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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FACULDADE DE ARQUITETURA O ARQUIVO E A SUA SOMBRA: Prolongar a Existência ou Adiar o Fim Rita Marina Máximo da Silva Trabalho de Projeto Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas Trabalho de Projeto orientado pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues 2018

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

FACULDADE DE ARQUITETURA

O ARQUIVO E A SUA SOMBRA:

Prolongar a Existência ou Adiar o Fim

Rita Marina Máximo da Silva

Trabalho de Projeto

Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas

Trabalho de Projeto orientado pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues

2018

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu Rita Marina Máximo da Silva declaro que o presente trabalho de projeto de

mestrado intitulado “O Arquivo e a Sua Sombra: Prolongar a Existência ou Adiar o

Fim” é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é

original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia

ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou

indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 16 de fevereiro de 2018

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RESUMO

Tendo como principais pontos de análise os temas Memória e Arquivo, o

presente trabalho de projeto prevê a análise e explanação de teorias e ideias

desenvolvidas por vários teóricos de comunicação e artistas que trabalham ou

escrevem tendo como principal fim a perceção das variantes que estes dois temas

podem adquirir. Desta forma, a investigação teórica estabelece a base conceptual para

o desenvolvimento de uma investigação prática, que se assume na concretização de três

objetos: um livro, uma cassete de áudio e um website.

A preocupação fundamental, que atravessa a dissertação e culmina no

desenvolvimento de um projeto prático, manifesta-se na procura de elementos que

alicercem o arquivo e os fragmentos da minha memória e dispersos no tempo, sempre

com a preocupação de tentar definir uma identidade.

Inicialmente são apresentadas propostas para uma definição da palavra arquivo,

estando de forma constante as palavras memória e esquecimento em análises paralelas

e complementares. Para além disso, é tido em conta o papel do arquivo na arte

contemporânea e as suas formas de apropriação para o desenvolvimento de um objeto

artístico.

A fotografia é um dos principais suportes de reflexão quando se analisa um ou

mais arquivos, explorando para isso, teoricamente, quais as implicações que existem ao

olhar ou ao analisar a imagem fotográfica que ficou sedada num papel. Sendo que o

objeto livro, tanto na literatura como no desenvolvimento de projetos artísticos, será

também um ponto de foco e discussão.

São deixadas em tom de conclusão algumas notas científicas que preveem uma

breve abertura pelos meandros do estudo científico no que diz respeito à memória.

A parte prática deste projeto pretende mostrar de que forma o design editorial,

nas suas diferentes formas de publicação, pode assumir um importante molde de

apreensão, por parte do outro, dos diferentes estados que o meu arquivo tem o

potencial de assumir.

Palavras-Chave:

Arquivo; Memória; Fotografia; Literatura; Arte Contemporânea.

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ABSTRACT

Having as main points of analysis the themes of Memory and Archive, the

present project provides the analysis and explanation of theories and ideas developed

by several communication theorists and artists whose work is focused on the

perception of the variants these two themes can acquire. In this way, the theoretical

investigation establishes the conceptual base for the development of a practical

investigation that is materialized in three objects: a book, an audio cassette and a

website.

The fundamental concern, which runs through the dissertation and culminates

in the development of a practical project, manifests itself in the search for elements that

consolidate the archive and the fragments of my memory scattered in time, always

keeping in mind the concern of defining an identity.

Initially I propose several definitions for the word “archive”, keeping the words

“memory “and “forgetfulness” in a parallel and complementary analysis. In addition,

the role of archives in contemporary art and its forms of appropriation for the

development of an artistic object are taken into account.

Photography is one of the main sources of meditation when analyzing one or

more archives, theoretically exploring the implications that exist when looking at or

analyzing the photographic image printed on a paper. Books as objects, both in

literature and in the development of artistic projects, will also be looked at and

discussed.

Some scientific notes are presented at the conclusion, tackling the intricacies of

the scientific study with regard to memory.

The practical part of this project intends to show how the editorial design, in its

different forms of publication, can assume an important mould of apprehension, by

others, of the different states that my archive has the potential to assume.

Keywords:

Archive; Memory; Photography; Literature; Contemporary art.

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Agradecimentos

Para o meu melhor amigo, apoio em todas as horas, e aos escritores que conseguem

iluminar e verbalizar a complexidade do que sinto.

À professora Sofia Leal Rodrigues pela orientação e partilha de conhecimento ao longo

deste ciclo de estudos.

Ao Gonçalo, meu irmão e companheiro de vida.

Amigos, o que aqui escrevo é também para vocês, que permanecem comigo em todos

os passos que dou.

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ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 101.1. Problema e cenário de investigação ............................................................ 101.2. Composição da Dissertação ......................................................................... 11

2. ARQUIVO: DEFINIÇÃO E PENSAMENTO ..................................................... 122.1. Propostas para uma definição da palavra ..................................................... 12

2.1.1. Michel Foucault e Jacques Derrida ............................................................. 122.2. O Arquivo Apagado ......................................................................................... 14

2.2.1. Jacques Lacan e Sigmund Freud ................................................................. 142.3. O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos ............................ 162.4. A Arte Mnemónica ........................................................................................... 16

2.4.1. Falar e escrever para desdobrar a alma ....................................................... 162.5. Tempo, Memória e Esquecimento .................................................................. 18

2.5.2. Aby Warburg .............................................................................................. 193. A PRÁTICA DO ARQUIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA ....................... 22

3.1. Arte, Registo e Arquivo ..................................................................................... 223.2. O Arquivo e a Cultura Digital ............................................................................ 23

4. FOTOGRAFIA COMO SUPORTE DE MEMÓRIA INDIVIDUAL ................ 254.1. A objetividade fictícia da imagem .................................................................. 25

4.1.1. Fotografia e Simulacro – A Sombra ........................................................... 254.1.2. O tempo atua sobre a paisagem .................................................................. 274.1.3. A imagem projetada .................................................................................... 28

5. O LIVRO E A LITERATURA: SILÊNCIO E/OU CLARIDADE? .................. 315.1. Arquivo, Livro e Hipertexto ............................................................................ 31

5.1.1. O formato do livro ...................................................................................... 315.1.2. Hipertexto: Conexões físicas e digitais ....................................................... 31

5.2. O Diário e o Fragmento .................................................................................... 335.3. Todos os escritores do mundo ......................................................................... 34

5.3.1. A Escrita e o Medo – Roland Barthes ......................................................... 346. A MEMÓRIA – BREVES CONSIDERAÇÕES CIENTÍFICAS ....................... 367. PROJETO: EDIÇÃO E PRÁTICA ...................................................................... 38

7.1 A organização de arquivos ............................................................................... 387.2. O livro como suporte de um arquivo .............................................................. 407.3. Um livro, uma cassete e um website ............................................................... 42

8. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 578.1. Introdução ........................................................................................................ 578.2. Conclusão sobre o problema de investigação ................................................ 58

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REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 59 ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1 - Rímini: representación neumática de las esferas en oposición a la

fetichista. Forma antiquizante. Aby Warburg...............................................................39

Figura 2 – Anatomía mágica. Examen de los intestinos – Búsqueda del asiento del

alma. Anatomía científica = contemplación por afluência del llanto fúnebre. Anatomía

animal, patética y contemplativa [cfr. Carpaccio]. Aby Warburg................................39

Figura 3 – A Estufa & Açúcar Volume I (1), 2016........................................................43

Figura 4 – A Estufa & Açúcar Volume I (2), 2016........................................................43

Figura 5 – A Estufa & Açúcar Volume I (3), 2016........................................................43

Figura 6 – A Estufa & Açúcar Volume I (4), 2016........................................................44

Figura 7 – A Estufa & Açúcar Volume I (5), 2016........................................................44

Figura 8 – A Estufa & Açúcar Volume I (6), 2016........................................................44

Figura 9 – A Estufa & Açúcar Volume I (7), 2016........................................................45

Figura 10 – A Estufa & Açúcar Volume I (8), 2016......................................................45

Figura 11 – A Estufa & Açúcar Volume I (9), 2016......................................................45

Figura 12 – A Estufa & Açúcar Volume I (10), 2016....................................................46

Figura 13 – A Estufa & Açúcar Volume I (11), 2016....................................................46

Figura 14 – A Estufa & Açúcar Volume I (12), 2016....................................................46

Figura 15 – in.ven.tá.ri.o (1), 2018...............................................................................47

Figura 16 – www.in.ven.tá.ri.o.pt, 2018.......................................................................48

Figura 17 – in.ven.tá.ri.o (2), 2018...............................................................................49

Figura 18 – in.ven.tá.ri.o (3), 2018...............................................................................49

Figura 19 – in.ven.tá.ri.o (4), 2018...............................................................................49

Figura 20 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018...............................................................................50

Figura 21 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018...............................................................................50

Figura 22 – in.ven.tá.ri.o (7), 2018...............................................................................50

Figura 23 – in.ven.tá.ri.o (8), 2018...............................................................................51

Figura 24 – in.ven.tá.ri.o (9), 2018...............................................................................51

Figura 25 – in.ven.tá.ri.o (10), 2018.............................................................................51

Figura 26 – in.ven.tá.ri.o (11), 2018.............................................................................52

Figura 27 – in.ven.tá.ri.o (12), 2018.............................................................................52

Figura 28 – in.ven.tá.ri.o (13), 2018.............................................................................52

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Figura 29 – in.ven.tá.ri.o (14), 2018.............................................................................53

Figura 30 – in.ven.tá.ri.o (15), 2018.............................................................................53

Figura 31 – in.ven.tá.ri.o (16), 2018.............................................................................53

Figura 32 – in.ven.tá.ri.o (17), 2018.............................................................................54

Figura 33 – in.ven.tá.ri.o (18), 2018.............................................................................54

Figura 34 – in.ven.tá.ri.o (19), 2018.............................................................................54

Figura 35 – in.ven.tá.ri.o (20), 2018.............................................................................55

Figura 36 – in.ven.tá.ri.o (21), 2018.............................................................................55

Figura 37 – in.ven.tá.ri.o (22), 2018.............................................................................55

Figura 38 – in.ven.tá.ri.o (23), 2018.............................................................................56

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Vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia

de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas

neste momento.

Clarice Lispector

(Lispector, 1977/2002: p. 21)

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Problema e cenário de investigação

As teias e os meandros das relações humanas e o nosso contacto com o

universo permitem uma leitura do mundo, que poderá, em primeira instância, ser

considerada uma verdade ou, por outro lado, a intrusão de uma falsa memória, que

parece a quem a transmite constituir o verdadeiro acontecimento. O exercício da

memória não é regular e apresenta espaços em branco e pequenas lacunas que

tentamos preencher com o intuito de gerar novas significações que nos ajudem a

encontrar uma ordem no decurso da nossa existência.

O arquivo, com o intuito de compreender, tende a organizar e a guardar as

efemeridades impossíveis de controlar para sempre, tentando prolongar a existência

do que desapareceu ou do que ainda existe, mas que não se vê com clareza,

reconstituindo ligações e recuperando o que se perdeu no abismo. O objetivo será o de

atenuar a consciência da nossa limitação e finitude, iludindo-nos e desacelerando o

tempo.

A abordagem que aqui se propõe parte dos temas Arquivo e Memória

enquanto modos de criação artística e análise do mundo. São considerados autores

como Michel Foucault, Jacques Derrida, Roland Barthes, Walter Benjamin, Hans

Belting, Georges Didi-Huberman, Geoffrey Batchen e George Steiner, tendo como

base principal as obras originais que são indicadas em cada um dos capítulos desta

dissertação e a análise teórica feita por estudiosos contemporâneos. Para além disso,

são nomeados artistas em que a expressão através do arquivo e da manipulação

fotográfica e fílmica está presente no seu processo de criação. Considere-se para tal,

Lourdes Castro, Daniel Blaufuks, David Hockney e o meu próprio trabalho que,

enquanto designer, passa pela investigação sobre a memória, o arquivo e a construção

e desenvolvimento regular de um arquivo individual constituído por objetos

diferenciados e inusitados, tais como livros, discos, DVDs e fotografias.

Pretende-se também apresentar uma breve análise científica com base na

investigação do Neurocientista António Damásio na área da perceção e da construção

da memória.

A nível prático será mostrado e organizado um arquivo que terá em conta a

minha existência e os objetos colecionados até aos meus 29 anos. Este prevê uma

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organização física editorial, em formato livro e online, através de um website

compostos por textos e fotografias dos objetos que possuo, filmes e livros que vi e li

ao longo dos anos. Além disso, será gravada uma cassete áudio com uma listagem

oral dos vários elementos.

1.2. Composição da Dissertação

A dissertação é constituída por 8 capítulos que pretendem organizar e

estruturar os diferentes temas de um modo claro e relacioná-los com o projeto prático.

Este trabalho será fruto da reflexão e análise daquilo que é escrito ao longo das

páginas desta dissertação, servindo de suporte para uma criação consistente e

conceptualmente balizada.

São também apresentadas as limitações e os resultados obtidos durante a

concretização do projeto e o modo como este poderá ter seguimento e evoluir

assumindo-se como um arquivo aberto e em permanente adição.

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2. ARQUIVO: DEFINIÇÃO E PENSAMENTO

2.1. Propostas para uma definição da palavra

2.1.1. Michel Foucault e Jacques Derrida

Ao contrário do sentido que comummente se lhe atribui, o arquivo ou como

testemunho da sua identidade permanente, ou o conjunto dos traços que

puderam ser salvos de desastre e que de algum modo lhe sobreviveram,

entesourados pelas instituições que registam e conservam os documentos cuja

memória se quer guardar e disponibilizar livremente às gerações vindouras. E

isto não porque o arquivo não possa incluir de facto uma massa documental.

Simplesmente, o arquivo é e o arquivo faz, muito mais do que a sua simples

massa documental parece prometer, enquanto facto bruto, à qual ele nunca

realmente se reduz.

António Fernando Cascais

(Cascais, 2009: p. 110)

Desde o século XIX, que os espaços de arquivo e as bibliotecas, ao abarcarem

massa documental fizeram emergir novos objetos e visões, sobretudo devido às

relações criadas e às possibilidades que o sistema hipertextual de conexões estabelece.

Cada arquivo, pessoal ou coletivo, terá determinadas características e significações.

O arquivo “estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença

dos discursos, a nossa história, a diferença dos tempos, o nosso eu, a diferença das

máscaras. Que a diferença, longe de ser esquecida e recoberta, é essa dispersão que

somos e que fazemos” (Foucault, 1969/2005: p. 10).

Se tivermos em conta uma visão tradicional, percebemos que o arquivo é visto

como um depósito de documentos verbais e visuais e que em potencial remete para

uma história a ser contada de um modo intimamente próximo dos factos ocorridos.

Contudo, o arquivo não é algo inerte que tem apenas como fim reconstituir o

que um homem ou um grupo de indivíduos ou instituição fez ou disse, mas cria sim,

novas relações entre os documentos e materiais disponíveis para que se façam novas

análises e se gere novo conhecimento.

Para além da massa documental, o arquivo é também tudo aquilo que o rodeia

e o que relaciona e organiza cada um dos discursos a si inerentes, de modo a que não

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acabe numa massa amorfa e perdida no tempo.

A apropriação do passado constitui uma base fundamental enquanto

repositório de diversos elementos e a organização de um arquivo potencia o desenho

mental e escrito por parte de um ou mais indivíduos de uma história. Isso acontece

não só com uma fotografia mas também com um objeto que ficou guardado e que

poderá ser maior do que o seu volume aparente.

Além disso, a escolha daquilo que fará parte do arquivo poderá obedecer não

só às crenças de um indivíduo como também ser influenciada por questões

ideológicas ou históricas.

Jacques Derrida em Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana, não

esquecendo os princípios da Arqueologia do Saber de Michel Foucault, transmite as

lacunas inerentes ao arquivo, ao seu caráter não linear e à perda da sua originalidade,

quase como indicava Walter Benjamin e reforça a posição de Theodor Adorno ao

falar da aura perdida dos objetos que se replicam ou neste caso que se espalham no

tempo. A pulsão para acumular, através da recolha, tem como fim revivificar e fazer-

nos viver para sempre, apesar do memento mori que está permanentemente colado a

nós.

Sigmund Freud está presente no mal de arquivo. Jacques Derrida analisa esse

“mal” que é a pulsão de morte, consistindo em algo que elimina os arquivos escritos

de modo a que o processo de arquivamento possa permanecer até ao infinito, já que

de outra forma o arquivo implodiria pela impossibilidade de outras escrituras. Esta

questão, permanentemente atual, é relevante na medida em que a tradição e a história

se constituem sobre o arquivo. Para o filósofo Jacques Derrida, para que o processo

de arquivo possa continuar, existe esse mal de arquivo que apaga os arquivos escritos

impossibilitando essa implosão. Notemos de forma breve, os arquivos da ditadura e

marcas do holocausto, por exemplo, onde são desconstruídas histórias e arquivos

sobre o mal, sendo que a tradição e a história se constroem sobre esse arquivo, que

permite uma nova leitura articulando os seus diferentes compostos.

A própria produção artística abarca os rastos e os vestígios para a criação de

obras de arte, deixando o arquivo de ser apenas algo efémero para tornar-se numa

conceptualização poética da obra de cada autor. A desconstrução e a articulação de

novas interpretações tem, em potencial, uma leitura diversa da história que reescreve

o que já foi dito e/ou escrito.

Deste modo, podemos pensar no arquivo como uma matéria viva e com um

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enorme potencial, devido aos novos olhares que por ele passam, e que o reescrevem

ou ajustam.

É sempre possível observar segundo uma nova perspetiva e construir

narrativas distintas das que nos transmitiram.

Podemos considerar que mesmo o arquivo e o mal de arquivo poderão

encontrar-se e confrontar-se, efetuando trocas e novas visões e esclarecimentos acerca

do mundo. Para Jacques Derrida, os traços inscritos no arquivo e a pulsão de morte,

possibilitaria novas inscrições no arquivo e no nosso tempo que dependem da análise

e condição de cada intérprete.

Conseguimos identificar um paralelismo entre o arquivo e a memória. Por um

lado, a memória é o resultado final de um processo complexo que envolve estímulos

interiores e exteriores que desencadeiam sensações, sentimentos e pensamentos que

são manipulados, ajustados, adequados e finalmente armazenados. Existe uma

distância considerável entre o ambiente onde estamos inseridos e aquilo que

armazenamos sob a designação de realidade. A memória é talvez mais semelhante a

uma construção ou criação do que a uma representação de um mundo que nunca

ninguém viu de forma direta mas no qual todos vivemos, pressupondo que, de facto,

existe algo de material. Por outro lado, o arquivo é também uma criação sujeita a

manipulações, motivadas pelos interesses ou necessidades dos indivíduos com

responsabilidades na sua criação e manutenção.

Desejar que a memória e o arquivo reflitam como um espelho a realidade é

como assistir a um espetáculo de magia crendo inocentemente nas ilusões que nos são

apresentadas.

2.2. O Arquivo Apagado

2.2.1. Jacques Lacan e Sigmund Freud

Durante o último quarto do século XX e o início do presente século assistiu-se

a uma prática de autoanálise fundada na valorização da imagem de si próprio.

Podemos destacar este processo com um culto narcisista, como refere Elisabeth

Roudinesco (Roudinesco, 2006: p. 7). Esta prática de análise através do arquivo que é

construído sobre nós mesmos pode estabelecer uma relação “trágica e inquieta” com o

mesmo (Roudinesco, 2006: p. 7), noção explorada por Jacques Derrida, baseada na

ideia de arquivar tudo o que se conhece ou possui. Ao estabelecer este processo

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poderá ler-se a seguinte constatação da mesma autora:

“(...) se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais

possível: é então substituída pelo arquivo transformado em poder absoluto,

espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído,

a história tende para a fantasia ou delírio, para a soberania delirante do eu,

ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (...).”

Elisabeth Roudinesco

(Roudinesco, 2006: p. 7)

Contudo, o culto excessivo do arquivo poderá resultar num acumular de

elementos que não deixaram a imaginação fluir, levando-nos a pensar a história e a

refletir sobre ela de modo a “suprir a ausência de vestígios”.

É importante notar que o poder da palavra, aquando da ausência de vestígios

poderá ser imponente, através da capacidade e construção interpretativa do

ser humano. Assim, a ausência de rasto ou de arquivo poderá ser também um

exercício de igual poder.

Como exemplo podemos tomar o filme Shoan de Claude Lauzman. Aqui não é

visível um rasto do genocídio. No entanto, a palavra e o testemunho levam-nos,

através da interpretação, a conseguir reviver um determinado momento.

Analisemos agora o caso do arquivo de Freud em que depois da sua morte

existiu a tentativa de esconder o arquivo, ato passível de levantar rumores,

assentando, como escreve Elisabeth Roudinesco, numa “conceção soberana do

arquivo”. Se o fim for o de evitar esta assunção deverá dar-se livre acesso a todas as

pesquisas, evitando “fechar o arquivo aos historiadores” e entregando a “sua história

aos inimigos”, ideia de Lord Acton (Roudinesco, 2006: p. 11).

No que diz respeito ao arquivo, em e de Lacan, a linguagem oral exprime uma

enorme importância, devido à inexistência de notas ou manuscritos para muitas das

suas conferências ou ações de partilha de informação ao longo da sua vida: “Essa

ausência de arquivo, tão tirânica como o excesso de arquivo, é o sintoma de uma

história apagada.”

Lacan passa a ser ele próprio a unidade de garantia de uma história. Deste

modo, ao desaparecer o corpo, parece que Lacan continua a existir pela ideia do “ouvi

falar” e não por dados escritos e concretos deixados por ele.

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Existe aqui uma noção de imortalidade, pelo que Lacan parece continuar a

existir, na medida em que ele é o próprio arquivo, ou seja, a ação de olhar ou ler

marcas suas não se deteta e por isso não é feita uma associação entre possíveis leituras

e o corpo/homem que já não existe. Para lembrar o homem, lembramos o próprio

corpo e a imortalidade do ser. Lacan é assim imortalizado pela fala.

A ideia de terror associada à não existência do arquivo, devido ao poder

associado à devoção de vários seguidores de Lacan, leva à emergência de vestígios

que poderão não ser legítimos. O que está escrito não pode ser certificado pela

história, parecendo, até para as ideias do próprio Lacan, que estamos num sonho, de

ideia pouco fiável e distante do real.

2.3. O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos

Assiste-se no final do século XX e no presente século à ideia de que o sujeito

desprovido de passado ou futuro é confinado à descrição de si consoante a sua

imagem no espelho, superestimando a sua figura imaginária.

Narciso e Édipo são figuras referenciadoras da ideia de individualismo e

glorificação de si mesmos. Narciso não pode aceitar a velhice e o sucesso do outro.

Suicida-se ao tomar consciência de que é o seu próprio objeto de amor. Édipo, perfura

os olhos depois de cometer incesto e inverte a genealogia.

A obsessão por si mesmo é portadora de uma rejeição do outro. Contudo,

manifesta-se um ódio por si mesmo devido à presença do outro em si.

Nos dias que correm, a sociedade atual alimenta o culto de si e o cuidado com

o corpo, tentando afirmar o eu e levá-lo em certa medida ao ideal do sonho

americano. A unificação do mundo por uma economia de mercado leva à ilusão de

uma universalidade enganadora e a uma afirmação narcisista. O eu pretende

diferenciar-se da massa para melhor se adaptar a ela, estabelecendo esta ideia um

paradoxo, tal como também referiu Lacan na sua conferência de 1936 (Roudinesco,

2006: p. 25).

2.4. A Arte Mnemónica

2.4.1. Falar e escrever para desdobrar a alma

Recuemos à mitologia grega para identificar Mnemosina, a deusa da memória.

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Esta deusa oferecia a cada alma um bloco de cera onde eram registados pareceres e

sensações, ou seja, já aqui a ideia de impressão, mesmo que no sentido abstrato e

individual, marcava uma dimensão significativa do processo de memorização,

prolongando um determinado momento. Para Sócrates, quanto maior fosse a

qualidade da cera maior seria a perfeição do registo, evitando enganos tardios ou

dificuldades no reconhecimento da gravação de uma memória. A memória impressa

na cera determinaria o saber.

Sócrates não ditou ou escreveu. Para ele a transmissão de ideias baseava-se

sobretudo na oralidade e na presença de duas ou mais pessoas. Até o mais abstrato

dos pensamentos supunha a capacidade de uma “textualidade muda” (Steiner, 2006:

p. 11).

Para Platão, o sábio teria a capacidade de reconhecimento e análise

verdadeiros e puros. A analogia da gravação na cera relacionada com o advento da

escrita, e que para Toth seria o remédio para a perda de memória, significaria para

Tamus um perigo, na medida em que previa o esquecimento devido à falta de

exercício da memória, ou seja, a escrita consistiria numa memória morta, por ser

exterior à alma do homem (Babo, 2009: p. 47):

(...) mas há muito tempo que não exercito a minha memória, por isso me

abandona ela facilmente. O que acontece aos livros cujas folhas se colam

quando não as manuseamos é, penso eu, o que me aconteceu. É preciso

desdobrar a alma e remexer continuamente tudo o que nela se armazenou a

fim de ter pronta essa riqueza de todas as vezes que a necessidade o exige.

Séneca

(Carta 72 a Lucílio, p. 786)

Deste modo, a memória exercitada torna a trazer ao presente, mais facilmente,

o passado e a lembrança.

Platão desaprova o uso da escrita por considerá-la potenciadora de preguiça

cerebral. No entanto, podemos considerar que a escrita terá em potencial a capacidade

de prolongar o que somos, mesmo depois do nosso desaparecimento. O arquivo será a

concretização externa da nossa memória, que permitirá reter traços individuais ou

coletivos de uma cultura e estender o passado ao nosso presente, com maior ou menor

fiabilidade, tal como referia Paul Ricoeur, ao indicar que o arquivo é um modo de

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analisar o passado, podendo ocultar ou deixar ver certos factos, devido às ações de

reunião de fragmentos e reconstruções realizadas ao longo do tempo sobre

determinados acontecimentos (Babo, 2009: p. 50).

Quando o homem desenvolve uma autobiografia, o texto não estará livre de

lacunas e de um caráter fragmentário e disperso, na medida em que olhando para a

nossa própria narrativa, a ação passada é reescrita e são preenchidos os espaços em

branco que não conseguimos observar com clareza imediata.

Consideremos que mesmo um texto ou documento sem autor, como uma

memória de ninguém, torna-se uma memória coletiva e partilhada, imensa em

potencial, e a escrita permitirá fixar a experiência de forma atemporal e que pode ser

partilhada fora do lugar onde aconteceu o ato vivido, na medida em que o texto e o

sujeito não têm que estar permanentemente ligados.

A resiliência na preservação de um tempo, tende a querer reter a existência e a

humanidade, mesmo depois de desaparecida cada uma das almas que a compõem. A

história é contada não apenas com base nos suportes originários do registo mas no

arquivo total que vai sendo construído, ampliado e reproduzido.

Se voltarmos a Freud, Jacques Derrida explica que a psicanálise subverte a

ideia de arquivo, na medida em que através dos atos de repressão ou supressão a sua

organização e estrutura são delineados.

No arquivo que construo também faço isso. Já rasguei e destruí numa ânsia e

esperança de esquecer o tempo da imagem ou do texto. Existem memórias

persistentes e inesquecíveis que queremos negar, ateando fogo ao que nos pesa e ao

que queremos ver longe numa espécie de nébula.

2.5. Tempo, Memória e Esquecimento

2.5.1. George Steiner

A cultura oral terá a capacidade de reatualizar as memórias e o livro autoriza

formas de esquecimento. A troca oral permite um confronto direto de opiniões,

enquanto o livro poderá permanecer em silêncio, até ser aberto e dissecado. Ao

memorizarmos teremos o gesto e as palavras dentro de nós, tornando o nosso ser mais

complexo e capaz de relacionar os vários tempos, mesmo quando estamos sozinhos

num terreno baldio sem qualquer livro ou objeto para nos auxiliar.

Existe apenas o céu e a terra e, tal como a vida é efémera, assim será o nosso

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conhecimento, se não for praticado nem atualizado.

Na Grécia Antiga e em Roma o tempo livre era celebrado como parte

fundamental do progresso civilizacional. Contudo, atualmente a passagem do tempo é

encarada de outro modo. Existe uma pressão substancial no sentido de aumentar a

produtividade e a competitividade, de modo a evitar o título de indivíduos pouco

produtivos, melancólicos ou depressivos, que se dedicam à reflexão, à escrita, ou à

criação de objetos artísticos. No fundo, a pensar no tempo que passou e a projetar

calmamente um futuro através do objeto criado.

Hoje, como detentores de arquivos e bibliotecas individuais poderíamos ter

mais tempo para, em silêncio, pensar e descobrir cada uma das páginas do livro e da

nossa mente, estimulando a nossa memória e a procura de relações. Contudo, “vamos

matando o tempo, em vez de nos sentirmos à vontade dentro dos seus limites”

(Steiner, 2006: p. 28).

Importa no meu trabalho categorizar e tentar perceber o que vejo, num esforço

constante para conquistar esse mesmo tempo, perdido.

2.5.2. Aby Warburg

Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim cheio de

plantas, e como um tanque cheio de peixes. Mas cada gota dos seus humores é

ainda esse tal jardim ou esse tal tanque. (...) Porque todos os corpos estão

num fluxo perpétuo como ribeiras, e neles entram partes e deles saem

continuamente.

Anabela Mendes

(Mendes, 2012: p. 94)

Depreendemos que Aby Warburg é um “minucioso investigador de imagens”,

(Mendes, 2012: p. 93) relacionando de modo demorado várias obras.

Ao analisarmos a importância do fragmento nas composições de Warburg,

focamos o nosso olhar na criação de um atlas e de um álbum da memória, Der

Bilderatlas Mnemosyne (Mendes, 2012: p. 94). Ao relacionar várias imagens,

Warburg constrói um mapa de memórias que traduz as transformações e a origem da

cultura europeia. Neste mapa, a noção de hierarquia dos elementos é descartada

devido ao modo como são dispostos os elementos num suporte conjunto. É defendido

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que a forma como a nossa experiência cultural é analisada deverá ser apreendida

tendo em conta vários elementos e não apenas a análise isolada de cada um deles. Ao

serem confrontadas as várias perceções do presente e do passado, nascem novos

significados das obras artísticas.

Ao analisar um conjunto de elementos que poderão relacionar-se com uma

noção de hipertexto, Warburg propõe “uma estrutura interpretativa aberta a diferentes

relações recíprocas geradoras de um novo espaço crítico que rejeita as noções de

hierarquia cultural ou de génio artístico” (Mendes, 2012: p. 95). Cada suporte criado

por um determinado autor traduz-se na apreensão que cada um faz da experiência e

reflexões passadas, com a motivação de gerar uma afinação da identidade no presente.

Warburg aponta o Renascimento como o primeiro momento de retorno ao

passado e de relação com o período clássico, com o intuito de construir uma nova

identidade cultural, reinterpretando o que já passou.

Para a edificação de uma identidade surge o conceito de Denkraum (Mendes,

2012: p. 99), ou seja, um espaço de maturação onde são analisados os códigos para

reinterpretação do significado dos objetos. As obras de arte são como identidades e o

artista tende a selecionar e encontra dados relevantes que geram um novo objeto.

“A preservação dos espaços históricos e o distanciamento entre sujeito e

objeto, compreendido no conceito de Denkraum, possibilitam a apreensão crítica das

heranças passadas e estimulam a sua transmutação” (Mendes, 2012: p. 99),

possibilitando um novo conhecimento. A criação de um espaço de discussão crítica

corresponde para Warburg ao ponto necessário para o desenvolvimento civilizacional.

Nos tempos que correm, a quantidade de referências, devido ao número de

extensões tecnológicas, aumentam o espaço de arquivo que temos ao nosso dispor. A

rede de ligações torna-se mais complexa e existe um número de correspondências

mais alargado. Esta situação leva os artistas a criarem novos significados e relações

do seu corpo com um mundo constituído por fronteiras geográficas frágeis e

facilmente transponíveis:

O artista lida com as circunstâncias que o presente lhe oferece de modo a

torná-las parte de um mundo duradouro. Ele capta o mundo em movimento.

(...) A modernidade dos nossos dias estende-se às práticas culturais do

faça-você-mesmo e da reciclagem, à invenção do dia-a-dia e ao

desenvolvimento do já experimentado, que não são assuntos menos

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merecedores de atenção e análise do que as utopias messiânicas e as

novidades formais que tipificaram a modernidade de ontem.

Nicolas Bourriaud

(Mendes, 2012: p. 100)

O espetador interpreta criticamente o que cada obra para si representa com o

fim de estabelecer ligações com o nosso tempo, problematizando-o.

Podemos comparar o pensamento de Warburg e Goethe, que tinham a palavra

polaridade como método de estudo na medida em que oposições e ligações entre

elementos coincidiam na estrutura de um pensamento crítico sobre o que observavam.

A montagem visual através da justaposição de imagens de épocas diferentes

permite relacionar diferentes tempos, que acabam por ser vistos simultaneamente em

cada prancha do atlas, intuindo uma ideia de movimento que é lida pelo espectador.

Rancière defendia que “uma imagem nunca está sozinha” (Batista, Juliana

(2014): p. 29) sendo o seu sentido criado quando combinado com outras imagens.

Essa comparação é permitida pelo espaço que separa os dois elementos, criando

relações de semelhança ou diferença. A memória surge neste espaço, sendo esse

intervalo “o hiato dos anacronismos (...) e a malha de buracos da memória” (Didi-

Huberman, 2002: p. 504-505).

No projeto prático que desenvolvo, que se materializa em parte na criação de

um livro e de um website, também são criados mapas de imagens e sobreposições que

tendem a querer relacionar os vários elementos observados.

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3. A PRÁTICA DO ARQUIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA

3.1. Arte, Registo e Arquivo

Para Hans Belting a sedução das imagens mais antigas é justificada pela

“torrente de imagens que inunda o nosso quotidiano visual convidando-nos a

contemplar as imagens mortas de ontem com os olhos de veneração e lembrança”

(Blaufuks, 2014: p. 19).

Geoffrey Batchen defende que a atração pelas marcas passadas incita à criação

de um arquivo de modo a tentar reduzir os efeitos da perda do que passou.

As imagens e os textos recuperados e reunidos serão passíveis de novas

significações, tentando atenuar a inquietação permanente do pensamento face à

existência e à efemeridade dos atos e dos dias. A apropriação tenderá a criar uma

nova obra e o artista, ao esvaziar o sentido original do objeto, cria sentidos até então

desconhecidos. Os “arquivos mortos” (Arantes, 2015: p. 131) são material de trabalho

para algo que de outro modo ficaria velado pelo decorrer da história.

A vida manifesta-se na obra de arte e cada época assume uma plasticidade e

modo de fazer e agir próprios (Kadinsky, 1954/2010: p. 21).

No livro ou objeto que desenvolvemos enquanto lugar e espaço fundo, somos

livres para experimentar. Para Lourdes de Castro a experimentação era sempre feita

estreitamente com a sua própria vida e eu sinto o mesmo ao fazer crescer o meu

arquivo e ao torná-lo algo mutável, sempre com o fim de desenvolver-me e saber mais

(sobre mim própria). Lourdes de Castro procura através da sombra e do seu contorno

o elemento essencial de cada gente e de cada objeto, que um dia se perderá, pela

fragilidade da vida e do corpo. Contudo, o caráter breve da existência parece ser

compreendido e o mundo pode assim ser salvo, enquanto cada um de nós continuar a

existir.

Os livros e as obras de Lourdes Castro são “laboratório de imaginação” (Pires

do Vale, 2008: p. 329) onde o quotidiano está presente e a ele é dada grande atenção.

A apropriação de materiais de arquivo para nos compreendermos e

iluminarmos induziu a ideia de criação nos artistas primitivos, quando criaram em

resposta a uma necessidade interior e de acordo com a pureza dessa mesma

necessidade.

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O artista produz um objeto ou fenómeno que originalmente apenas consegue

relacionar com algum estado interior. Recorrendo aos sentidos, o observador recolhe e

transforma os sinais recebidos. Neste processo, eventualmente, o estado interior do

artista poderá ser construído no mundo interior do observador. Através da

materialização de sensações a arte abre a possibilidade duma verdadeira comunicação

entre os seres humanos:

A nossa alma possui uma fenda que, quando se consegue tocar, lembra um

valioso vaso descoberto nas profundidades da terra.

Wassily Kadinsky

(Kadinsky, 1954/2010: p. 22).

3.2. O Arquivo e a Cultura Digital

A internet pode ser considerada um arquivo, remetendo para a ideia de infinito

e desenvolvido por um número incontrolável de indivíduos, parecendo ser a perda e a

dispersão mais comuns e frequentes devido ao seu caráter insofreável.

Hoje em dia, a prática do arquivo, quando analisados os desenvolvimentos

tecnológicos e a dinâmica das redes sociais online, trouxe uma difusão em grande

escala de arquivos pessoais, constituídos por fotos ou vídeos.

Parece existir, ao contrário do que Daniel Blaufuks continua a fazer, um

desvio quase total da fotografia analógica e da perceção efetiva do envelhecimento

dessas imagens.

A ânsia por querer mostrar virtualmente grande parte das nossas vidas, cria

álbuns diversos e de dimensão incontrolável em cada computador pessoal.

Por outro lado, a potencialidade da web tem permitido também o contacto com

textos e imagens pertencentes a acervos ou arquivos de bibliotecas e publicações

raras, através da digitalização de acervos, como os encontrados online e respeitantes à

nossa Biblioteca Nacional.

Contudo, apesar da “democratização da informação” (Arantes, 2015: p. 173),

é importante pensar na preservação dos materiais que estão disponíveis. A

digitalização de documentos permite o acesso fácil à informação mas não terá a

capacidade total de substituição do documento original, pois alguns suportes digitais

são frágeis e correm o risco de perderem a sua capacidade de uso.

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Com arquivos de dimensões antes inimagináveis, prevê-se a necessidade de

definir metodologias e ferramentas de acesso adequadas, prevendo uma correta

utilização desses meios e organização permanente, devido à constante adição de

material em cada um dos arquivos.

Existem múltiplos cenários e paisagens que moldam a nossa experiência

enquanto sujeitos ativos de uma determinada cultura. Esta ideia leva a uma

inquietação devido à dificuldade de absorção de um todo que aparenta ser infinito,

sendo que a técnica acaba por se tornar mais rápida que a cultura (Stiegler, 1994: p.

15). Assim, a tecnologia digital interfere na forma como guardamos e acumulamos

informação e no modo como apreendemos as características de uma cultura.

A internet ou as nuvens são deste modo elementos de análise forçada devido à

sua introdução massificada nas várias culturas que são objeto de estudo. A

massificação da tecnologia digital é um ponto de primazia aquando da tentativa de

compreensão de um passado que nos é próximo, visto relacionar-se, obrigatoriamente,

com aquilo que agora somos. O objetivo será o de perceber em que ponto do mundo e

em que estado nos encontramos.

A transição de arquivos analógicos para arquivos digitais transforma os

arquivos codificando-os numa mesma linguagem, independentemente da sua

natureza, colocando-os em bases de dados e disseminando-os de forma incontrolável.

Manovich define as bases de dados como uma lista não ordenada e não hierarquizada

de elementos de leitura não contínua (Fernandes, 2015: p. 29). A memória passa a

estar em permanente atualização pois a internet consiste numa adição constante de

informação sobre nós próprios e sobre os outros, quase de modo incontrolável.

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4. FOTOGRAFIA COMO SUPORTE DE MEMÓRIA INDIVIDUAL

E INVISÍVEL

4.1. A objetividade fictícia da imagem

4.1.1. Fotografia e Simulacro – A Sombra

Algumas fotografias provocam em nós, mesmo sem vivermos o acontecimento

na primeira pessoa, espanto e empatia, entrando na nossa vivência e relacionando-se

com aquilo que somos: pós-memória (Rosengarten, 2012: p. 13-15).

Ao simularmos um acontecimento através de uma imagem, tentando proteger

um indivíduo, devido ao potencial impacto dessa imagem, surgem imagens

danificadas em que algo se perdeu e ficou apenas na memória de alguns. Isso é

comum em episódios de enorme trauma coletivo, como o Holocausto, ou de situações

individuais ou familiares que provocaram marcas e danos na infância e que remetem e

influenciam posteriormente a vida adulta de uma pessoa ou de um grupo.

A fotografia tem uma sombra que é a de embalsamar o tempo (Rosengarten,

2012: p. 13-15). Contudo, esse tempo pode ser deteriorado e manipulado.

O arquivo, ao não abarcar apenas a fotografia, fará uma análise mais ampla do

passado, da morte de um tempo que se sabia um dia vir a ser analisado no futuro. A

nostalgia do arquivo e da fotografia convertem-se numa devoção e numa procura

constante daquilo que somos, através do nosso passado e do passado dos outros,

mesmo que seja através de um processo de empatia e de reconhecimento naquelas

imagens.

Uma fotografia com legenda pode refletir um significado manipulado e não

verdadeiro, o que se pode traduzir em variadas interpretações construídas por um ou

mais sujeitos. A fotografia apresenta continuidade e não apenas o possível tempo que

lá é visto. Existe sempre um antes e um futuro que podendo estar mais ou menos

camuflado acabaremos por criar e ver. O que vemos não é apenas a mulher e o

homem de mãos dadas ou a família aparentemente feliz no jardim, que deixou de

sorrir depois do disparo da câmara. A possibilidade de engano é tão ampla que

dificilmente conseguiremos ver a verdade. Mesmo quem faz parte daquele momento

fotografado, terá dificuldade em provar se os sorrisos eram ou não verdadeiros.

A família sorri sempre. Por isso, a mim provocam-me maior encantamento as

fotos com rostos melancólicos, porque acredito que o mais difícil e corajoso é assumir

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a tristeza e a fraqueza que nos corrói em certas alturas.

Somos o que está na nossa cabeça e nunca conseguiremos interpretar o outro e

a sua presença por completo. Aquilo que existe é o que eu conheço, o que fotografei e

o que li e apenas isso poderá continuar a existir para ser visto por outros, mesmo que

eu desapareça. A vida continuará depois de cada um de nós partir, apesar do arquivo e

da nossa sombra poderem ou não continuar ativos, como escreveu Alberto Caeiro,

heterónimo de Fernando Pessoa no poema, “Quando Vier a Primavera”:

Quando vier a Primavera,

Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira

E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.

A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria

E a Primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.

Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.

O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro

(Pessoa, 2015)

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Consideremos duas pessoas que recordam uma experiência em comum, mas a

forma como o fazem difere. Acabamos em muitos casos por ser esclarecidos pela

memória do outro e essa vivência leva-nos a recordar o que julgávamos esquecido.

No caso da fotografia, esta funcionará como um organizador do caos inerente

à nossa memória, emitindo pistas que tentam clarificar acontecimentos passados.

Mesmo podendo tratar-se de uma encenação, olho para uma imagem e

reconstruo um momento, elaboro através da memória uma estrutura segura para o

decorrer dos acontecimentos, algo a que possa apegar-me e tomar como verdadeiro.

As imagens que fazem parte de um arquivo conduzem-nos à busca da verdade, ao

conhecimento de um “Eu”, analisando a sua memória através das próteses, que são os

objetos que o individuo possuía. Essa verdade e realidade, talvez possam ser

ficcionadas, mas são sempre reveladoras de uma história.

4.1.2. O tempo atua sobre a paisagem

“Choveu sem parar durante três dias. A paisagem alterou-se.”

Daniel Blaufuks

(Blaufuks, 2008: p. 21)

Somos diferentes a cada dia que passa. Arquivar e calendarizar a vida poderá

ajudar-nos a compreender e a percecionar melhor essas mudanças. Contudo, se

orientarmos esse ato de arquivar para objetos que apresentam largas e variadas

compreensões, como bilhetes de comboio, fotografias, recortes de revistas, livros ou

DVDs, será que estaremos a ver o outro na sua plenitude ou para isso o arquivista terá

de agarrar numa caneta e escrever a cada dia os pensamentos e sensações que o

tomaram e que se relacionam com os objetos guardados?

Às vezes percebemos uma chamada dos objetos para que lhes seja dada uma

interpretação, fazendo simultaneamente uma leitura da pessoa associada a estes

pedaços de papel e a nós mesmos. Os papéis e as fotografias podem parecer

desprovidos de significado mas ajudam-nos a perceber o que somos, ao tentarmos

encontrar um caminho para o outro que continua ligado ao objeto mas já desapareceu.

As imagens permanecem, depois da vida terminar. Quem arquiva, pretende significar

a sua própria existência, dar-lhe um caminho, tentando encontrar um equilíbrio e um

sentido para a sua continuidade. Ao registar fotografando, filmando ou escrevendo

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aquilo que faço e vejo, terei a sensação de ter intensificado essa experiência, pensando

no agora, mas vivendo na eternidade, na medida em que o registo terá como fim a

análise póstuma, assente mais tarde (na eternidade) do que já aconteceu.

A memória é como um espelho, um espaço fundo onde projetamos a nossa

densidade infinita e eterna enquanto a nossa existência o permitir.

A paisagem não é apenas aquilo que lá está mas sim o que o sujeito constrói.

Assim, o sujeito dará sentido ao que observa através do ponto de onde observa e sobre

o qual se fixa para o contemplar. Ao ver duas vezes a mesma paisagem, o sujeito é

forçosamente influenciado pelo passado, pela recordação primeira que tem desse

lugar ou estado. O que se viu não se esquece e não é passível de ser neutro e deixar de

influenciar o presente.

4.1.3. A imagem projetada

Às vezes descubro a foto que está à minha frente, recuando para isso no

tempo, na minha memória, de modo impercetível para quem está ao meu lado.

A fotografia confirma uma existência, volta a trazer o morto. Interessante

pensar que olho, por vezes para uma fotografia na tentativa de encontrar

aquilo que não lembro de mim próprio, a minha presença anterior. A

conservação da vida que desapareceu e não tem mais movimento. Na foto

posso ver o que foi e talvez o que será.

Roland Barthes

(Barthes, 1980/2008)

O gesto de acumular e de procurar um sentido são para o arquivo fotográfico

um dos seus fins. A procura de vida para lá da sua efemeridade é feita através das

histórias, verdadeiras ou não, e do espaço invisível de cada uma das fotografias

guardadas e que representam o que um dia foi visto por outro. O processo de olhar é

complexo, o de ver será ainda mais, consoante a alma que pretenda decifrar e

prolongar a existência da imagem.

As fotografias levam-nos a ver os olhos que viram o imperador e o próprio

imperador (Barthes, 1980/2008: p. 11). A espontaneidade, e o seu oposto, ou seja, o

artifício da imagem fotográfica, criam uma pose que pode não corresponder a uma

verdade, criando um novo corpo, que à espera de ser fixado, reage particularmente,

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não sendo neutro. O eu aparece camuflado por outro eu, como se quem fosse

fotografado tivesse uma nova identidade.

Quando a câmara se dirige ao sujeito, este é vários, é aquele que pensa ser,

“aquele que eu gostaria que os outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo

julga que sou e aquele de quem ele se serve para exibir a sua arte numa espécie de ser

desprotegido” (Barthes, 1980/2008: p. 21-22).

Podemos também referir o estranhamento e a inquietação definidos por Freud

devido ao caráter irrecuperável do tempo que se manifesta estático na fotografia. A

fotografia inquieta, provoca e assiste a um questionamento do que quererá ser dito.

A revolta de uma imagem é conseguida quando induz o pensamento, quando a

fotografia é pensativa e faz divagar o nosso cérebro entre o recuo e a prospeção do

futuro.

Ao olharmos para uma fotografia, a verdade dessa imagem é sentida de acordo

com o nosso próprio passado e antecedentes, acordando a sua memória, mesmo que o

objeto ou pessoa representados, não sejam familiares, fazendo despertar sensações

que se relacionam com a existência.

A verdade da fotografia, apesar do caráter estático dela, torna-a viva, levando-

nos a recordar para não esquecermos o tempo (perdido). Ao olharmos para uma

imagem, recordamos sentimentos deixados naquele instante, envolvemo-nos, dando

uma nova dimensão à nossa história. Por outro lado, a memória individual parece

perder-se quando desaparecemos. Ainda assim, ao pensarmos que o registo passará

para outros olhos, acabará certamente por restituir um pouco daquilo que era a nossa

vida, quase numa tentativa de recuperação da alma perdida.

Marcel Proust "desconfiava da fotografia" (Blaufuks, 2014). Para ele "a

imagem da fotografia arrefecia a densidade e a temperatura da expressão humana, a

energia ou o sentimento da sua gestualidade irrecuperável e isso constituía o seu

pecado mortal".

Para David Hockney, na fotografia o tempo escasseia. A fotografia é

rapidamente captada, mas o observador demora-se muito mais na sua análise. Alguns

dos seus trabalhos tentam precisamente alongar o tempo da imagem, dando-lhe a

ilusão de movimento e incitando o observador a ver mais longe, a percorrer a sua

própria memória através daquilo que observa.

Daniel Blaufuks trabalha material fílmico resgatado, recontextualizando-o e

incitando o espectador a pensar sobre uma memória que, mesmo não sendo

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diretamente a sua, o fará refletir com maior ou menor profundidade sobre a existência

de um tempo. O arquivo relançará a memória, levando o espectador a percecionar o

espaço e a história que direta ou indiretamente se projeta à sua frente.

Pensar que a fotografia camufla ideias e estados torna o homem inquieto e

desconcertado, suspeitando daquilo que observa. Essa estranheza, mas também

intimidade, que são conquistadas ao olhar para uma imagem fazem o nosso cérebro

divagar e imaginar uma extensão daquilo que é mostrado, como uma escultura

expandida que se prolonga infinitamente.

São reconstituídas ligações entre o que se vê e o que se imagina. O que já não

existe é tido como atração principal e daí a razão para arquivar e tentar preservar a

perda. Reler o que se passou e analisar os seus veios permite uma recuperação,

mesmo que parcial, de outro tempo. O que se pretende é criar novas significações

através de diferentes registos que permitirão, pelo menos em tentativa, perceber o que

ficou lá atrás, o que é efémero e temporal.

A atração pelos materiais de arquivo, tais como cartas, filmes, fotografias ou

objetos é para mim explicada do mesmo modo como Daniel Blaufuks explicou: o

envelhecimento das coisas. Com o arquivo digital o mesmo não acontecerá. A

fotografia terá no futuro o mesmo aspeto, apesar do ser ou da coisa fotografados ter

envelhecido ou desaparecido, ou seja, o acompanhamento do estado da coisa não

ocorre com a mesma velocidade no mundo analógico e no digital. A internet consiste

num arquivo, que parece infinito, incontrolável e intocável. A perda e dispersão no

arquivo digital parecem ser mais comuns e frequentes (Blaufuks, 2014: p. 89).

Quando nos apropriamos de uma fotografia é gerado um ou vários sentidos e

significações. Um modo de ver particular e individual que pode ser, ou não, comum

aos demais. A fotografia como documento, instiga a sensações que resultam da

informação sobre o que ela representa mas principalmente sobre o que o nosso

cérebro cria ao observá-la, influenciado pelo contexto no qual existimos.

Para Daniel Blaufuks, assim como para mim, existe uma tentativa de recordar

quem desapareceu e não teve até então oportunidade de ser lembrado, auxiliando-me

para isso da fotografia e do texto do arquivo que construo. É uma obrigação inquieta

mas prazerosa tentar trazer todos os tempos para o presente, atenuando a certeza do

nosso fim. O desenvolvimento de um arquivo individual passará eventualmente, mais

tarde, a constituir uma herança coletiva.

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5. O LIVRO E A LITERATURA: SILÊNCIO E/OU CLARIDADE?

5.1. Arquivo, Livro e Hipertexto

5.1.1. O formato do livro

O livro é um espaço de experimentação e reflexão e um exercício interior de

capacidade de exteriorização de angústia e diálogos invisíveis e abstratos. A vida

pessoal é transversal a tudo aquilo a que se propõe.

A partir do século XVI, Aldo Manuzio dá ao livro um formato mais pequeno,

tornando-se a relação do leitor com este objeto mais próxima, íntima e demorada. As

transformações substanciais no formato do livro, operadas entre 1500 e 1800,

permitiram comparar diversas observações sobre o mesmo tempo.

O leitor oitocentista, com a acumulação de papel impresso, recorta, arquiva e

cria coleções privadas, verificando-se a acumulação de jornais, revistas ou catálogos.

Estes objetos podem mais tarde voltar a circular e a serem reapropriados.

As bibliotecas privadas do século XIX formam uma estrutura complexa com

materiais diversificados, podendo gerar leituras fragmentárias e desconexas, partindo

para o discurso da hipertextualidade.

O homem, devido à enorme oferta de material impresso, cai num processo em

que procura uma certa ordem no seu arquivo, colando fragmentos de várias

proveniências e gerando assim uma estrutura particular e de ordenação do discurso

(Metalivro - Bártolo, 2009). Através da apropriação e absorção do material recolhido

através do sublinhar, recortar, reconstruir e acrescentar notas, o indivíduo lê, relê,

reescreve e preserva (Bártolo, 2009: p. 121).

A reapropriação de objetos e papéis criados noutro tempo, justifica em grande

parte o meu trabalho e aquilo que lhe dá consistência. A minha biblioteca privada vai

crescendo e as ligações entre os vários elementos da estante cruzam-se e por vezes

levam-me a não precisar de sair deste espaço. Reúno para relacionar e para tentar de

algum modo ter “toda a memória do mundo” (Blaufuks, 2014: p. 13), aqui dentro.

5.1.2. Hipertexto: Conexões físicas e digitais

5.1.2.1. A impossibilidade de sermos esquecidos?

Ted Nelson entendia o hipertexto como escrita não sequencial. No que

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respeita ao desenvolvimento de arquivos e à palavra hipertexto, hoje, o leitor

contemporâneo enuncia, observa e faz falar o texto e os objetos que preserva e

relaciona no arquivo.

Hoje em dia, pensar no esquecimento eterno, tal como referia Marco Aurélio

(“aproxima-se o tempo em que terás esquecido tudo, aproxima-se o tempo em que

serás esquecido por todos” (Furtado, 2009: p. 54)) parece irreal quando lembramos a

atualidade digital e a facilidade que temos em deixar o nosso rasto, de modo às vezes

irrefletido, e que poderá ser visto por outros que não sabemos quem são. Os papéis,

fragmentos, fotografias ou outros documentos permitem, assim o homem queira, criar

ou reconstruir uma verdade que se sobreporá ao esquecimento e à efemeridade de

cada ação.

A palavra documento, do latim «documentum», significa originalmente

ensinar, podendo designar também a própria coisa que mostra ou representa. No

mundo digital os documentos presentes no arquivo deixam de ser puramente estáticos

e amovíveis para se tornarem também móveis e de circulação fácil, ao contrário, e

como compara José Afonso Furtado ao escrever: "das paredes das cavernas em que a

humanidade deixou as suas marcas" (Furtado, 2009: p. 57-59). Por outro lado, esta

facilidade de movimento do arquivo induz a uma mutação quase permanente,

podendo o documento constituinte do arquivo, chegar às mãos do leitor não

exatamente como foi produzido.

A memória surge como um suporte de armazenamento e os ecrãs e outros

dispositivos digitais consistem em suportes de visualização voláteis (Furtado, 2009).

Antes de existirem registos escritos, as palavras faladas deixavam um rasto

temporário, na medida em que permaneciam no cérebro de cada um de forma mais ou

menos consciente. A fixação da memória de forma durável é uma das bases principais

do Arquivo, sendo, desse modo, aparentemente mais fácil a tentativa de preservar e

reproduzir a memória.

Importa, para o desenvolvimento do meu arquivo pessoal, pensar neste gesto

de reunir fragmentos que comunicam entre si, apesar da distância que os separa na

caixa ou no álbum de fotografias, podendo essa ligação ser direta e racional ou uma

ligação subjetiva e que surge das minhas características individuais. Um dos objetivos

será sempre o mesmo: fazer alguém viver para sempre ou enquanto eu existir e não

tiver destruído o elemento que se associa a uma vida ou a um momento, isto porque

naturalmente objetos e artefactos duram muito mais tempo, fisicamente, do que as

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pessoas.

5.2. O Diário e o Fragmento

Diga-me uma coisa: você pensa no teu futuro?

A pergunta ficou por isso mesmo, pois a outra não soube o que responder

Clarice Lispector

(Lispector, 1977/2002: p. 71)

Aquilo que é escrito ou verbalizado é fruto de uma tensão entre o

esquecimento e a lembrança de um acontecimento, e a verdade é algo interior,

solitária e inexplicável.

O escritor escreve porque existe e para existir com o objetivo de ocupar o

tempo e dar-lhe um sentido (Godinho, 2009: p. 105).

Quando somos incapazes de descrever o que vemos, emendamos, criamos

fragmentos e conjuntos de papéis e diários, apropriando-nos de espaços brancos a

serem preenchidos com névoa, por incapacidade de descrição concreta de uma

realidade.

O passado que eu evocava parecia irreal, como uma cena que se passasse

num palco e a que eu assistisse como espectador na última fila de uma escura

galeria. Mas tudo era muito claro, apesar da distância. Não era nebuloso,

como a vida que se está vivendo, cujos contornos perdem em precisão graças

ao incessante tropel das impressões, mas nítido e destacado como uma

paisagem a óleo pintada por um paciente artista do apogeu da era vitoriana.

Somerset Maugham

(Maugham, 1930/?: p. 46-47)

No entanto, toda a descrição terá uma relação com o autor, um sentido dado

por quem escreve, podendo este ato solitário ser incompreendido por outros mas

levando a uma libertação e quietude do espírito do autor.

Para Vergílio Ferreira escrever servia para organizar o real, mostrar-se a si

mesmo, olhar-se no espelho e eventualmente entender-se, como tentou também a

escritora Clarice Lispector.

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Para o escritor, entender a vida era o principal propósito da sua existência. Nas

várias obras que escreveu a “aparição de si a si próprio é uma revelação que abre um

passado primordial, anterior ao próprio nascimento da personagem” (Godinho, 2009:

p. 107).

Escrever a vida para preencher ausências e desencantos próprios da existência

imperfeita e crua, e analisar o olhar dos mortos que invadem o presente é na sua obra

uma constante. A escrita de diários e fragmentos assume-se como uma forma de

conservar e de não deixar invadir o que já foi presente.

5.3. Todos os escritores do mundo

5.3.1. A Escrita e o Medo – Roland Barthes

A única paixão da minha vida foi o medo.

Thomas Hobbes

(AA.VV., 1982: p. 161)

Os livros são portadores de uma história, são um arquivo físico que pode ter

um fim e que pode ser alvo de destruição.

A escrita precede o medo. O escritor deambula, agarra o material da escrita e

pretende ser salvo. Quando selecionamos e organizamos vários blocos de livros para

cada capítulo que iremos escrever e rever, não estamos preparados para toda a

angústia revelada pelo ato infinito que assumimos. Mesmo depois de escrevermos a

palavra “fim”, a dispersão na nossa mente será constante.

Sublinhamos, marcamos outros livros e arquivos, criamos as nossas leituras e

a tentativa, parece-me ser sempre a mesma, reconhecer a efemeridade da vida e, ainda

assim, dar-lhe mais tempo, através do conhecimento que adquirimos e do modo como

ocupámos o tempo, a ler ou a aprender o que outros, escreveram para viverem para

sempre.

Roland Barthes (AA.VV., 1982: p. 162), refere uma espécie de terror e de

aborrecimento traduzido num discurso previsível e comum, sem nada de novo, mas

que poderá estar lá, e o escritor não conseguir livrar-se dele.

A minha repugnância, que é afinal um medo em reler os meus livros

passados... O pânico depois de ter lido certos textos.

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Roland Barthes

(AA.VV., 1982: p: 163)

O medo de voltar atrás, de abrir a caixa fechada e finalizada remete para o

arquivo, para o que foi dito, escrito ou fotografado e deixado para um dia ser reaberto

e relido. No caso da fotografia, a morte estaria, sobretudo na «imagem que produz a

Morte querendo conservar a vida»: a Fotografia (AA.VV., 1982: p: 163)

No livro A Câmara Clara, Roland Barthes explica o que já não é, o medo que

deixou de ser por já não existir e o já não ter nada para dizer, que acontece ao olhar

para a fotografia do morto, ou para o texto que deixou escrito e só será ouvido na

nossa mente.

Após a consciência desta análise, Barthes foca-se na escrita, nas línguas

mortas, no latim e no grego, para continuar a progredir e não cair no aborrecimento.

Assume que podemos descrever tudo, exceto a morte.

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6. A MEMÓRIA – BREVES CONSIDERAÇÕES CIENTÍFICAS

O nosso cérebro guarda o que está a acontecer dentro dele quando temos

determinada experiência.

O momento de recordar, consiste em viver a experiência não só

metaforicamente mas com ansiedades semelhantes, pânicos ou sentimentos de bem-

estar associados à experiência recordada.

Amanhã, quando recordarmos o passeio que fizemos hoje, voltaremos a ter

presente os sentimentos originais, ou seja, a memória será como uma aproximação da

ideia de passar pela mesma experiência.

O valor dado às experiências passadas define em grande parte as nossas ações

futuras e o modo como nos movimentamos no mundo. A capacidade do homem

possuir uma autobiografia e pensar na sua história em detalhe e de modo amplo

distingue-o dos outros seres vivos.

Em casos extremos a intensidade insuportável da emoção pode dar origem à

repressão e à dissociação, tornando-se difícil ou mesmo impossível a recordação da

experiência.

Freud foi um dos primeiros a defender de uma forma vigorosa o papel dos

fatores emocionais na memória, tendo proposto a repressão como uma forma de

impedir o acesso da consciência a lembranças de natureza ameaçadora ou geradoras

de ansiedade. O acesso eficaz à informação passada requer, em grande parte, a

reintrodução do contexto original, a partir do fornecimento de pistas ou indicadores,

que podem estar situados nos espaços de arquivo (Pinto, 1998):

O que distingue a memória humana é o ser capaz de criar uma memória que

pode ser recuperada de uma forma imagética sonora ou visual. Grande parte

do nosso mundo atual é dominado por memórias visuais ou auditivas. Existem

outras memórias mas estas duas dominam a nossa cultura e essas memórias

aparecem como uma figuração completa. (...) As imagens não são só visuais,

são representações. A possibilidade de recuperar imagens e a possibilidade

de manipular imagens que são a fonte principal da execução criativa. (...)

Tanto no que diz respeito ao som como à parte visual (cinema) é que elas

podem ser cortadas aos bocados e podemos levá-las para a frente ou para

trás e juntá-las diferentemente no tempo. A criação artística assenta nesta

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base principal. Imagens que ocorrem no tempo e são ligadas de uma forma

muito gentil ou fragmentada. Criatividade, memória e imaginação são

capacidades interligadas sem as quais não é possível (...) conceber novos

modelos e realizações quer do ponto de vista social quer do ponto de vista das

artes clássicas ou da invenção filosófica.

António Damásio

(Damásio, 2014)

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7. PROJETO: EDIÇÃO E PRÁTICA

7.1 A organização de arquivos

A tentativa de organizar o real transforma o homem em autor. Como prática

de organização, as práticas da edição e do design podem considerar-se como

tentativas de conter a dispersão do arquivo e de eliminar a angústia do

desconhecimento.

O design tem a capacidade de criar uma estrutura onde é possível aceder

rapidamente ao que se insere no meu arquivo, nomeadamente, aos objetos que possuo,

mesmo que seja impossível tocar-lhes, porque estão numa fotografia impressa ou

escritos no interior de um livro, num ecrã de computador ou de um smartphone ou

verbalizados numa cassete de áudio.

Podemos encarar o arquivo como um rasto que vai deixando marcas e

presenças em diversos dispositivos, através de inventários, listagens, gravações áudio

e coleções que permitem um regresso recorrente àquilo que está ausente.

Ao associar o meu arquivo a um projeto prático constituído por um livro, uma

cassete e um website, facilmente transportáveis, poderá existir um despojamento dos

elementos lá referidos, na medida em que estes objetos não têm de estar física e

diretamente ao meu lado, pois a ideia deles continua a existir nestes três repositórios

que são espelhos daquilo que possuo ou já possuí.

As metodologias de acesso, ao desenhar um livro constituído por listas dos

objetos que possuo e mapas imagéticos, são motivadas por uma aproximação às

pranchas de imagens desenvolvidas por Aby Warburg, de modo a garantir uma leitura

rápida e um rememorar de informação e lembranças associadas aos objetos que

podem não estar fisicamente junto a mim num determinado momento.

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Figura 1 - Rímini: representación neumática de las esferas en oposición a la

fetichista. Forma antiquizante. Aby Warburg.

Figura 2 – Anatomía mágica. Examen de los intestinos – Búsqueda del asiento del

alma. Anatomía científica = contem plación por afluência del llanto fúnebre.

Anatomía animal, patética y contemplativa [cfr. Carpaccio]. Aby Warburg.

Através da utilização de gravações áudio, de listagens dos objetos, gravadas

via iPhone, que depois são transpostas para uma cassete, é feito um inventário áudio

acessível através de uma repetição oral daquilo que é visto. A audição da minha

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própria voz levará a uma aproximação do meu estado de espírito aquando da

gravação, sendo que o tom de voz e a velocidade do que é ouvido nunca poderão ter

um caráter neutro.

7.2. O livro como suporte de um arquivo

“A observação do passado não se destina a um macabro trabalho de

desenterrar os mortos. Não é uma viagem ao reino das sombras, nem pode

resultar por uma predileção bafienta pelo que o tempo esterilizou. O que está

morto, está morto. De facto só me interessam as coisas vivas, que me

interpelam, que se metem comigo.(...) Só me interessa o presente e a maneira

de me movimentar no espaço e no tempo em que vivo. Quero com isto dizer

que só me atrai no passado aquilo que me permite compreender e viver no

presente.”

José Mattoso

(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 8)

Às vezes existe o receio de uma repetição do agora no futuro. Queremos uma

quebra e uma destruição desse arquivo, desses documentos e tempos passados,

invertendo uma lógica de tempo linear.

Eu transcrevo os textos de escritores ou escrevo por alusão a certos textos e

colo ao seu lado imagens porque gostaria de ler o mundo, no passado e no que ainda

não aconteceu, através dos diários, fotografias, guias e objetos, que guardo e que são

sombras de mim. O tempo das imagens e dos objetos é relacionado com o tempo do

meu corpo e assim é criado o livro, a cassete e o website, que têm em si mistério, luz,

sombra e o infinito. Não são apenas depósitos de informação, mas prática. É o que

passou e o que será feito.

As imagens e os textos são montados e articulados de modo a tornarem-se

próximos. Aquilo que guardo e é mostrado no livro é um inventário daquilo que existe

e considero relevante dentro da minha casa e que guardei até aos dias de hoje.

As fotografias inseridas no livro contêm o que vi pela primeira vez, o que fui a

única a ver e aquilo que foi visto por outros antes de mim. O intuito principal prende-

se com a orientação da minha própria memória, tentando perceber a passagem do

tempo e prolongando a existência, na medida em que o conhecimento poderá ser

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alargado e novas ligações criadas cada vez que olho para as imagens ou que oiço o

que está gravado na cassete.

Como indicava Mallarmé, o livro aspira agarrar o tempo e dar-lhe

continuidade (Pires do Vale, 2012: p. 148).

O quotidiano é também colocado no livro e desse modo é imortalizado algo

que não conseguirei controlar sempre.

Ainda assim, ao voltar a olhar anseio uma unidade e um sentido, através de

lembranças. Talvez seja a torrente de imagens que inunda o nosso dia a dia, o principal

motivo para querer contemplar as imagem mortas, venerando-as através daquilo que

somos, tal como referia Hans Belting (Blaufuks, 2014: p. 19).

O tempo irrecuperável das imagens causa estranheza (Das Unheimliche de

Sigmund Freud). No entanto, apesar desse sentimento, o objetivo será sempre o de

continuar a procurar um significado para o que existe, dando-lhe forma e instigando

sempre a vontade de continuar a respirar.

O tempo está organizado em passado, presente e futuro e embora o futuro

possa ser o tempo que não existe, a ilusão que é trazida pelos objetos que

colecionamos dá-nos a sensação de controlo desse mesmo tempo que se esvai sem

dele conseguirmos verdadeiramente tomar conta.

Através da montagem feita no formato livro, criando um atlas de imagens,

chegamos ao conhecimento, em alusão às pranchas de imagens de Aby Warburg:

“O arquivo pede-nos, certamente, para afrontar a questão do inesgotável e do

insondável. Mas o atlas, pelas suas próprias opções – ou mais exatamente,

pelas suas montagens – torna visíveis o inesgotável e o insondável enquanto

tais.”

Georges Didi-Huberman

(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 15)

No livro que desenvolvo são mostradas pranchas constituídas por imagens que

podemos relacionar. Em potencial os mapas de imagens que construo são elementos

que pretendem conduzir a novas tomadas de conhecimento e interpretações.

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7.3. Um livro, uma cassete e um website

Em breve saberei quem sou.

(Borges, 1998)

A maior parte do tempo resume-se a fazermos algo e a ocupar esse tempo

enquanto a vida passa. Para mim a questão principal será a de perceber como

preservar esses momentos.

Eu fotografo os objetos que tenho, relaciono-os e penso no tempo de cada um,

numa ânsia permanente que quer acima de tudo levar-me a entender e a sentir mais,

para que o tempo não custe tanto e o aborrecimento não seja temido.

O projeto-prático por mim desenvolvido assenta num livro com as fotografias

de alguns objetos que coleciono e que pertencem ao meu arquivo pessoal; a gravação

de uma cassete de áudio com a enumeração desses objetos; e um website que pretende

assumir-se, ao contrário dos outros dois dispositivos, como um arquivo online,

pedindo um envolvimento e o olhar de quem é convidado a viver uma experiência e a

relacioná-la com a sua própria existência.

Este projeto deriva de um conjunto de dois livros desenvolvidos no primeiro

ano deste ciclo de estudos de mestrado e que teve como fim ser o início de um

trabalho que pretende relacionar os vários objetos que possuo. Foram construídos dois

livros inseridos numa caixa forrada com tecido, um com textos escritos por mim e de

autores dos quais sigo o trabalho, e que se ligam direta ou indiretamente às imagens

que completam o livro, e outro que mostra parte da minha coleção de pacotes de

açúcar.

Para além dos dois livros são inseridos, dentro da caixa, postais e um mapa

pertencente ao meu arquivo.

Mostro aqui algumas imagens destes objetos, que serviram de base ao

projeto-prático da presente dissertação de mestrado, o livro A Estufa e o livro Açúcar

Volume I:

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Figura 3 – A Estufa & Açúcar Volume I (1), 2016

Figura 4 – A Estufa & Açúcar Volume I (2), 2016

Figura 5 – A Estufa & Açúcar Volume I (3), 2016

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Figura 6 – A Estufa & Açúcar Volume I (4), 2016

Figura 7 – A Estufa & Açúcar Volume I (5), 2016

Figura 8 – A Estufa & Açúcar Volume I (6), 2016

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Figura 9 – A Estufa & Açúcar Volume I (7), 2016

Figura 10 – A Estufa & Açúcar Volume I (8), 2016

Figura 11 – A Estufa & Açúcar Volume I (9), 2016

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Figura 12 – A Estufa & Açúcar Volume I (10), 2016

Figura 13 – A Estufa & Açúcar Volume I (11), 2016

Figura 14 – A Estufa & Açúcar Volume I (12), 2016

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O livro com o título in.ven.tá.ri.o, desenhado como continuação do projeto

acima mencionado tem uma dimensão reduzida (13 cm x 21 cm), de modo a facilitar

o seu transporte. A encadernação é efetuada com espirais, remetendo para a ideia de

caderno de campo, e com impressão a preto e branco, prevendo a possibilidade de

retirar facilmente algumas folhas, que estão devidamente numeradas, para que possam

ser analisadas e vistas junto de outros elementos localizados em diferentes pontos do

livro.

Para a impressão da capa e do miolo utilizo dois tipos de papel. No miolo foi

utilizado o papel Munken Print White 115gr, que apresenta boa robustez para

encadernações com espiral. Para a capa e contracapa usou-se um papel com uma

gramagem generosa, Eural 250 gr., de modo a fortalecer o objeto que se prevê que

seja manuseado com regularidade.

Algumas páginas do livro encontram-se por preencher para permitir adicionar

elementos à listagem de livros e outros objetos do arquivo, pois está prevista a ideia

de adição e mutação do mesmo, embora de modo limitado, pois quando este livro

estiver completo será desenvolvido outro, que pretenderá ser a continuação de uma

reflexão e organização do meu arquivo.

No que diz respeito à tipografia utilizada, o desenho da forma de um tipo de

letra é orientado para o registo e transmissão de uma mensagem. A escrita permite

fixar a experiência de forma atemporal, podendo ser partilhada fora do lugar onde

decorreu a ação. No projeto prático foi utilizada a tipografia Feijoa distribuída pela

Klim Type Foundry, que devido à natureza curvilínea de cada letra, facilita a leitura

de uma grande quantidade de texto ou de uma listagem com mancha homogénea.

A cassete, também com o nome in.ven.tá.ri.o, apresenta uma listagem oral

com a minha própria voz.

Figura 15 – in.ven.tá.ri.o (1), 2018

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Este suporte, juntamente com o website (www.in-ven-tá-ri-o.pt), que prevê a

introdução de pranchas de imagens, tal como o livro, pretende ser um complemento

desse suporte principal, constituído por páginas que instigam à relação de várias

imagens e textos.

Figura 16 – Website www.in.ven.tá.ri.o.pt, 2018

Deste modo, verificamos que o arquivo pode ser trabalhado em variados

suportes, que o sustentam e o ajudam a difundir-se, visual e oralmente para que

possam exprimir aquilo que sou, o que penso e o que quero dizer. No entanto, a

interpretação do que é visto caberá a cada uma das pessoas que observa o arquivo.

Esta noção de partilha com o outro daquilo que somos pretende ajudar a

intensificar a ideia de imortalidade, pois viveremos para sempre, na medida em que

esse sempre acaba quando deixarmos de existir, e isso acontecerá quando mais

ninguém se lembrar daquilo que fomos.

O objetivo de criar vários elementos com enumerações e listagens do que

possuo é organizar e permitir uma melhor compreensão de toda a dispersão de

registos que fui acumulando e para os quais não tenho muitas vezes tempo de lhes

dedicar uma nova leitura.

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Figura 17 – in.ven.tá.ri.o (2), 2018

Figura 18 – in.ven.tá.ri.o (3), 2018

Figura 19 – in.ven.tá.ri.o (4), 2018

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Figura 20 – in.ven.tá.ri.o (5), 2018

Figura 21 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018

Figura 22 – in.ven.tá.ri.o (7), 2018

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Figura 23 – in.ven.tá.ri.o (8), 2018

Figura 24 – in.ven.tá.ri.o (9), 2018

Figura 25 – in.ven.tá.ri.o (10), 2018

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Figura 26 – in.ven.tá.ri.o (11), 2018

Figura 27 – in.ven.tá.ri.o (12), 2018

Figura 28 – in.ven.tá.ri.o (13), 2018

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Figura 29 – in.ven.tá.ri.o (14), 2018

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Figura 31 – in.ven.tá.ri.o (16), 2018

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Figura 38 – in.ven.tá.ri.o (23), 2018

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8. CONCLUSÃO

8.1. Introdução

Um arquivo é memória e promessa.

(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 20)

Para compreender um arquivo existe uma seleção de conteúdos com o fim de

perceber a relação do nosso presente com aquele passado ali exposto e que sustenta a

existência “de um outro ausente (Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 7). Compreendemos

um passado vital que ajuda a revitalizar o presente de cada um de nós.

Para concretizar uma análise que inclua uma compreensão densa importa falar

de arquivos enquanto espaços suscetíveis de serem catalogados, colecionados,

inventariados e listados. O mnemon, “pessoa com a função social de memória”, ideia

instituída pelos gregos, tinha como finalidade ser uma memória viva que ajudava a

esclarecer assuntos religiosos e de ordem jurídica. Ao desenvolver-se a escrita as

memórias passam mais tarde a ser mantidas através do auxílio da criação de um

arquivo escrito. O mnemon era pois uma memória-viva (Pires do Vale, Paulo, 2014 p.

9) que acompanhava alguém com o intuito de lembrar um determinado passado,

auxiliando a pessoa no seu presente.

O arquivo assumirá um importante papel de identificação, contando uma

história ainda em formação. A Torre do Tombo, em Lisboa, consiste num importante

centro arquivístico que ajuda a contar várias histórias e a esclarecer e auxiliar a nossa

memória.

Nos dias que correm, a história é feita por um amplo leque de pormenores e

não apenas por um grupo de inventários considerados os mais satisfatórios para

relatar determinado tempo. A história passa deste modo a apresentar uma maior

autenticidade, sendo fruto de uma tentativa de chegar à pureza dos tempos com tudo o

que isso abarca. No entanto, o arquivo não é algo neutro, pois os documentos são

selecionados por alguém que apresenta um instinto diferente dos demais e assim

sendo “cabe ao historiador não fazer o papel de ingénuo”, como refere J. Le Goff

(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 12), montando conscientemente uma história

reveladora simultaneamente de um passado e de um presente, iluminando a nossa

história.

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O ato de arquivar resulta de um processo de escolha que reúne o que é

considerado relevante em determinada época, pois consoante o tempo, um documento

pode ser ou não considerado essencial para material de arquivo, caso seja ou não

revelador de potencial, sendo isso indicador de que a história é feita daquilo que nos

vários tempos se decidiu guardar pelo nível de importância instituído.

Se outros documentos tivessem sido guardados a história seria contada talvez

de outra forma. Assim, deve ser tido em conta o documento que existe e as marcas

ausentes para contar uma história. O arquivo é “seleção, tratamento, classificação e

disponibilização de material” (Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 14). A seleção, em

muitos casos, é difícil de efetuar por aquilo que fica de lado e não entra na montagem

para a tomada de conhecimento de um determinado tempo.

8.2. Conclusão sobre o problema de investigação

“Muitas novidades se verão nesta história, não novas por novas, senão novas

por antiquíssimas.”

Pe. António Vieira no livro História do Futuro

(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 8)

Na impossibilidade de fotografar tudo aquilo que tenho, o trabalho de

desenvolvimento do livro prevê uma seleção arquivística através da listagem e da

montagem em duplas páginas de imagens que se relacionam entre si e permitem uma

nova tomada de conhecimentos, funcionando como atlas de imagens que podem

relacionar-se entre si.

Prevê-se seguir com a investigação acerca dos temas Arquivo e Memória

através da permanente adição de conteúdos ao livro, site e cassete que desenvolvi,

pois estes suportes estarão em constante mutação e revitalização, sendo possível

desenvolver no futuro novos livros com imagens e textos de/e sobre objetos

adicionados e reanalisados no meu arquivo.

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