ninfas e adamastores - raquel ochoa

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Conto em ambiente histórico, passado nos Açores do séc. XIX. Relata a luta de um emigrante judeu do Magrebe que se estabeleceu em S. Miguel e ali encontrou o lugar onde se enraizar, onde criar a família e a fortuna. Contudo, quer a nível pessoal, quer a nível financeiro, a luta para se manter numa terra, abandonando a vida errante, pode revelar-se maior do que ele próprio.

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa

Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho

Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado

JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio

David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira

Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN

A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Raquel Ochoa

Título: Ninfas e Adamastores

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto

Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-24-2

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consenti-

mento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição

o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo

com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

— • —

Raquel Ochoa

Nasceu em Lisboa, em 1980. As viagens têm inspirado várias obras: O Vento dos

Outros (2008), o relato do seu percurso pela América do Sul, A Casa-Comboio, vence-dor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2009, e o recente romance Sem Fim à Vista (2012). Publicou também duas biografias: Bana – Uma Vida a Cantar

Cabo Verde (2008) e A Infanta Rebelde (2011), a histórica verídica de resistência de D. Maria Adelaide de Bragança.

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Ninfas e Adamastores— • —

Raquel Ochoa

Quando o meu pai decidiu emigrar para as ilhas distantes, um arquipélago europeu no

meio do Oceano Atlântico, ia confiado que ali encontraríamos o ambiente de fraternidade que os

novos ventos da Europa bolinavam propiciando condições de prosperidade.

No Magrebe já não havia o que negociar e novas perseguições sucediam as antigas.

Porém, nos isolados Açores, não havia chegado ainda nenhum eco de mudança. O povo, pobre,

inculto, submisso, não questionava a nobreza, dedicada ao ócio, e muito menos o clero instalado.

No futuro considerá-las-iam sinónimo de paraíso, mas, naquela época, viver nas nove ilhas

não era nada fácil, assim o testemunha a história. O ritmo de vida das gentes sacudia ao sabor

das erupções e pelos humores do mar. As gentes dali sabiam que a vida é um milagre que tem

tempo curto.

“Os hebreus do Magrebe”, como nos chamavam no início, e com eles o meu pai, desembar-

caram em S. Miguel em 1820 e, se em termos de ambiente comercial havia uma contracção da

economia do continente, contracção essa que já vinha do início do século, acentuada pela guerra

peninsular e pela abertura dos portos brasileiros aos ingleses a partir de 1808 – a corte refugiada

no Brasil não parecia diligenciar sobre as medidas de Beresford, na prática quem governava –,

em S. Miguel por sua vez continuava a afluir uma quantidade considerável de embarcações e

oportunidades de negócio.

Não era fácil manter o contacto com a comunidade sefardita do Norte de África devido

à gradual perda de importância na política portuguesa. Ora, para nós, isso proporcionou uma

ligação intrínseca à terra, a terra que ainda nunca tínhamos sentido como berço. No Magrebe

a nossa subsistência já não diferia muito dos berberes tradicionais que ali habitavam. Ou seja,

sempre fomos ambulantes até as ilhas nos conterem. A má conjuntura económica e uma série

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de conflitos etno-religiosos apressaram a nossa partida. A diminuição da actividade da Inqui-

sição em Portugal, por seu turno, mesmo antes de ser abolida nas cortes constitucionais de 1821,

favoreceu a decisão de emigrar.

À última da hora, Cassilda, casada com o meu pai há menos de um mês, decidiu não embarcar.

Ela, muito nova, não quis abandonar os pais e recusava-se a aturar um clima tão inconstante que

ali diziam haver. Decidiram que se juntaria a ele mais tarde, já estabelecido e com condições para

a fazer viajar confortavelmente.

Quando ele e o meu tio aportaram, logo começou a trabalhar como mercador ambulante com

os produtos que levou consigo, criando agitação na ilha devido aos preços mais baixos.

A resistência foi grande, prova disso constitui a decorrência de um motim no ano de 1834 na

cidade de Ponta Delgada. Foi o único na história, mas as gentes não se contiveram de apedrejar

indivíduos e assaltar alguns estabelecimentos judeus. O Governador Civil pediu que se resta-

belecesse a normalidade, isto porque, mesmo não sendo o nosso caso, havia aqui vários judeus

provindos da Grã-Bretanha, o que poderia despoletar uma má reacção de S. Majestade.

Voavam pedras e o meu pobre pai ficou ferido com alguma gravidade na nuca. Todavia,

uma destemida jovem açoriana socorreu-o, mesmo suportando a ira dos sublevados.

Sara. A partir do momento em que apareceu na sua vida veio-lhe a garantir algumas insónias.

Modificou-lhe a percepção da realidade, afinal havia mulheres assim, doces, modestas, com um

porte burguês na simplicidade das maneiras que traziam do campo.

No dia em que conheceu o meu pai vestia-se de branco. Sem luvas, as mãos e o rosto revelavam

a pele morena, um risco ao meio no cabelo e duas tranças presas atrás da cabeça exibiam esmero

na aparência. O vestido e as combinações eram pesados, volumosos. Foi da bainha do seu saiote

que retirou um pedaço largo de tecido e socorreu meu pai.

Trocaram as primeiras palavras, ele, mais velho e mais cansado, não de corpo nem de mente,

mas das dificuldades em se integrar em terra alguma, desabafou.

– A vida é tão curta e mesmo assim os dias parecem tantos e tão longos.

– Tem de calar-se e esperar que cheguem horas melhores. O que os seus olhos não vêm o seu

coração pode sentir. Esta gente não tarda está a bradar contra outros quaisquer.

Sara, nascida no seio de uma família do interior, ao chegar à casa dos seus avós na Lagoa

das Sete Cidades, com dezasseis anos, depois de ter passado mais de um ano a viver com os pais

em Ponta Delgada, apercebeu-se de um dado inacreditável e até ali desconhecido para si – eles não

sabiam que à sua volta, atrás do cone do grande extinto vulcão, havia mar.

Teimou em mostrar-lhes, não podia aceitar que eles nunca subissem a cumeada e espreitas-

sem o azul profundo que os rodeava.

Já eram velhos, não queriam saber. Nunca haviam visto o oceano. Morreram sem nunca

terem olhado o mar, sentindo-se afortunados por contemplar todos os dias da sua vida duas

lagoas, de duas cores, depois de amanhar o campo e ordenhar o rebanho.

Esse facto revoltou Sara, para quem o sonho maior passou a ser visitar todas as ilhas do ar-

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quipélago. Um dia Sara ainda lhes disse: “pois é verdade que esse mundo é muito grande”.

Mas não era caso único, no Pico, por exemplo, na encosta dos três mil metros de montanha,

havia quem soubesse que no outro lado da ilha existia o Faial, mas morria sem nunca o ter visto.

Como é que o meu pai resistiria a uma mulher assim? Dizem que não há ideias irrefutáveis.

Será que há sentimentos? E se os há, será o Amor um deles? Começou a constar que o judeu ia

casar com uma moça católica porque era muito esperto. Mas eles sabiam o que os ligava. Amor, a

génese e a solução de todos os problemas.

– Achas que a lua envelhece?

– Não. A lua é como o amor, quando existe, quando é verdadeiro, é para sempre, só vai

mudando de cara. Tem três ou quatro, cíclicas.

– A lua?

– Não, o amor. O único problema é que as pessoas têm direito a ficar cansadas da repetição.

Mas quando procuram novo amor, não se livram do mesmo funcionamento, do mesmo processo.

– Então porque não ficaste com a tua primeira mulher?

– Porque não era amor. Além disso ela nunca respondeu às cartas em que lhe pedia para vir

ter comigo.

– No futuro, se o divórcio for permitido, esse vai ser um problema, as pessoas que não tenham

esta noção poderão estar a repetir sempre o mesmo erro, só mudando de parceiro. Mas o divórcio

nunca vai ser permitido.

– Porque dizes isso? No futuro tudo vai ser permitido.

Cagarros saíam a viver e voavam ali perto preenchendo o anoitecer com ruídos estriden-

tes, estranhos.

Soube que o amava e contra a vontade de seus pais casou com um judeu de quem teve dois

filhos. Lembro-me da cordialidade desta mulher, nunca me votou nenhum desprezo nem raiva.

Foram felizes durante alguns anos, os criados comentavam que se fechavam a dormir a

sesta todos os dias e que quando reapareciam traziam sempre um ânimo renovado. Esse hábito

de amantes conservaram-no para sempre, mesmo quando separados, como se o pico do sol fosse

para eles o acender dos corpos. Queriam-se um ao outro, mas a sua história definir-se-ia como um

constante problema com alguns momentos de paz. Ao pensar neles agora…

A contenda contra os judeus manteve-se durante bastante tempo, mas vieram a beneficiar da

chegada da legislação liberal.

Viviam, tal como os nossos primos, na Rua do Garcia, a mesma onde se situava o esta-

belecimento, nas proximidades da alfândega e do cais de embarque, na baixa da cidade, bem

como lojas de fazendas e mercearias. Viver e negociar são sinónimos, porque não os exercer

na mesma rua?

Não longe dali, na freguesia de S. José, prostitutas, pescadores, trabalhadores do campo, sa-

pateiros, e tantos outros passeavam-se junto das tabernas, tendo como transeuntes as criadas que

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levavam as notícias vistas ou ouvidas para dentro das casas.

Até que um dia uma família aristocrata mudou-se para Coimbra e pediu, ou seja, contratou

meu pai para que dos seus bens cuidasse.

No rés-do-chão, uma biblioteca de centenas de volumes onde Teófilo de Braga vinha fre-

quentemente pedir a meu pai para ali ficar durante a tarde, embrenhado na leitura de todos os

livros que conseguisse.

Mas não foi só a casa e o recheio que o casal teve de cuidar. Com esta tarefa ficou também

meu pai incumbido de orientar os funcionários, vários, todos bastante capazes exceptuando um

deles, Francisco.

Como disse, foram felizes e viveram em paz durante dezassete anos. Meu pai trabalhava afin-

cadamente para manter a família e pouco ou nada descansava, reservando os poucos momentos

de calma para se instruir no seu recompensador universo livresco e, às vezes, escrever algumas

cartas, ou poemas – pertencia ao grupo de poetas que surgiu no ambiente micaelense depois da

vinda de Castilho para aqui.

Um dos seus melhores amigos, João Maria, frequentava a casa como se vivesse nela, as

portas apresentavam-se abertas com a mesma naturalidade que o estão para os filhos, e assim

não levantou suspeitas ao manter longas conversas com a filha mais velha do meu pai, Ana

Isabel. Nem levantaram suspeitas os passeios no jardim, as horas que se fechavam na biblioteca,

quase em silêncio.

Um dia, Francisco comentou-o com o dono da casa, perguntando se desejava que se manti-

vesse por perto quando João Maria entretinha Ana Isabel em sessões de leitura. O meu pai não viu

necessidade disso, afinal o amigo tinha mais do dobro da idade da moça e respeitava-o acima de

tudo. No meio dos seus mil afazeres deixou evaporar o assunto e passaram-se meses até ao dia da

estrondosa notícia.

Ana Isabel tencionava casar-se com João Maria. Ele sendo católico e não existindo à época

casamento civil na lei portuguesa, antecedia o acto a renúncia pública da noiva à religião de

seus pais.

Meu pai tentou demovê-la e chorou pelo enorme desgosto que era ver aquela filha inteligente

e linda a renunciar à herança preciosa, conservada sob enormes custos. Agora que ninguém os

perseguia pois haviam encontrado nos Açores um lugar onde não eram molestados pelas suas

crenças, e que até a sua mãe se convertera ao judaísmo, o acto da filha, no seu entender, consistia

numa verdadeira insanidade.

Nunca esqueceria os arrepiantes momentos da saída da filha do seu lar. Como o casamento

se realizava contra a vontade dos pais, Ana Isabel foi tirada de casa pela autoridade judicial. Mas

este foi só o primeiro de vários acontecimentos que transformariam aquela casa numa mensagei-

ra de contrariedades.

Francisco, naquela manhã, saíra para os seus trabalhos de olhar esgazeado. Meu pai estava

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nesse momento a confraternizar com Fernando, o filho mais novo, de quinze anos, quando foram

interrompidos por uma notícia terrível.

Numa terra pequena como Ponta Delgada, as novidades demoram menos que o vento a

percorrer todos os lares.

Fernando, com o consentimento e auxílio financeiro do pai, carregara um veleiro com merca-

dorias destinadas à exportação para a Madeira. O navio estava pronto a sair no ancoradouro de

Ponta Delgada, então, no ano de 1853, muito desabrigado e perigoso. Ao fazer-se à vela levantou-

-se um dos violentos temporais dos Açores que lançou o navio sobre a costa, reduzindo-o a lascas

de madeira flutuantes, na visão desoladora de algo inteiro se reduzir a fragmentos.

Nem o navio nem a carga estavam seguros, sendo portanto a perda total.

No dia seguinte, de ânimo frustrado, meu pai e Fernando, com o apoio de Sara, que man-

tendo-se perto lhe exercia um efeito calmante, contabilizavam as perdas no escritório e pensavam

em procedimentos para minorar as dívidas. Recorde-se que nesta altura os investimentos ainda

não estavam pagos, o sustento da família provinha da renda que auferiam por cuidar da casa

do senhorio.

Sara saiu à cozinha para trazer algum refresco, pois fazia tempo quente mesmo correndo o

mês de Maio. Um tabuleiro com quatro copos pousado no balcão chamou-lhe a atenção e abeirou-

-se. Uma limonada pronta. Seguramente alguma criada tomara a iniciativa de a levar ao patrão.

Como se encontravam três reunidos, retirou um copo do tabuleiro e dirigiu-se ao escritório.

Fernando bebeu-a quase de um trago e Sara tomou-a aos golos espaçados, deixando mais de

metade do conteúdo. Meu pai recusou-o, não tinha sede nem qualquer necessidade de tomar o que

quer que fosse.

Ao mesmo tempo, a criada que a dona da casa pensava ter tomado a iniciativa do refresco

chegou das limpezas no primeiro andar e, sentindo-se com imenso calor, não se fez rogada a beber

uma limonada pronta, sem dono aparente.

A bonita rapariga, vinda da Bretanha há muitos anos, no dia anterior recusara à estalada as

cortes abusivas de Francisco, que se fixara nela e não sabia ser recusado. Em breve os três desco-

bririam que nos seus estômagos circulava arsénico.

Francisco, ao ver que não só ela mas também Sara e Fernando se sentiam repentinamente

mal, indagou se tinham ingerido a bebida. Para horror de meu pai, que já esbofeteava o filho, o

primeiro a desmaiar, Francisco confessou a razão da súbita indisposição.

O médico veio a correr e não houve mãos a medir para intervir no envenenamento conjunto.

A empregada não escapou, teve morte quase imediata; depois de espasmos que a imaginação

não atribui a seres humanos, a desgraçada morreu nos braços do enfermeiro que a tentava livrar

daquele fim.

Fernando, dos três o que ingeriu mais líquido, foi a seguir o que ficou em pior estado, mas

ainda conseguiu sobreviver àquela noite, inconsciente.

Sara, por seu turno, obteve melhor auxílio pois bebera pouco do arsénico e o médico conseguiu

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que libertasse a maior parte do líquido antes da digestão. Manteve-se consciente todo o tempo, a

rogar que o filho sobrevivesse àquele desastre.

O louco do Francisco, entretanto, procurado pela guarda, fugira.

Viria, uns dias depois, a ser encontrado, condenado e enviado para o degredo em Angola.

Para o meu pai, a sorte de não tomar esse refresco foi encarado como um milagre, uma vez

que já lidava com alguns problemas digestivos.

Entretanto, o seu filho manteve-se inconsciente alguns dias, o médico não podia garantir

a recuperação daquele estado melindroso. A irmã Ana Isabel, na angústia de os querer visitar,

sofria em sua casa, aguardando por notícias a toda a hora. Mas, mesmo em situação limite de

morte iminente, decidiu não reatar relações com a sua família. Isso magoava o meu pai e Sara, a

sofrer pelo filho, sem o apoio da filha.

Sara caminhava, mesmo que com dificuldade. Meu pai vivia uma das alturas mais críticas da

sua vida, com estes múltiplos problemas, e com os cuidados para angariar a subsistência da família

em época tão decisiva. Depois do naufrágio, não havia mais dinheiro a perder e os negócios, a

darem os primeiros passos na ilha do Faial, revelavam-se fundamentais para encontrar uma bóia

de salvação.

Foi a coragem de meu pai em abandonar a família naquele dia, com enormes custos para a

sua vida pessoal e familiar, que ditaria a reviravolta do início da fortuna.

Nesta época ainda não se sabia quem conseguiria vingar no comércio ou quem viria a desistir,

algo que se verificou a partir dos anos sessenta, quando os malogrados negociantes começaram a

vender todos os títulos de propriedade dos imóveis que detinham, consequentemente deixando de

renovar os contratos com os senhorios das suas casas e partindo do Arquipélago dos Açores para

não mais voltarem.

Havia algo muito distinto entre os habitantes originais das ilhas e a comunidade emigrada –

estes viajavam entre ilhas, além de se deslocarem amiudadamente a Lisboa, Londres e Gibraltar.

O meu pai havia de receber um enorme carregamento de fazendas e outros artigos, como

lencinhos de assoar e para tabaco, xailes para senhora, fitas e adornos para chapéus, perfumes,

vestidos de cassa e luvas.

Este carregamento, se resultasse, corresponderia ao abrir de uma porta estratégica.

São 600 quilómetros de território, ilhas que tocam três placas tectónicas, a Euro-Asiática, a

Africana, e a Americana. Tal como as placas, a vocação deste lugar é a vocação do encontro. O

meu pai não imaginava que aquele barco aportado há instantes, para uma escala expedita, que

rumava dali a poucas horas a S. Miguel, levava uma das maiores e mais desagradáveis surpresas

da sua vida, um encontro indesejado.

Nos Açores fazem-se piadas com as desgraças e, crentes ou não no catolicismo, corre-se às

romarias, para que as promessas sejam pedidas ou cumpridas.

Tal como este lugar que não dá nada garantido, nem a estabilidade do chão afiança, também

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a vida de meu pai, já com filhos grandes, havia de tremer bastante.

Na Ilha do Faial, alojou-se numa casa alugada por meu tio, que já havia procedido a algumas

exportações de laranja. Pode parecer estranha a frieza de meu pai em conseguir deixar S. Miguel

com a esposa debilitada e o filho às portas da morte, mas recorde-se dois aspectos: meu pai repetia

insistentemente que uma pessoa deve sustentar “a sua palavra e ser honrado e não se deixar iludir

por dinheiro, porque este é um bem móvel e a honradez é um bem de raiz.”; e também recordar

que a economia açoriana era sustentada, nesta época, pela exportação de laranja. Logo, os carre-

gamentos de outras mercadorias acarretavam riscos muito maiores.

Só confiava em Fernando para aquele desembarque, não lhe sobrou alternativa. Esses dias

terríveis na ilha dos Capelinhos foram para ele um tormento, esperando cartas com alguma

notícia, trágica ou benévola. Ao todo manter-se-ia ausente 25 dias. As hortênsias, as névoas, as

lagoas, as crateras dos vulcões presentes em todas as ilhas, combinavam com o seu afogamento de

preocupação; a vida, naquele tempo, só lhe trazia neblinas a acentuar o negro da lava solidificada

nas erupções milenares.

Nessa mesma tarde recebeu uma carta de Sara, finalmente boas notícias, Fernando abrira

os olhos e, embora cauteloso, o médico falava de algumas melhorias que podiam conduzir à re-

cuperação. “Perguntou por ti e pelos carregamentos, assim que encontrou forças na voz, coitado,

preocupa-se já contigo a trabalhar na Horta sem o seu apoio, mas logo adormece prostrado às

dores que sei ainda ir sentindo. As festas do Senhor Santo Cristo passaram na rua. Espero que nos

possamos reunir todos em saúde.”

Trouxe-lhe tanto alívio aquela missiva que nem deu conta que durante quatro dias não

recebeu mais nenhuma novidade. Ao fim de sete estava realmente em cuidados e começou a tentar

comunicar para S. Miguel.

As transacções correram bem, melhor até do que esperava.

Dali a pouco tempo pôde embarcar rumo ao grupo oriental. Quando pisou Ponta Delgada

viu a torre da Igreja Matriz e sentiu o cheiro de mar que é travado pela terra, o cheiro vindo dos

cumes que pelo caminho apanha os aromas dos produtos agrícolas. Enviara uma carta a dizer que

chegava naquela data e estranhamente ninguém o esperava, nenhum funcionário da Lombinha,

nem a esposa.

Começou por tremer. Não albergava em si apenas preocupação, mas um misto de saudades e

da sua inesgotável capacidade de amar.

Avançou a pé, sem parar, parecia deslizar, tal a pressa de abrir a porta de casa, de os ver,

“queira Deus que bem”.

Já a via. Alguém sacudia mantas que estavam estendidas mas as janelas estavam fechadas,

provavelmente para evitar correntes de ar a Fernando. Como os abraçaria, não se privaria de lhes

dizer que os amava.

Transpôs a entrada gritando os seus nomes, voando aos aposentos interiores, tropeçando em

tapetes e não reparando nos caixotes amontoando-se.

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Entrou no quarto do filho e viu a cama sem roupa, apenas um colchão despido, sem vida, a

frieza e o desconforto de um quarto abandonado.

– Sara! Sara! Onde estás? Cheguei querida, onde estão todos?

Vindos do corredor, dois homens que não conhecia aproximavam-se lentamente.

– Quem são vocês?

O sol de há pouco desaparecia e os céus eram povoados por nuvens carregadas de Outono

invernoso, de repente.

Por detrás deles, surgiu uma figura de mulher que também não conseguia reconhecer. Vestia

roupas faustosas e dentro de casa usava um largo chapéu que lhe disfarçava o rosto gélido atrás

de uma rede de adorno negra.

– O teu bastardo faleceu, foi a vontade de Deus, terás de o aceitar.

– Que diz?! O meu Fernando? Quem é vossemecê? A Sara?

– Coube-me acabar com a vergonha que empestava esta família, essa mulher foi expulsa da

casa que não lhe pertence. – na sua voz pairava anseio com certos tiques eróticos.

Atrás do seu corpo volumoso saiu um jovem desconhecido. No dia em que meu pai soube que

perdera um filho, numa estranha e aflitiva revelação, soube que existia um outro.

Foi por livre e espontânea vontade que minha mãe decidiu ficar no Magrebe. Foi por livre

e espontânea vontade que minha mãe decidiu nunca contar que pouco depois dele ter viajado

para os Açores descobriu que estava grávida. Meu pai tentou, através de cartas, trazê-la para o

“desterro”, como ela se referia a este lugar.

Ocultou as cartas sempre, guardando-as, não sabia se ainda viria a necessitar delas. Mas o

seu plano era outro. Tencionava dar por anulado o casamento por notícia da morte do marido.

Assim, viúva e com apenas um filho, ainda jovem, conseguiria desposar de novo, o que no meio

social dos meus avós e com a sua influência não seria difícil.

Levou a cabo os seus intentos e vivi vinte anos com um homem a quem chamei pai, sem outros

irmãos, sem desconfiar do real passado que minha mãe escondia de mim.

Mandou fazer as malas logo após o funeral do meu padrasto. Não se pense que se sentia

sozinha e por isso preferiria “desterrar-se” para ter a compreensível companhia masculina. O

facto é que, vim a percebê-lo depois, os ecos de que o meu pai começava a negociar com gente de

Inglaterra e, embora já contabilizasse algumas perdas, se destacava dos demais judeus daquelas

paragens, chegaram-lhe aos ouvidos e refizeram-lhe os afectos esquecidos. A minha mãe gostava

de dinheiro, de luxo. Casar-se com o meu padrasto gorou-a por completo. Ele não só nunca enri-

queceu como nunca a libertaria para voltar ao seu anterior marido. Na verdade, ao aperceber-se

da infelicidade da minha mãe, proibiu-a de sair de casa durante muito tempo.

A estranha e inusitada morte deste homem foi uma bênção, sei que ela assim o sentiu, e

a verdade é que embarcou para aqueles pedaços de terra a flutuarem no imenso oceano com a

mesma alegria com que devia ter embarcado vinte anos antes.

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Quando chegámos, por mais exótico que nos parecesse aquele lugar, reconhecemos nele

alguma civilidade, a minha mãe tinha-se enganado, nos locais onde morámos havia menos

requinte que nesta cidade. Viam-se igrejas exuberantes e ela notou de imediato que aqui “havia

aristocracia fundiária e burguesia comercial”.

Não foi difícil dar com a casa onde vivia um dos judeus mais afamados da ilha e logo nos

avisaram que não se encontrava lá. Dirigimo-nos à sua casa com o passo convicto, não sei se a

minha mãe sabia quem ia encontrar, não tinha o hábito de me contar as suas conjecturas, muito

embora não houvesse um segundo de descanso naquela mente – atrás dos seus olhos semicerrados

a ferver de um sentimento que nunca compreendi na sua personalidade, uma ambição de ter

mais do que conseguia ter, que se confundia com querer ser quem não era, redundando numa

frustração constante a mim redireccionada e relembrando-me sempre de que eu não a reconhecia

o suficiente.

O facto de ter expulsado uma mulher e um jovem doente da sua própria casa não me chocou.

Já a tinha visto fazer coisas piores. O que me perturbou intrinsecamente foi o escândalo armado

para a humilhar violentamente. À minha mãe não bastava tirá-la à força de casa com a ajuda

dos quatro capatazes que trouxe do Magrebe e lhe eram fiéis devotos. Quando a mulher do meu

pai pediu ajuda, pois uma louca invadira a sua casa, perante as autoridades apresentou as suas

provas de ser a legítima esposa, com legítimas expectativas, reclamando o seu legítimo estatuto.

E eu, ao seu lado, o filho morgado, a prova cabal de que falava verdade.

Sara, vendo o filho a suportar mal aquela situação, foi abrigar-se na casa de um familiar,

tentando socorrê-lo. A minha mãe tratou logo de mudar fechaduras e livrar-se dos pertences dela,

partindo loiças pela janela e outros objectos.

Destronou-a numa questão de horas, o seu combate eficaz fora lancinante. Agora só faltava

enfrentar o meu pai. Mas isso não lhe metia medo. Limou as unhas enquanto o esperou. Ocupou os

armários com as suas toilettes. Passou óleos pelo corpo como se o quisesse reconquistar. Demitiu

funcionários e organizou a casa como se fosse sua. O seu ego inflamado dava-lhe uma visão

estratégica do que queria atingir, não se toldando um segundo por piedades ou hesitações; isso

terei de admitir, a minha mãe era inteligente, só é pena que no lugar do coração tivesse um cofre

imaginário onde nunca entraram todas as moedas que desejaria.

Destroçado, foi a correr pedir auxílio, tentar encontrar Sara e saber o que acontecera a

Fernando. Vi-o a sair daquela casa disparado, só regressou quatro dias depois. Assim recordo

a primeira vez que nos olhámos, sem qualquer gesto de alegria por nos conhecermos, compreen-

sivelmente. De início não percebeu que a surpresa era tão grande para ele como para mim, pois

minha mãe contara-me que nos esperavam com muita ansiedade e que mantivera contacto por

correspondência com o meu pai, às escondidas do meu padrasto, durante anos.

Sara havia recolhido nas Furnas, onde moravam familiares, e ele correu a encontrá-la. Ao

final do dia já batia à porta quase arrombando-a, transtornado pela raiva de ver a sua família

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em perigo.

Quando a viu abraçaram-se a chorar.

– Queres ver o nosso filho?

– Como é que isto aconteceu? Ele estava a melhorar.

– Ora, tudo aconteceu quando menos se esperava.

Dirigiu-se ao quarto do fundo e nele entrou, quase não havia luz, as cortinas corridas e o

cheiro de humidade encafuada que reinava em toda a casa ali fazia-se um pouco mais discreto. O

corpo estava coberto como se dormisse, mantas e lençóis. Tentando conter as lágrimas abraçou-se

a Fernando, beijando-lhe o rosto num enorme desgosto.

Subitamente o corpo gemeu e logo de seguida soltou um grito de susto, para depois se recompor

e dizer estremunhado.

– Pai! Pai!

– Oh, Divino Espírito Santo, estás vivo?!

– Sim, resisti.

Pois minha mãe tinha mentido, perversamente deixou-o acreditar que o rapaz morrera,

sabia que lhe daria pelo menos umas horas de angústia.

Sentaram-se os três a conversar sobre o mal-entendido e quase que meu pai se esquecia do

problema grave que agora lhe morava em casa.

– Como te posso perdoar, não imaginas como estou magoada contigo? ! Porque nunca resol-

veste a tua situação? Como te casaste comigo estando ainda válido o teu casamento noutro reino?

– Mas que podia eu fazer se ela nunca mais comunicou? Pensei que tivesse morrido. Eu mal

conheço aquela mulher, vivi com ela um mês. Demorou mais de vinte anos a dar sinal de vida.

– E o teu filho? Não vês que vai ser um problema. Ela voltou para lhe reclamar a herança.

Sabes que te amo, mas não posso estar num lugar que não é o meu. Aquela casa é dela.

– Sara, tu és a minha mulher, não te deixes vencer pelas suas pretensões absurdas.

Irredutível, a mulher do meu pai ficou nas Furnas.

Isso deu mais força à minha mãe, que passou a governar a casa.

Ele tomou uma decisão com efeitos imediatos. Os dois filhos iriam estudar para a Grã-Bre-

tanha, mais tarde se decidiria quem tomaria as rédeas dos negócios da família. Queria-nos longe

dos mexericos que na ilha se propagaram. Assim foi. Tornei-me amigo do meu irmão Fernando,

sem ter trocado mais que umas poucas palavras com o meu pai em quase toda a minha vida.

O meu pai passava grandes temporadas na Ilha do Faial e na Terceira, desconfio que para

não ter de dividir a casa com a minha mãe, que vivia com uma comodidade nunca antes alcançada

na sua vida.

Nunca se perdoaram mutuamente, ele a ela por ter sido mesquinha ao ponto de lhe ter

destruído a vida que havia construído, ela a ele por não ter parado de visitar Sara, ficando com

ela todo o tempo que podia nas Furnas.

De algum modo, nunca tomei partido. Ouvia as cartas que o meu pai escrevia a Fernando,

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onde lhe pedia para ter cuidado com o clima, lhe aconselhava quais os livros que devia ler e o

incentivava a ter boas notas. Imaginava que eram para mim. Fernando sabia deste meu exercício

mental e não se importava. Disse-me uma vez que eu era o irmão que ele sempre sonhara ter. Foi

a frase mais bonita que ouvi em toda a minha vida.

A minha mãe morreu sozinha no dia da inauguração do porto artificial.

Ouvia um grande ajuntamento de pessoas ao pé da muralha do castelo e um ruidoso estrale-

jar de muitos foguetes em sinal de regozijo pelo início de uma obra tão querida pelos habitantes

de S. Miguel.

O meu pai e Sara sobreviveram-lhe mais quatro anos e depois também partiram, apenas com

um espaço de dez meses entre eles.

O que aconteceu de seguida foi algo que já se esperava, e que nos fomos preparando com

estudos, mas mesmo assim me deixou incrédulo.

Eu herdei não só a fortuna que o meu pai com tanto esforço havia acumulado, mas também

a de meu tio, que morreu sem descendentes e já havia recebido uma herança considerável de um

primo. Concentraram-se três heranças.

De repente, o sonho de minha mãe concretizava-se em mim. É engraçado como tudo fiz

para que o meu irmão liderasse os negócios, e se sentisse à vontade no dispêndio dos lucros, aliás,

vontade expressa do meu pai. Mas a lei era incontornável e não pude fugir do meu destino, en-

cabeçando uma fortuna espantosa naquele tempo, tendo como obrigação mantê-la e aumentá-la.

Tudo o que eu queria era escrever, tal como o meu pai, dedicar-me à leitura das obras

clássicas que me chamavam na biblioteca e corresponder-me com os meus amigos, Antero de

Quental, Ernesto do Canto e outros, com quem fui gerando uma amizade que valia o tamanho da

imensidão do mar.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN