nieves hidalgo - magnólia

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Nieves Hidalgo

Magnólia

Tradução & Revisão

SINOPSE Magnólia casou com um homem rico, muito mais velho do que ela, para tirar sua família da pobreza. Uma tarde, o encontrou morto no porão, onde trabalhava como restaurador. Meses depois, decidiu descer ao porão para fazer um balanço, escorrega na escada e sua vela apaga. Um estranho aparece assustando-a, exigindo uma lista do seu marido. Ela não sabe do que ele está falando, e para sua surpresa, o estranho a beija. Mark é um marquês a serviço da coroa da Inglaterra, tentando recuperar uma lista de agentes ingleses que o marido de Magnólia estava prestes a vender para os franceses. Sua carruagem colide contra a dela e Mark perde a memória no impacto. Magnólia leva-o para casa até que se recorde quem ele é. A atração mútua é muito forte e, gradualmente, Mark ganha a sua confiança e ela acaba contando seus problemas. Juntos, eles encontram a lista, mas quando Magnólia descobre a verdade, desaparece sem dar mais detalhes. Mark sai em sua busca por meses, mesmo sem saber se ele será perdoado por Magnólia.

Magnólia Desceu um degrau. Em seguida, outro. Um terceiro. A luz pulsante chama apenas mostrava as sombras, borrando ao invés de iluminar os contornos dos móveis no porão. Magnólia tinha a boca seca e uma dor aguda na boca do estômago. Não era medo. Ou sim? resistia a pensar que pudesse sê-lo; no fim de contas, tinha estado ali muitas vezes, tinha passado muitas horas naquele lugar. Mas sempre tinha sido de dia, quando a mortiça luz do sol se filtrava pelas janelas situadas no teto. Mesmo assim, não se tinha por uma pessoa temerosa, bem ao contrário. Nunca entendeu porque seu defunto marido tinha elegido o porão do casarão para trabalhar, quando seria perfeito qualquer um dos quartos da casa, amplos e luminosos. Suas criações de ourives demandavam luz;

entretanto, o homem com quem se casou, apressada pela fome de sua família e por uma perseguição desumana, preferia restaurar e criar naquela outra estadia que sempre lhe provocara calafrios. Por isso não tinha voltado ali, a aquela catacumba úmida e lúgubre, desde que… Ao pisar no último degrau, um de seus sapatos escorrega em uma pequena mancha de azeite e esteve a ponto de cair. Escapou uma exclamação e afiançou a mão direita no carcomido corrimão, evitando o acidente em última instância, mas sem poder sujeitar o castiçal, que caiu com um golpe seco ao que seguiram ecos ao rodar pelo chão. Magnólia ficou ali imóvel, quase sem respiração. A imagem de seu defunto marido ocupou mais uma vez seu pensamento. Foi ela quem o encontrou, já fazia dois meses, quando desceu para reunir-se com ele levando sob o braço sua caixa de costura. As cinco em ponto da tarde. Sempre à mesma hora e seguindo idêntico ritual cada dia. Não podia saltar uma norma estabelecida pelo Roger. Assim que terminava de comer, seu marido descia ao porão para trabalhar e ela devia unir-se a ele na hora do chá. Minutos depois, exatamente quando o relógio da sala dava à hora e quarto, a senhora Merritt aparecia com o chá e tortas de limão. Ela tinha chegado a odiar esses doces com toda sua alma, mas eram os preferidos do Roger e em sua casa ninguém podia ir contra aos seus maníacos costumes. Na tarde em que o encontrou morto ao pé da escada tinha sido uma de tantas, uma mais em sua apática vida de casada. Quando pôde reagir e mandar chamar Lionel Arkinson, o médico da família Hunt desde que Roger nasceu, o doutor ancião só pôde confirmar o que todos temiam: ao parecer, seu marido tinha escorregado e golpeou a cabeça em um dos braços de uma cruz que se encontrou ensangüentada a seu lado. Para Magnólia resultou obsceno que Roger tivesse perecido por causa de um objeto que significava algo no que ele que nunca acreditou. Notando que lhe tremiam as pernas, deixou-se escorregar até ficar sentada em um dos degraus, com a escuridão rodeando-a como um manto frio. Sem vela, com a única claridade da lua que atravessava as janelas pulverizando uma pátina leitosa justo sobre o lugar onde

encontrou o corpo de seu marido, o porão resultava ainda mais tétrico. Inclusive lhe pareceu ouvir a risada chiada e desagradável do Roger quando se burlava dela e o coração começou a pulsar de forma errática. Suas mãos umedeceram o suor desceu da têmpora ao queixo, perdendo-se no vale de seus seios. obrigou-se a relaxar. —Por Deus, não sou uma menina temerosa na escuridão! —recriminou-se em voz alta, embora tenha soado destemperada e medrosa. Inalou o ar e preparou-se para soltar o corrimão. Algo passou correndo junto a seu pé direito e Magnólia não pôde reprimir um grito. O roedor, ou o que diabos fora, desapareceu em um canto. —Merda! Decidida a terminar o mais rápido possível, ficou de joelhos, mediu o chão até encontrar a vela e se levantou, logo procurou um fósforo no bolso do avental e a acendeu com mãos trêmulas. Em seguida, aproximou-se dos distintos candelabros que Roger tinha disseminados pelo porão e foi ascendendo um a um. Uma vez recuperada a serenidade, deu uma olhada a seu redor. Várias cruzes, um retablo por acabar, dois cálices amolgados, uns quantos medalhões antigos, três relógios, alguns colares, um secreter… A família Hunt era conhecida por seus incríveis trabalhos na restauração de objetos valiosos. O avô de Roger começou o negócio, que seu filho continuou e depois seu neto. Magnólia tinha demorado muito em fazer um inventário dos objetos pendentes de reparação, mas os donos dos mesmos tinham tido a deferência de lhe dar tempo para recuperar-se do que eles chamaram uma perda irreparável. Que longe estavam de saber que a morte de seu marido tinha suposto para ela uma liberação! O que longe de imaginar, essas amáveis gentes, que tinha vivido um inferno junto ao Roger Hunt! Rebuscou nas gavetas da maciça mesa sobre a que seu marido trabalhava e tirou todos os papéis. O porão parecia um caos depois do registro dos dois sujeitos que se apresentaram quando o cadáver do Hunt ainda estava quente. Ela não pôde evitar a intrusão na intimidade do que agora era seu lar, embora tentasse. Ao parecer, esses homens não encontraram o que procuravam, mas deixaram a casa bagunçada. Porão, despensa, salões; inclusive entraram na habitação de Roger e na sua própria. Sem

uma explicação. Assim que partiram, Magnólia chamou o advogado da família, mas não serviu de nada. —É um assunto do governo, senhora —lhe explicou este dois dias depois—, e não podemos litigar. Lamento. Por outro lado, deveria falar com você do dinheiro. —Que dinheiro? —De sua herança —respondeu ele, esquivando seu olhar—. Ou de sua não herança, para dizer melhor. Essas palavras conseguiram alterá-la mais do que já estava. —me diga exatamente a que se refere, senhor Brent. E agradeceria que fosse claro. Como vê você —assinalou a desordem que reinava—, ainda tenho muito trabalho. Oswald Brent passou os dedos pelos escassos cabelos que povoavam sua cabeça e insistiu para que ela sentasse, fazendo ele o mesmo depois. Deixou transcorrer um comprido minuto antes de encontrar as palavras adequadas. —Verá, senhora Hunt…, seu marido estava na bancarrota. —Você está brincando? —Temo-me que não, senhora. —Mas… Esta casa, as duas carruagens… —Tudo hipotecado. —Hipotecado? —Seu marido fez maus investimentos desobedecendo meus conselhos. —Que tipo de investimentos? —seu estômago estava encolhido. —Um negócio que, se tivesse chegado a bom término, poderia te-lo feito rico. Investiu-o tudo em uma companhia naval. Mas os navios, que vinham das Índias, naufragaram, e perderam a mercadoria e parte da tripulação. —Brent se moveu incômodo, como se tivesse alfinetes sob o traseiro—. O único que fica são esses quatro cavalos, dos que, por sorte sua, ele não quis desfazer-se. —Entendo. Mas não era certo, não entendia nada. De que demônios tinha servido sacrificar-se! Quatro anos suportando as humilhações daquele mal nascido, seus abusos e vexames, para nada! Tinha aceitado casar-se com ele, face ao muito que o repugnava, para tirar sua família da pobreza e

pagar a dívida contraída por seu progenitor com o Hunt; entretanto, seus pais e seu irmão haviam falecido seis meses depois das bodas em um acidente, afogados ao cair a carruagem em que viajavam no Tamisa. Magnólia sempre pensou que tinha a mão de seu marido nesse desgraçado acidente, para livrar-se de seus familiares indesejados, embora não pudesse prová-lo. Deveria ter abandonado seu marido, ter procurado um trabalho e ter empreendido uma nova vida, mas como ganhar seu sustento? Era certo que tinha conhecimentos suficientes para conseguir um emprego de instrutora; também carecia de referências. portanto, como pagar um débito ao que não podia fazer frente? Roger seguia tendo as notas promissórias e ela se viu incapacitada para resgatá-las. A ameaça de prisão sempre esteve presente desde que insinuou suas intenções de se divorciar. Por isso, e só por isso, continuou suportando uma convivência que se fazia cada dia mais difícil. E agora esse advogado que se assemelhava a um corvo dizia que nem sequer ficava uma magra fortuna? Não sabia se ria ou chorava. —O cavalheiro que comprou a casa está disposto a esperar um tempo prudencial até que você encontre comprador para os cavalos e se translade para outra parte. —Entendo —repetiu, engarfando os dedos nos braços da poltrona, embora muito rígida e olhando de frente, como se a notícia não a tivesse perturbado. —Conheço vários cavalheiros interessados nesses eqüinos puros-sangues, senhora Hunt. Se me autorizar, eu poderia… —Faça o que crê conveniente. Meu marido devia dinheiro a você? —Não se preocupe por isso. Descontarei minha minuta do montante da venda. —O agradeço. Assim, ali se encontrava agora. Sem dinheiro, nem casa, nem amigos, salvo a boa Merritt. A ama de chaves se negou a abandoná-la, embora não pudesse lhe pagar um salário. —Já sou velha, senhora —argumentou—. Muito velha para procurar outro emprego. Não tenho a ninguém no mundo e tenho carinho por você. Um prato de comida e um vestido ao ano serão mais que suficientes para mim.

Magnólia tinha aceitado a generosa oferta. Como não fazê-lo quando se encontrava sozinha, necessitada, e também tinha afeto pela maternal servidora? Eram três da madrugada quando acabou o inventário. Estava com o pescoço tenso, doíam-lhe os ombros e os olhos ardiam por havê-los forçado durante horas. Recolheu os papéis, enrolou-os e, com eles na mão, foi apagando as velas ficando com o último candelabro. Amaldiçoando a dor nas costas, não pôde evitar um gesto de asco ao saltar sobre a mancha, já seca, de sangue do Roger no chão, ao pé da escada. Nem ela nem a senhora Merritt tentaram limpá-la. Subiu os degraus, saiu do porão e fechou a porta com a chave. A casa estava em completo silêncio. Fora se ouvia o gemido do vento entre as árvores do jardim e o ulular longínquo de alguma coruja. Apoiou-se um momento na frente, perguntando-se o que ia ser de sua vida e da vida da senhora Merritt, a qual se tornou responsável. Nesse momento, um braço de ferro lhe rodeou a garganta e suas costas se encostaram contra um corpo duro; o choque a deixou sem fôlego. Um tapa fez cair o candelabro e, ato seguido, seus pulsos ficaram aprisionadas por uma mão grande. O assombro não a deixou mover-se durante os primeiros segundos, mas logo o pânico a fez reagir. Sem dúvida, era um ladrão que sabia que na casa havia duas mulheres sozinhas. Com a força do desespero, mexeu-se como uma enguia, mas o tipo que a sujeitava não soltou a presa. Mordeu o braço que a asfixiava, ouviu uma imprecação e se felicitou mentalmente. Logo, sem prévio aviso, jogou a cabeça para trás com todas suas forças golpeando o queixo de seu inimigo. O impacto a deixou ligeiramente aturdida, mas seguiu defendendo-se com novos brios. Entretanto, de pouco serviu o esforço. O sujeito a manteve presa a ele, abandonando-a, de repente, viu-se com as costas na parede, os pulsos apanhados por grilhões de dedos implacáveis, e uma figura alta, de ombros largos, não identificáveis na escuridão, abateu-se sobre ela. —Tranqüila, pomba. Só quero duas coisas de você: um beijo e a lista. Uma boca dura, quente, apanhou a sua. Magnólia ficou em branco. O terror a paralisava e entretanto… Aquela voz áspera, gutural e desumana despertou nela uma necessidade que

acreditava esquecida. Seu corpo reagiu sob o beijo como uma mundana, fazendo com que seus mamilos endurecessem. O ladrão cheirava bem, extraordinariamente bem, o condenado. E sua boca, devorando a sua, estava fazendo com que esquecesse que se encontrava em um perigo iminente. Sempre tinha sido uma mulher de fibra e sua mente se rebelou quando uma mão apanhou um de seus seios em uma carícia cheia de lascívia. Relaxou-se um instante para que ele confiasse e depois levantou o joelho como lhe tinha ensinado seu defunto irmão. Um novo grunhido e o agressor retrocedeu um passo, liberando-a. Magnólia aproveitou para atacá-lo com as unhas, conseguindo alcançar o rosto masculino. A seus ouvidos chegou uma blasfêmia, mas o sujeito voltou a retroceder e ela não perdeu tempo em arrumar o vestido e sair correndo enquanto gritava pedindo socorro. —Voltarei! —Ouviu a ameaça a suas costas—. Voltarei pela lista! Quando minutos mais tarde retornou acompanhada da senhora Merritt, que com mão firme sujeitava uma pistola carregada, o ladrão tinha desaparecido. Mark Townsend, Marquês de Reston, olhou torvamente ao homem que tinha diante, reprimindo o mal-estar que o embargava. —É o mais mesquinho que tenho feito em minha vida —disse ao fim. —Necessário. —Ruim —apostilou ele. —Irremediável. —Desprezível. —Vale já, Mark! —incomodou-se seu interlocutor, levantando para escapar daquele olhar azul que o culpava—. Sabe que necessitamos da condenada lista e essa mulher a tem em alguma parte. Nossos homens não conseguiram encontrá-la quando investigaram a casa, mas temos que consegui-la. Assim são as coisas! —Quem nos diz que ela esteja envolvida nas aventuras de seu marido? —A lógica. Duvida-o por acaso? esteve casada com Hunt e sabemos que conhecia o Forbes. O que outra coisa poderia ter feito além de seduzir a

esse estúpido para que seu marido obtivesse essa informação! Ela é linda e Forbes sempre foi um mulherengo. Agora que eles dois morreram, está em posse de algo que não tem preço. Não duvido que venderá a quem oferecer o melhor preço. —Não parece ser esta classe de mulheres. —Nunca confie em um rosto bonito. —Está na ruína. Se realmente tivesse a lista de nossos agentes na Europa, já se teria contatado com alguém. dentro de poucos dias deverá abandonar inclusive a casa. —Cumpre sua missão. —Mark soltou um bufo pelo baixo—. Sei que não é seu modo de trabalhar, e até admito que havê-la assustado assim resulta horrível,mas terá que fazê-lo e o fará. —O que me põe ao nível de um delinqüente. —Fez coisas piores trabalhando para a Coroa —resolveu o outro. —Pelo que não estou muito orgulhoso. —Mark, rapaz —o homem se aproximou conciliador e lhe apertou o ombro—, nossa rede de espionagem está em xeque por culpa dessa mulher. Não podemos ordenar que nossos agentes se retirem de seus postos, mas tampouco podemos deixar que atuem. Se cair em mãos inimigas, seus nomes nesse documento, nesta lista são uma sentença de morte. A segurança da Inglaterra está em jogo. Que importância pode ser tirar proveito de uma mulher assustada? —É o último que pensaria dela, senhor —murmurou o marquês, recordando o furioso ataque da jovem e levando o dorso da mão ao arranhão que ainda ardia em sua bochecha. —Seja como for, tem uma semana, não podemos correr riscos. Aterroriza-a, rapta-a, leve-a a cama se for preciso, mas consegue a porra da lista! Townsend assentiu. Odiava maltratar a uma mulher, embora fora em altares da segurança nacional, e detestava aos homens que o faziam por puro prazer. Entretanto, as últimas palavras de seu interlocutor tiveram efeito, porque desde que a viu, na primeira vez, a Magnólia Hunt, não tinha pensado em outra coisa a não ser em saborear seus lábios, imaginando como seria gozar daquele corpo esbelto, de porte altivo. Não tinha resistido a beijá-la quando a teve entre seus braços, e agora se

arrependia do abuso; o que era ainda pior, a espiral de desejo que o envolveu quando a sentiu relaxar sob a carícia de sua boca ainda palpitava em seu sob ventre. Suspirou, levantou e encaminhou para a porta. Complicar a vida com uma mulher como ela era uma coisa de louco. A senhora Hunt acabaria na forca uma vez que encontrassem o documento que estava preocupando o governo. No mínimo, apodreceria no cárcere. —Uma semana é pouco tempo —disse, com a mão no trinco. —Já te vi seduzir a damas na metade de tempo, moço, vai dizer que não é capaz de enrolar a uma inofensiva e desconsolada viúva? Mark não respondeu. Saiu, fechou a porta e ficou apoiado na folha de madeira. —Desconsolada viúva, certamente. Espiã, é possível —sussurrou—. Mas inofensiva? Nem pensar. Magnólia conduzia a pequena carruagem com precaução, atravessando as saturadas ruas e rezando para não ter um percalço. Só lhe faltava danificar o veículo ou ferir gravemente o cavalo, quando já nem sequer lhe pertenciam. Insistiu ao animal a acelerar o passo só quando deixou para trás a cidade e tomou o caminho que serpenteava entre o bosque, em direção a sua casa. Uma mescla de impotência, amargura e fúria lhe impedia de respirar com normalidade. Miseráveis! O senhor Brent jurava que não tinha encontrado outro comprador melhor para os cavalos, mas o que lhe ofereciam era um insulto, um roubo a mão armada. Animais puros-sangues pagos como carne de matadouro! Não sabia como tinha conseguido mandar ao inferno ao advogado e a aquele estelionatário que fingia ser um cavalheiro, precisou morder a língua. Não tinha dúvida de que, conhecendo sua necessidade, os dois estavam confabulados contra ela para repartir os lucros depois. É obvio, tinha rechaçado a humilhante oferta. Aspirou o ar e tentou acalmar-se. De nada servia deixar-se levar pelo mau humor, o que tinha que fazer era procurar outro comprador ela mesma. Por isso, antes de sair de Londres, aproximou-se do periódico e tinha feito

um anúncio; só restava esperar e pedir ao céu que aparecesse um comprador decente o quanto antes, pois o dono atual da sua casa não ia esperar eternamente. Distraída como ia, não viu o cavaleiro que cruzava o atalho. O indivíduo, ao ver que a carruagem ia em cima da sua, puxou as rédeas e tentou se jogar a um lado enquanto lançava um grito de advertência. Magnólia puxou suas rédeas com desespero, mas já era tarde. Os animais, chocaram e o do inoportuno se elevaram sobre seus quartos traseiros, relinchando, e o homem caiu na terra enquanto um cavalo se afastava assustado. Murmurando uma prece, Magnólia acionou a alavanca do freio e desceu com pressa. As saias enredaram no estribo do carro e faltou muito pouco para que não caísse de cabeça em um atoleiro. Puxou o tecido e este rasgou fazendo-a proferir uma maldição. O coração parou ao dar conta de que o homem não se movia. Estava de lado, em uma postura estranha. Engoliu saliva, deu a volta e com esforço se ajoelhou a seu lado. Não se fixou se era jovem ou velho, só se preocupava se seguia vivo. Com todos amontoados de males que a espreitavam será que a morte daquele cavalheiro unir-se-ia a isso… Não queria nem pensá-lo. Respirou aliviada ao pôr uma mão na carótida e ver que o pulso estava normal. Então sim se fixou nele. Era de constituição magra e musculosa, tinha o cabelo muito negro, mais comprido do que estava na moda, e um rosto terrivelmente atraente, de altas maçãs no rosto, nariz romano e queixo firme. ficou olhando-o como uma parva, esquecendo inclusive que acabava de causar o acidente. O homem abriu os olhos de repente e Magnólia teve um sobressalto ao ver-se refletida em dois lagos azuis que a fizeram sentir um calafrio na coluna. —encontra-se bem? Mark apoiou-se sobre os cotovelos e sacudiu a cabeça para limpa-la. A mutreta do acidente tinha dado resultado, mas agora seu tornozelo direito doía e pensou em sua estupidez. Estava tudo previsto e ele era um especialista nesse tipo de acrobacias, mas no último instante seus olhos tinham fixado nela, despistando-o o suficiente para não cair

adequadamente. —Lamento ter interposto em seu caminho, senhora. —Sua voz levantou uma onda de prazer em Magnólia. —A culpa foi toda minha, conduzia distraída. Peço-lhe desculpas, senhor. Pode se levantar Mark tentou, mordeu os lábios com teatralidade e gemeu: —O tornozelo… Ela se apressou em ajudá-lo passando o braço ao redor do corpo. Um suave aroma de couro e sândalo alagou suas fossas nasais e a fortaleza do corpo masculino fez que encolhessem seus dedos dos pés. Respirou de forma muito pouco feminina, apertou os dentes e conseguiu que ele levantasse, aproximando-o logo a carruagem, para deixar que procurasse outro ponto de apoio. Soltou-o como se queimasse. —Levarei você, onde indique, senhor. Temo que não está em condições de montar de novo. —Não é necessário, eu… Demônios! —levou a mão ao tornozelo. —Por favor, deixe que o ajude, é o mínimo que posso fazer. Onde vive? Ele abriu a boca para responder, mas não conseguiu articular uma palavra. Franziu as sobrancelhas e por seus olhos cruzou uma rajada de medo, enquanto a voz tremeu, espasmodicamente. —Eu… não… não o recordo. A senhora Merritt não deixava de caminhar de um lado a outro da cozinha. Em sua mão, a concha de sopa com que estava mexendo o guisado parecia uma arma. Sua sobrancelha franzida e seus rápidos e turvos olhares para sua jovem ama davam clara amostra de seu desconforto. —É uma loucura ter a esse homem aqui, senhora. Vivemos sozinhas, pelo amor de Deus! —Mas o atropelei, tem um tornozelo deslocado e nem sequer recorda seu nome. —Então faça vir ao doutor Arkinson e que examine sua cabeça. Estou certa que ele sabe onde levá-lo. À polícia, a uma instituição… Além disso, acredito que mente. Ninguém se esquece de quem é assim.

—Tenho lido algo sobre casos similares. Parece são, é provável que recupere a memória em umas poucas horas. Mas enquanto isso não posso colocá-lo na rua. —Deve pensar em seu bom nome. O que dirá as pessoas se se inteiram de que tem a um homem em casa? Como se diz, acaba de ficar viúva, senhora —rebateu o ama de chaves, com lógico raciocínio. —Meu bom nome! De pouco me serviu até agora. Estamos sem teto e sem dinheiro. —Mas com honra. Isso é mais importante que as moedas. —Não insista, senhora Merritt. Esse homem fica até que possa valer-se por si mesmo. Por outro lado, recorde que me atacaram. Alojá-lo é também um modo de nos proteger se por acaso voltam a tentar nos roubar. —A mulher negava com a cabeça, rechaçando seus argumentos—. Acabe com esse guisado de uma vez, terá que subir com um pouco de comida. Sem deixar de resmungar, o ama de chaves fez o que pedia. Minutos depois, Magnólia estava com o pé à porta da habitação que tinha pertencido a seu marido, ocupada agora por aquele desconhecido com olhar gélido e rosto sério. Entrou e, sem olhar para a cama, depositou a bandeja sobre a mesa que havia junto à janela. Ao voltar-se e vê-lo sentado na borda do leito, a confusão tingiu de vermelho suas bochechas. —O que faz… nu? Mark arqueou uma sobrancelha ante a recriminação e um lento sorriso curvou seus lábios. Custou para ela respirar, o que acrescentou bom humor nele. Aquilo ia bem, pensou. Ia muito bem. Acabou de ficar em pé e se aproximou, coxeando visivelmente, para acomodar-se na cadeira. Dali se via o pequeno jardim que rodeava a casa e o caminho que seguia ao bosque. Não podia ter pedido um melhor destino para sua missão, longe de qualquer vizinho indiscreto. Tinha pouco tempo e devia aproveitá-lo. —ruboriza-se, senhora? Neste quarto faz muito calor e me permiti a tirar a jaqueta e a camisa que, por outro lado, estão sujas. Em modo algum me encontro nu, e uma mulher casada, como você, não deveria se alarmar. Magnólia cravou o olhar nele e ficou com a boca aberta e os olhos bem abertos, levando instintivamente a mão em que estava sua aliança às

costas. A quem tinha metido em sua casa? Estava louco ou era um libertino? Como se permitia…? —Hummmm! Cheira divinamente e estou esfomeado. —serviu-se um pouco e provou a comida—. Realmente deliciosa. Vejo que só trouxe um prato, senhora. Não pensa me acompanhar? —Por certo que não! —reagiu ela—. E pediu que vestisse mais de roupa. —Teme que seu marido pense que quero seduzi-la? —Sou viúva. —OH, muito melhor. Não há marido, não há problema —respondeu, esquecendo-a e dedicando toda sua atenção ao guisado. Magnólia voltou a ficar sem fala. Não lhe dava crédito. Era um sonho ou um pesadelo? Tinha-o acidentado, estava ferido, não recordava nada… não recordava ou não queria recordar?, mas em vez de mostrar-se inseguro e aturdido, empregava uma linguagem direta, irônico e até se atrevia a insinuar-se. O golpe na cabeça, sem dúvida, pensou para desculpá-lo. ergueu-se, acalorada e zangada. Aquele estranho vestido com roupa de qualidade, botas de boa pele e sem dúvida um estouvado, não ia conseguir lhe fazer esquecer suas obrigações de boa cristã. Mulherengo ou não, devia-lhe algo, e ela sempre pagava suas dívidas. Além disso, sua presença ali a fazia se sentir mais segura. Encaminhou resolutamente para a porta e uma vez ali, voltou-se. —Nem lhe ocorra sair deste quarto tal como está, senhor. Minha ama de chaves não é tão permissiva como eu. —Ela é quem preparou a comida? —Sim. —Pois lhe diga de minha parte que é um tesouro, certo? E não se preocupe, apresentar-me-ei ante ela decentemente vestido, embora sujo. A mulher lhe deu as costas e ele se fixou no movimento ondulante de seus quadris. Recordava vividamente suas curvas próximas a seu corpo há duas noites, o aroma de seu cabelo, agora recolhido sob a austera touca, o sabor de sua boca… Pigarreou antes de acrescentar. —Como devo chamá-la, senhora? —Senhora Hunt. E eu a você? —Bom intento. Ponhamos… Mark, por escolher algum nome. —Trarei roupa limpa para você—respondeu ela com secura antes de

fechar de uma portada. Era incrível, dizia-se Magnólia vendo-o conversar amigavelmente enquanto a senhora Merritt ia cozinhando e o desconhecido se apressava a recolher salsinha ou manjericão, tomilho ou orégano. Quando saíssem da casa, também perderiam a pequena horta, onde a senhora Merrit cultivava seus condimentos. Sim, era incrível observá-los juntos quando, apenas quarenta e oito horas antes, a ama de chaves a animava a deixá-lo na rua. Mark, como tinham decidido chamar o forçoso convidado, devia ter poderes de feiticeiro para ter conseguido ganhar a confiança da mulher tão completamente. Magnólia reconhecia que seu comportamento seduzia inclusive a ela. Ria com facilidade, contava-lhes anedotas que recordava embora não podia as fixar no tempo, elogiava a cozinha de da senhora Merrit e, inclusive, ajudava a lavar os pratos depois de cada comida. Mas ela não deixava de perguntar quem era e porque não parecia consternado com sua falta de memória. Intuía algo escuro nele, mas não sabia o que era, só que lhe produzia uma pontada de apreensão no estômago. Várias vezes o tinha visto observando-a fixamente, com gesto severo, implacável, duro, muito distinto ao que estava acostumado a mostrar diante da senhora Merrit. E isso a perturbava. Não sabia nada dele, podia ser um vadio ou um simples ladrão —pouco provável, posto que os objetos de valor já tinham sido vendidos e na casa não ficava nada que merecesse a pena roubar—, ou talvez um assassino. Um assassino dos que desfrutam brincando com suas vítimas até que dão o golpe mortal. Mas não podia negar que se sentia atraída por ele. Tinha o porte de um leão, uns olhos que hipnotizavam e uma boca que… Se recordou seu estado de viuvez para interromper esses pensamentos. Não resultava fácil esquecer daquele sujeito que acampava pela casa como se fora dele, que elogiava até os guisados queimados da senhora Merritt e que sorria como um demônio. Não. Não ajudava nada a sua saúde mental imaginar como se sentiria uma mulher estando em seus braços e provando sua boca cheia e perfeitamente cinzelada. Magnólia se recriminava o pouco controle de seus pensamentos, mas era uma mulher de vinte e quatro

anos e durante o tempo que esteve casada com o Roger nunca soube o que era a sedução nem o carinho. Seu marido se aproximava dela só para saciar sua luxúria ou golpeá-la quando bebia. Essa sensação de prazer que algumas das damas com as que teve contato, chamavam de orgasmo em voz baixa era para ela desconhecido. Atordoada com tão ímpios pensamentos, distraiu-se e um espinho cravou em seu dedo. Malditas rosas! Para que seguia cuidando delas se ao cabo de uns dias teria que abandonar a casa? Atirou a flor ao chão… e uns dedos largos e fortes rodearam seu pulso. Deu um passo atrás ao ver o desconhecido a seu lado. Ele arrancou o espinho, levou o dedo ferido aos lábios e sugou. A Magnólia foi impossível reprimir um gemido; uma corrente de calor a transpassou da mão à planta dos pés e entupiu de saliva sua garganta. —Dói? —N… Não. E seu tornozelo? Mark encenou divinamente um gesto de dor. —Fatal. —É você um exímio embusteiro, meu senhor — disse, mas não dissimulou sua diversão ante a picardia—. Faz um momento, recolhia ervas com muita destreza. —Ele se pôs a rir—. Pergunto se sua memória não estará curada como seu tornozelo. —Me mandaria embora, nesse caso? —Pode jurá-lo. —Você é desalmada, Magnólia. —Para você, senhora Hunt. Ficaram junto ao jardim e estava capturada no cárcere de seus braços apoiados no muro. Ela teve que elevar a cabeça para olhá-lo na cara e o calafrio de prazer deixou-a sem sossego. Sustentou-lhe o olhar com atrevimento, mas não se sentia nada valente. Tudo naquele homem a intimidava: sua estatura, seus largos ombros, seus olhos felinos, seu aroma… —Afaste-se, senhor. —E se eu não quiser? —Isso carece de importância. Rogo-lhe que… —E se o que quero é beijá-la? —Ela abriu muito os olhos—. Quanto

tempo faz que morreu seu marido? Quanto faz que não a beijam? —Passava um dedo por seus lábios—. Quanto, que não goza na cama com um homem de verdade? —Suas mãos baixavam apoderando-se de sua cintura—. Quanto, que seus seios não são adorados? —Ascendiam agora por seus flancos lhe arrancando um gemido—. Quanto…? —Já basta! —Empurrou-o com todas suas forças, a ponto de cair, porque suas pernas falhavam —. me Solte! Mark passou a gema dos dedos pela protuberância dos mamilos, endurecidos sob o vestido, provocando outro gemido que repercutiu em sua própria virilha. —Seriamente quer que te solte? A Magnólia custava respirar, e sentia o rosto em chamas, que se tinham propagado mais abaixo, onde nunca antes as havia sentido. Estava perdida. Total e irremediavelmente perdida. aferrou-se a seu pescoço e ficou nas pontas dos pés, procurando aquela boca que a tinha feito ter sonhos carnais irreverentes. Sua resposta fez com que Mark se esquecesse de tudo; o resto do mundo não importava um nada, não importava se a senhora Merritt lhe cravasse uma faca nas costas para defender a sua senhora, e sua missão podia ir a merda. O único que importava nesse instante era devorar os lábios de Magnólia Hunt, beber seu fôlego, saciar-se com a voluptuosidade de seu corpo, que se abraçava ao dele como uma segunda pele. Precisava fazê-la sua, nunca antes havia sentido essa urgência, essa fome que o tinha estado devorando desde que a tocou pela primeira vez. Nunca uma mulher tinha conseguido que esquecesse suas obrigações. Beijou-a uma e outra vez, estreitou-a para fazê-la sentir sua imperiosa necessidade, que pulsava dolorosa e premente. acoplou-se a ela ali mesmo, no jardim. Necessitava-a. Finalmente, impôs-se a razão. Magnólia Hunt podia ser a espiã que seu chefe temia, embora durante esses dias Mark tivesse registrado a casa de cima abaixo pelas noites, como um ladrão, sem encontrar nada que a incriminasse; até era possível que tivesse em suas mãos a vida de vários agentes do governo e possuísse o sangue-frio de mandá-los à morte. Podia inclusive estar utilizando suas artimanhas de mulher tímida para conquistá-lo e descobrir suas intenções. Ele quase morreria para tê-la

nua na cama, mas tinha uma missão a cumprir e não podia cair em suas redes. Quando conseguiu deixar de beijá-la, ambos respiravam como se acabassem de correr quilômetros. O desejo insatisfeito chispava a seu redor, e nos olhos de Magnólia havia um brilho especial. Mark apertou os dentes e deu um passo atrás. —Lamento. Não voltará a ocorrer. Ela se apoiou contra o muro, olhando-o se afasta. levou o dorso da mão à boca, inchada por seus beijos. Logo falharam suas forças e, deixando-se cair no chão, mordeu os lábios para reprimir um soluço. O mormaço de dias anteriores tinha sido amenizado, em parte graças ao vento que provinha da costa. As taças das árvores e a alta erva balançavam mais à frente do pequeno jardim e a horta, enchendo o alpendre com o doce aroma de rosas e azáleas. Qualquer um que visse Magnólia sentada na cadeira de balanço, com os olhos fechados, pensaria que estava desfrutando do momento. Entretanto, na cabeça da jovem haviam mil perguntas, todas elas em torno do mesmo assunto: o homem que tinha conseguido que se comportasse de um modo tão lamentável. Quem era? O que pretendia? Fazia bem em seguir tendo-o em sua casa? Seria capaz de evitar seus avanços se ele voltasse a beijá-la? Muitas interrogações que não tinha respostas. Tinha passado a noite em claro e estava de um humor de cães. Suspirou e decidiu atender a escassa correspondência. Dois envelopes estavam dirigidos a Magnólia Jones, seu nome de solteira, com o que tinha posto o anúncio no periódico. O terceiro, para a senhora do Roger Hunt. Essa carta lhe deu mau palpite e embora a curiosidade a incitasse a abri-la em primeiro lugar, deixou-a de lado e leu as outras duas. Eram de possíveis compradores que solicitavam ver os cavalos. «por fim», pensou. Tomou papel e a pena e, apoiada na pequena escrivaninha, escreveu sua resposta convocando-os a virem em dois dias, de amanhã e a tarde. Chamou à senhora Merritt e lhe pediu que entregasse o mais rápido possível ao menino do vizinho que vivia a menos de um quilômetro delas, antes que partisse, à cidade, como todos os dias. O tempo corria e não a seu favor e quanto antes acabasse com aquele desagradável assunto,

muito melhor. Deu voltas a terceira correspondência entre seus dedos. Sem remete. Voltou a assaltá-la uma sensação de alarme, mas com resolução, abriu e tirou a carta. A missiva era direta: «Seu marido tinha algo para me entregar. Suponho que sabe a que me refiro. Passarei amanhã para recolher a lista». Sem assinatura. ficou um bom momento olhando a escrita apertada e desigual. A que maldita lista se referiam? A nota era do tipo que a tinha atacado? Aquilo não tinha nem pé nem cabeça, salvo que queriam assustá-la. Estavam conseguindo, sobre tudo porque não sabia do que falavam. —Boas notícias? Ao ouvir a voz masculina a suas costas escondeu a carta entre a saia com gesto nervoso. Conseguiu recompor o semblante antes que seu convidado se sentasse a seu lado. —Dois possíveis compradores. —O que está vendendo? —Os cavalos. —refere-se a esses quatro puros-sangues que estão nas cavalariças? —interessou-se Mark—. O certo é fiquei abismado que tenha animais assim. Perdoe se for indiscreto, mas não parece que esses cavalos valem uma fortuna. Em minhas propriedades… — mordeu a língua ao dar-se conta de que tinha falado mais da conta. Franziu as sobrancelhas, alisando-as logo com um dedo. Magnólia o olhou com um brilho de antecipação e esperança. —recordou onde vive? Quem é? —Não. Mas sim que tenho uma mansão e cavalos de corridas. É curioso. Ao menos estou convencido de não ser um mendigo. —As roupas que levava e seus arreios não são as de alguém sem recursos. Sinto que o que lhe emprestei de meu defunto marido não sejam da mesma qualidade —se desculpou, dizendo que a camisa e as calças de Roger nunca tinham tido tão magníficas—. Sem dúvida essa lembrança demonstra melhoria, senhor. —Sua alegria a delatava. Mark sentiu certa irritação quando a mão dela posou em seu braço; tocava-lhe com uma mescla de tranqüilidade e comiseração, sentimentos bastante distintos ao dia anterior, quando literalmente se pendurou de

seus ombros. —Sem dúvida —confirmou, áspero. —Faça um esforço. Se conseguir recordar algo mais, algo por pequeno que seja… Um nome, uma direção, um lugar… —Poderíamos procurar a meus familiares ou amigos, se é que os tenho, pondo fim a seu problema, não é isso? Ela se levantou da cadeira de balanço, levando consigo a carta sem remetente. Mark observou que a fazia desaparecer no bolso do vestido, embora o fez com dissimulação, ele não perdeu este detalhe. Sua investigação estava estacionada. Sabia como investigar uma casa e ali o tinha feito incessantemente, mas seguia sem encontrar nada. Magnólia devia ter a maldita lista escondida, esperando o momento de entregá-la e receber o pagamento da traição, onde diabos podia estar lhe escapando. A noite anterior havia tornado a levar a cabo suas pesquisas: revisou de novo o salão, a cozinha, baixou inclusive ao porão; só encontrou papéis sem importância, faturas antigas e um par de manuscritos escritos com letra pequena e coquete, indubitavelmente feminina. Chamaram-lhe a atenção, não imaginava que sua anfitriã tivesse afeições literárias e se entreteve mais da conta dando uma olhada. Eram bons e se perguntava por que não os tinha terminado, podiam ser publicados em capítulos em qualquer revista, contribuindo com dinheiro à magra economia da jovem. Claro que ganharia bastante mais vendendo os nomes dos agentes ingleses ao inimigo. —Tenho que dizer —disse ela sem olhá-lo, tirando-o de suas reflexões—, em realidade sim, você é um problema. deu a volta para enfrentá-lo—. Assim que vender os cavalos, terei que abandonar esta casa. O que vou fazer com você, se você não recuperar a memória? Mark sorriu como um lobo, levantou com um gesto preguiçoso e se aproximou. —Porque oculta seu precioso cabelo embaixo dessa insípida touca? —perguntou sujeitando entre os dedos uma mecha que tinha escapado. Magnólia mexeu a cabeça e recolocou o cabelo sob o tecido com tanta precipitação que só conseguiu deixar mais cabelo à vista. —Deixe de lisonjas e me responda. —me levar com você?

—O que? —Digo, minha senhora, que se não tiver recuperado a memória quando tiver que abandonar este reduto de paz, poderia me levar com você. Seguro que sei fazer algo produtivo, ainda não me ocorre o que, mas acredito que eu gosto de trabalhar com madeira, parece que entendo de cavalos e começo a recordar que me interessa a pintura e sou bom como desenhista. —Ao parecer, sua memória melhora. Mas eu não penso me dedicar à marcenaria, ficarei sem os cavalos e, certamente, tampouco vou ter uma oficina de retratos, cavalheiro. —Talvez pudesse ser seu… amante? —O golpe na cabeça deve estar lhe afetando mais do que imaginava —respondeu, sufocada, apartando-o e procurando distância. —Você necessita de um homem, Magnólia. —Como uma dor de dente! —replicou ela. —Notei-o. —Não diga bobagens! —Não sei que tipo de matrimônio teve, minha senhora, mas certamente não deve ter sido um leito de rosas, ou não teria respondido as minhas insinuações como o fez. Suas bochechas arderam ao recordar seu comportamento. Não tinha atuado como uma viúva, nem sequer como uma mulher com princípios, reconhecia-o. Mas que ele dissesse na cara era mais do que podia suportar. —Conheci homens descarados em minha vida, mas você é… é… —Economize o insulto. —O merece. —Por beijá-la? —Por me recordar isso. —Mas não por beijá-la, então. Vê o que digo? Se dá mais importância a que se mencione ao que realmente aconteceu… Sei que pensa que tenho razão, Magnólia. —Também sabe ler a mente? —Pretendeu burlar-se, mas a irritação a fez gaguejar—. Está resultando ser uma caixa de surpresas. Pressurosa, afastou-se para a porta que dava à cozinha, pedindo em

silêncio que a senhora Merritt retornasse quanto antes. Se aquele louco persistia em suas insinuações, ia resultar complicado pará-lo estando os dois sós na casa. Não chegou a entrar. A idéia lhe veio como uma chama. —Seriamente sabe você desenhar? Mark entrecerrou os olhos. O que teria ocorrido? Encolheu um ombro antes de responder. —Isso acredito, ao menos me recordo desenhando junto a um lago, ignoro onde. Não mentia. Tinha herdado de sua mãe o amor à pintura, desenhava bastante bem e, quando suas obrigações o permitiam, ausentava-se da mansão para dedicar-se a esse passatempo sob a sombra de um carvalho, junto à lagoa artificial que seu pai tinha mandado construir quando ele era pequeno. Era seu lugar preferido para desenhar… e para se perder com alguma conquista. A imagem de Magnólia tombada embaixo do carvalho, com o cabelo solto e o sutiã aberto o golpeou , deixando-o aturdido. —É genial! —ouviu-a exclamar—. Venha comigo, por favor. Entrou na casa sem esperar para ver se a seguia. Subiu quase correndo para o piso de cima, onde estavam as habitações, e se dirigiu diretamente s seu dormitório. Ao ver a direção que tomava, Mark parou em seco. Por nada do mundo ia entrar naquele quarto; se o fazia, se a tinha perto de uma cama, sabendo que a senhora Merritt tinha saído, não se via capaz de deter-se. Magnólia Hunt era uma mescla de decisão e inocência que o desorientava. Por um lado, parecia capaz de algo, inclusive de estar mentindo para todo mundo sobre sua patética situação econômica enquanto estava a ponto de obter um substancioso ganho na venda de segredos de Estado. Por outra, tratava-se de uma mulher muito confiada, que tinha aceito em sua casa a um desconhecido simplesmente por te-lo atropelado. Muito bem poderia ter chamado aos guardas e entregá-lo para que fossem eles quem averiguasse sua identidade; mas a honra e sua clara determinação a pagar sua falta não a permitiram abandoná-lo como um cão. Era esse o modo de atuar de uma espiã? Algo não casava, e sua primeira impressão dela se consolidou. quanto mais tempo passava junto à jovem, mais acreditava em sua inocência. Ou acaso estava deixando-se levar pela inegável atração que exercia sobre ele? Tanto a

desejava que estava disposto a ver valores que nunca teve? Ao vê-lo parado na porta, Magnólia se aproximou, pegou-o pelo braço e o fez entrar. Logo o empurrou até o espelho de corpo inteiro, a única herança de sua mãe, e o obrigou a olhar-se nele. —E bem? —E bem, o que? —Olhe-se no espelho. —Vale, sou bastante atrativo. Tampouco estou mal de corpo, se for a isso ao que se refere —respondeu com um bufo. —Deixe de dizer tolices. Seria capaz de fazer um auto-retrato? —O que? Ela lhe dedicou um olhar que poderia querer dizer «você é um idiota» ou «estou para comê-lo» Mark rogou para que fosse o último. Deixou-o sozinho ante o espelho e se dirigiu à cômoda. Em um gesto de paquera masculina, ele alisou suas calças e endireitou o colarinho da camisa, observando-a através da polida superfície. Viu-a tirar algumas folhas de papel em branco e um par de lápis. —Comece —ordenou ao entregar o papel e os lápis. —Comece o que? —Não entende nada, homem de Deus? Vamos, desenhe seu retrato. Vamos inseri-lo no jornal. Compreende agora? Alguém o reconhecerá. —Que mente tão sagaz —replicou ele. —Não ponha essa cara de menino aflito —sorriu Magnólia, verdadeiramente contente por sua brilhante idéia—. Acaso não quer recuperar sua autêntica vida? Será um prazer. A palavra obrigou a Mark a virar a cabeça para a cama. Sua condenada cama! Quantas vezes teria Hunt visitado seu leito?, perguntou-se, com um golpe de estúpido ciúme. Não muitas, respondeu a si mesmo, porque nenhuma viúva recente se lançava aos braços do primeiro homem que a beijava como ela tinha feito, estava necessitada de carinho, por mais que tentasse negá-lo. A resposta de Mark, com um murmúrio, acelerou os batimentos do coração de Magnólia: —Sim, seria um prazer. Ela retrocedeu um passo. Retornavam as insinuações do desconhecido e,

com estas, a premente necessidade de deixar-se levar e entregar-se a ele. Como um naufrago, levou uma mão ao estômago, onde notava um nó. Mark não deixou que escapasse do quarto como uma corsa assustada, mas sim deixou papéis e lápis e cobriu a distância que os separava para prendê-la entre seus braços. Magnólia não se moveu, não podia. Capturada como um passarinho, lutava por acalmar os frenéticos batimentos de seu coração. Desejava-o, não podia, desejava-o, não devia, desejava-o, não era decente… Ele tirou as presilhas que sujeitavam a touca até tirá-la, depositando pequenos beijos em seu rosto, em suas bochechas, em seu queixo, tão perto de sua boca que lhe cortava o fôlego. —Não… posso… O cabelo solto caindo sobre as costas e ombros, os elegantes dedos masculinos brincando com suas mechas, que brilhavam sob o sol que penetrava pela janela, as palavras sussurradas, seu aroma de homem, os lábios que sabiam ser o pecado, sua perícia ao tocá-la… Como lutar contra aquele ataque a todos seus sentidos de uma vez? Teria que ter muita força de vontade para opor-se a ele e Magnólia carecia dela. Não soube como, mas um segundo depois tinha o sutiã aberto, e seus seios necessitados de cuidados transbordavam pelo tecido, agora enroscado em seus quadris, enquanto as mãos dele acariciavam sua carne trêmula… Seu instinto gritava pedindo mais, precisava senti-lo como ele a estava sentindo, queria saborear sua pele, acariciar seus duros músculos, fazê-lo prisioneiro entre suas pernas. Assustada por esses delirantes pensamentos, e ao mesmo tempo querendo seu corpo firme, deixou-se arrastar até o leito. —Carinho, não sabe como desejo… Suas bocas voltaram a fundir-se em um beijo tão veemente que os deixou sem fôlego. —Senhora! Já estou em casa! Deram um coice de uma vez e se olharam culpados. —Condenada mulher! —protestou Mark levantando com as mãos trêmulas. Magnólia, agora vermelha de calor, ficou em pé sem ajuda e começou a arrumar o desastre que ele tinha convertido suas roupas. Com dedos

ágeis, Mark a ajudou com a touca, enquanto ouviam os protestos da senhora Merrit subindo a escada e dizendo algo sobre seus doloridos joelhos. —Senhora? —Ao empurrar a porta e entrar, a senhora Merritt só viu sua ama apoiada na janela e ao atraente visitante olhando-se no espelho e rabiscando em umas folhas, ambos com gesto anti-social—. Acontece algo? —Nada, senhora Merritt —respondeu Mark com toda naturalidade, como se a uns segundos não tivesse estado a ponto de possuir Magnólia. Mostrou-lhe os traços de um desenho, apenas quatro linhas—. recordei que desenho, e a sua senhora ocorreu a idéia de que eu faça um retrato para inseri-lo em um jornal e assim localizar a algum conhecido. —Uma idéia excelente! A senhora sempre as tem. Mas seria melhor que acabasse seu desenho no salão, senhor, eu emprestarei meu espelho. Compreenderá que não é decente que fiquem aqui os dois sozinhos. Acompanha-me? Mark amaldiçoou para seus adentros, mas a seguiu, embora antes de sair se voltou para Magnólia e disse: —Acabaremos o que começamos, prometo-lhe isso. Começava a ficar nervoso. Viver sob o mesmo teto que Magnólia estava acabando com seu controle. Seguia-a como um lobo quando andava pela casa, ajudando à senhora Merritt na limpeza, ou se dedicava a cuidar as roseiras, quando passeava absorvida por pensamentos que Mark gostaria de decifrar. Ela só se ausentou da mansão uma vez, quando ele acabou de desenhar seu auto-retrato, bastante medíocre por certo, posto que não lhe interessava que o reconhecessem. Magnólia tinha contemplado o desenho com atenção e elevado suas perfeitas sobrancelhas em um gesto de ironia. —Acreditei entender que você sabia desenhar. —Ao menos, o suficiente. —Até um menino faria um retrato melhor que este. Não se parece em nada com você. —Sinto muito, é o melhor que me consegui fazer. —Assinalou com o

queixo o montão de folhas amassadas no cesto de lixo. Se por acaso tratava de enganá-la, ela agarrou as folhas e as estirou sobre na mesa para as examinar. —São horríveis. —Verdade? É estranho, eu pensei que gostava de desenhar. —Que goste de desenhar é uma coisa, mas que saiba fazê-lo, é outra muito distinta. É possível que entenda de cavalos, Mark, mas certamente não está feito para o lápis-carvão. De todas as formas, tinha metido o retrato em uma pasta e o tinha levado para inserir um anúncio no primeiro jornal que saísse. Ao retornar, parecia satisfeita, como se acabassem de lhe tirar um peso de cima. Não era para menos; se alguém conseguisse reconhecer seu rosto —o que Mark duvidava—, livrar-se-ia dele. Pensar que Magnólia tinha como principal objetivo desfazer-se de sua presença esquentou seu ânimo. O que esperava, que caísse rendida em seus braços quando apenas o conhecia, quando não sabia nada respeito a ele? Que cedesse assim, sem mais, a seus galanteios e que confessasse o lugar onde guardava a fodida lista? Sabia que tinha dotes para a sedução, mas não era tão idiota para supor que em tão pouco tempo podia conquistar aquela mulher. Não a ela. Magnólia já tinha demonstrado que era uma pessoa de idéias fixas; de outro modo, não teria ficado com ele em casa quando a própria senhora Merritt tinha posto mil e uma oposição a isso, segundo ela mesma lhe tinha contado. Para não revelar seu estado de ânimo partiu aos estábulos, onde poderia escovar os cavalos, tarefa que gostava de levar a cabo quando acabava suas cavalgadas. Relaxava-o e o ajudava a não pensar em nada. Já ia voltando para registrar a casa nesta noite, porque não pensava mais em tirar o segredo a Magnólia. Um ligeiro frufru de tecido o fez voltar-se. A mulher que estava tirando seu sono —sim, o estava tirando, quando nunca pensou que isso pudesse acontecer com ele, sentir-se como um estúpido que babava atrás de seus passos— o olhava com um meio sorriso. Tinha trocado de vestido e agora levava um mais singelo que o que tinha posto para ir à cidade, de um tom água-marinha que contrastava maravilhosamente com sua pele e seus olhos, mas tão

modesto como os outros. Não tinha um vestuário adequado para um corpo que merecia luzir os mais suntuosos tecidos e lindas jóias, Mark sabia por que tinha revisado seu armário incessantemente. Se ele pudesse… Desprezou o repentino pensamento de enchê-la de presentes caros. Isso se fazia com uma esposa, ou uma amante, e ela não era nenhuma dessas duas coisas. Magnólia se aproximou e estendeu um copo de limonada. —Senhora Merrit preparou esta manhã e está deliciosa. —Não gostava, mas ele agradeceu. Seguiu escovando o cavalo, rogando mentalmente que partisse. «Deliciosa». Sim, estava deliciosa, mas não a limonada —maldito se importava a bebida—, a não ser ela. Por fim tinha decidido tirar a touca, e seus cachos, recolhidos na cabeça com uma fita branca, faziam-na parecer um anjo. Uma verdadeira tentação. —Não seja um menino —ouviu que dizia—. Faz um calor infernal e está fresca, a jarra esteve no poço até agora. —Deixe-a por aí. Magnólia deu a volta a um canto onde havia uma mesa e colocou o copo sobre ela. Mas não partiu, mas sim se sentou sobre os arreios, estendendo sua saia ao redor de seus pés. Mark não queria vê-la, mas não perdeu nenhum detalhe seus movimentos. notava-se seus músculos tensos e o sangue galopando por suas veias. Aferrou a escova com desespero por agarrar-se a algo que não fora a cintura dela. —Não lhe interessa saber o que passou com seu retrato? —chamaram à polícia para prender o autor por ser muito ruim? A súbita gargalhada fez com que sua mão tremesse e a escova caísse. Torpe como nunca, agachou-se para recolhê-la, com sua má sorte golpeou com a cabeça a parte mais nobre do semental e este, molesto, deu coices e girou golpeando-o com o lombo. A força do animal fez com que Mark caísse no chão antes de se dar conta do que acontecia. —Merda! A risada feminina aumentou ao vê-lo caído sobre a palha. Outro palavrão foi aos lábios, mas não chegou a pronunciá-lo. Seus olhos ficaram cravados em Magnólia. Que formosa era quando não franzia a

sobrancelha! Terminou sorrindo e aceitou sua mão para levantar. —Acredito que tampouco sabe sobre os cavalos. —Me dou melhor com as éguas. —Voltamos passear? —A careta divertida não chegava a boca, aquela boca que ele desejava provar de novo, embora o inferno o levasse depois. —Não é uma insinuação. As éguas são mais ariscas que os garanhões e eu sempre soube como tratá-las. —Possivelmente porque é um mulherengo. —Você crê? —Você não? —Não sei o que dizer, é verdade —admitiu. —Então não diga nada, tome a limonada e lave-se um pouco. A senhora Merrit tem a comida quase preparada. Viu-a afastar-se com aquele passo que o aturdia e se chamou de idiota por deixá-la escapar. Parecia que ela tinha esquecido seu pequeno discurso do dia anterior. Aquele tinha sido um momento muito propício para voltar a abraçá-la, mas não se atreveu, e agora lamentava. Impossível dormir. Seu mundo estava de patas para o ar e não sabia como voltar a se orientar. Todas e cada uma de suas normas de conduta jaziam pulverizadas a seus pés como fios quebrados. Nunca tinha sido desconfiada, mas agora isso a intranqüilizava. Não conhecia o medo, e, entretanto, naqueles momentos, a carta que estava amassada entre os dedos, junto com o ataque sofrido fazia dias, enchiam-na de insegurança. Com o Roger não soube o que era o desejo, seu marido era um ser mesquinho e sórdido; Mark, ou como diabos se chamasse realmente, despertava nela uma fascinação e um desejo que a desorientava. Como era possível se apaixonar por ele em tão pouco tempo, quando desconhecia tudo a respeito de sua pessoa? Era o que chamavam de uma flechada? sobressaltou-se ao ouvir a voz do homem que monopolizava seus pensamentos, e que acabava com sua quietude. —Insônia? Não se moveu, com o olhar perdido na miríade de brilhantes estrelas que apareciam no firmamento.

—Pensava —disse—. Ultimamente não deixo de fazê-lo. —se preocupa comigo, aqui? —Não tanto como… —Amassou mais a carta entre os dedos, interrompendo-se de repente. Quem era ele para que lhe contasse suas preocupações? Mark tomou sua tremente mão e agarrou o papel. Ela não resistiu, precisava confiar em alguém e ele estava ali. —Um credor? —perguntou, antes de ler a nota. Ao fazê-lo, franziu o rosto—. Quem enviou isto? —Não sei. —A que lista se refere? Algum assunto de seu defunto marido? —Suponho que sim. Mark, eu… —Se deteve. —Você… —a exortou ele. Pressentia que estava a um passo de que Magnólia se justificasse, a ponto de que descobrir seu segredo, como se o peso que levava sobre os ombros se converteu em uma carga que já não podia suportar. Deplorou ter que seguir enganando-a, mas que outra coisa podia fazer, quando a vida de vários homens estava em suas mãos? À luz da única lamparina de azeite que estava acesa no alpendre, os olhos escuros de Magnólia brilhavam de lágrimas contidas. Para ele foi como se o golpeassem em pleno tórax. —Mark, tenho medo. Ao ouvi-la, as dúvidas que o assaltaram desde que iniciou aquela incômoda missão se apagaram de vez. Tomou-a entre seus braços, sentando-a em suas pernas para protegê-la. Beijou seu cabelo, agora solto e deliciosamente suave, que cheirava a lavanda, e lhe acariciou o rosto. —me conte. Estou aqui e nada te vai passar. Magnólia se deixou ficar entre esses braços, que a faziam se sentir segura, deixou de tremer e abriu seu coração. Falou de seus desejos infantis, de suas ilusões de adolescente sobre encontrar o amor, de sua imolação no leito do Roger para salvar aos seus da pobreza. Confessou sua repulsão cada vez que ele a tomava, a afronta de seus vexames, a vergonha, o temor, o asco. Falou-lhe de tudo, precisava abrir a comporta fechada durante quatro longos anos de desprezos e baixezas. As lágrimas dela se cravavam em Mark como dardos e não encontrava

palavras para tranqüilizá-la, só podia abraçá-la mais forte. Um sentimento de amparo o impulsionava a tirá-la dali, a salva-la do que fosse que estivesse deixando-a aflita, era tão novo para ele que o desconcertava. —Falou de uma lista, prometeu voltar por ela e agora, esta carta… Se soubesse o que é o que quer! Perdido em suas próprias inseguranças, Mark tinha estado aéreo, mas a última frase voltou a pô-lo em guarda, e reapareceu o ser desprezível e indigno que tinha que seduzir aquela moça para finalizar um trabalho. —Pensa. —Sua voz soou muito áspera inclusive a ele—. Seu marido guardava uma lista e alguém a quer. Deve ser importante. —Suponho que sim. —Onde será que a escondeu? —«E não me diga que no porão, porque o revisei tantas vezes que conheço até a cada camundongo por seu nome», pensou com violência. —Desconheço que assuntos de Roger . Ele não me contava nada. —Por todos os infernos, carinho! —desesperou-se—. Algo ele deve ter dito, foi sua esposa. —Para esquentar sua cama quando queria, para me golpear quando se irritava. Só para isso. —Se não tivesse morrido já, eu adoraria retorcer seu pescoço. —Iria preso —sorriu Magnólia. Mark pensou que realmente poderia ter desafiado a esse mal nascido. Era bom com as pistolas e melhor com a faca, sentiria muito pouco por acabar com sua infâmia. Quanto a ir ao presídio… que pouco sabia ela com quem estava tratando e as amizades que tinha! —Não viu nada estranho? Algo incomum nele? —Viu-a negar—. Pensa, Magnólia, pode ser que sua vida dependa disso. Com repentina irritação, o olhou com atenção. Incomum? Não Roger, que teimava em seguir sempre as normas como um neurótico? Seu corpo se esticou de repente e Mark notou a mudança. —A Madona Negra… —a ouviu sussurrar. —Ao que? —Dias antes de sua morte, encontrei-o em meu quarto, frente à imagem. Fiquei aturdida, porque nunca antes o tinha visto rezar. até agora não dei importância.

—O que é a Madona Negra? —A ti tampouco se dá bem com os temas de fé, vejo —quis brincar, mas não sortiu efeito—. A Madona Negra é o nome pelo que se conhece a Virgem do Montserrat. O papa Leão XIII a declarou padroeira da Catalunha. Minha avó era dali. Conta a lenda que foi descoberta por uns pastores por volta do ano 880. Eu tenho em meu quarto uma réplica de uma talha do século quinze, sem muito valor. —Eu a vi —assentiu ele. Foi quando registrou o quarto de Magnólia. Até a pegou e com as mãos tentou encontrar alguma abertura! Esqueceu que Hunt era um dos melhores artesãos; nada mais fácil para ele que esconder ali a lista e depois restaurar a imagem. Foi um idiota…! Poderia ter resolvido o caso em poucas horas, e, pelo contrário, deixou-se enganar como um novato. —A viu? —alarmou-se Magnólia—. Quando? —Recorda que me levou a sua habitação. Ela se soltou de seu abraço e ficou de pé em frente ao Mark. Seus olhos eram dois faróis que o acusavam, mas já não havia como voltar atrás, seu deslize acabava de delatá-lo como a um colegial, e ele, que tinha fama de ser um dos melhores agentes do governo. Resmungou algo muito feio entre dentes. —É certo que entrou em meu quarto —disse ela com voz neutra, infestada de suspeita—, mas a Virgem do Montserrat está em uma urna de madeira. Salvo quando lhe rezo, deixo-a fechada, portanto, não pode te-la visto —Ele levantou, mas ela não retrocedeu, e se enfrentaram como dois inimigos—. Registrou minha habitação? —Eu… —Tem-no feito! porque? Realmente o acidente o fez perder a memória ou foi só um truque? —Magnólia… —Que buscas em minha casa, Mark? Ou… devo te chamar de outra maneira? —Agora não há tempo para explicações, temos que revisar a imagem. —Não. —Você não o compreende… —Exatamente. Não o compreendo. Mas vai explicar isso para mim, não é

certo? Enquanto procurava uma mola, algo que abrisse a imagem, Mark se deu conta de que realmente era uma obra magnífica. De madeira policromada, a Virgem sustentava na mão direita a esfera do universo; o menino, em seu regaço, parecia querer benzer a quem o olhava, sujeitando uma pinha em sua mão esquerda. A seu lado, uma Magnólia rígida o observava com desdém e um silencioso aviso de advertência, como se temesse que fora a jogar a virgem contra o chão para encontrar o que procurava. —Condenação, deixa de me olhar assim! —irritou-se ele—. Seria capaz de matar a um homem por essa lista, mas não vou romper sua ditosa virgem. —Eu seria capaz de te cortar o pescoço se o fizer, é a única lembrança que tenho de minha avó, assim tome cuidado. pode-se saber que demônios contém essa maldita lista? —Algo muito importante. —Importante? —Muito. —Deixa a estátua onde estava e saia do meu quarto. —Está louca se pensa que… —Escuta, e escuta bem porque não penso repeti-lo, Mark. confiei em sua palavra de que se encontrarmos o que buscas não correrei perigo, mas não sou uma menina que se deva proteger. No que estava metido meu marido? Ele soprou. Era teimosa como uma mula. Sem deixar de dar voltas à imagem, respondeu: —Em assuntos de espionagem. —Espionagem? Roger? Tenta outra explicação, não acredito nisso. —Creia ou não, seu marido estava a ponto de passar dados secretos a inimigos da Inglaterra. —Era um covarde, não o vejo nesses mistérios. —Eu lhe adjudicaria outro adjetivo. Merda! Como se abrirá isto? —Que dados ia vender Roger? —Os nomes de vários agentes ingleses distribuídos pela Europa —

respondeu, dando-se por vencido. —Espiões? Como você? —Chama-o como quiser. Eu prefiro dizer que sou agente de Sua Graciosa Majestade. —Assim é um deles. Mark lançou um olhar tão feroz que quase chegou a amedrontá-la. Quase. Magnólia estava se vingando pelo infame engano de que tinha sido vítima. O que menos lhe importava era saber que não tinha perdido a memória e que tudo tinha sido um truque para aproximar-se dela. O que doía eram seus sonhos, truncados mais uma vez, porque tinha se apaixonado por ele como uma colegial. Estava lhe fazendo expiar seu escárnio, sim, porque fazia já uns minutos que Magnólia sabia como abrir a suposta cavidade secreta da imagem. Conhecia palmo a palmo aquela estátua, rezava a cada noite, poderia havê-la descrito com os olhos fechados. Esperou um pouco mais para lhe contar o que tinha adivinhado, porque sua pequena vingança a ressarcia. —Quem é na realidade? Seu nome é Mark? —Nisso não te menti. Mark Townsend, marquês de Reston. A seus pés, senhora —respondeu com ironia. —E no resto? Mentiu no resto? Ele deixou a imagem sobre a cama sujeitou a ela nos braços para junta-la a ele. O azul de sua íris se voltou mais escuro. —Posso ser um exímio embusteiro quando trabalho para a Coroa, Magnólia, mas não menti em nada mais, não no que sinto. Não posso explicar como passou, mas me apaixonei por ti, quero estar a seu lado, te proteger, te dar meu sobrenome. Assim são as coisas. —Preciosa declaração —burlou ela—. Não cabe dúvida, é bom em seu trabalho. —Magnólia… —Basta de mentiras, lorde Reston. Acabemos o quanto antes com este irritante assunto. —Tomou a imagem e moveu a bola do mundo. ouviu-se um ligeiro estalo e a parte traseira da imagem se abriu, descobrindo um buraco. Dentro havia um papel enrolado que ela tirou e lhe entregou—. Veja se é sua maldita lista de espiões e saia da minha casa e da minha vida.

—Como sabia…? —A bola é maior do que era antes. Simples dedução, senhor agente. Ouviu-o renegar enquanto desenrolava a lista e a examinava. Logo a aproximou da chama de uma vela e o papel pegou fogo com rapidez. Segundos depois, não ficavam mais que umas quantas cinzas. —E agora, saia de minha casa! —Lamento que… —Fora! —Assinalou a porta com mão insegura. —Voltarei. —Sim, isso mesmo disse naquela noite, porque foi você quem veio para me intimidar, verdade? Que tonta que fui. Mas de tudo se aprende, e isto ajudará a não voltar a confiar em ninguém… embora o veja meio morto na rua. —Era suspeita. —Seriamente acreditava que estava a ponto de vender segredos do meu país? Sim, claro. Os homens como você pensam que todos nós, não temos valores morais tal qual vós. Que baixo se pode cair, milord, para servir a Inglaterra. Mark não replicou. Como fazê-lo? Não tinha defesa alguma, declarar uma vez mais seu amor não serviria de nada, ela não acreditaria em uma palavra do que lhe dissesse; converteu-se em seu inimigo. Nunca antes finalizar com êxito uma missão tinha lhe provocado tanta amargura. —Não tema pelo sujeito que está pedindo a lista, não poderá aproximar-se de ti, será preso assim que se aproxime da casa. —Agradeço. —Voltarei. —Não estarei aqui. Pegou-a pelos ombros, baixou a cabeça para beber uma vez mais de sua boca. Ela se limitou a permanecer rígida, sem responder ao beijo. —Buscarei a ti, Magnólia —prometeu, saindo do quarto. A porta se fechou atrás dele silenciosamente, causando ao Mark a mesma impressão como se tivessem fechado a tampa de seu próprio ataúde. Instantes depois, abandonava a casa.

Três meses mais tarde… Fazia frio, e embora fosse noite fechada Magnólia, agasalhada na manta, não queria mover-se da praia. As ondas, rompendo na praia com cadência hipnótica, faziam-na recordar tempos mais felizes, quando era pequena e brincava com seu irmão de fazer castelos de areia que logo a espuma do mar destruía. Doía pensar que sua vida tinha sido só isso, castelos de areia. Mas ela conseguiria construir um forte para começar de novo com a grata companhia da senhora Merritt, que, tal como prometeu, seguia a seu lado. As coisas não foram tão mal. A venda dos cavalos do Roger lhe tinha proporcionado mais dinheiro do que esperava e graças a ele pôde comprar uma pequena casa naquele povoado costeiro, perto de Torquay, ao sul da Inglaterra. Não sobrou muito dinheiro, mas a senhora Merrit e ela ganhavam bem a vida vendendo seus bordados e fazia um mês que tinha começado a dar aulas aos meninos do povoado em troca de um pequeno salário. Era suficiente para começar de novo. Que ainda lhe doesse o coração carecia de importância, acabaria por esquecer a Mark Townsend, o maldito marquês de Reston. De todos os modos, a senhora Merritt o tornava difícil, porque desde que partiram de Londres, nem um só dia tinha deixado de cantar louvores a favor do homem que enganou a ambas. Conseguia irritá-la com seus constantes: «Fazia seu trabalho, senhora», «Era um assunto de governo, tem que entendê-lo», «Amava-a, vi em seus olhos». O que saberia ela! Magnólia reconhecia que a detenção do grupo de traidores da Inglaterra, tão aclamada nos jornais, tinha sido algo espetacular, e as dúvidas sobre os verdadeiros sentimentos do Mark já não eram tão intensas. Amá-la? Se era certo, porque não a procurara, como prometeu? Sentia falta dos poucos beijos compartilhados, de suas mãos, seu aroma, seu sorriso alegre, sua voz… Sabia que, se aparecesse nesse momento, mandaria seu orgulho ao inferno e se lançaria a seus braços. Mas ele estava muito longe… —Insônia? O coração deu um doloroso tombo no peito. Meio que voltou para aquela voz que sussurrava, embriagadora e severa. antes de poder fazê-lo, encontrou-se prisioneira de uns braços que a confinaram contra um peito

amplo e duro. —Pensava —respondeu, rememorando outro momento e outro lugar. —Em mim? —Segue sendo você igual de fátuo, lorde Reston. —E você, mais formosa. —Como me encontraste? —minha senhora! Que pergunta é essa para um agente da Coroa? Escondeste bem, admito-o, tive que gastar um montão de dinheiro contratando os serviços de dois detetives. Mas a teria encontrado embora tivesse tido que entregar toda minha fortuna. —por que vieste, Mark? —Sabia, mas precisava ouvi-lo dizer. —Porque tem algo que me pertence: meu coração. E quero recuperá-lo. Magnólia se se pôs a rir, ditosa. voltou-se em seus braços e levantou o rosto para beijá-lo na boca. —Nem por todo o ouro do mundo, milord. Guardei-o em um cofre e atirei a chave fora. Sempre será meu. —Amém —respondeu Mark, beijando-a de novo. * * * " RESENHA BIBLIOGRÁFICA Nieves Hidalgo Nasci em Madrid faz algum tempo. Considero-me, fundamentalmente, uma incansável viajante, e também uma impenitente devoradora de livros. Escrevo há mais de vinte anos, ao princípio por simples afeição e divertimento, e mais tarde para o desfrute de minhas amigas e colegas de trabalho, até que se publicou minha primeira novela, O que dure a eternidade, com a que consegui me fazer um oco no panorama da literatura romântica, algo que se consolidou com a seguinte, Orgulho

saxão. Em 2009 fui galardoada com dois Prêmios Rincão de Novela Romântica como melhor autora e melhor novela por Orgulho saxão, e dois Prêmios Dama, um como melhor escritora nacional de novela romântica e o outro como melhor novela romântica espanhola, por meu livro Amanheceres cativos. Em 2010 Círculo de Leitores as incluiu em seu catálogo, com o que sou a primeira escritora espanhola de novela romântica publicada por sorte editorial. Também foram publicadas: Filhos de outro barro, Lua do Oriente, Noites do Karnak e O anjo negro.