neves e goes arqueologia e diversidade cultural.pdf

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64 obrigatoriamente se comprometer com apenas uma delas. No caso brasileiro, um exemplo que ilustra a ideia proposta pelo autor seria a adesão de muitos católicos a ritu- ais de outras religiões como o caso de passes espíritas ou de consulta a benzedores. Já os “quatro cavaleiros”, mesmo que reconhecendo, em alguns mo- mentos, a importância das religi- ões como fortalecedoras de laços sociais, trazem posicionamentos mais radicais contra as explicações e teorias fundamentadas em bases re- ligiosas. Um dos alvos de suas críti- cas são aqueles cientistas que vivem uma vida dupla: durante a semana conduzem a vida segunda a lógica racional da pesquisa acadêmica, mas aos fins de semana praticam uma fé religiosa que se contrapõe aos preceitos racionais científicos. O que David Lyon faz é justamente o contrário, pois seu livro revela um interesse de união entre suas cren- ças religiosas e suas reflexões cientí- ficas. Já os quatro pensadores, por sua vez, colocam-se como uma es- pécie de pregadores às avessas, pois têm o objetivo de despertar a so- ciedade para as possíveis vantagens trazidas pelo pensamento livre de preceitos religiosos. Enquanto o documentário foi feito seis anos depois dos atentados às tor- res gêmeas, o livro foi escrito ainda antes desse fenômeno de importân- cia fundamental para a discussão so- bre ciência e religião nos dias de hoje. Caberia, portanto, uma atualização do livro não somente em relação a esse fato, mas também no que diz respeito à influência das redes sociais nas práticas religiosas atuais. O texto de Lyon, mesmo que faça bastante referência à internet, foi escrito an- tes do advento de plataformas digi- tais como o Facebook ou Twitter. De que forma essas redes têm alterado aquilo que Lyon chama de “ciberi- greja” é uma indagação que o livro suscita no leitor, mas é incapaz de responder. Mesmo assim, Jesus in Disneyland continua atual e sua lei- tura certamente será proveitosa para o entendimento da religião no Bra- sil, de seus sincretismos, da atual for- ça dos movimentos evangélicos e até mesmo para a compreensão do fe- nômeno dos padres católicos “pop- -stars” como o padre Marcelo Rossi e, mais recentemente, o padre Fábio de Melo. O documentário, por sua vez, apesar de bastante controverso para os crentes mais ortodoxos, me- rece ser assistido pela defesa, que é ali feita, por um pensamento livre e aberto à discussão. Do sociólogo David Lyon recomen- da-se também a leitura dos livros: Surveillance studies: an overview (Polity Press) e The electronic eye: the rise of surveillance society (University of Minnesota Press). Dos quatro ca- valeiros do ateísmo, seus livros mais discutidos e polêmicos são: Deus, um delírio (Cia das Letras), de Ri- chard Dawkins, O fim da fé (Tinta da China), de Sam Harris, Deus não é grande (Ediouro), de Christopher Hitchens, e Quebrando o encanto (Globo), de Daniel Dennett. Lucas Melgaço é doutor em geografia humana em cotutela de tese entre a Universidade de São Paulo e Universidade de Paris 1 – Panthéon Sor- bonne. Atualmente é pesquisador e professor da Queens University no Canadá e da Vrije Universiteit Brussel na Bélgica. Ao contrário do senso comum, a Amazônia foi, e ainda é, densamente ocupada e transformada pela ação hu- mana. O estereótipo de uma floresta virgem e intocada não corresponde à realidade. É o que afirma Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universi- dade de São Paulo (USP), para quem a ideia de que os portugueses chega- ram aqui e não encontraram “nada” no território do que hoje se entende por Brasil, mantém uma visão pre- conceituosa que, ao mesmo tempo, atrapalha o desenvolvimento econô- mico, cultural e social, como dificul- ta a questão da identidade nacional e de construção da história dos povos que aqui vivem. “Uma das grandes contribuições da arqueologia é mostrar que os povos indígenas têm história, assim como todas as populações; uma coisa im- portante que a gente pode aprender com o passado por meio do patri- mônio arqueológico, do patrimônio cultural brasileiro, é aceitar e incor- porar a ideia da diversidade, porque isso tem a ver com tolerância, com convivência, com aceitar a diferen- ça”, afirma Neves. A questão que se coloca quando se fala de patrimônio arqueológico é como manejar um recurso natural que é, ao mesmo tempo, cultural e social. De acordo com o pesquisador, ARQUEOLOGIA OS DESAFIOS DA DIVERSIDADE CULTURAL

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    obrigatoriamente se comprometer com apenas uma delas. No caso brasileiro, um exemplo que ilustra a ideia proposta pelo autor seria a adeso de muitos catlicos a ritu-ais de outras religies como o caso de passes espritas ou de consulta a benzedores. J os quatro cavaleiros, mesmo que reconhecendo, em alguns mo-mentos, a importncia das religi-es como fortalecedoras de laos sociais, trazem posicionamentos mais radicais contra as explicaes e teorias fundamentadas em bases re-ligiosas. Um dos alvos de suas crti-cas so aqueles cientistas que vivem uma vida dupla: durante a semana conduzem a vida segunda a lgica racional da pesquisa acadmica, mas aos fins de semana praticam uma f religiosa que se contrape aos preceitos racionais cientficos. O que David Lyon faz justamente o contrrio, pois seu livro revela um interesse de unio entre suas cren-as religiosas e suas reflexes cient-ficas. J os quatro pensadores, por sua vez, colocam-se como uma es-pcie de pregadores s avessas, pois tm o objetivo de despertar a so-ciedade para as possveis vantagens trazidas pelo pensamento livre de preceitos religiosos.Enquanto o documentrio foi feito seis anos depois dos atentados s tor-res gmeas, o livro foi escrito ainda antes desse fenmeno de importn-cia fundamental para a discusso so-bre cincia e religio nos dias de hoje. Caberia, portanto, uma atualizao do livro no somente em relao a esse fato, mas tambm no que diz respeito influncia das redes sociais nas prticas religiosas atuais. O texto

    de Lyon, mesmo que faa bastante referncia internet, foi escrito an-tes do advento de plataformas digi-tais como o Facebook ou Twitter. De que forma essas redes tm alterado aquilo que Lyon chama de ciberi-greja uma indagao que o livro suscita no leitor, mas incapaz de responder. Mesmo assim, Jesus in Disneyland continua atual e sua lei-tura certamente ser proveitosa para o entendimento da religio no Bra-sil, de seus sincretismos, da atual for-a dos movimentos evanglicos e at mesmo para a compreenso do fe-nmeno dos padres catlicos pop--stars como o padre Marcelo Rossi e, mais recentemente, o padre Fbio de Melo. O documentrio, por sua vez, apesar de bastante controverso para os crentes mais ortodoxos, me-rece ser assistido pela defesa, que ali feita, por um pensamento livre e aberto discusso. Do socilogo David Lyon recomen-da-se tambm a leitura dos livros: Surveillance studies: an overview (Polity Press) e The electronic eye: the rise of surveillance society (University of Minnesota Press). Dos quatro ca-valeiros do atesmo, seus livros mais discutidos e polmicos so: Deus, um delrio (Cia das Letras), de Ri-chard Dawkins, O fim da f (Tinta da China), de Sam Harris, Deus no grande (Ediouro), de Christopher Hitchens, e Quebrando o encanto (Globo), de Daniel Dennett.

    Lucas Melgao doutor em geografia humana em cotutela de tese entre a Universidade de So Paulo e Universidade de Paris 1 Panthon Sor-bonne. Atualmente pesquisador e professor da Queens University no Canad e da Vrije Universiteit Brussel na Blgica.

    Ao contrrio do senso comum, a Amaznia foi, e ainda , densamente ocupada e transformada pela ao hu-mana. O esteretipo de uma floresta virgem e intocada no corresponde realidade. o que afirma Eduardo Ges Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universi-dade de So Paulo (USP), para quem a ideia de que os portugueses chega-ram aqui e no encontraram nada no territrio do que hoje se entende por Brasil, mantm uma viso pre-conceituosa que, ao mesmo tempo, atrapalha o desenvolvimento econ-mico, cultural e social, como dificul-ta a questo da identidade nacional e de construo da histria dos povos que aqui vivem.Uma das grandes contribuies da arqueologia mostrar que os povos indgenas tm histria, assim como todas as populaes; uma coisa im-portante que a gente pode aprender com o passado por meio do patri-mnio arqueolgico, do patrimnio cultural brasileiro, aceitar e incor-porar a ideia da diversidade, porque isso tem a ver com tolerncia, com convivncia, com aceitar a diferen-a, afirma Neves.A questo que se coloca quando se fala de patrimnio arqueolgico como manejar um recurso natural que , ao mesmo tempo, cultural e social. De acordo com o pesquisador,

    aRQueoloGia

    Os desafiOs da diversidade cuLturaL

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    Eduardo Ges Neves

    existem evidncias por toda parte de que a Amaznia foi densamente ocu-pada. Os stios amaznicos so ricos e densos. A quantidade de stios arque-olgicos encontrados por sua equipe ao longo dos 30 anos de pesquisa na regio demonstra uma presena an-tiga e contnua, e mostram como as populaes estiveram presentes em diferentes pocas e regies.O que acontece que as populaes que existiam aqui no Brasil eram populaes grafas, elas no tinham escrita; ento, nossa nica fonte de informao para entender a histria dessas populaes so os objetos e o contexto no qual eles se inserem, is-to , das modificaes da paisagem que esses grupos fizeram no passa-do, como vestgios de pavimentos de cermica, pinturas, gravuras e solos escuros modificados pela ao humana, explica o arquelogo.Para o jornalista Pedro Ortiz, coorde-nador do curso da editora Obor, na capital paulista Descobrir a Amaz-nia descobrir-se reprter do Pro-jeto Reprter do Futuro, diversidade a palavra-chave para entender a Amaznia. Toda sua complexidade

    s pode ser entendida a partir de di-ferentes vises e definies, pois a re-alidade e os problemas da Amaznia so to diversos e complexos quanto sua extenso territorial. Alm disso, acrescenta Ortiz, uma srie de este-retipos e preconceitos em razo da desinformao ainda esto ligados ao imaginrio dos brasileiros quando se trata da regio amaznica, inclusive por parte de seus prprios habitan-tes, os chamados amaznidas ind-genas, caboclos, ribeirinhos, e rema-nescentes quilombolas.

    divErsidadE cultural x aculturao Outro aspecto importante dentro da temtica indgena a acultura-o. Para o pesquisador da USP, esse um problema que surge quando se remove a capacidade desses povos de terem histria. O Brasil no o mesmo de sculos atrs, passamos por diversas transformaes ao lon-go dos sculos, e essas populaes se transformam tambm, mas sempre se vendo como povos indgenas, afirma. Segundo Neves, a histria no s passado, mas uma coisa di-nmica, que est acontecendo nes-

    te exato momento e, portanto, em constante transformao. Os po-vos indgenas sempre estiveram em contato entre si e se modificaram. A questo de criar um falso dilema in-teressa a alguns grupos econmicos, que podem falar: olha, esses caras no so mais ndios, explica.Para o arquelogo o interesse por parte dos povos indgenas em re-construir as informaes de sua his-tria vem mudando com o passar do tempo. Antigamente no havia muito interesse porque, na verdade, os indgenas sabiam que viviam ali, e no precisavam daquela existncia de objetos para atestar que a ocupa-o daquelas reas era muito antiga. Mas hoje em dia, esse novo cenrio poltico que se coloca, onde algumas terras indgenas so objeto de dispu-ta, como no Tapajs, por exemplo, em que algumas barragens vo ter impacto sobre as terras indgenas, es-se interesse tem mudado: os kaiaps, povo original da regio, tm procu-rado parceria com arquelogos para mostrar atravs da arqueologia tam-bm que a ocupao daquele terri-trio por eles bastante antiga. Isso uma coisa recente e que tem sido muito interessante, destaca.O desafio da arqueologia grande. Mesmo com a melhor equipe de ar-quelogos em campo, este um tra-balho demorado, um processo de construo do conhecimento. Acho que os arquelogos tm uma boa parcela de responsabilidade por no termos uma tradio aqui no Brasil. A arqueologia est muito menos pre-sente na nossa vida do que deveria estar, conclui.

    Cristiane Paio

    O acervo de etnologia brasileira do MAE-USP inclui objetos feitos em madeira, cermica, palha, ossos e penas feitos por grupos indgenas do Brasil e pases adjacentes

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