nero seria o cruel, o duro, o ingrato. Em outras
palavras, uma transposio ao divino de uma cano profana, cuja msica seria mantida.
A hiptese de Cardoso encontra-se bastante prxima da verdade. Trata-se de fato de
uma divinizao, no de uma cano de amor, mas do romance Mira Nero de Tarpeya, da a
razo da presena desta figura no ttulo de uma poesia sobre o Jesus sacrificado. O romance
foi vrias vezes impresso avulso e em cancioneiros espanhis do sculo XVI.69 Citado e
parodiado em obras literrias do perodo,70 aparece musicado em pelo menos quatro verses
68 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 67. 69 Cancionero de romances, 15__, p. 212 a 214; Espejo de enamorados, 15__, f. 6v e 7; Silva de varios romances, 1578; Cancionero atribudo a Velzquez de VILA, 15__. Ver anexos, p. 122-123.
70 Como observa Carolina Michalis de VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 185-186, o romance foi
memorado constantemente em livros castelhanos como a Celestina, o Orfeo de Cancer, o Diablo Cojuelo (Tranco V, 51, v); citado por Lopes na Roma abrasada, e por Alarcn na comdia Mudarse por mejorarse (Acto II Cena XIV) e parodiado no Don Quixote (Parte II, Cap. 44 e 58)
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diferentes.71 Os quatro primeiros versos72 do romance encontram eco em Mira Nero de
Anchieta:73
Velzquez de vila
Anchieta
Mira Nero Mira Nero, de Tarpeya A Roma como se ardia: Gritos dn nios y viejos, Y l de nada se dola. El grito de las matronas sobre los cielos subia; Como ovejas sin pastor Unas tras otras corrian, Perdidas, descarriadas, [10] Llorando lgrima viva. Todas las gentes huyendo A las torres se acogian; Los siete montes romanos Lloro y fuego los hundia. En el grande Capitolio Suena muy grande voceria: Por el collado Aventino Gran gentio discurria, Y en Cabalo y en Rotundo [20] La gente apenas cabia. Por el rico Coliseo Gran nmero se subia; Lloraban los dictadores, Los cnsules porfia; Daban voces los tribunos, Los magistrados plaian, Los cuestores lamentaban,
Mira el malo, con dureza, a Jess, como mora. Lloraba la redondeza, con dolor y gran tristeza... Y l de nada se dola!
[6] La justicia furiosa, viendo en pena al inocente, deca, muy rigorosa: Sumo Dios omnipotente! no vengis tan grave cosa?"
[11] Mas la clemencia, muy pa, del hijo de Dios clamaba, y al Padre perdn peda para aquel que lo mataba. Y l de nada se dola!
[16] El sol con verguenza y duelo, ver morir a Dios no pudo, y cubrise oscuro velo, porque mora desnudo, en la cruz, el rey del cielo.
[21] Toda la tierra bulla, y las piedras se quebraban. En noche se vuelve el da. Todas las cosas lloraban... Y l de nada se dola!
[26] El corazn de la madre de dolor est oprimido,
Uma verso a lo divino deste romance, de autoria de Lpez de beda, apresentada por ALONSO, op. cit., p. 228:
Mira el Limbo Lucifer de los santos residan gritos dn nios y viejos y l de nada se dola. 71 BERMUDO, Declaraccin de instrumentos, 1555, f. 101 e 101v (duas verses, ver anexos); FLECHA, Las ensaladas, 1581, f. 1 a 3 (ver anexos); Venegas de HENESTROSA, Libro de cifra nueva, 1557, f. 55 e 55v (ver anexos). 72 A verso que utilizamos a de Velazquez de VILA, contida em DURAN, op. cit., vol. I, p. 393-394 [n 571]. 73 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 493.
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viendo su hijo querido ser de Dios, su eterno padre, como puesto ya en olvido.
[31] Puesto en mortal agona, su Seor y Dios miraba, y viva, con l mora. Mas el malo duro estaba, y de nada se dola!
Los senadores gemian Llora la rden ecuestre, [30] Toda la caballeria, Por la crueldad de Neron Que lo ve con alegria. Siete dias con sus noches La ciudad toda se ardia; Por tierra yacen las casas, Los templos de talleria. Los palacios mas antiguos, De alabastro y silleria, En ceniza van por tierra [40] Los lazos y pedreria; Las moradas de los dioses Han triste postrimeria. El templo capitolino Do Jpiter se servia, El grande templo de Apolo, Y el que de Mars se decia, Sus tesoros y riquezas, El fuego los derretia. Por los carneros y osarios [50] La gente se defendia, De la torre de Mecnas Lo miraba todo y via El ahijado de Claudio Que su padre parescia, Que su Sneca di muerte; El que matara su tia; El que antes de nueve meses Que Tiberio se moria, Con prodigios y seales [60] En este mundo nascia; El que persigui cristianos, El padre de la tirania, De ver abrasar Roma Gran deleite rescebia. Vestido en cnico traje Decantaba en poesia. Todos le ruegan que amanse Su crueldad y su porfia; Diopro le rogaba, [70] Esporo lo combatia, A sus pis Rubria se lanza, Acre los besa, y Lamia; Claudio Augusto se lo ruega, Rugaselo Mesalina;
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Ni lo hace por Popea, Ni por su madre Agripina; No hace caso de Antonia, Que la mayor se decia, Ni del padre y tio Claudio, [80] Ni de Lpida su tia. Anco Planio se lo habla Rufino se lo pedia; Por Britnico, ni Tusco Ninguna cuenta hacia. Los ayos se lo rogaban El tonsor, y el que taia; A sus pis se tiende Octavia, Esa que ya no queria; Cuanto mas todos le ruegan, [90] El de nadie se dolia.
A estrutura potica aqui alterada. Anchieta opta por sete quintilhas, com as rimas
esquematizadas em abaab, ababa, e abbab, enquanto o romance apresenta noventa versos
corridos, com as rimas em versos alternados. Mesmo assim a relao entre as peas
evidente, no s pelo ttulo dado, que no apresenta relao direta com o texto, parecendo
antes se tratar de indicao de melodia a ser usada, como tambm pela manuteno do verso
y l de nada se dola, agora como refro em estrofes alternadas. Devemos lembrar ainda que
o romance foi grandemente popularizado na quadra inicial. desta forma que aparece citado
em obras literrias e musicais e neste trecho que notamos as similaridades com a
composio de Anchieta.
Esta modificao na estrutura da pea poderia significar a impossibilidade de uma
melodia comum. Entretanto, em trs das verses musicais de que dispomos, pequenas
modificaes resultam em uma perfeita adaptao do novo texto.
Bermudo nos apresenta a mesma melodia, bastante ornamentada, submetida a duas
diferentes formas de acompanhamento, para vihuelas de seis e de sete ordens. Podemos
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acomodar o texto de Anchieta simplesmente por ignorar as repeties que ocorrem em
Bermudo:
Na ensalada El Fuego, de Mateo Flecha, encontramos uma verso de Mira Nero a
quatro vozes, menos ornamentada mas tendo ainda algumas semelhanas com a melodia de
Bermudo. Tambm aqui pequenas modificaes precisam ser feitas para a adaptao do
novo texto:
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Existe ainda uma verso instrumental de Mira Nero de Tarpeya, impressa no Libro
de Cifra Nueva de Venegas de Henestrosa. O romance aparece a na forma de cantus firmus,
como base para uma srie de variaes ou glosas de autoria de Francisco Palero.
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Apresentamos a seguir as trs verses bsicas de Mira Nero transpostas ao mesmo grau:
As melodias apresentam algumas diferenas a considerar. A de Flecha a nica em
compasso ternrio. Concordam as verses de Flecha e Henestrosa no carter de
simplicidade. Mesmo assim, alguns movimentos meldicos anlogos, como o impulso
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inicial ascendente e tambm o tratamento das clusulas nos fazem pensar numa origem
comum. Das trs verses, acreditamos que a de Henestrosa est mais prxima da melodia
popular original. A de Bermudo, muito ornamentada, a mais distante, representando o
modelo culto. Deve-se admitir, entretanto, que em pocas e regies diferentes o romance era
cantado sob melodias diversas, tornando praticamente impossvel precisar qual das verses
seria conhecida pelo jesuta.
A poesia Tras del rio de los ciedros (f.19-20), poderia ter sido cantada com a mesma
melodia de Mira Nero. Isso devido s claras aproximaes entre ambas, das quais as mais
destacadas so a permanncia das rimas em a em versos alternados durante toda a
composio, exatamente como ocorre no romance original, e a repetio quase literal de
alguns versos, como con pavor [dolor] y gran tristeza e puesto en mortal agonia.
Nem sempre poesias vertidas ao divino ou destinadas a serem cantadas apresentavam
epgrafes indicativas. Na verdade os exemplos mais claros do processo de divinizao e do
uso da msica em Anchieta surgem justamente ao analisarmos outras de suas poesias,
desprovidas de indicaes to explcitas. o que veremos em seguida.
Quin te visit, Isabel?
O Cancionero general,74 impresso em 1557, apresenta o texto da cano popular
Quin te me enoj, Isabel?, cuja melodia foi preservada por Francisco de Salinas75 e
utilizada por Antonio de Cabezn76 como tema para variaes. Encontramos paralelo em
Anchieta na estrofe que serve de mote ao Auto da visitao de Santa Isabel77 (f. 200 e 206):
74 Cancionero general, Anvers, 1557, f. 390 v. 75 SALINAS, De musica libri septem, 1577, p. 356. Ver anexos. 76 CABEZN, Obras de musica para tecla, arpa y vihuela, 1578, f. 193v-196v. Ver anexos. 77 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 531.
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Salinas Anchieta Quin te me enoj, Isabel,que con lgrimas te tiene?Yo hago voto solene que pueden doblar por l.
Quin te visit, Isabel, que Dios en su vientre tiene?Hazle fiesta muy solene, pues que viene Dios en l.
Notamos o paralelismo primeira leitura: o mesmo impulso inicial, na forma de
pergunta, alm da mesma estruturao potica quanto mtrica, acentuao e rimas. No s
o primeiro verso praticamente o mesmo, como ocorrem ainda vrias expresses idnticas.
Aliando isto grande popularidade da cano durante o sculo XVI, o que diminui a
possibilidade de Anchieta ter utilizado uma verso intermediria, 78 podemos afirmar que
estamos diante de uma verso ao divino e de sua fonte.79 No h dificuldade na adaptao
dos versos de Anchieta melodia de Salinas:
78 Popularizou-se a ponto de ser transformado em cantar proverbializado. A este respeito existem os comentrios de J. PUYOL Y ALONSO em sua edio crtica de La Pcara Justina, Madrid, 1912, vol. III, p. 267-269 e o artigo de Margit FRENK, Refranes cantados y cantares proverbializados, Nueva revista de filologia hispnica, XV, 1961, p. 166. 79 Chamamos a ateno para o verso final do mote original: que pueden doblar por l. Em Anchieta encontramos idia semelhante na poesia (f. 18v-19):
l que muere en el pecado sin arrepentirse de l, este tal es excusado campanas doblar por l.
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O tema no aparece assim de forma to clara nas Diferencias sobre el villancico
Quin te me enoj, Ysabel? de Cabezn. Notemos os compassos iniciais, comparados
melodia de Salinas transposta um tom abaixo:
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Venid a suspirar con Ies amado
Dois cancioneiros quinhentistas portugueses, o de Elvas80 e o de Belm81 registram a
cantiga Venid a suspirar al verde prado, que comparamos a uma cantiga de Anchieta82 (f.
12v-13):
Cancioneiro de Belm Anchieta
Venid a suspirar con Jes amado, los que quereis gozar de sus amores, pues muere por dar vida a pecadores.
Tendido est en la cruz, corriendo sangre,sus sanctas llagas hechas limpios baos, con que se da remedio a nuestros daos.
Venid a suspirar al verde prado comigo zagaleja y (vos) pastores Pues muero sin morir de mal damores
[4] Tu eres soled(ad) que esta comigo saberes que es padescer novos dolores Pues muero sin morir de mal damores
[7] Venid, que el buen pastor ya di su vida,con que libr de muerte su ganado, y dale de beber a su costado.
Tambm neste caso os paralelos so muito claros, embora apenas no primeiro
terceto. As duas composies so iniciadas com o mesmo convite e, como no exemplo
anterior, temos a mesma mtrica, rimas e vrias expresses idnticas. O segundo terceto,
existente apenas no Cancioneiro de Belm, no tem nada em comum com a seqncia do
poema de Anchieta, formado por trs estrofes. verdade que o ltimo verso a repetio
literal do terceiro, mesmo assim, a pea de Anchieta no apresenta este paralelismo.
80 Cancioneiro de Elvas, f. 103v e 104. Ver anexos. 81 Cancioneiro de Belm, f. 65. 82 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 461.
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As duas verses musicais existentes, ambas a trs vozes, so bastante similares,
como observamos a partir de uma comparao, qual adaptamos tambm o texto do
primeiro terceto de Anchieta:
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Mil suspiros di Maria
Pedro de Moncayo83 incluiu em sua coletnea a cano Un sospiro dio Luca, que
tem seu paralelo em Mil suspiros di Maria84 (f. 12-12v):
Moncayo Anchieta
Mil suspiros di Maria por se estar Jesus finando, Quin con l fuera expirando pues muere la vida mia!
Un sospiro dio Luca ayer estando lavando: quin fuera tras l bolando, por saber donde le emba!
[5] Tan grandes suspiros di, que los cielos lo sintieron, y luego se entristecieron con el sol, que se eclips.
[9] Mas viendo, la madre pa, su hijo estarse finando, "Quin con l fuera expirando!"con mil suspiros deca.
[13] Pues la vida mo llev, con l morirme quisiera, y muriendo con l fuera ms viva que muerta yo.
[17] Oh que terrible agona de Dios, que se est finando! Quin con l fuera expirando, pues muere la vida ma!
[21] Como puedo yo vivir, pues que se muere mi vida? Y, con muerte tan sentida, como vivo sin morir
[25] Mi Jess, qu el luz del dacon muerte se va apagando! Quin con l fuera expirando y muriendo, vivira!
83 MONCAYO, Flor de romances nuevos y canciones, Huesca, 1589. Reproduzida em FRENK, op. cit., 1987, p. 46-47, n 92. 84 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 459.
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Citamos ainda o mote alheo, j divinizado, sobre o qual Diogo Bernardes85 comps novas voltas
Un suspiro di Maria Por ver su nio llorando, Quien tras el fuera bolando Para ver donde lembia.
e a verso do Cancioneiro de Juromenha,86 tambm ao divino,
Un suspiro di Maria su Jes muerto buscando; quin fuera trs l volando, [p]or ver adnde le envia!
que demonstram a grande voga da cantiga e o interesse especial que despertou nos poetas divinizadores.
A nica verso musical existente a contida no mtodo de guitarra de Luis de Briceo:87
Un suspiro di Maria alla en el rio lavando Ay Dios, quin fuera bolando. por saber ado le imbia
Como a estrutura potica tambm idntica, no h problema em acomodar a letra
de Anchieta melodia supostamente original. O problema reside no fato de que a nica
verso musical que conhecemos data de 1626, quase trs dcadas aps a morte de Anchieta.
Alm de serem escassas as possibilidades de a melodia ter permanecido imutvel, a verso a
que nos reportamos no apresenta a linha meldica da cano, mas apenas o ritmo e os
85 BERNARDES, Vrias rimas ao Bom Jesus, Lisboa, 1594, f. 18v-19. 86 Fins do sc. XVI, incios do XVII, citado por FRENK, op. cit., 1987, p. 47, a lo divino. 87 BRICEO, Metodo mui facilissimo para aprender a taer la guitarra a lo espaol, 1626, f. 10. Ver anexos.
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acordes para o acompanhamento, o que caracterstico da literatura para canto e guitarra de
meados do sculo XVII.88 Ao extrairmos a melodia a partir das notas agudas dos acordes,
obtemos como resultado uma configurao extremamente simples:
88 A popularidade das canes, aliada reduo no custo das edies parecem ser os principais fatores para a no impresso da parte do canto nestas obras. Tambm possvel que a linha meldica devesse ser improvisada pelo solista sobre a base harmnica oferecida pela guitarra. Ver JENSEN, The guitar and italian song. Early music, 13 (3), 1985, p. 376-383 e BARON, Secular spanish solo song in non-spanish sources, 1599-1640. Journal of American Musicological Society, 30, 1970, p. 20-42.
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Quin ver al pastor
Os temas pastoris sempre se mostraram propcios divinizao, basta lembrar que o
Bom Pastor foi primeiramente revelado aos pastores de Belm. J notamos em Venid a
suspirar como o prprio Anchieta aproveitou-se das afinidades entre o pastoril e o cristo.
Vejamos mais um caso nesta composio do Cancioneiro de vora89 comparada a outra
cantiga de Anchieta (f. 14v-15v):90
Cancioneiro de vora Anchieta Em Sam Julio de so el colhado, se Joo me viera Jugar el caiado.
[5] Estava zagala vestida de festa y tambin compuesta con otra zagala; yo, en ver su gala. .............................
Quin ver al pastorvestido de fiesta, su zamarra puesta? Verlo la pastora. ..............................
A correspondncia muito clara. Anchieta repete um verso, substitui expresses por
sinnimos em zagala/pastor mantm parte de uma palavra em compuesta/puesta, algo da
atitude em ver/verlo e tambm da sonncia em zagala/zamarra. Como nota Askins o refro
foi coletado tambm por Juan Timoneda,91 glosado em seis estrofes, das quais a quarta
relaciona-se verso de vora e conseqentemente tambm de Anchieta:
89 ASKINS, The Cancioneiro de vora, Berkeley, 1965, p. 30, n XVI. 90 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 467. 91 TIMONEDA, Cancionero llamado sarao de amor [...] segunda parte, Valencia, 1561. ASKINS, op. cit., p. 108 e 109, reproduz o texto impresso por CEJADOR Y FRAUCA, La verdadera poesia castellana, vol. 6, n 2612.
BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.
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[30] Vestida y dispuesta Estaba Pascuala hermosa y compuesta m