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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
FACULDADE DE ARQUITETURA
O ARQUIVO E A SUA SOMBRA:
Prolongar a Existência ou Adiar o Fim
Rita Marina Máximo da Silva
Trabalho de Projeto
Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas
Trabalho de Projeto orientado pela Professora Doutora Sofia Leal Rodrigues
2018
ii
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu Rita Marina Máximo da Silva declaro que o presente trabalho de projeto de
mestrado intitulado “O Arquivo e a Sua Sombra: Prolongar a Existência ou Adiar o
Fim” é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é
original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia
ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou
indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
Lisboa, 16 de fevereiro de 2018
iii
RESUMO
Tendo como principais pontos de análise os temas Memória e Arquivo, o
presente trabalho de projeto prevê a análise e explanação de teorias e ideias
desenvolvidas por vários teóricos de comunicação e artistas que trabalham ou
escrevem tendo como principal fim a perceção das variantes que estes dois temas
podem adquirir. Desta forma, a investigação teórica estabelece a base conceptual para
o desenvolvimento de uma investigação prática, que se assume na concretização de três
objetos: um livro, uma cassete de áudio e um website.
A preocupação fundamental, que atravessa a dissertação e culmina no
desenvolvimento de um projeto prático, manifesta-se na procura de elementos que
alicercem o arquivo e os fragmentos da minha memória e dispersos no tempo, sempre
com a preocupação de tentar definir uma identidade.
Inicialmente são apresentadas propostas para uma definição da palavra arquivo,
estando de forma constante as palavras memória e esquecimento em análises paralelas
e complementares. Para além disso, é tido em conta o papel do arquivo na arte
contemporânea e as suas formas de apropriação para o desenvolvimento de um objeto
artístico.
A fotografia é um dos principais suportes de reflexão quando se analisa um ou
mais arquivos, explorando para isso, teoricamente, quais as implicações que existem ao
olhar ou ao analisar a imagem fotográfica que ficou sedada num papel. Sendo que o
objeto livro, tanto na literatura como no desenvolvimento de projetos artísticos, será
também um ponto de foco e discussão.
São deixadas em tom de conclusão algumas notas científicas que preveem uma
breve abertura pelos meandros do estudo científico no que diz respeito à memória.
A parte prática deste projeto pretende mostrar de que forma o design editorial,
nas suas diferentes formas de publicação, pode assumir um importante molde de
apreensão, por parte do outro, dos diferentes estados que o meu arquivo tem o
potencial de assumir.
Palavras-Chave:
Arquivo; Memória; Fotografia; Literatura; Arte Contemporânea.
iv
ABSTRACT
Having as main points of analysis the themes of Memory and Archive, the
present project provides the analysis and explanation of theories and ideas developed
by several communication theorists and artists whose work is focused on the
perception of the variants these two themes can acquire. In this way, the theoretical
investigation establishes the conceptual base for the development of a practical
investigation that is materialized in three objects: a book, an audio cassette and a
website.
The fundamental concern, which runs through the dissertation and culminates
in the development of a practical project, manifests itself in the search for elements that
consolidate the archive and the fragments of my memory scattered in time, always
keeping in mind the concern of defining an identity.
Initially I propose several definitions for the word “archive”, keeping the words
“memory “and “forgetfulness” in a parallel and complementary analysis. In addition,
the role of archives in contemporary art and its forms of appropriation for the
development of an artistic object are taken into account.
Photography is one of the main sources of meditation when analyzing one or
more archives, theoretically exploring the implications that exist when looking at or
analyzing the photographic image printed on a paper. Books as objects, both in
literature and in the development of artistic projects, will also be looked at and
discussed.
Some scientific notes are presented at the conclusion, tackling the intricacies of
the scientific study with regard to memory.
The practical part of this project intends to show how the editorial design, in its
different forms of publication, can assume an important mould of apprehension, by
others, of the different states that my archive has the potential to assume.
Keywords:
Archive; Memory; Photography; Literature; Contemporary art.
v
Agradecimentos
Para o meu melhor amigo, apoio em todas as horas, e aos escritores que conseguem
iluminar e verbalizar a complexidade do que sinto.
À professora Sofia Leal Rodrigues pela orientação e partilha de conhecimento ao longo
deste ciclo de estudos.
Ao Gonçalo, meu irmão e companheiro de vida.
Amigos, o que aqui escrevo é também para vocês, que permanecem comigo em todos
os passos que dou.
vi
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 101.1. Problema e cenário de investigação ............................................................ 101.2. Composição da Dissertação ......................................................................... 11
2. ARQUIVO: DEFINIÇÃO E PENSAMENTO ..................................................... 122.1. Propostas para uma definição da palavra ..................................................... 12
2.1.1. Michel Foucault e Jacques Derrida ............................................................. 122.2. O Arquivo Apagado ......................................................................................... 14
2.2.1. Jacques Lacan e Sigmund Freud ................................................................. 142.3. O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos ............................ 162.4. A Arte Mnemónica ........................................................................................... 16
2.4.1. Falar e escrever para desdobrar a alma ....................................................... 162.5. Tempo, Memória e Esquecimento .................................................................. 18
2.5.2. Aby Warburg .............................................................................................. 193. A PRÁTICA DO ARQUIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA ....................... 22
3.1. Arte, Registo e Arquivo ..................................................................................... 223.2. O Arquivo e a Cultura Digital ............................................................................ 23
4. FOTOGRAFIA COMO SUPORTE DE MEMÓRIA INDIVIDUAL ................ 254.1. A objetividade fictícia da imagem .................................................................. 25
4.1.1. Fotografia e Simulacro – A Sombra ........................................................... 254.1.2. O tempo atua sobre a paisagem .................................................................. 274.1.3. A imagem projetada .................................................................................... 28
5. O LIVRO E A LITERATURA: SILÊNCIO E/OU CLARIDADE? .................. 315.1. Arquivo, Livro e Hipertexto ............................................................................ 31
5.1.1. O formato do livro ...................................................................................... 315.1.2. Hipertexto: Conexões físicas e digitais ....................................................... 31
5.2. O Diário e o Fragmento .................................................................................... 335.3. Todos os escritores do mundo ......................................................................... 34
5.3.1. A Escrita e o Medo – Roland Barthes ......................................................... 346. A MEMÓRIA – BREVES CONSIDERAÇÕES CIENTÍFICAS ....................... 367. PROJETO: EDIÇÃO E PRÁTICA ...................................................................... 38
7.1 A organização de arquivos ............................................................................... 387.2. O livro como suporte de um arquivo .............................................................. 407.3. Um livro, uma cassete e um website ............................................................... 42
8. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 578.1. Introdução ........................................................................................................ 578.2. Conclusão sobre o problema de investigação ................................................ 58
vii
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 59 ÍNDICE DE IMAGENS
Figura 1 - Rímini: representación neumática de las esferas en oposición a la
fetichista. Forma antiquizante. Aby Warburg...............................................................39
Figura 2 – Anatomía mágica. Examen de los intestinos – Búsqueda del asiento del
alma. Anatomía científica = contemplación por afluência del llanto fúnebre. Anatomía
animal, patética y contemplativa [cfr. Carpaccio]. Aby Warburg................................39
Figura 3 – A Estufa & Açúcar Volume I (1), 2016........................................................43
Figura 4 – A Estufa & Açúcar Volume I (2), 2016........................................................43
Figura 5 – A Estufa & Açúcar Volume I (3), 2016........................................................43
Figura 6 – A Estufa & Açúcar Volume I (4), 2016........................................................44
Figura 7 – A Estufa & Açúcar Volume I (5), 2016........................................................44
Figura 8 – A Estufa & Açúcar Volume I (6), 2016........................................................44
Figura 9 – A Estufa & Açúcar Volume I (7), 2016........................................................45
Figura 10 – A Estufa & Açúcar Volume I (8), 2016......................................................45
Figura 11 – A Estufa & Açúcar Volume I (9), 2016......................................................45
Figura 12 – A Estufa & Açúcar Volume I (10), 2016....................................................46
Figura 13 – A Estufa & Açúcar Volume I (11), 2016....................................................46
Figura 14 – A Estufa & Açúcar Volume I (12), 2016....................................................46
Figura 15 – in.ven.tá.ri.o (1), 2018...............................................................................47
Figura 16 – www.in.ven.tá.ri.o.pt, 2018.......................................................................48
Figura 17 – in.ven.tá.ri.o (2), 2018...............................................................................49
Figura 18 – in.ven.tá.ri.o (3), 2018...............................................................................49
Figura 19 – in.ven.tá.ri.o (4), 2018...............................................................................49
Figura 20 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018...............................................................................50
Figura 21 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018...............................................................................50
Figura 22 – in.ven.tá.ri.o (7), 2018...............................................................................50
Figura 23 – in.ven.tá.ri.o (8), 2018...............................................................................51
Figura 24 – in.ven.tá.ri.o (9), 2018...............................................................................51
Figura 25 – in.ven.tá.ri.o (10), 2018.............................................................................51
Figura 26 – in.ven.tá.ri.o (11), 2018.............................................................................52
Figura 27 – in.ven.tá.ri.o (12), 2018.............................................................................52
Figura 28 – in.ven.tá.ri.o (13), 2018.............................................................................52
viii
Figura 29 – in.ven.tá.ri.o (14), 2018.............................................................................53
Figura 30 – in.ven.tá.ri.o (15), 2018.............................................................................53
Figura 31 – in.ven.tá.ri.o (16), 2018.............................................................................53
Figura 32 – in.ven.tá.ri.o (17), 2018.............................................................................54
Figura 33 – in.ven.tá.ri.o (18), 2018.............................................................................54
Figura 34 – in.ven.tá.ri.o (19), 2018.............................................................................54
Figura 35 – in.ven.tá.ri.o (20), 2018.............................................................................55
Figura 36 – in.ven.tá.ri.o (21), 2018.............................................................................55
Figura 37 – in.ven.tá.ri.o (22), 2018.............................................................................55
Figura 38 – in.ven.tá.ri.o (23), 2018.............................................................................56
ix
Vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia
de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas
neste momento.
Clarice Lispector
(Lispector, 1977/2002: p. 21)
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1. INTRODUÇÃO
1.1. Problema e cenário de investigação
As teias e os meandros das relações humanas e o nosso contacto com o
universo permitem uma leitura do mundo, que poderá, em primeira instância, ser
considerada uma verdade ou, por outro lado, a intrusão de uma falsa memória, que
parece a quem a transmite constituir o verdadeiro acontecimento. O exercício da
memória não é regular e apresenta espaços em branco e pequenas lacunas que
tentamos preencher com o intuito de gerar novas significações que nos ajudem a
encontrar uma ordem no decurso da nossa existência.
O arquivo, com o intuito de compreender, tende a organizar e a guardar as
efemeridades impossíveis de controlar para sempre, tentando prolongar a existência
do que desapareceu ou do que ainda existe, mas que não se vê com clareza,
reconstituindo ligações e recuperando o que se perdeu no abismo. O objetivo será o de
atenuar a consciência da nossa limitação e finitude, iludindo-nos e desacelerando o
tempo.
A abordagem que aqui se propõe parte dos temas Arquivo e Memória
enquanto modos de criação artística e análise do mundo. São considerados autores
como Michel Foucault, Jacques Derrida, Roland Barthes, Walter Benjamin, Hans
Belting, Georges Didi-Huberman, Geoffrey Batchen e George Steiner, tendo como
base principal as obras originais que são indicadas em cada um dos capítulos desta
dissertação e a análise teórica feita por estudiosos contemporâneos. Para além disso,
são nomeados artistas em que a expressão através do arquivo e da manipulação
fotográfica e fílmica está presente no seu processo de criação. Considere-se para tal,
Lourdes Castro, Daniel Blaufuks, David Hockney e o meu próprio trabalho que,
enquanto designer, passa pela investigação sobre a memória, o arquivo e a construção
e desenvolvimento regular de um arquivo individual constituído por objetos
diferenciados e inusitados, tais como livros, discos, DVDs e fotografias.
Pretende-se também apresentar uma breve análise científica com base na
investigação do Neurocientista António Damásio na área da perceção e da construção
da memória.
A nível prático será mostrado e organizado um arquivo que terá em conta a
minha existência e os objetos colecionados até aos meus 29 anos. Este prevê uma
11
organização física editorial, em formato livro e online, através de um website
compostos por textos e fotografias dos objetos que possuo, filmes e livros que vi e li
ao longo dos anos. Além disso, será gravada uma cassete áudio com uma listagem
oral dos vários elementos.
1.2. Composição da Dissertação
A dissertação é constituída por 8 capítulos que pretendem organizar e
estruturar os diferentes temas de um modo claro e relacioná-los com o projeto prático.
Este trabalho será fruto da reflexão e análise daquilo que é escrito ao longo das
páginas desta dissertação, servindo de suporte para uma criação consistente e
conceptualmente balizada.
São também apresentadas as limitações e os resultados obtidos durante a
concretização do projeto e o modo como este poderá ter seguimento e evoluir
assumindo-se como um arquivo aberto e em permanente adição.
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2. ARQUIVO: DEFINIÇÃO E PENSAMENTO
2.1. Propostas para uma definição da palavra
2.1.1. Michel Foucault e Jacques Derrida
Ao contrário do sentido que comummente se lhe atribui, o arquivo ou como
testemunho da sua identidade permanente, ou o conjunto dos traços que
puderam ser salvos de desastre e que de algum modo lhe sobreviveram,
entesourados pelas instituições que registam e conservam os documentos cuja
memória se quer guardar e disponibilizar livremente às gerações vindouras. E
isto não porque o arquivo não possa incluir de facto uma massa documental.
Simplesmente, o arquivo é e o arquivo faz, muito mais do que a sua simples
massa documental parece prometer, enquanto facto bruto, à qual ele nunca
realmente se reduz.
António Fernando Cascais
(Cascais, 2009: p. 110)
Desde o século XIX, que os espaços de arquivo e as bibliotecas, ao abarcarem
massa documental fizeram emergir novos objetos e visões, sobretudo devido às
relações criadas e às possibilidades que o sistema hipertextual de conexões estabelece.
Cada arquivo, pessoal ou coletivo, terá determinadas características e significações.
O arquivo “estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença
dos discursos, a nossa história, a diferença dos tempos, o nosso eu, a diferença das
máscaras. Que a diferença, longe de ser esquecida e recoberta, é essa dispersão que
somos e que fazemos” (Foucault, 1969/2005: p. 10).
Se tivermos em conta uma visão tradicional, percebemos que o arquivo é visto
como um depósito de documentos verbais e visuais e que em potencial remete para
uma história a ser contada de um modo intimamente próximo dos factos ocorridos.
Contudo, o arquivo não é algo inerte que tem apenas como fim reconstituir o
que um homem ou um grupo de indivíduos ou instituição fez ou disse, mas cria sim,
novas relações entre os documentos e materiais disponíveis para que se façam novas
análises e se gere novo conhecimento.
Para além da massa documental, o arquivo é também tudo aquilo que o rodeia
e o que relaciona e organiza cada um dos discursos a si inerentes, de modo a que não
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acabe numa massa amorfa e perdida no tempo.
A apropriação do passado constitui uma base fundamental enquanto
repositório de diversos elementos e a organização de um arquivo potencia o desenho
mental e escrito por parte de um ou mais indivíduos de uma história. Isso acontece
não só com uma fotografia mas também com um objeto que ficou guardado e que
poderá ser maior do que o seu volume aparente.
Além disso, a escolha daquilo que fará parte do arquivo poderá obedecer não
só às crenças de um indivíduo como também ser influenciada por questões
ideológicas ou históricas.
Jacques Derrida em Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana, não
esquecendo os princípios da Arqueologia do Saber de Michel Foucault, transmite as
lacunas inerentes ao arquivo, ao seu caráter não linear e à perda da sua originalidade,
quase como indicava Walter Benjamin e reforça a posição de Theodor Adorno ao
falar da aura perdida dos objetos que se replicam ou neste caso que se espalham no
tempo. A pulsão para acumular, através da recolha, tem como fim revivificar e fazer-
nos viver para sempre, apesar do memento mori que está permanentemente colado a
nós.
Sigmund Freud está presente no mal de arquivo. Jacques Derrida analisa esse
“mal” que é a pulsão de morte, consistindo em algo que elimina os arquivos escritos
de modo a que o processo de arquivamento possa permanecer até ao infinito, já que
de outra forma o arquivo implodiria pela impossibilidade de outras escrituras. Esta
questão, permanentemente atual, é relevante na medida em que a tradição e a história
se constituem sobre o arquivo. Para o filósofo Jacques Derrida, para que o processo
de arquivo possa continuar, existe esse mal de arquivo que apaga os arquivos escritos
impossibilitando essa implosão. Notemos de forma breve, os arquivos da ditadura e
marcas do holocausto, por exemplo, onde são desconstruídas histórias e arquivos
sobre o mal, sendo que a tradição e a história se constroem sobre esse arquivo, que
permite uma nova leitura articulando os seus diferentes compostos.
A própria produção artística abarca os rastos e os vestígios para a criação de
obras de arte, deixando o arquivo de ser apenas algo efémero para tornar-se numa
conceptualização poética da obra de cada autor. A desconstrução e a articulação de
novas interpretações tem, em potencial, uma leitura diversa da história que reescreve
o que já foi dito e/ou escrito.
Deste modo, podemos pensar no arquivo como uma matéria viva e com um
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enorme potencial, devido aos novos olhares que por ele passam, e que o reescrevem
ou ajustam.
É sempre possível observar segundo uma nova perspetiva e construir
narrativas distintas das que nos transmitiram.
Podemos considerar que mesmo o arquivo e o mal de arquivo poderão
encontrar-se e confrontar-se, efetuando trocas e novas visões e esclarecimentos acerca
do mundo. Para Jacques Derrida, os traços inscritos no arquivo e a pulsão de morte,
possibilitaria novas inscrições no arquivo e no nosso tempo que dependem da análise
e condição de cada intérprete.
Conseguimos identificar um paralelismo entre o arquivo e a memória. Por um
lado, a memória é o resultado final de um processo complexo que envolve estímulos
interiores e exteriores que desencadeiam sensações, sentimentos e pensamentos que
são manipulados, ajustados, adequados e finalmente armazenados. Existe uma
distância considerável entre o ambiente onde estamos inseridos e aquilo que
armazenamos sob a designação de realidade. A memória é talvez mais semelhante a
uma construção ou criação do que a uma representação de um mundo que nunca
ninguém viu de forma direta mas no qual todos vivemos, pressupondo que, de facto,
existe algo de material. Por outro lado, o arquivo é também uma criação sujeita a
manipulações, motivadas pelos interesses ou necessidades dos indivíduos com
responsabilidades na sua criação e manutenção.
Desejar que a memória e o arquivo reflitam como um espelho a realidade é
como assistir a um espetáculo de magia crendo inocentemente nas ilusões que nos são
apresentadas.
2.2. O Arquivo Apagado
2.2.1. Jacques Lacan e Sigmund Freud
Durante o último quarto do século XX e o início do presente século assistiu-se
a uma prática de autoanálise fundada na valorização da imagem de si próprio.
Podemos destacar este processo com um culto narcisista, como refere Elisabeth
Roudinesco (Roudinesco, 2006: p. 7). Esta prática de análise através do arquivo que é
construído sobre nós mesmos pode estabelecer uma relação “trágica e inquieta” com o
mesmo (Roudinesco, 2006: p. 7), noção explorada por Jacques Derrida, baseada na
ideia de arquivar tudo o que se conhece ou possui. Ao estabelecer este processo
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poderá ler-se a seguinte constatação da mesma autora:
“(...) se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais
possível: é então substituída pelo arquivo transformado em poder absoluto,
espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído,
a história tende para a fantasia ou delírio, para a soberania delirante do eu,
ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (...).”
Elisabeth Roudinesco
(Roudinesco, 2006: p. 7)
Contudo, o culto excessivo do arquivo poderá resultar num acumular de
elementos que não deixaram a imaginação fluir, levando-nos a pensar a história e a
refletir sobre ela de modo a “suprir a ausência de vestígios”.
É importante notar que o poder da palavra, aquando da ausência de vestígios
poderá ser imponente, através da capacidade e construção interpretativa do
ser humano. Assim, a ausência de rasto ou de arquivo poderá ser também um
exercício de igual poder.
Como exemplo podemos tomar o filme Shoan de Claude Lauzman. Aqui não é
visível um rasto do genocídio. No entanto, a palavra e o testemunho levam-nos,
através da interpretação, a conseguir reviver um determinado momento.
Analisemos agora o caso do arquivo de Freud em que depois da sua morte
existiu a tentativa de esconder o arquivo, ato passível de levantar rumores,
assentando, como escreve Elisabeth Roudinesco, numa “conceção soberana do
arquivo”. Se o fim for o de evitar esta assunção deverá dar-se livre acesso a todas as
pesquisas, evitando “fechar o arquivo aos historiadores” e entregando a “sua história
aos inimigos”, ideia de Lord Acton (Roudinesco, 2006: p. 11).
No que diz respeito ao arquivo, em e de Lacan, a linguagem oral exprime uma
enorme importância, devido à inexistência de notas ou manuscritos para muitas das
suas conferências ou ações de partilha de informação ao longo da sua vida: “Essa
ausência de arquivo, tão tirânica como o excesso de arquivo, é o sintoma de uma
história apagada.”
Lacan passa a ser ele próprio a unidade de garantia de uma história. Deste
modo, ao desaparecer o corpo, parece que Lacan continua a existir pela ideia do “ouvi
falar” e não por dados escritos e concretos deixados por ele.
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Existe aqui uma noção de imortalidade, pelo que Lacan parece continuar a
existir, na medida em que ele é o próprio arquivo, ou seja, a ação de olhar ou ler
marcas suas não se deteta e por isso não é feita uma associação entre possíveis leituras
e o corpo/homem que já não existe. Para lembrar o homem, lembramos o próprio
corpo e a imortalidade do ser. Lacan é assim imortalizado pela fala.
A ideia de terror associada à não existência do arquivo, devido ao poder
associado à devoção de vários seguidores de Lacan, leva à emergência de vestígios
que poderão não ser legítimos. O que está escrito não pode ser certificado pela
história, parecendo, até para as ideias do próprio Lacan, que estamos num sonho, de
ideia pouco fiável e distante do real.
2.3. O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos
Assiste-se no final do século XX e no presente século à ideia de que o sujeito
desprovido de passado ou futuro é confinado à descrição de si consoante a sua
imagem no espelho, superestimando a sua figura imaginária.
Narciso e Édipo são figuras referenciadoras da ideia de individualismo e
glorificação de si mesmos. Narciso não pode aceitar a velhice e o sucesso do outro.
Suicida-se ao tomar consciência de que é o seu próprio objeto de amor. Édipo, perfura
os olhos depois de cometer incesto e inverte a genealogia.
A obsessão por si mesmo é portadora de uma rejeição do outro. Contudo,
manifesta-se um ódio por si mesmo devido à presença do outro em si.
Nos dias que correm, a sociedade atual alimenta o culto de si e o cuidado com
o corpo, tentando afirmar o eu e levá-lo em certa medida ao ideal do sonho
americano. A unificação do mundo por uma economia de mercado leva à ilusão de
uma universalidade enganadora e a uma afirmação narcisista. O eu pretende
diferenciar-se da massa para melhor se adaptar a ela, estabelecendo esta ideia um
paradoxo, tal como também referiu Lacan na sua conferência de 1936 (Roudinesco,
2006: p. 25).
2.4. A Arte Mnemónica
2.4.1. Falar e escrever para desdobrar a alma
Recuemos à mitologia grega para identificar Mnemosina, a deusa da memória.
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Esta deusa oferecia a cada alma um bloco de cera onde eram registados pareceres e
sensações, ou seja, já aqui a ideia de impressão, mesmo que no sentido abstrato e
individual, marcava uma dimensão significativa do processo de memorização,
prolongando um determinado momento. Para Sócrates, quanto maior fosse a
qualidade da cera maior seria a perfeição do registo, evitando enganos tardios ou
dificuldades no reconhecimento da gravação de uma memória. A memória impressa
na cera determinaria o saber.
Sócrates não ditou ou escreveu. Para ele a transmissão de ideias baseava-se
sobretudo na oralidade e na presença de duas ou mais pessoas. Até o mais abstrato
dos pensamentos supunha a capacidade de uma “textualidade muda” (Steiner, 2006:
p. 11).
Para Platão, o sábio teria a capacidade de reconhecimento e análise
verdadeiros e puros. A analogia da gravação na cera relacionada com o advento da
escrita, e que para Toth seria o remédio para a perda de memória, significaria para
Tamus um perigo, na medida em que previa o esquecimento devido à falta de
exercício da memória, ou seja, a escrita consistiria numa memória morta, por ser
exterior à alma do homem (Babo, 2009: p. 47):
(...) mas há muito tempo que não exercito a minha memória, por isso me
abandona ela facilmente. O que acontece aos livros cujas folhas se colam
quando não as manuseamos é, penso eu, o que me aconteceu. É preciso
desdobrar a alma e remexer continuamente tudo o que nela se armazenou a
fim de ter pronta essa riqueza de todas as vezes que a necessidade o exige.
Séneca
(Carta 72 a Lucílio, p. 786)
Deste modo, a memória exercitada torna a trazer ao presente, mais facilmente,
o passado e a lembrança.
Platão desaprova o uso da escrita por considerá-la potenciadora de preguiça
cerebral. No entanto, podemos considerar que a escrita terá em potencial a capacidade
de prolongar o que somos, mesmo depois do nosso desaparecimento. O arquivo será a
concretização externa da nossa memória, que permitirá reter traços individuais ou
coletivos de uma cultura e estender o passado ao nosso presente, com maior ou menor
fiabilidade, tal como referia Paul Ricoeur, ao indicar que o arquivo é um modo de
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analisar o passado, podendo ocultar ou deixar ver certos factos, devido às ações de
reunião de fragmentos e reconstruções realizadas ao longo do tempo sobre
determinados acontecimentos (Babo, 2009: p. 50).
Quando o homem desenvolve uma autobiografia, o texto não estará livre de
lacunas e de um caráter fragmentário e disperso, na medida em que olhando para a
nossa própria narrativa, a ação passada é reescrita e são preenchidos os espaços em
branco que não conseguimos observar com clareza imediata.
Consideremos que mesmo um texto ou documento sem autor, como uma
memória de ninguém, torna-se uma memória coletiva e partilhada, imensa em
potencial, e a escrita permitirá fixar a experiência de forma atemporal e que pode ser
partilhada fora do lugar onde aconteceu o ato vivido, na medida em que o texto e o
sujeito não têm que estar permanentemente ligados.
A resiliência na preservação de um tempo, tende a querer reter a existência e a
humanidade, mesmo depois de desaparecida cada uma das almas que a compõem. A
história é contada não apenas com base nos suportes originários do registo mas no
arquivo total que vai sendo construído, ampliado e reproduzido.
Se voltarmos a Freud, Jacques Derrida explica que a psicanálise subverte a
ideia de arquivo, na medida em que através dos atos de repressão ou supressão a sua
organização e estrutura são delineados.
No arquivo que construo também faço isso. Já rasguei e destruí numa ânsia e
esperança de esquecer o tempo da imagem ou do texto. Existem memórias
persistentes e inesquecíveis que queremos negar, ateando fogo ao que nos pesa e ao
que queremos ver longe numa espécie de nébula.
2.5. Tempo, Memória e Esquecimento
2.5.1. George Steiner
A cultura oral terá a capacidade de reatualizar as memórias e o livro autoriza
formas de esquecimento. A troca oral permite um confronto direto de opiniões,
enquanto o livro poderá permanecer em silêncio, até ser aberto e dissecado. Ao
memorizarmos teremos o gesto e as palavras dentro de nós, tornando o nosso ser mais
complexo e capaz de relacionar os vários tempos, mesmo quando estamos sozinhos
num terreno baldio sem qualquer livro ou objeto para nos auxiliar.
Existe apenas o céu e a terra e, tal como a vida é efémera, assim será o nosso
19
conhecimento, se não for praticado nem atualizado.
Na Grécia Antiga e em Roma o tempo livre era celebrado como parte
fundamental do progresso civilizacional. Contudo, atualmente a passagem do tempo é
encarada de outro modo. Existe uma pressão substancial no sentido de aumentar a
produtividade e a competitividade, de modo a evitar o título de indivíduos pouco
produtivos, melancólicos ou depressivos, que se dedicam à reflexão, à escrita, ou à
criação de objetos artísticos. No fundo, a pensar no tempo que passou e a projetar
calmamente um futuro através do objeto criado.
Hoje, como detentores de arquivos e bibliotecas individuais poderíamos ter
mais tempo para, em silêncio, pensar e descobrir cada uma das páginas do livro e da
nossa mente, estimulando a nossa memória e a procura de relações. Contudo, “vamos
matando o tempo, em vez de nos sentirmos à vontade dentro dos seus limites”
(Steiner, 2006: p. 28).
Importa no meu trabalho categorizar e tentar perceber o que vejo, num esforço
constante para conquistar esse mesmo tempo, perdido.
2.5.2. Aby Warburg
Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim cheio de
plantas, e como um tanque cheio de peixes. Mas cada gota dos seus humores é
ainda esse tal jardim ou esse tal tanque. (...) Porque todos os corpos estão
num fluxo perpétuo como ribeiras, e neles entram partes e deles saem
continuamente.
Anabela Mendes
(Mendes, 2012: p. 94)
Depreendemos que Aby Warburg é um “minucioso investigador de imagens”,
(Mendes, 2012: p. 93) relacionando de modo demorado várias obras.
Ao analisarmos a importância do fragmento nas composições de Warburg,
focamos o nosso olhar na criação de um atlas e de um álbum da memória, Der
Bilderatlas Mnemosyne (Mendes, 2012: p. 94). Ao relacionar várias imagens,
Warburg constrói um mapa de memórias que traduz as transformações e a origem da
cultura europeia. Neste mapa, a noção de hierarquia dos elementos é descartada
devido ao modo como são dispostos os elementos num suporte conjunto. É defendido
20
que a forma como a nossa experiência cultural é analisada deverá ser apreendida
tendo em conta vários elementos e não apenas a análise isolada de cada um deles. Ao
serem confrontadas as várias perceções do presente e do passado, nascem novos
significados das obras artísticas.
Ao analisar um conjunto de elementos que poderão relacionar-se com uma
noção de hipertexto, Warburg propõe “uma estrutura interpretativa aberta a diferentes
relações recíprocas geradoras de um novo espaço crítico que rejeita as noções de
hierarquia cultural ou de génio artístico” (Mendes, 2012: p. 95). Cada suporte criado
por um determinado autor traduz-se na apreensão que cada um faz da experiência e
reflexões passadas, com a motivação de gerar uma afinação da identidade no presente.
Warburg aponta o Renascimento como o primeiro momento de retorno ao
passado e de relação com o período clássico, com o intuito de construir uma nova
identidade cultural, reinterpretando o que já passou.
Para a edificação de uma identidade surge o conceito de Denkraum (Mendes,
2012: p. 99), ou seja, um espaço de maturação onde são analisados os códigos para
reinterpretação do significado dos objetos. As obras de arte são como identidades e o
artista tende a selecionar e encontra dados relevantes que geram um novo objeto.
“A preservação dos espaços históricos e o distanciamento entre sujeito e
objeto, compreendido no conceito de Denkraum, possibilitam a apreensão crítica das
heranças passadas e estimulam a sua transmutação” (Mendes, 2012: p. 99),
possibilitando um novo conhecimento. A criação de um espaço de discussão crítica
corresponde para Warburg ao ponto necessário para o desenvolvimento civilizacional.
Nos tempos que correm, a quantidade de referências, devido ao número de
extensões tecnológicas, aumentam o espaço de arquivo que temos ao nosso dispor. A
rede de ligações torna-se mais complexa e existe um número de correspondências
mais alargado. Esta situação leva os artistas a criarem novos significados e relações
do seu corpo com um mundo constituído por fronteiras geográficas frágeis e
facilmente transponíveis:
O artista lida com as circunstâncias que o presente lhe oferece de modo a
torná-las parte de um mundo duradouro. Ele capta o mundo em movimento.
(...) A modernidade dos nossos dias estende-se às práticas culturais do
faça-você-mesmo e da reciclagem, à invenção do dia-a-dia e ao
desenvolvimento do já experimentado, que não são assuntos menos
21
merecedores de atenção e análise do que as utopias messiânicas e as
novidades formais que tipificaram a modernidade de ontem.
Nicolas Bourriaud
(Mendes, 2012: p. 100)
O espetador interpreta criticamente o que cada obra para si representa com o
fim de estabelecer ligações com o nosso tempo, problematizando-o.
Podemos comparar o pensamento de Warburg e Goethe, que tinham a palavra
polaridade como método de estudo na medida em que oposições e ligações entre
elementos coincidiam na estrutura de um pensamento crítico sobre o que observavam.
A montagem visual através da justaposição de imagens de épocas diferentes
permite relacionar diferentes tempos, que acabam por ser vistos simultaneamente em
cada prancha do atlas, intuindo uma ideia de movimento que é lida pelo espectador.
Rancière defendia que “uma imagem nunca está sozinha” (Batista, Juliana
(2014): p. 29) sendo o seu sentido criado quando combinado com outras imagens.
Essa comparação é permitida pelo espaço que separa os dois elementos, criando
relações de semelhança ou diferença. A memória surge neste espaço, sendo esse
intervalo “o hiato dos anacronismos (...) e a malha de buracos da memória” (Didi-
Huberman, 2002: p. 504-505).
No projeto prático que desenvolvo, que se materializa em parte na criação de
um livro e de um website, também são criados mapas de imagens e sobreposições que
tendem a querer relacionar os vários elementos observados.
22
3. A PRÁTICA DO ARQUIVO NA ARTE CONTEMPORÂNEA
3.1. Arte, Registo e Arquivo
Para Hans Belting a sedução das imagens mais antigas é justificada pela
“torrente de imagens que inunda o nosso quotidiano visual convidando-nos a
contemplar as imagens mortas de ontem com os olhos de veneração e lembrança”
(Blaufuks, 2014: p. 19).
Geoffrey Batchen defende que a atração pelas marcas passadas incita à criação
de um arquivo de modo a tentar reduzir os efeitos da perda do que passou.
As imagens e os textos recuperados e reunidos serão passíveis de novas
significações, tentando atenuar a inquietação permanente do pensamento face à
existência e à efemeridade dos atos e dos dias. A apropriação tenderá a criar uma
nova obra e o artista, ao esvaziar o sentido original do objeto, cria sentidos até então
desconhecidos. Os “arquivos mortos” (Arantes, 2015: p. 131) são material de trabalho
para algo que de outro modo ficaria velado pelo decorrer da história.
A vida manifesta-se na obra de arte e cada época assume uma plasticidade e
modo de fazer e agir próprios (Kadinsky, 1954/2010: p. 21).
No livro ou objeto que desenvolvemos enquanto lugar e espaço fundo, somos
livres para experimentar. Para Lourdes de Castro a experimentação era sempre feita
estreitamente com a sua própria vida e eu sinto o mesmo ao fazer crescer o meu
arquivo e ao torná-lo algo mutável, sempre com o fim de desenvolver-me e saber mais
(sobre mim própria). Lourdes de Castro procura através da sombra e do seu contorno
o elemento essencial de cada gente e de cada objeto, que um dia se perderá, pela
fragilidade da vida e do corpo. Contudo, o caráter breve da existência parece ser
compreendido e o mundo pode assim ser salvo, enquanto cada um de nós continuar a
existir.
Os livros e as obras de Lourdes Castro são “laboratório de imaginação” (Pires
do Vale, 2008: p. 329) onde o quotidiano está presente e a ele é dada grande atenção.
A apropriação de materiais de arquivo para nos compreendermos e
iluminarmos induziu a ideia de criação nos artistas primitivos, quando criaram em
resposta a uma necessidade interior e de acordo com a pureza dessa mesma
necessidade.
23
O artista produz um objeto ou fenómeno que originalmente apenas consegue
relacionar com algum estado interior. Recorrendo aos sentidos, o observador recolhe e
transforma os sinais recebidos. Neste processo, eventualmente, o estado interior do
artista poderá ser construído no mundo interior do observador. Através da
materialização de sensações a arte abre a possibilidade duma verdadeira comunicação
entre os seres humanos:
A nossa alma possui uma fenda que, quando se consegue tocar, lembra um
valioso vaso descoberto nas profundidades da terra.
Wassily Kadinsky
(Kadinsky, 1954/2010: p. 22).
3.2. O Arquivo e a Cultura Digital
A internet pode ser considerada um arquivo, remetendo para a ideia de infinito
e desenvolvido por um número incontrolável de indivíduos, parecendo ser a perda e a
dispersão mais comuns e frequentes devido ao seu caráter insofreável.
Hoje em dia, a prática do arquivo, quando analisados os desenvolvimentos
tecnológicos e a dinâmica das redes sociais online, trouxe uma difusão em grande
escala de arquivos pessoais, constituídos por fotos ou vídeos.
Parece existir, ao contrário do que Daniel Blaufuks continua a fazer, um
desvio quase total da fotografia analógica e da perceção efetiva do envelhecimento
dessas imagens.
A ânsia por querer mostrar virtualmente grande parte das nossas vidas, cria
álbuns diversos e de dimensão incontrolável em cada computador pessoal.
Por outro lado, a potencialidade da web tem permitido também o contacto com
textos e imagens pertencentes a acervos ou arquivos de bibliotecas e publicações
raras, através da digitalização de acervos, como os encontrados online e respeitantes à
nossa Biblioteca Nacional.
Contudo, apesar da “democratização da informação” (Arantes, 2015: p. 173),
é importante pensar na preservação dos materiais que estão disponíveis. A
digitalização de documentos permite o acesso fácil à informação mas não terá a
capacidade total de substituição do documento original, pois alguns suportes digitais
são frágeis e correm o risco de perderem a sua capacidade de uso.
24
Com arquivos de dimensões antes inimagináveis, prevê-se a necessidade de
definir metodologias e ferramentas de acesso adequadas, prevendo uma correta
utilização desses meios e organização permanente, devido à constante adição de
material em cada um dos arquivos.
Existem múltiplos cenários e paisagens que moldam a nossa experiência
enquanto sujeitos ativos de uma determinada cultura. Esta ideia leva a uma
inquietação devido à dificuldade de absorção de um todo que aparenta ser infinito,
sendo que a técnica acaba por se tornar mais rápida que a cultura (Stiegler, 1994: p.
15). Assim, a tecnologia digital interfere na forma como guardamos e acumulamos
informação e no modo como apreendemos as características de uma cultura.
A internet ou as nuvens são deste modo elementos de análise forçada devido à
sua introdução massificada nas várias culturas que são objeto de estudo. A
massificação da tecnologia digital é um ponto de primazia aquando da tentativa de
compreensão de um passado que nos é próximo, visto relacionar-se, obrigatoriamente,
com aquilo que agora somos. O objetivo será o de perceber em que ponto do mundo e
em que estado nos encontramos.
A transição de arquivos analógicos para arquivos digitais transforma os
arquivos codificando-os numa mesma linguagem, independentemente da sua
natureza, colocando-os em bases de dados e disseminando-os de forma incontrolável.
Manovich define as bases de dados como uma lista não ordenada e não hierarquizada
de elementos de leitura não contínua (Fernandes, 2015: p. 29). A memória passa a
estar em permanente atualização pois a internet consiste numa adição constante de
informação sobre nós próprios e sobre os outros, quase de modo incontrolável.
25
4. FOTOGRAFIA COMO SUPORTE DE MEMÓRIA INDIVIDUAL
E INVISÍVEL
4.1. A objetividade fictícia da imagem
4.1.1. Fotografia e Simulacro – A Sombra
Algumas fotografias provocam em nós, mesmo sem vivermos o acontecimento
na primeira pessoa, espanto e empatia, entrando na nossa vivência e relacionando-se
com aquilo que somos: pós-memória (Rosengarten, 2012: p. 13-15).
Ao simularmos um acontecimento através de uma imagem, tentando proteger
um indivíduo, devido ao potencial impacto dessa imagem, surgem imagens
danificadas em que algo se perdeu e ficou apenas na memória de alguns. Isso é
comum em episódios de enorme trauma coletivo, como o Holocausto, ou de situações
individuais ou familiares que provocaram marcas e danos na infância e que remetem e
influenciam posteriormente a vida adulta de uma pessoa ou de um grupo.
A fotografia tem uma sombra que é a de embalsamar o tempo (Rosengarten,
2012: p. 13-15). Contudo, esse tempo pode ser deteriorado e manipulado.
O arquivo, ao não abarcar apenas a fotografia, fará uma análise mais ampla do
passado, da morte de um tempo que se sabia um dia vir a ser analisado no futuro. A
nostalgia do arquivo e da fotografia convertem-se numa devoção e numa procura
constante daquilo que somos, através do nosso passado e do passado dos outros,
mesmo que seja através de um processo de empatia e de reconhecimento naquelas
imagens.
Uma fotografia com legenda pode refletir um significado manipulado e não
verdadeiro, o que se pode traduzir em variadas interpretações construídas por um ou
mais sujeitos. A fotografia apresenta continuidade e não apenas o possível tempo que
lá é visto. Existe sempre um antes e um futuro que podendo estar mais ou menos
camuflado acabaremos por criar e ver. O que vemos não é apenas a mulher e o
homem de mãos dadas ou a família aparentemente feliz no jardim, que deixou de
sorrir depois do disparo da câmara. A possibilidade de engano é tão ampla que
dificilmente conseguiremos ver a verdade. Mesmo quem faz parte daquele momento
fotografado, terá dificuldade em provar se os sorrisos eram ou não verdadeiros.
A família sorri sempre. Por isso, a mim provocam-me maior encantamento as
fotos com rostos melancólicos, porque acredito que o mais difícil e corajoso é assumir
26
a tristeza e a fraqueza que nos corrói em certas alturas.
Somos o que está na nossa cabeça e nunca conseguiremos interpretar o outro e
a sua presença por completo. Aquilo que existe é o que eu conheço, o que fotografei e
o que li e apenas isso poderá continuar a existir para ser visto por outros, mesmo que
eu desapareça. A vida continuará depois de cada um de nós partir, apesar do arquivo e
da nossa sombra poderem ou não continuar ativos, como escreveu Alberto Caeiro,
heterónimo de Fernando Pessoa no poema, “Quando Vier a Primavera”:
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Alberto Caeiro
(Pessoa, 2015)
27
Consideremos duas pessoas que recordam uma experiência em comum, mas a
forma como o fazem difere. Acabamos em muitos casos por ser esclarecidos pela
memória do outro e essa vivência leva-nos a recordar o que julgávamos esquecido.
No caso da fotografia, esta funcionará como um organizador do caos inerente
à nossa memória, emitindo pistas que tentam clarificar acontecimentos passados.
Mesmo podendo tratar-se de uma encenação, olho para uma imagem e
reconstruo um momento, elaboro através da memória uma estrutura segura para o
decorrer dos acontecimentos, algo a que possa apegar-me e tomar como verdadeiro.
As imagens que fazem parte de um arquivo conduzem-nos à busca da verdade, ao
conhecimento de um “Eu”, analisando a sua memória através das próteses, que são os
objetos que o individuo possuía. Essa verdade e realidade, talvez possam ser
ficcionadas, mas são sempre reveladoras de uma história.
4.1.2. O tempo atua sobre a paisagem
“Choveu sem parar durante três dias. A paisagem alterou-se.”
Daniel Blaufuks
(Blaufuks, 2008: p. 21)
Somos diferentes a cada dia que passa. Arquivar e calendarizar a vida poderá
ajudar-nos a compreender e a percecionar melhor essas mudanças. Contudo, se
orientarmos esse ato de arquivar para objetos que apresentam largas e variadas
compreensões, como bilhetes de comboio, fotografias, recortes de revistas, livros ou
DVDs, será que estaremos a ver o outro na sua plenitude ou para isso o arquivista terá
de agarrar numa caneta e escrever a cada dia os pensamentos e sensações que o
tomaram e que se relacionam com os objetos guardados?
Às vezes percebemos uma chamada dos objetos para que lhes seja dada uma
interpretação, fazendo simultaneamente uma leitura da pessoa associada a estes
pedaços de papel e a nós mesmos. Os papéis e as fotografias podem parecer
desprovidos de significado mas ajudam-nos a perceber o que somos, ao tentarmos
encontrar um caminho para o outro que continua ligado ao objeto mas já desapareceu.
As imagens permanecem, depois da vida terminar. Quem arquiva, pretende significar
a sua própria existência, dar-lhe um caminho, tentando encontrar um equilíbrio e um
sentido para a sua continuidade. Ao registar fotografando, filmando ou escrevendo
28
aquilo que faço e vejo, terei a sensação de ter intensificado essa experiência, pensando
no agora, mas vivendo na eternidade, na medida em que o registo terá como fim a
análise póstuma, assente mais tarde (na eternidade) do que já aconteceu.
A memória é como um espelho, um espaço fundo onde projetamos a nossa
densidade infinita e eterna enquanto a nossa existência o permitir.
A paisagem não é apenas aquilo que lá está mas sim o que o sujeito constrói.
Assim, o sujeito dará sentido ao que observa através do ponto de onde observa e sobre
o qual se fixa para o contemplar. Ao ver duas vezes a mesma paisagem, o sujeito é
forçosamente influenciado pelo passado, pela recordação primeira que tem desse
lugar ou estado. O que se viu não se esquece e não é passível de ser neutro e deixar de
influenciar o presente.
4.1.3. A imagem projetada
Às vezes descubro a foto que está à minha frente, recuando para isso no
tempo, na minha memória, de modo impercetível para quem está ao meu lado.
A fotografia confirma uma existência, volta a trazer o morto. Interessante
pensar que olho, por vezes para uma fotografia na tentativa de encontrar
aquilo que não lembro de mim próprio, a minha presença anterior. A
conservação da vida que desapareceu e não tem mais movimento. Na foto
posso ver o que foi e talvez o que será.
Roland Barthes
(Barthes, 1980/2008)
O gesto de acumular e de procurar um sentido são para o arquivo fotográfico
um dos seus fins. A procura de vida para lá da sua efemeridade é feita através das
histórias, verdadeiras ou não, e do espaço invisível de cada uma das fotografias
guardadas e que representam o que um dia foi visto por outro. O processo de olhar é
complexo, o de ver será ainda mais, consoante a alma que pretenda decifrar e
prolongar a existência da imagem.
As fotografias levam-nos a ver os olhos que viram o imperador e o próprio
imperador (Barthes, 1980/2008: p. 11). A espontaneidade, e o seu oposto, ou seja, o
artifício da imagem fotográfica, criam uma pose que pode não corresponder a uma
verdade, criando um novo corpo, que à espera de ser fixado, reage particularmente,
29
não sendo neutro. O eu aparece camuflado por outro eu, como se quem fosse
fotografado tivesse uma nova identidade.
Quando a câmara se dirige ao sujeito, este é vários, é aquele que pensa ser,
“aquele que eu gostaria que os outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo
julga que sou e aquele de quem ele se serve para exibir a sua arte numa espécie de ser
desprotegido” (Barthes, 1980/2008: p. 21-22).
Podemos também referir o estranhamento e a inquietação definidos por Freud
devido ao caráter irrecuperável do tempo que se manifesta estático na fotografia. A
fotografia inquieta, provoca e assiste a um questionamento do que quererá ser dito.
A revolta de uma imagem é conseguida quando induz o pensamento, quando a
fotografia é pensativa e faz divagar o nosso cérebro entre o recuo e a prospeção do
futuro.
Ao olharmos para uma fotografia, a verdade dessa imagem é sentida de acordo
com o nosso próprio passado e antecedentes, acordando a sua memória, mesmo que o
objeto ou pessoa representados, não sejam familiares, fazendo despertar sensações
que se relacionam com a existência.
A verdade da fotografia, apesar do caráter estático dela, torna-a viva, levando-
nos a recordar para não esquecermos o tempo (perdido). Ao olharmos para uma
imagem, recordamos sentimentos deixados naquele instante, envolvemo-nos, dando
uma nova dimensão à nossa história. Por outro lado, a memória individual parece
perder-se quando desaparecemos. Ainda assim, ao pensarmos que o registo passará
para outros olhos, acabará certamente por restituir um pouco daquilo que era a nossa
vida, quase numa tentativa de recuperação da alma perdida.
Marcel Proust "desconfiava da fotografia" (Blaufuks, 2014). Para ele "a
imagem da fotografia arrefecia a densidade e a temperatura da expressão humana, a
energia ou o sentimento da sua gestualidade irrecuperável e isso constituía o seu
pecado mortal".
Para David Hockney, na fotografia o tempo escasseia. A fotografia é
rapidamente captada, mas o observador demora-se muito mais na sua análise. Alguns
dos seus trabalhos tentam precisamente alongar o tempo da imagem, dando-lhe a
ilusão de movimento e incitando o observador a ver mais longe, a percorrer a sua
própria memória através daquilo que observa.
Daniel Blaufuks trabalha material fílmico resgatado, recontextualizando-o e
incitando o espectador a pensar sobre uma memória que, mesmo não sendo
30
diretamente a sua, o fará refletir com maior ou menor profundidade sobre a existência
de um tempo. O arquivo relançará a memória, levando o espectador a percecionar o
espaço e a história que direta ou indiretamente se projeta à sua frente.
Pensar que a fotografia camufla ideias e estados torna o homem inquieto e
desconcertado, suspeitando daquilo que observa. Essa estranheza, mas também
intimidade, que são conquistadas ao olhar para uma imagem fazem o nosso cérebro
divagar e imaginar uma extensão daquilo que é mostrado, como uma escultura
expandida que se prolonga infinitamente.
São reconstituídas ligações entre o que se vê e o que se imagina. O que já não
existe é tido como atração principal e daí a razão para arquivar e tentar preservar a
perda. Reler o que se passou e analisar os seus veios permite uma recuperação,
mesmo que parcial, de outro tempo. O que se pretende é criar novas significações
através de diferentes registos que permitirão, pelo menos em tentativa, perceber o que
ficou lá atrás, o que é efémero e temporal.
A atração pelos materiais de arquivo, tais como cartas, filmes, fotografias ou
objetos é para mim explicada do mesmo modo como Daniel Blaufuks explicou: o
envelhecimento das coisas. Com o arquivo digital o mesmo não acontecerá. A
fotografia terá no futuro o mesmo aspeto, apesar do ser ou da coisa fotografados ter
envelhecido ou desaparecido, ou seja, o acompanhamento do estado da coisa não
ocorre com a mesma velocidade no mundo analógico e no digital. A internet consiste
num arquivo, que parece infinito, incontrolável e intocável. A perda e dispersão no
arquivo digital parecem ser mais comuns e frequentes (Blaufuks, 2014: p. 89).
Quando nos apropriamos de uma fotografia é gerado um ou vários sentidos e
significações. Um modo de ver particular e individual que pode ser, ou não, comum
aos demais. A fotografia como documento, instiga a sensações que resultam da
informação sobre o que ela representa mas principalmente sobre o que o nosso
cérebro cria ao observá-la, influenciado pelo contexto no qual existimos.
Para Daniel Blaufuks, assim como para mim, existe uma tentativa de recordar
quem desapareceu e não teve até então oportunidade de ser lembrado, auxiliando-me
para isso da fotografia e do texto do arquivo que construo. É uma obrigação inquieta
mas prazerosa tentar trazer todos os tempos para o presente, atenuando a certeza do
nosso fim. O desenvolvimento de um arquivo individual passará eventualmente, mais
tarde, a constituir uma herança coletiva.
31
5. O LIVRO E A LITERATURA: SILÊNCIO E/OU CLARIDADE?
5.1. Arquivo, Livro e Hipertexto
5.1.1. O formato do livro
O livro é um espaço de experimentação e reflexão e um exercício interior de
capacidade de exteriorização de angústia e diálogos invisíveis e abstratos. A vida
pessoal é transversal a tudo aquilo a que se propõe.
A partir do século XVI, Aldo Manuzio dá ao livro um formato mais pequeno,
tornando-se a relação do leitor com este objeto mais próxima, íntima e demorada. As
transformações substanciais no formato do livro, operadas entre 1500 e 1800,
permitiram comparar diversas observações sobre o mesmo tempo.
O leitor oitocentista, com a acumulação de papel impresso, recorta, arquiva e
cria coleções privadas, verificando-se a acumulação de jornais, revistas ou catálogos.
Estes objetos podem mais tarde voltar a circular e a serem reapropriados.
As bibliotecas privadas do século XIX formam uma estrutura complexa com
materiais diversificados, podendo gerar leituras fragmentárias e desconexas, partindo
para o discurso da hipertextualidade.
O homem, devido à enorme oferta de material impresso, cai num processo em
que procura uma certa ordem no seu arquivo, colando fragmentos de várias
proveniências e gerando assim uma estrutura particular e de ordenação do discurso
(Metalivro - Bártolo, 2009). Através da apropriação e absorção do material recolhido
através do sublinhar, recortar, reconstruir e acrescentar notas, o indivíduo lê, relê,
reescreve e preserva (Bártolo, 2009: p. 121).
A reapropriação de objetos e papéis criados noutro tempo, justifica em grande
parte o meu trabalho e aquilo que lhe dá consistência. A minha biblioteca privada vai
crescendo e as ligações entre os vários elementos da estante cruzam-se e por vezes
levam-me a não precisar de sair deste espaço. Reúno para relacionar e para tentar de
algum modo ter “toda a memória do mundo” (Blaufuks, 2014: p. 13), aqui dentro.
5.1.2. Hipertexto: Conexões físicas e digitais
5.1.2.1. A impossibilidade de sermos esquecidos?
Ted Nelson entendia o hipertexto como escrita não sequencial. No que
32
respeita ao desenvolvimento de arquivos e à palavra hipertexto, hoje, o leitor
contemporâneo enuncia, observa e faz falar o texto e os objetos que preserva e
relaciona no arquivo.
Hoje em dia, pensar no esquecimento eterno, tal como referia Marco Aurélio
(“aproxima-se o tempo em que terás esquecido tudo, aproxima-se o tempo em que
serás esquecido por todos” (Furtado, 2009: p. 54)) parece irreal quando lembramos a
atualidade digital e a facilidade que temos em deixar o nosso rasto, de modo às vezes
irrefletido, e que poderá ser visto por outros que não sabemos quem são. Os papéis,
fragmentos, fotografias ou outros documentos permitem, assim o homem queira, criar
ou reconstruir uma verdade que se sobreporá ao esquecimento e à efemeridade de
cada ação.
A palavra documento, do latim «documentum», significa originalmente
ensinar, podendo designar também a própria coisa que mostra ou representa. No
mundo digital os documentos presentes no arquivo deixam de ser puramente estáticos
e amovíveis para se tornarem também móveis e de circulação fácil, ao contrário, e
como compara José Afonso Furtado ao escrever: "das paredes das cavernas em que a
humanidade deixou as suas marcas" (Furtado, 2009: p. 57-59). Por outro lado, esta
facilidade de movimento do arquivo induz a uma mutação quase permanente,
podendo o documento constituinte do arquivo, chegar às mãos do leitor não
exatamente como foi produzido.
A memória surge como um suporte de armazenamento e os ecrãs e outros
dispositivos digitais consistem em suportes de visualização voláteis (Furtado, 2009).
Antes de existirem registos escritos, as palavras faladas deixavam um rasto
temporário, na medida em que permaneciam no cérebro de cada um de forma mais ou
menos consciente. A fixação da memória de forma durável é uma das bases principais
do Arquivo, sendo, desse modo, aparentemente mais fácil a tentativa de preservar e
reproduzir a memória.
Importa, para o desenvolvimento do meu arquivo pessoal, pensar neste gesto
de reunir fragmentos que comunicam entre si, apesar da distância que os separa na
caixa ou no álbum de fotografias, podendo essa ligação ser direta e racional ou uma
ligação subjetiva e que surge das minhas características individuais. Um dos objetivos
será sempre o mesmo: fazer alguém viver para sempre ou enquanto eu existir e não
tiver destruído o elemento que se associa a uma vida ou a um momento, isto porque
naturalmente objetos e artefactos duram muito mais tempo, fisicamente, do que as
33
pessoas.
5.2. O Diário e o Fragmento
Diga-me uma coisa: você pensa no teu futuro?
A pergunta ficou por isso mesmo, pois a outra não soube o que responder
Clarice Lispector
(Lispector, 1977/2002: p. 71)
Aquilo que é escrito ou verbalizado é fruto de uma tensão entre o
esquecimento e a lembrança de um acontecimento, e a verdade é algo interior,
solitária e inexplicável.
O escritor escreve porque existe e para existir com o objetivo de ocupar o
tempo e dar-lhe um sentido (Godinho, 2009: p. 105).
Quando somos incapazes de descrever o que vemos, emendamos, criamos
fragmentos e conjuntos de papéis e diários, apropriando-nos de espaços brancos a
serem preenchidos com névoa, por incapacidade de descrição concreta de uma
realidade.
O passado que eu evocava parecia irreal, como uma cena que se passasse
num palco e a que eu assistisse como espectador na última fila de uma escura
galeria. Mas tudo era muito claro, apesar da distância. Não era nebuloso,
como a vida que se está vivendo, cujos contornos perdem em precisão graças
ao incessante tropel das impressões, mas nítido e destacado como uma
paisagem a óleo pintada por um paciente artista do apogeu da era vitoriana.
Somerset Maugham
(Maugham, 1930/?: p. 46-47)
No entanto, toda a descrição terá uma relação com o autor, um sentido dado
por quem escreve, podendo este ato solitário ser incompreendido por outros mas
levando a uma libertação e quietude do espírito do autor.
Para Vergílio Ferreira escrever servia para organizar o real, mostrar-se a si
mesmo, olhar-se no espelho e eventualmente entender-se, como tentou também a
escritora Clarice Lispector.
34
Para o escritor, entender a vida era o principal propósito da sua existência. Nas
várias obras que escreveu a “aparição de si a si próprio é uma revelação que abre um
passado primordial, anterior ao próprio nascimento da personagem” (Godinho, 2009:
p. 107).
Escrever a vida para preencher ausências e desencantos próprios da existência
imperfeita e crua, e analisar o olhar dos mortos que invadem o presente é na sua obra
uma constante. A escrita de diários e fragmentos assume-se como uma forma de
conservar e de não deixar invadir o que já foi presente.
5.3. Todos os escritores do mundo
5.3.1. A Escrita e o Medo – Roland Barthes
A única paixão da minha vida foi o medo.
Thomas Hobbes
(AA.VV., 1982: p. 161)
Os livros são portadores de uma história, são um arquivo físico que pode ter
um fim e que pode ser alvo de destruição.
A escrita precede o medo. O escritor deambula, agarra o material da escrita e
pretende ser salvo. Quando selecionamos e organizamos vários blocos de livros para
cada capítulo que iremos escrever e rever, não estamos preparados para toda a
angústia revelada pelo ato infinito que assumimos. Mesmo depois de escrevermos a
palavra “fim”, a dispersão na nossa mente será constante.
Sublinhamos, marcamos outros livros e arquivos, criamos as nossas leituras e
a tentativa, parece-me ser sempre a mesma, reconhecer a efemeridade da vida e, ainda
assim, dar-lhe mais tempo, através do conhecimento que adquirimos e do modo como
ocupámos o tempo, a ler ou a aprender o que outros, escreveram para viverem para
sempre.
Roland Barthes (AA.VV., 1982: p. 162), refere uma espécie de terror e de
aborrecimento traduzido num discurso previsível e comum, sem nada de novo, mas
que poderá estar lá, e o escritor não conseguir livrar-se dele.
A minha repugnância, que é afinal um medo em reler os meus livros
passados... O pânico depois de ter lido certos textos.
35
Roland Barthes
(AA.VV., 1982: p: 163)
O medo de voltar atrás, de abrir a caixa fechada e finalizada remete para o
arquivo, para o que foi dito, escrito ou fotografado e deixado para um dia ser reaberto
e relido. No caso da fotografia, a morte estaria, sobretudo na «imagem que produz a
Morte querendo conservar a vida»: a Fotografia (AA.VV., 1982: p: 163)
No livro A Câmara Clara, Roland Barthes explica o que já não é, o medo que
deixou de ser por já não existir e o já não ter nada para dizer, que acontece ao olhar
para a fotografia do morto, ou para o texto que deixou escrito e só será ouvido na
nossa mente.
Após a consciência desta análise, Barthes foca-se na escrita, nas línguas
mortas, no latim e no grego, para continuar a progredir e não cair no aborrecimento.
Assume que podemos descrever tudo, exceto a morte.
36
6. A MEMÓRIA – BREVES CONSIDERAÇÕES CIENTÍFICAS
O nosso cérebro guarda o que está a acontecer dentro dele quando temos
determinada experiência.
O momento de recordar, consiste em viver a experiência não só
metaforicamente mas com ansiedades semelhantes, pânicos ou sentimentos de bem-
estar associados à experiência recordada.
Amanhã, quando recordarmos o passeio que fizemos hoje, voltaremos a ter
presente os sentimentos originais, ou seja, a memória será como uma aproximação da
ideia de passar pela mesma experiência.
O valor dado às experiências passadas define em grande parte as nossas ações
futuras e o modo como nos movimentamos no mundo. A capacidade do homem
possuir uma autobiografia e pensar na sua história em detalhe e de modo amplo
distingue-o dos outros seres vivos.
Em casos extremos a intensidade insuportável da emoção pode dar origem à
repressão e à dissociação, tornando-se difícil ou mesmo impossível a recordação da
experiência.
Freud foi um dos primeiros a defender de uma forma vigorosa o papel dos
fatores emocionais na memória, tendo proposto a repressão como uma forma de
impedir o acesso da consciência a lembranças de natureza ameaçadora ou geradoras
de ansiedade. O acesso eficaz à informação passada requer, em grande parte, a
reintrodução do contexto original, a partir do fornecimento de pistas ou indicadores,
que podem estar situados nos espaços de arquivo (Pinto, 1998):
O que distingue a memória humana é o ser capaz de criar uma memória que
pode ser recuperada de uma forma imagética sonora ou visual. Grande parte
do nosso mundo atual é dominado por memórias visuais ou auditivas. Existem
outras memórias mas estas duas dominam a nossa cultura e essas memórias
aparecem como uma figuração completa. (...) As imagens não são só visuais,
são representações. A possibilidade de recuperar imagens e a possibilidade
de manipular imagens que são a fonte principal da execução criativa. (...)
Tanto no que diz respeito ao som como à parte visual (cinema) é que elas
podem ser cortadas aos bocados e podemos levá-las para a frente ou para
trás e juntá-las diferentemente no tempo. A criação artística assenta nesta
37
base principal. Imagens que ocorrem no tempo e são ligadas de uma forma
muito gentil ou fragmentada. Criatividade, memória e imaginação são
capacidades interligadas sem as quais não é possível (...) conceber novos
modelos e realizações quer do ponto de vista social quer do ponto de vista das
artes clássicas ou da invenção filosófica.
António Damásio
(Damásio, 2014)
38
7. PROJETO: EDIÇÃO E PRÁTICA
7.1 A organização de arquivos
A tentativa de organizar o real transforma o homem em autor. Como prática
de organização, as práticas da edição e do design podem considerar-se como
tentativas de conter a dispersão do arquivo e de eliminar a angústia do
desconhecimento.
O design tem a capacidade de criar uma estrutura onde é possível aceder
rapidamente ao que se insere no meu arquivo, nomeadamente, aos objetos que possuo,
mesmo que seja impossível tocar-lhes, porque estão numa fotografia impressa ou
escritos no interior de um livro, num ecrã de computador ou de um smartphone ou
verbalizados numa cassete de áudio.
Podemos encarar o arquivo como um rasto que vai deixando marcas e
presenças em diversos dispositivos, através de inventários, listagens, gravações áudio
e coleções que permitem um regresso recorrente àquilo que está ausente.
Ao associar o meu arquivo a um projeto prático constituído por um livro, uma
cassete e um website, facilmente transportáveis, poderá existir um despojamento dos
elementos lá referidos, na medida em que estes objetos não têm de estar física e
diretamente ao meu lado, pois a ideia deles continua a existir nestes três repositórios
que são espelhos daquilo que possuo ou já possuí.
As metodologias de acesso, ao desenhar um livro constituído por listas dos
objetos que possuo e mapas imagéticos, são motivadas por uma aproximação às
pranchas de imagens desenvolvidas por Aby Warburg, de modo a garantir uma leitura
rápida e um rememorar de informação e lembranças associadas aos objetos que
podem não estar fisicamente junto a mim num determinado momento.
39
Figura 1 - Rímini: representación neumática de las esferas en oposición a la
fetichista. Forma antiquizante. Aby Warburg.
Figura 2 – Anatomía mágica. Examen de los intestinos – Búsqueda del asiento del
alma. Anatomía científica = contem plación por afluência del llanto fúnebre.
Anatomía animal, patética y contemplativa [cfr. Carpaccio]. Aby Warburg.
Através da utilização de gravações áudio, de listagens dos objetos, gravadas
via iPhone, que depois são transpostas para uma cassete, é feito um inventário áudio
acessível através de uma repetição oral daquilo que é visto. A audição da minha
40
própria voz levará a uma aproximação do meu estado de espírito aquando da
gravação, sendo que o tom de voz e a velocidade do que é ouvido nunca poderão ter
um caráter neutro.
7.2. O livro como suporte de um arquivo
“A observação do passado não se destina a um macabro trabalho de
desenterrar os mortos. Não é uma viagem ao reino das sombras, nem pode
resultar por uma predileção bafienta pelo que o tempo esterilizou. O que está
morto, está morto. De facto só me interessam as coisas vivas, que me
interpelam, que se metem comigo.(...) Só me interessa o presente e a maneira
de me movimentar no espaço e no tempo em que vivo. Quero com isto dizer
que só me atrai no passado aquilo que me permite compreender e viver no
presente.”
José Mattoso
(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 8)
Às vezes existe o receio de uma repetição do agora no futuro. Queremos uma
quebra e uma destruição desse arquivo, desses documentos e tempos passados,
invertendo uma lógica de tempo linear.
Eu transcrevo os textos de escritores ou escrevo por alusão a certos textos e
colo ao seu lado imagens porque gostaria de ler o mundo, no passado e no que ainda
não aconteceu, através dos diários, fotografias, guias e objetos, que guardo e que são
sombras de mim. O tempo das imagens e dos objetos é relacionado com o tempo do
meu corpo e assim é criado o livro, a cassete e o website, que têm em si mistério, luz,
sombra e o infinito. Não são apenas depósitos de informação, mas prática. É o que
passou e o que será feito.
As imagens e os textos são montados e articulados de modo a tornarem-se
próximos. Aquilo que guardo e é mostrado no livro é um inventário daquilo que existe
e considero relevante dentro da minha casa e que guardei até aos dias de hoje.
As fotografias inseridas no livro contêm o que vi pela primeira vez, o que fui a
única a ver e aquilo que foi visto por outros antes de mim. O intuito principal prende-
se com a orientação da minha própria memória, tentando perceber a passagem do
tempo e prolongando a existência, na medida em que o conhecimento poderá ser
41
alargado e novas ligações criadas cada vez que olho para as imagens ou que oiço o
que está gravado na cassete.
Como indicava Mallarmé, o livro aspira agarrar o tempo e dar-lhe
continuidade (Pires do Vale, 2012: p. 148).
O quotidiano é também colocado no livro e desse modo é imortalizado algo
que não conseguirei controlar sempre.
Ainda assim, ao voltar a olhar anseio uma unidade e um sentido, através de
lembranças. Talvez seja a torrente de imagens que inunda o nosso dia a dia, o principal
motivo para querer contemplar as imagem mortas, venerando-as através daquilo que
somos, tal como referia Hans Belting (Blaufuks, 2014: p. 19).
O tempo irrecuperável das imagens causa estranheza (Das Unheimliche de
Sigmund Freud). No entanto, apesar desse sentimento, o objetivo será sempre o de
continuar a procurar um significado para o que existe, dando-lhe forma e instigando
sempre a vontade de continuar a respirar.
O tempo está organizado em passado, presente e futuro e embora o futuro
possa ser o tempo que não existe, a ilusão que é trazida pelos objetos que
colecionamos dá-nos a sensação de controlo desse mesmo tempo que se esvai sem
dele conseguirmos verdadeiramente tomar conta.
Através da montagem feita no formato livro, criando um atlas de imagens,
chegamos ao conhecimento, em alusão às pranchas de imagens de Aby Warburg:
“O arquivo pede-nos, certamente, para afrontar a questão do inesgotável e do
insondável. Mas o atlas, pelas suas próprias opções – ou mais exatamente,
pelas suas montagens – torna visíveis o inesgotável e o insondável enquanto
tais.”
Georges Didi-Huberman
(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 15)
No livro que desenvolvo são mostradas pranchas constituídas por imagens que
podemos relacionar. Em potencial os mapas de imagens que construo são elementos
que pretendem conduzir a novas tomadas de conhecimento e interpretações.
42
7.3. Um livro, uma cassete e um website
Em breve saberei quem sou.
(Borges, 1998)
A maior parte do tempo resume-se a fazermos algo e a ocupar esse tempo
enquanto a vida passa. Para mim a questão principal será a de perceber como
preservar esses momentos.
Eu fotografo os objetos que tenho, relaciono-os e penso no tempo de cada um,
numa ânsia permanente que quer acima de tudo levar-me a entender e a sentir mais,
para que o tempo não custe tanto e o aborrecimento não seja temido.
O projeto-prático por mim desenvolvido assenta num livro com as fotografias
de alguns objetos que coleciono e que pertencem ao meu arquivo pessoal; a gravação
de uma cassete de áudio com a enumeração desses objetos; e um website que pretende
assumir-se, ao contrário dos outros dois dispositivos, como um arquivo online,
pedindo um envolvimento e o olhar de quem é convidado a viver uma experiência e a
relacioná-la com a sua própria existência.
Este projeto deriva de um conjunto de dois livros desenvolvidos no primeiro
ano deste ciclo de estudos de mestrado e que teve como fim ser o início de um
trabalho que pretende relacionar os vários objetos que possuo. Foram construídos dois
livros inseridos numa caixa forrada com tecido, um com textos escritos por mim e de
autores dos quais sigo o trabalho, e que se ligam direta ou indiretamente às imagens
que completam o livro, e outro que mostra parte da minha coleção de pacotes de
açúcar.
Para além dos dois livros são inseridos, dentro da caixa, postais e um mapa
pertencente ao meu arquivo.
Mostro aqui algumas imagens destes objetos, que serviram de base ao
projeto-prático da presente dissertação de mestrado, o livro A Estufa e o livro Açúcar
Volume I:
43
Figura 3 – A Estufa & Açúcar Volume I (1), 2016
Figura 4 – A Estufa & Açúcar Volume I (2), 2016
Figura 5 – A Estufa & Açúcar Volume I (3), 2016
44
Figura 6 – A Estufa & Açúcar Volume I (4), 2016
Figura 7 – A Estufa & Açúcar Volume I (5), 2016
Figura 8 – A Estufa & Açúcar Volume I (6), 2016
45
Figura 9 – A Estufa & Açúcar Volume I (7), 2016
Figura 10 – A Estufa & Açúcar Volume I (8), 2016
Figura 11 – A Estufa & Açúcar Volume I (9), 2016
46
Figura 12 – A Estufa & Açúcar Volume I (10), 2016
Figura 13 – A Estufa & Açúcar Volume I (11), 2016
Figura 14 – A Estufa & Açúcar Volume I (12), 2016
47
O livro com o título in.ven.tá.ri.o, desenhado como continuação do projeto
acima mencionado tem uma dimensão reduzida (13 cm x 21 cm), de modo a facilitar
o seu transporte. A encadernação é efetuada com espirais, remetendo para a ideia de
caderno de campo, e com impressão a preto e branco, prevendo a possibilidade de
retirar facilmente algumas folhas, que estão devidamente numeradas, para que possam
ser analisadas e vistas junto de outros elementos localizados em diferentes pontos do
livro.
Para a impressão da capa e do miolo utilizo dois tipos de papel. No miolo foi
utilizado o papel Munken Print White 115gr, que apresenta boa robustez para
encadernações com espiral. Para a capa e contracapa usou-se um papel com uma
gramagem generosa, Eural 250 gr., de modo a fortalecer o objeto que se prevê que
seja manuseado com regularidade.
Algumas páginas do livro encontram-se por preencher para permitir adicionar
elementos à listagem de livros e outros objetos do arquivo, pois está prevista a ideia
de adição e mutação do mesmo, embora de modo limitado, pois quando este livro
estiver completo será desenvolvido outro, que pretenderá ser a continuação de uma
reflexão e organização do meu arquivo.
No que diz respeito à tipografia utilizada, o desenho da forma de um tipo de
letra é orientado para o registo e transmissão de uma mensagem. A escrita permite
fixar a experiência de forma atemporal, podendo ser partilhada fora do lugar onde
decorreu a ação. No projeto prático foi utilizada a tipografia Feijoa distribuída pela
Klim Type Foundry, que devido à natureza curvilínea de cada letra, facilita a leitura
de uma grande quantidade de texto ou de uma listagem com mancha homogénea.
A cassete, também com o nome in.ven.tá.ri.o, apresenta uma listagem oral
com a minha própria voz.
Figura 15 – in.ven.tá.ri.o (1), 2018
48
Este suporte, juntamente com o website (www.in-ven-tá-ri-o.pt), que prevê a
introdução de pranchas de imagens, tal como o livro, pretende ser um complemento
desse suporte principal, constituído por páginas que instigam à relação de várias
imagens e textos.
Figura 16 – Website www.in.ven.tá.ri.o.pt, 2018
Deste modo, verificamos que o arquivo pode ser trabalhado em variados
suportes, que o sustentam e o ajudam a difundir-se, visual e oralmente para que
possam exprimir aquilo que sou, o que penso e o que quero dizer. No entanto, a
interpretação do que é visto caberá a cada uma das pessoas que observa o arquivo.
Esta noção de partilha com o outro daquilo que somos pretende ajudar a
intensificar a ideia de imortalidade, pois viveremos para sempre, na medida em que
esse sempre acaba quando deixarmos de existir, e isso acontecerá quando mais
ninguém se lembrar daquilo que fomos.
O objetivo de criar vários elementos com enumerações e listagens do que
possuo é organizar e permitir uma melhor compreensão de toda a dispersão de
registos que fui acumulando e para os quais não tenho muitas vezes tempo de lhes
dedicar uma nova leitura.
49
Figura 17 – in.ven.tá.ri.o (2), 2018
Figura 18 – in.ven.tá.ri.o (3), 2018
Figura 19 – in.ven.tá.ri.o (4), 2018
50
Figura 20 – in.ven.tá.ri.o (5), 2018
Figura 21 – in.ven.tá.ri.o (6), 2018
Figura 22 – in.ven.tá.ri.o (7), 2018
51
Figura 23 – in.ven.tá.ri.o (8), 2018
Figura 24 – in.ven.tá.ri.o (9), 2018
Figura 25 – in.ven.tá.ri.o (10), 2018
52
Figura 26 – in.ven.tá.ri.o (11), 2018
Figura 27 – in.ven.tá.ri.o (12), 2018
Figura 28 – in.ven.tá.ri.o (13), 2018
53
Figura 29 – in.ven.tá.ri.o (14), 2018
Figura 30 – in.ven.tá.ri.o (15), 2018
Figura 31 – in.ven.tá.ri.o (16), 2018
54
Figura 32 – in.ven.tá.ri.o (17), 2018
Figura 33 – in.ven.tá.ri.o (18), 2018
Figura 34 – in.ven.tá.ri.o (19), 2018
55
Figura 35 – in.ven.tá.ri.o (20), 2018
Figura 36 – in.ven.tá.ri.o (21), 2018
Figura 37 – in.ven.tá.ri.o (22), 2018
56
Figura 38 – in.ven.tá.ri.o (23), 2018
57
8. CONCLUSÃO
8.1. Introdução
Um arquivo é memória e promessa.
(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 20)
Para compreender um arquivo existe uma seleção de conteúdos com o fim de
perceber a relação do nosso presente com aquele passado ali exposto e que sustenta a
existência “de um outro ausente (Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 7). Compreendemos
um passado vital que ajuda a revitalizar o presente de cada um de nós.
Para concretizar uma análise que inclua uma compreensão densa importa falar
de arquivos enquanto espaços suscetíveis de serem catalogados, colecionados,
inventariados e listados. O mnemon, “pessoa com a função social de memória”, ideia
instituída pelos gregos, tinha como finalidade ser uma memória viva que ajudava a
esclarecer assuntos religiosos e de ordem jurídica. Ao desenvolver-se a escrita as
memórias passam mais tarde a ser mantidas através do auxílio da criação de um
arquivo escrito. O mnemon era pois uma memória-viva (Pires do Vale, Paulo, 2014 p.
9) que acompanhava alguém com o intuito de lembrar um determinado passado,
auxiliando a pessoa no seu presente.
O arquivo assumirá um importante papel de identificação, contando uma
história ainda em formação. A Torre do Tombo, em Lisboa, consiste num importante
centro arquivístico que ajuda a contar várias histórias e a esclarecer e auxiliar a nossa
memória.
Nos dias que correm, a história é feita por um amplo leque de pormenores e
não apenas por um grupo de inventários considerados os mais satisfatórios para
relatar determinado tempo. A história passa deste modo a apresentar uma maior
autenticidade, sendo fruto de uma tentativa de chegar à pureza dos tempos com tudo o
que isso abarca. No entanto, o arquivo não é algo neutro, pois os documentos são
selecionados por alguém que apresenta um instinto diferente dos demais e assim
sendo “cabe ao historiador não fazer o papel de ingénuo”, como refere J. Le Goff
(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 12), montando conscientemente uma história
reveladora simultaneamente de um passado e de um presente, iluminando a nossa
história.
58
O ato de arquivar resulta de um processo de escolha que reúne o que é
considerado relevante em determinada época, pois consoante o tempo, um documento
pode ser ou não considerado essencial para material de arquivo, caso seja ou não
revelador de potencial, sendo isso indicador de que a história é feita daquilo que nos
vários tempos se decidiu guardar pelo nível de importância instituído.
Se outros documentos tivessem sido guardados a história seria contada talvez
de outra forma. Assim, deve ser tido em conta o documento que existe e as marcas
ausentes para contar uma história. O arquivo é “seleção, tratamento, classificação e
disponibilização de material” (Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 14). A seleção, em
muitos casos, é difícil de efetuar por aquilo que fica de lado e não entra na montagem
para a tomada de conhecimento de um determinado tempo.
8.2. Conclusão sobre o problema de investigação
“Muitas novidades se verão nesta história, não novas por novas, senão novas
por antiquíssimas.”
Pe. António Vieira no livro História do Futuro
(Pires do Vale, Paulo, 2014: p. 8)
Na impossibilidade de fotografar tudo aquilo que tenho, o trabalho de
desenvolvimento do livro prevê uma seleção arquivística através da listagem e da
montagem em duplas páginas de imagens que se relacionam entre si e permitem uma
nova tomada de conhecimentos, funcionando como atlas de imagens que podem
relacionar-se entre si.
Prevê-se seguir com a investigação acerca dos temas Arquivo e Memória
através da permanente adição de conteúdos ao livro, site e cassete que desenvolvi,
pois estes suportes estarão em constante mutação e revitalização, sendo possível
desenvolver no futuro novos livros com imagens e textos de/e sobre objetos
adicionados e reanalisados no meu arquivo.
59
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