neson werneck sodré

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Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha V-* I í O í-> ^ A A Utopia Tenentista na construção do Pensamento Marxista de Nelson Werneck Sodré Junho 2001

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Sobre a formação de Sodré dos anos 30 aos 50.

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  • Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha

    V-* I O -> ^ A

    A Utopia Tenentista na construo do Pensamento

    Marxista de Nelson Werneck Sodr

    Junho 2001

  • A Utopia Tenentista na construo do Pensamento Marxista de Nelson Werneck Sodr

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de

    Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob

    orientao da Prof. Dr3. Elide Rugai Bastos.

    Este exemplar corresponde a redao final da

    tese defendida e aprovada pela Comisso

    Julgadora e m i } / ^ / ? ^

    io lanni

    Loureii (suplente)

    Pinassi (suplente)

  • CMG0158630-9

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Cunha, Paulo Ribeiro Rodrigues da C 914 u A utopia enentista na construo do pensamento marxista de

    Nelson Werneck Sodr / Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha. - - Campinas, SP : [s. n.], 2001

    Orientador: Elide Rugai Bastos. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Sodr, Nelson Werneck, 1911-. 2. Partido Comunista Brasileiro. 3.Tenentismo. 4. Nacionalismo. 5. Socialismo. 6. Revoluo. 7. Cincia poltica - Brasil. 8. Militares- Brasil. 9. Intelectuais - Brasil. 10. Imperialismo. I. Bastos, Elide Rugai. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. HI.Ttulo.

  • Meire e Mara, amores de uma existncia, companheiras de uma trajetria, cmplices de um sonho...

    5

  • A G R A D E C I M E N T O S

    A minha orientadora Elide Rugai Bastos de quem recebi incentivo e confiana ao longo do desenvolvimento de minha tese e decisivo apoio nos momento crticos quando opes e redefinies tiveram que ser tomadas...

    Ao CNPQ pela bolsa de estudos e aos muitos colegas da Unicamp, pelas muitas discusses agradveis nos vrios cursos...

    Aos meus pais, Derneval e Maria Irmina pelo apoio constante e sempre crtico

    quanto as minhas opes ainda que igualmente sincero e entusiasmado quanto aos

    resultados, e ao seu Accacio e Olga, pelo carinho de uma adoo;

    A UNESP, aos meus alunos, aos meus colegas professores do Departamento de Cincias Polticas e Econmicas do Campus Marlia e aos funcionrios, em particular a Solange, Vera e Ana que me possibilitaram sob vrias formas, condies de desenvolvimento deste trabalho,

    Ao Cedem - Centro de Documentao e Memria- da Unesp e a sua diretora Ana

    Maria Martinez Corra bem como ao Lus, a Mrcia, Rose, Ana Cristina e Jaci pelo apoio

    nas vrias etapas de desenvolvimento deste projeto...

    A Biblioteca Nacional, em particular aos integrantes dos setores de Diviso de Informao Documental e o setor de Manuscritos, este ltimo responsvel pela guarda do arquivo Nelson Werneck Sodr que conjuntamente com a instituio, desenvolvem com profissionalismo e dedicao a tarefa de viabilizar a pesquisa neste pas...

    Aos muitos professores e pesquisadores entre outros que me auxiliaram, seja com material, comentrios e muitas conversas: Antnio Roberto Bertelli, Bernardo Ricupero,

    Dnis de Moraes, Dina Kinoshita, Geraldo Cavagnari, Gildo Marcai Brando, Jos Antnio

    Segatto. Jos Paulo Netto, Leila Hernandez, Lincon Secco, Maria da Annunciao

    Madureira, Marcos Silva, Marli Viarma, Martins Csar Fej, Octvio anni, Paulo

    7

  • Rezende; Raimundo Santos, Rubens Murilo Leo Rego, Silvana Ttora, Sueli Guadalupe. Zenaide e Alcides Ribeiro Soares,

    Agradeo as entrevistas que em muitos casos foram travestidas de agradveis bate papos com vrios personagens histricos, alguns deles amigos de longa data de Sodr: Apolonio de Carvalho, Armnio Guedes, Fernando Sanfanna, Joo Falco, Joel Rufmo, Leandro Konder, Renato Guimares, Salomo Malina, Teodoro Melo. Zuleide Faria bem como agradeo a ateno de Olga Sodr, filha de Nelson Werneck Sodr.

    A Mrcia, pelas sesses de cromoterapia; a Edmar e Tiago, pela assessoria de

    informtica; a V Amlia, Duda, Marina pela estadia no Rio, Elaine, Fbio, Eurides, Aline,

    Jair, Mar, Geraldo e muitos outros...

    Prof. Dra Viviane Veras pela leitura atenciosa dos originais,

    Em especial gostaria de agradecer a Maria Orlanda Pinassi pelo estmulo e os

    muitos papos que tivemos; ao amigo e sempre mestre Lcio Flvio de Almeida, pela

    interlocuo constante de quem procura na apreenso de um objeto de pesquisa, tornar uma obra algo mais que um trabalho individual; a Joo Quartin de Moraes, pelas muitas portas que me abriu, as muitas conversas envolventes que me propiciou um rico aprendizado, a

    Ivan Alves Filho pela amizade advinda de uma aproximao militante que caracteriza os

    sonhadores; e ao meu amigo Marcos Del Roio, pelo incentivo constante, que em muito

    contriburam para este desenvolvimento e a amizade decorrente de um singular

    compromisso universitrio.

    Aos muitos militares entrevistados que preferiram o anonimato, mas cuja afeio a ptria os dignificam como exemplos singulares daqueles militantes que, conjuntamente com Nelson Werneck Sodr, sonharam e lutaram por uma nao democrtica, independente

    e qui, socialista...

  • RESUMO

    A presente pesquisa, objetiva apreender a construo do pensamento poltico de Nelson Werneck Sodr de 1930 1950, perodo em que se estabelece a transio de uma trajetria tenentista ao marxismo, como tambm se configura a fundamentao de suas teses principais. A centralidade deste desenvolvimento temtico, passa por dois eixos

    nodais, apreendidos na perspectiva de suas duas vocaes. A primeira, encontra Sodr

    como intelectual e nesse caso, o entendemos como um historiador da corrente historieista.

    A segunda vocao, refere-se a sua condio de militar que chegou a patente de General de

    Brigada e como aspecto correlato, de origem pequeno burguesa. Ambas as vocaes tem

    desenvolvimentos paralelos e so confluentes pela mediao da poltica. Nesse sentido,

    procuramos desenvolver sua trajetria poltica e vocacional, a partir da contribuio de intelectuais como Michael Lowy, Luckcs, e, verificar como se estabelece sua rotao ao

    pensamento revolucionrio. A anlise tambm procura demonstrar alguns pressupostos

    diferenciados do que comumente foi apreendido em relao sua obra. Nesse caso.

    entendemos que teses como: Histria Nova, o Exrcito Democrtico, a Burguesia

    Nacional o Feudalismo, o Imperialismo foram originalmente gestadas em uma concepo

    tenentista com referenciais analticos dissociados do pensamento originrio da II Internacional ou mesmo da Declarao de Maro de 1958. Na verdade, essa fase tenentista em transio ao marxismo, est relacionada influncia de intelectuais relacionados ao

    pensamento da II Internacional entre outras influncias, algumas at conservadoras, mas

    que pavimenta sua rotao ao marxismo e possibilita uma nova substncia terica em suas

    anlises futuras, incorporando pioneiramente nesta reflexo, autores como Lukcs e

    Mariategui. Vale ressaltar nesta rotao, a militncia no PCB que, correlacionada estas

    influncias, norteiam sua concepo de poltica no que denominamos Moralidade do

    Compromisso, por esta razo, que discordamos do autor, pois, entendemos no ser esta uma fase de alienao ou negao, como admite e que, a poltica seja um componente ausente em suas reflexes. Por fim, a pesquisa procura estabelecer a singularidade de uma

    leitura de Brasil, norteada por um pensamento nacionalista esquerda que, em Sodr,

    adquire estatuto terico prprio, gestados neste perodo, mas tambm na prxis, face a sua

    vocao militar - e que, na dcada de 50, veio a ser conhecida como Revoluo Brasileira,

    9

  • ABSTRACT

    This work is directed to a deeper understanding of the construction of Nelson

    Werneck Sodr!s political ideologies, during the period of 1930 to 1950, when his transition from 'tenentismo' (lieutenantship) to rnarxism, and the foundations of his principal theses were being set. The pular of this thematic development is supported by two nodal

    axis, aprehended from his two vocational perspectives: the first the intelectual Sodr, and then, we accept him as a historian in the stream of history. The second vocation, is inherent

    to his condition of being an Army officer that reached the rank of Brigadier General and

    this from a petit bourgeois origin. Both vocations have parallel developments and are

    confluent due to the political intercession. In this angle, we tried to develop his vocational

    and political trajectory starting with the contribuition from the intellectuals Michel Lowy. Lukcs, and checking how his rotation within the revolutionary process is established. This

    analisis also aims to present some conjectures that are distinct from those commonly aprehended in his work. In this case, we understand that theses ike: Histria Nova (New History), O Exrcito Democrtico (The Democratic Army), A Burguesia Nacional (The National Middle-Class), O Feudalismo (The Feudalism), O Imperialismo (The Imperialism), were originally sprung from tenentista conception. and with analysis references apart from

    the III International original ideas, or even from the Declarao de Maro de 1958 (The Declaration of March, 1958). This transition phase to rnarxism is related to the influence of intellectuals connected to the II International ideas and even other conservative ones;they

    paved his way to rnarxism and allowed a new theoretical context for his analysis; and, it

    pioneers the inclusion of authors ike Lukcs and Mariategui. It is worth mentioning his

    miitancy in the PCB (Brazilian Communist Party) in this sequence.That, along with those influences, headed his political conception in w;hat we name Moralidade do Compromisso

    (The Morality of Agreement). This is the reason why wre disagree with the author, because we understand that this is not one phase of negation or aienation as stated, and that politics is

    not present in his future reflections. And fmally. we try to stablish the originality of a

    reading of Brazil, headed by a left nationalist idea that, in Sodr, brewed and reached its

    own theoretical status, but did it also in the praxis (considering his military vocation) that in the 50s. carne to be known as the Revoluo Brasileira (Brazilian Revolution).

    11

  • S U M R I O

    I n t r o d u o 21

    C A P . I - Influncias e Confluncias: a formao tica de um tenente 41

    Origens Pioneiras de um Pensamento Social de Esquerda , , 42

    Ponderaes para um debate: do republicanismo radical ao marxismo .50

    As novas mediaes da esquerda militar , , , 57

    A Escola Militar como palco de debate .. , 61

    Primeiras Manifestaes 67

    Os tenentes entram em cena 70

    Um observador poltico pouco discreto ....84

    Participao involuntria esquerda .89

    O embrio de futuras teses 93

    C A P . II - Dobre ao Centro e Siga em Frente: uma leitura entre extremos 101

    Rotao de uma Radicalidade 102

    Apontamentos para a Histria Nova 103

    Uma idia no muito nova 105

    Prxis reveladora de uma conscincia em transio .109

    O Brasil sob a lgica de Pareto e Amaral 114

    Os ensaios so bem brasileiros 119

    Na Confluncia de um iderio 126

    Crtica literria como crtica poltica 134

    Concepo em xeque 139

    O exrcito democrtico: ainda um debate 144

    Uma leitura pessoal 147

    A burguesia existe epode ser nacional 152

    Outra fundamentao polmica 157

  • CAP. III - Impasses de um Tenentismo Tardio: continuidades ou

    rupturas ? 163

    A Descoberta N'oeste , ....164 O relativismo em um momento de transio 168

    Determinaes, tenses e impasses 171

    A crtica que tambm poltica 177 Ofeualismo encontra suaprxis 180 Ponderaes D'oeste 186

    A Caminho do Marxismo 191 O aborto de uma tradio 193 O canto do cisne 198

    Projeto nacional como expresso de nacionalismo 203 Uma questo de princpio 207

    Apontamentos de um debate 210

    Mediaes de uma transio 212

    Interveno na Revista Cultura Poltica 213

    CAP. IV - Dobre a Esquerda: urna conscincia em transio 223

    Rotao Esquerda 225 Emerge a questo democrtica 228

    Ecletismo terico em um momento de transio .... 235 Um dilogo promissor ...238

    O partido como mediao histrica 243

    Um retorno s origens ? .248

    Ao encontro de sua vocao 252 Ps 45: O Brasil numa Guerra Fria pr l de Quente 257

    Militncia ainda que discreta 260

    Um dilogo a partir de novos referenciais 264 O imperialismo: o desafio de sua apreenso 273

    14

  • C A P . V - A Poltica como Mediao de Duas Vocaes 281

    Um Patamar Poltico Diferenciado 282

    Tempos sombrios e desafios presentes 283 Sob novas bases tericas , 288

    Novos referenciais tericos esquerda .... .290 Redefinindo posturas , , 292

    A tica do Compromisso , 296 A esquerda militar 301

    Pontuaes de uma reflexo 305 A poltica como mediao 312

    Um dilogo tenso 314

    Ambigidades de uma transio esquerda ... 319

    O encontro do intelectual revolucionrio com o militante 325

    A caminho do exlio: uma reflexo crtica .....327 Ponto de chegada ouponto de partida ? 333

    Bibl iograf ia .....339

    15

  • A B R E V I A T U R A S

    ABDE - ASSOCIAO BRASILEIRA DE ESCRITORES

    A.I.B. - AO INTEGRALISTA BRASILEIRA

    ANL - ALIANA NACIONAL LIBERTADORA

    ANTI-MIL - ANTI-MILITAR

    FEB - FORA EXPEDICIONRIA BRASILEIRA

    IBESP - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTIDOS SOCIAIS E POLTICOS

    IC - INTERNACIONAL COMUNISTA

    DIP - DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA

    DNP - DEPARTAMENTO NACIONAL DE PROPAGANDA

    DOPS - DEPARTAMENTO DE ORDEM POLTICA E SOCIAL

    ISEB - INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS

    MBB - MOVIMENTO DEMOCRTICO BRASILEIRO

    PCB - PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO

    PCUS - PARTIDO CIOMUNISTA DA UNIO SOVITICA

    URSS - UNIO DAS REPBLICAS SOCIALISTAS SOVITICAS

    17

  • INTRODUO

    19

  • INTRODUO

    O marxismo ortodoxo no significa, pois. uma adeso sem crtica aos resultados da pesquisa de Marx, no significa uma 'f' numa ou noutra tese, nem exegese de um iivro 'sagrado'. A ortodoxia em matria de marxismo refere-se, pelo contrrio, e exclusivamente, ao mtodo. Implica a convico cientifica de que, com o marxismo dialtico, se encontrou o mtodo de investigao justo, de que este mtodo s pode ser desenvolvido, aperfeioado, aprofundado no sentido de seus fundadores; mas que todas as tentativas para superar ou 'melhorar' levaram apenas a sua vulgarizao, a fazer dele um ecletismo - e tinham necessidade de levar a' Lukcs1

    Pensar a construo do pensamento poltico de Nelson Werneck Sodr um desafio.

    A dimenso de sua possibilidade pode ser traada a partir do trabalho memorialstico com o

    qual o prprio autor nos brindou ao longo de sua carreira, alm de alguns ensaios analticos

    recentes mais significativos, e de seu arquivo pessoal, doado por ele mesmo Biblioteca

    Nacional. Entretanto, a despeito do fascinante material de seu legado - artigos, cartas e

    roteiros de cursos - que possibilita a construo de seu pensamento poltico, h lacunas

    importantes, e estas trazem com elas uma dimenso do impossvel, que o que, de fato, faz

    desta proposta de trabalho um desafio, e podem introduzir, no que seria o universo de sua

    obra, alm dos aspectos particulares, algo de singular.

    As mediaes polticas que intervm nesse processo so ilustrativas de um perodo "y

    extremamente rico da histria do Brasil, processo esse de que o historiador no esteve

    isolado em momento algum, em que pesem suas crticas e autocrticas. Na linha de uma

    reconstruo Histrico Sistemtica^, vale sublinhar na trajetria pessoal, o adendo de que esta tambm foi pautada por outras mediaes scio-ideolgicas. Da as muitas

    dificuldades, seno as maiores, para desenvolvermos nosso trabalho, e um desafio

    fascinante, a despeito dos apontamentos de alguns de seus crticos, se que assim podemos

    'Lukcs. George. Histria e Conscincia de Classe. Rio de Janeiro, Elfos Ed., 1989, p. 15 e 16. 2 No decorrer deste trabalho, vou tambm utilizar o termo historiador ou autor, para se referir Sodr.

    3Sobre este debate ver: Lukcs, George. Histria e Conscincia de Classe... op,cit., p. 24 e ss; Ontologia do ser social: Os princpios antolgicos fundamentais de Marx. So Paulo, Lech, 1979, cap. III e as contribuies dos vrios ensaios desenvolvidos in Antunes, Ricardo & Leo Rego, Walquria D (org.)

    21

  • conceituar os agressores do autor, encastelados em algumas de nossas tradicionais instituies acadmicas4. Talvez tenham sido tais crticos os responsveis pelas inquietaes estimulantes para enfrentar este desafio acadmico, associado aos desafios tericos que nos surpreenderam nos cursos de ps-graduao da Unicamp sobre o Pensamento Social Brasileiro, no sentido de empreender esta pesquisa e a construo desta problemtica. Ou talvez, alguns intelectuais e mestres que j pontuavam em ensaios e debates que. o dilogo com Sodr e sua obra era uma lacuna em aberto. Nas palavras de Leandro Konder, j era uma necessidade mais que premente:

    Tenho a impresso de que est na hora de empreendermos uma releitwa da obra...Creio que mesmo aqueles que confirmarem suas discordncia substanciais com a perspectiva adotada pelo veterano historiador (renitente defensor da tese de um feudalismo brasileiro) j no se sentiro to encolerizados, no prorrompero em exploses de raiva; e at - quem sabe? - se sentiro inclinados a dialogar com ele .J

    Alguns esforos antecedem nossa iniciativa e sinalizam, sem dvida, para um inicial

    entendimento de sua reflexo terica, mas em sua maioria, recentes e em grande medida,

    pontuais, em relao ao conjunto da obra. Talvez o texto mais instigante seja o de Jos Paulo Netto. intitulado Nelson Werneck Sodr publicado na reedio de O Naturalismo no

    Brasil6, de 1992. Entendo ser este um ponto de partida referencial para o debate, e que nos possibilitou o encontro de pistas elucidativas para a construo de nossa problemtica. Um

    segundo texto, igualmente importante para a reflexo e um pouco anterior ao ensaio de

    Netto, o de Leandro Konder, publicado em Intelectuais Brasileiros & Marxismo, 1991, originalmente uma coletnea de artigos escritos ainda no ano de 1990. A posteriori seguem

    Lukcs: um galileu do sculo XX. So Paulo, Boitempo Editorial, 1996 e Lessa, Srgio. A Ontologia de Lukcs. Macei, Edufal, 1996. 4De qualquer forma, vale o registro de algumas pioneiras iniciativas acadmicas realizadas ao longo do ano de 1999. que so sugestivas do incio de uma reavaliao sobre a resistncia histrica de debater o autor e sua obra. No caso, refiro-me ao Ciclo Nelson Werneck Sodr realizado no CEDEM - Centro de Documentao e Memria da UNESP e o Simpsio Nelson Werneck Sodr na Historiografia Brasileira realizado na USP, alm de algumas pontuais iniciativas como a Mesa Redonda - Nelson Werneck Sodr: o desafio de pensar o Brasil, tambm na UNESP - campus de Marlia. 3Konder. Leandro. Intelectuais Brasileiros & Marxismo. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 991, p.76. 6Netto tambm pontuou neste ensaio sobre a urgncia de uma anlise crtica sobre a obra de Sodr, e, a necessidade de nos reaproximar (ou aproximar) criticamente de uma obra e de um autor que, com ou sem a beno dos acadmicos de planto e dos publicistas da moda, so indescartveis para compreender o Brasil, sua histria e sua literatura. Netto, Jos Paulo Netto na reedio de Sodr. Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1992, p. 39.

    ??

  • vrios ensaios, como os de Beiguelman, Santos, Dria, Moraes, Reis, entre outros7, que nos foram igualmente importantes como objeto de anlise que recolocaram o autor no debate acadmico.

    Neste quadro tambm se inserem alguns estudos elaborados nesse perodo, ou um pouco antes, como a dissertao de mestrado de Sueli Mendona, intitulada A experincia da Histria Nova: uma tentativa de reviso crtica do ensino de histria no Brasil nos anos 60; o de Caio Navarro, ISEB: Fbrica de Ideologias, originalmente tese de doutorado e posteriormente publicada. Mais recentemente, temos algumas teses de doutorado e uma dissertao de mestrado sobre o autor e sua obra, destacando-se a contribuio de Virglio Roma de Oliveira Filho com Dualidade e Revoluo no pensamento isebiano: as vises de Hlio Jaguaribe e Nelson Werneck Sodr; seguida da tese de Andr Moyss Gaio, Uma teoria da independncia: Histria e Revoluo na obra de Nelson Werneck Sodr e por fim, a dissertao de Delson Ferreira, intitulada Nacionalismo, Poltica e Democracia na obra de Nelson Werneck Sodr . Todas, em grande medida, privilegiam o perodo posterior aos acontecimentos do Clube Militar e sua volta do exlio interno nos anos 55/64.

    No nosso caso, valem algumas observaes importantes para pontuar nossa trajetria. No perodo histrico compreendido entre 1930 - 1954 que ter incio, em relao ao autor e sua obra, uma linha de interpretao conceituai que apreendemos no ensaio de Jos Paulo Netto9, por ele pontuado como perodo de suas duas vocaes. Nessa leitura, tais vocaes se apresentam paralelas e, de certa forma, em outros momentos, confluentes. Mas, a rigor, so duas vocaes que esto imbricadas e que, aparentemente, embora pudessem ser opostas, a tese procura mostrar a sua complementaridade. A primeira,

    'Beigueiman, Paula. A prtica nacionalista nas foras armadas. Mmeo; Santos, Raimundo. Duas Geraes de intelectuais pecebistas in o Pecebsmo inconcluso: Escrito sobre idias polticas. Seropdica, Editora da Univ. Rural, 1994, p. 81; Reis, Jos Carlos. As Identidades do Brasil: De Varnhagem a FHC. R. J. Ed. FGV, 1999, p. 151; Mantega, Guido. Economia Poltica Brasileira, S.P., Ed. Polis, 1985, pg. cap. IV; Dria, Carlos Alberto. O Dual, o Feudal e o etapismo na Teoria da revoluo Brasileira in Moraes, J. Quartirn. (Org). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. I: Os Influxos Tericos. Campinas, Ed. Unicamp, 1995, p. 215. 8Mendona, Sue Guadalupe de Lima. A experincia da Histria Nova: uma tentativa de reviso crtica do ensino de histria no Brasil nos anos 60. Dissertao de Mestrado, UFSCar, 1990; Toledo, Caio Navarro. ISEB: fbrica de ideologias. So Paulo, tica, 1977, Oliveira Filho. Virglio Roma. Dualidade e Revoluo no pensamento isebiano: as vises de Hlio Jaguaribe e Nelson Werneck Sodr. Tese de Doutorado. UFRRJ, 1999; Gaio, Andr Moyss. Uma teoria da independncia: Histria e Revoluo na obra de Nelson Werneck Sodr. Tese de Doutorado, Puc/SP, 2000 e Ferreira, Delson. Nacionalismo, Poltica e Democracia na obra de Nelson Werneck Sodr. Dissertao de Mestrado, UFSCar, 2001. 9Netto, Jos Paulo in Apresentao da reedio de O Naturalismo no Brasil.... p. cit, p. 9.

    23

  • realizada profissionalmente como militar que chegou a patente de General de Brigada, e a segunda, como intelectual e escritor de vasta obra terica. Concordamos que ambas as vocaes - ainda que com exigncias e ritmos prprios - so sintetizadas pela mediao da poltica, com uma postura militante que se apresenta em nossa leitura de forma tmida, na fase inicial de sua trajetria, e bem mais agressiva nos ltimos tempos. Seguiremos essa linha de argumentao para destacai' em que medida, refletem o posicionamento de um autor que umbilicalmente um ator poltico. O esforo maior concentra-se em destacar as nucleaes de ambos os processos na construo de seu pensamento poltico e apreender em sua obra, as vrias pistas sugestivas quanto a este componente vocacional, a poltica.

    Tais pistas se encontram, entretanto, em grande medida, dissimuladas. H passagens em que o autor insiste em apontar negativamente ser um alienado, desinteressado e ausente das questes polticas e outras em que se entrega, levando em conta as diversas manifestaes polticas ao longo de sua trajetria inicial, seja como escritor ou como militar. Vale lembrar que Lukcs confere a categoria da alienao, um tratamento distinto dos demais autores contemporneos j que. segundo Srgio Lessa1 , corresponde afirmao prtica da crescente capacidade do homem em modificar o real no processo de reproduo, resultando, em ltima instncia, em um carter de postividade. como entendemos essa questo quando relacionada Nelson Werneck Sodr e sua obra, em que pese sua autocrtica em contrrio. Tambm considero que, nesta anlise, suas vocaes devem ser mediadas politicamente por dois eixos categoriais que, privilegiados na apreenso desta (re)construo de seu pensamento poltico, tambm podem possibilitar explicaes sugestivas de posturas diferenciadas ao longo de sua carreira. fundamental, nesta articulao, apreender o eixo inicial referente pequena burguesia, que est associado a um segundo eixo relacionado vocao paralela do intelectual, e ambos nucleados apreenso de uma concepo particular s poltica.

    Um primeiro eixo se refere a sua condio de pequeno burgus como origem social e que remete como veremos, sua vocao profissional - no caso, a militar - e que ser tomada em nosso enfoque, como uma categoria de anlise central ao longo de sua obra. Ao privilegiarmos esta perspectiva, no est ausente na leitura que tal determinao resultou, de certa forma, a secundarzao de sua vocao de escritor, ao menos durante um perodo,

    l0Lessa. Srgio. A Ontologia...op.ct, cap. II e Vi.

    24

  • e que, por esta razo, entendemos que na fase inicial, suas vocaes se desenvolvem de forma paralela. Valorizaremos primeiramente essa linha de reflexo, pelo entendimento da Pequena Burguesia face ao carter de mediao histrica, de certa forma explicativo de suas tenses profissionais e tambm intelectuais, ao menos nos trabalhos dos anos 50, ainda que o autor no a utilize como referencial analtico em uma primeira etapa de sua obra. Contudo, como categoria analtica, ser uma mediao necessria e presente at nos seus ltimos trabalhos. Veremos, ao longo deste texto e particularmente na reconstruo de um pensamento de esquerda, que essa categoria no est isolada de outras variveis e sempre foi mascarada teoricamente, mesmo sendo nuclear na explicao que Sodr estabelece, caso anlogo a vrios intelectuais de esquerda no Brasil. Mas um dado se apresenta em nossa leitura como central.

    Nesta anlise, a forma de atuao e interveno da pequena burguesia recuperada como fator corrente no processo histrico brasileiro, particularmente nos momentos de crise. Face concepo de mundo e s postulaes desse referenciai analtico, o tema assume um papel de destaque, considerando que resulta em formas diferenciadas de comportamento. Embora no a associe explicitamente ao seu projeto poltico, Sodr chama ateno para um aspecto da pequena burguesia que tende a se tornar, no cenrio poltico brasileiro, decisivo e tambm subestimado: o moralismou. Mesmo que seja um componente frgil do ponto de vista analtico, por comportar juzo de valor, Sodr admite-o como fator importante para a compreenso de considerveis parcelas da pequena burguesia, seja como postura de participao ou de julgamento da vida social. O moralismo se apresenta como juzo de valor e , seguramente, dado importante a ser considerado em qualquer anlise, principalmente porque remete sua condio pessoal e claro, sua vocao profissional.

    Ainda que o autor no a pontue especificamente, entendemos que remete essa observao sobre o moralismo a uma caracterstica relacionada aos militares e resgata preliminarmente nesta anlise , vrios expoentes da pequena burguesia e seu papel no processo histrico brasileiro, culminando com os tenentes, como a frao mais radicalizada da pequena burguesia brasileira e vanguarda da ascenso burguesa. Apesar de seus limitados propsitos reformistas, o tenentismo expressa um sentido revolucionrio a partir

    11 Entrevista de NWS a Marco Aurlio Nogueira ....op.cit., p. 22.

    25

  • de um referencial tico nuclear como referncia de conduta moral, central em suas vocaes. 0 historiador pontifica conelusivmente, que no h como desprezar seu papel interveniente naquilo que conceituaria mais tarde como Revoluo Brasileira, em que se apresenta conceituai e historicamente dissociado de uma expresso clssica aos moldes europeus. O tenentismo como conduta moral tambm remete ao papel da pequena burguesia e a uma especificidade no processo de transformao revolucionria nacional. Vale ressaltar sua importncia como categoria de anlise, uma vez que no s servir de elemento atravs do qual o autor nortear retrospectivamente a elaborao de sua obra. como permanecer nuclear em suas reflexes recentes. Em nossa interpretao, consideramos o tema como uma constante desde o seu ingresso no Colgio Militar e umbilical para sua vocao profissional, j que, de certa forma, remeter sua condio como agente histrico, como veremos ao longo deste estudo.

    O segundo eixo refere-se sua condio de intelectual que, com certeza, remete sua vocao de escritor e, por hiptese, expresso de um pensamento poltico que exponencializar um exerccio intelectual militante ao longo de sua trajetria. Mas, para pavimentar o caminho que norteara esse processo, e que est no centro das preocupaes do debate relacionado ao pensamento social, no exclumos outros giros intervenientes em sua formao, como o fato de ser militar. Muito pelo contrrio. No entanto, como um intelectual puro, para concordar com as generosas palavras de Iglesias13, Sodr associa essa condio a outra, de historiador e, neste caso, entendemos que se situa em um arco terico da corrente historicista.

    Segundo Michael Lowy, o historicismo no linear, constituindo-se em sua fase inicial em uma matriz conservadora, seguida de uma ruptura esquerda com o relativismo, e, constitui-se na sua ltima fase (com nuances), em uma matriz mediada pelo marxismo ". Exceto pela primeira fase, entendemos que as demais podem ser apreendidas como centralidade em nosso contexto, na medida que, percebe-se esta possibilidade por um conjunto de tardias variveis scio-polticas, quando comparada ao cenrio histrico europeu, mesmo tendo caractersticas anlogas. Todavia, necessrio pontuar que a

    ''~ Idem. pg. 22. l3l2esias. Francisco. Historiadores do Brasil: captuios de historiografia Brasileira. R. J: Nova Fronteira; B."Horizonte. MG: LTMG, PEA, 2000. P. 214. MLovvy. Michael. As aventuras de Kari Mars contra o Baro de Munchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do conhecimento. So Pauio, Ed. Busca Vida, 1987, p. 122 e ss.

    26

  • corrente e a etapa que nos interessa diretamente neste debate, o historicismo relativista, que se configura como uma determinao no Brasil, como tambm, uma determinao em relao a trajetria poltica de Sodr. No seu caso, entendemos que o eixo norteador materialista presente na fase inicial de sua trajetria como historiador, possibilitou os suportes tericos embrionrios, mas, igualmente consistentes sua posterior transio ao marxismo e claro, a segunda etapa de sua trajetria vocacional como intelectual, quando entendemos ocorre sua transmutao ao Historicismo Marxista. Nesse sentido, possvel compreendermos atravs desse instrumental terico disponibilizado por Lowy, sua fase marxista subsequente, bem como perceber como se estabelece a evoluo histrica de Sodr como um intelectual pequeno burgus ao marxismo e que nortear nossas reflexes ao longo deste trabalho. Mas de que forma? Vamos por partes.

    Para pensarmos a construo de um pensamento poltico associado s categorias postas acima, como a questo da pequena burguesia e o papel do intelectual, recorremos ainda aos vrios trabalhos de Michael Lowy sobre a questo e em menor medida, Lucien Goldmann'\ Foi particularmente o primeiro quem delineou essa proposio, que resultou em uma reflexo intitulada Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios, que, no limite, remete a Lukcs, como estudo de caso e eixo terico metodolgico em que nos pautamos. Ainda que concordemos com Lowy, que sugere, que uma sociologia marxista para o entendimento da intelliggensia revolucionria ainda est por ser feita, esta anlise possibilita o entendimento das razes e as motivaes dos intelectuais que se unem luta do proletariado. Este trabalho tem por objeto a anlise das idias polticas daquele que muitos consideram o maior filsofo do sculo XX; quanto a isso, um estudo de caso que toma Sodr por objeto poderia mesmo parecer caminhar no sentido contrrio, uma vez que no h, quanto a este autor, sequer um consenso mnimo quanto posio que ocupa em nosso cenrio. Mas. pode-se tentar uma analogia, na medida em que pontuamos certo paralelismo, considerando a perspectiva de que, atravs de sua evoluo ideolgica, o historiador brasileiro tambm representa um caso exemplar para a compreenso sociolgica dos intelectuais revolucionrios, como foi Lukcs.!6

    15Lowy, Michael. Para uma Sociologia dos intelectuais: a evoluo poltica de Lukcs (1909-1920). S.P., Leach. 1979 e Godmann, Lucien. Cincias Humanas e Filosofia. Que sociologia? So Paulo, Difel, 1984. l6Lowy. Michael. Para uma Sociologia dos intelectuais....op.cit, p. xi

    27

  • Alm disso, se essa condio de intelectual tambm remete sua condio de

    historiador historicista, esse historicismo entendido e pode ser apreendido em outras

    reflexes singulares de Lowy!/. em uma perspectiva de terceira via, na medida em que se

    apresenta como uma possibilidade real entre o positivismo e o marxismo. Ou seja, ainda que essa matriz receba influncia de ambas as correntes, desenvolve expresses autnomas

    ou articuladas a ambas as concepes. Como ressaltamos acima, a matriz que nos interessa

    fundamentalmente o marxismo historicista.

    Todavia, para pensar um aspecto singular da transio subsequente associada ao

    pensamento marxista ou dele derivada e sinalizar para uma vertente historicista que. de

    certa forma, pavimenta a rotao de Sodr neste novo patamar, vale continuar seguindo a

    linha de argumentao posta por Lowy. Nesse caso, falar em uma transio real do

    historicismo ao historicismo marxista na Europa, tambm reconhecer que, apesar da

    sinceridade e do esforo pioneiro, e da inegvel potncia crtica do historicismo. essa

    corrente fracassa, em ltima instncia, pela impossibilidade de oferecer uma resposta

    coerente aos problemas que suscita. No seria diferente no Brasil ou em relao Nelson

    Werneck Sodr e sua obra. Mas, por hiptese, como um autor permeado pelo relativismo,

    veremos que este aspecto seria uma determinao e at uma resposta aos impasses tericos

    na fase inicial de seu pensamento como tenente antes de ele evoluir para uma etapa em que

    o historicismo seria mediado pelo marxismo.

    Entretanto, h uma curiosa inverso em nosso caso, na medida em que o

    historicismo, assim apreendido, se configura como uma expresso do marxismo, ou mesmo

    com uma particularidade de um debate, sendo necessrio pontuar a influncia do

    pensamento marxista e do marxismo da II Internacional, como um elo mais de que

    necessrio para subsidiar esta ltima corrente que nos interessa, e como tambm.

    pontuaremos esta reflexo com alguns autores que dela temos como referencial de nossa

    problemtica. A rigor, ponderaremos ao longo deste estudo, que vrios aspectos que nos

    chamam ateno para esta discusso, no indita, j que se encontra nos clssicos marxianos. No entanto, poderemos perceber por outro lado, a sua singularidade em seus

    reflexos no Brasil na medida que a apreenso de alguns eixos tericos derivados desta

    matriz se desenvolvem no mbito do pensamento da II Internacional ao longo de nossa

    'Xow}, Michaei. As aventuras de Karl Marx coara o Baro de Munchhausen...op.cit., p. 63.

    28

  • histria. nesse sentido, que o relativismo veio a ser naquela fase, uma determinao em nosso debate, que no pode ser desconsiderada, muito pelo contrrio, A fase subsequente desta leitura e determinao, a do historicismo marxista, como veremos ao longo deste trabalho. Leandro Konder que bem situa essa singularidade, a polmica e suas dificuldades em nosso contexto, ao afirmar que:

    a concepo marxista da histria foi reduzida a um "determinismo econmico" (ou a um "material ismo econmico"/ O mtodo dialtico - essencial perspectiva filosfica de Marx - foi sendo reduzido a um historicismo relativista, de fundo positivista, quando no a uma variante do evolucionismo de Darwin, abusivamente extrapolado do terreno da evoluo das espcies para o terreno da transformao das sociedade humana {...} A atrofia da dialtica na histria na difuso do marxismo no teve conseqncias negativas apenas na Europa: veio a pesar tambm, deformadoramente, sobre o desenvolvimento do marxismo na Amrica do Sul. Ej no comeo do sculo ela prejudicava, de maneira decisiva, a compreenso da luta de classes por parte dos socialista argentinos (como viria a prejudicar - conforme veremos- a compreenso da luta de classes por parte dos socialistas brasileiros). !8

    Contudo, para estabelecer essa dupla relao vocacional em relao a Sodr e sua

    obra: mediada pela poltica, valem ainda algumas ponderaes correlatas sua concepo

    de militar e intelectual nas vrias etapas de sua trajetria, bem como a sua posterior condio de membro do PCB e as leituras advogadas por vrios de seus crticos que

    relacionam suas teses ao Modelo Democrtico Burgus. Para entendermos essa primeira

    questo, outras variveis sero contempladas, e, para sua apresentao, veremos como a

    poltica se desenvolve ao longo de sua obra e a polmica que se estabelece, que de certa

    forma uma constante ao longo de sua trajetria intelectual. No caso especfico de Nelson Werneck Sodr, podemos pontuar que a sua

    preocupao com a poltica no igualmente linear e talvez possa ser sinalizada em duas

    fases. Uma primeira, perceptvel nos captulos que veremos a seguir, quando o autor

    apresenta tmidas posturas polticas ao longo da primeira metade do sculo XX, ainda que a

    crtica literria venha travestida de crtica social nos muitos artigos de um perodo

    :8 Konder, Leandro. A derrota da Dialtica: a recepo das idias de Marx no Brasil a o comeo dos

    anos 30. Rio de Janeiro, campus, 1988, p. 63.

    29

  • caracterstico de um contexto capitalista em transio. Consideramos que essa uma fase que tem caracterstica poltica marcante, ainda que negada a posteriori pelo prprio autor.

    Naquela que destacamos como segunda fase, e que pode ter seu incio assinalado em 1944, Sodr amadurece como autor e assume uma postura (auto)crtica com relao aos intelectuais e s tarefas que os aguardam. Tarefas que, sem dvida, tambm lhe esto destinadas. Esse momento constitui quase que o incio de uma militncia como escritor, e mesmo de um posicionamento poltico mais contundente esquerda, na medida em que o autor critica ferozmente a postura dos intelectuais nas muitas transformaes que j se adivinhavam e nos desafios propostos, chegando-se a referir-se como um dos grupos sociais mais propensos aos desajustamentos, face sua capacidade de imaginao e conseqente possibilidade de evaso da realidade. A rigor, j se trata um Sodr marxista e membro do PCB. A partir de algumas pontuaes do perodo, veremos como se apresenta o impacto desta ruptura com continuidade, mas fica no ar uma questo: em que medida podemos estabelecer a diferena ? A resposta ser construda ao longo dos captulos subsequentes, mas entendo que essa questo - face condicionante tica pequeno burguesa do militar associada descoberta da intencionalidade de sua participao como um intelectual originrio dessa classe social - pode ser entendida na perspectiva de que para Sodr, a poltica est pautada na moralidade do compromisso.

    A moralidade do compromisso um componente fundamental para entender o autor, antes e depois de sua entrada no PCB, mas devemos considerar que nos possibilita apreender a singular, e por sua no dizer feroz, autocrtica que o mesmo estabelece em relao sua prpria obra bem como sua trajetria poltica. Essa expresso no nossa, mas de Elide Bastos e Walquiria Rego, mas adquire em nossa leitura, um significado importante, posto que tem valor conceituai, uma vez que expressa uma interlocuo obra do autor como tambm expressa em uma singular linha de argumentao que valoriza a perspectiva do intelectual em sua relao com a poltica, na crena de que h uma relao entre a sua atividade de pensar e um empenho moral no sentido de elevar a condio humana. Entendo que essa era condio sine qua non dos tenentes que nortearam a juventude do autor e ser nodal na maturidade do marxista Sodr. As autoras ressaltam que a validade desse pressuposto est associada sua atividade como um elo decisivo e possvel

    30

  • para a transformao do mundo, como tambm para a emancipao da humanidade,

    impondo aos intelectuais uma condio: jamais renunciarem sua condio de crticos.19 No entanto, a moralidade do compromisso tambm adquire e se apresenta em

    relao a trajetria de Sodr na perspectiva de uma mediao pela poltica partidria e sugestiva de uma nova linha de argumentao que no casual ou original entre muitos

    intelectuais de esquerda. Um exemplo significativo e correlato pode muito bem ser

    observado na leitura de Leo Maar referindo-se a Lukcs, em que afirma que, o

    compromisso como prtica material pela via da organizao, em ltima instncia, sinaliza a

    forma de mediao entre a teoria e a prtica. Vale mais uma vez insistir que no um

    caso isolado e outros exemplos poderiam se somar a esta anlise de caso, ainda que de

    certa forma, uma esfera de estudos inconclusivos como bem sugere Lowy21.

    Importa destacar que h elementos interessantes e concordantes na apreenso desse

    pressuposto e podemos sugerir alguns elementos para a sua fundamentao terica no

    resgate (militante) do texto de Sodr. Esses elementos, de certa forma, tambm retomados por outros autores, sinalizam a continuidade do debate proposto, na medida em que se

    percebe, pela trajetria do historiador e por seus posicionamentos, que seria este o seu objetivo: a superao do status quo capitalista vigente na condio de intelectual como marxista, objetivo que procuremos demonstrar ao longo da (re)construo de seu pensamento poltico. Ainda assim, h outros aspectos a serem contemplados.

    Percebe-se que a elevao da condio humana como pressuposto de moralidade

    constitui, ao que parece no seu caso, um equacionamento que est fortemente pautado pelo

    compromisso da participao e que pode mesmo indicar, naquela ocasio uma militncia

    (no no sentido partidrio stricto sensu), que se apresenta consubstanciada sua atividade como intelectual, pelo diferencial de sua origem de classe e pela especificidade de seu

    trabalho. De certa forma, procuraremos demonstrar, que, essa militncia j encontrava subsdios na condio de compromisso do jovem tenente - apresentado aqui no sentido amplo do compromisso tico do tenentismo- e que amadurece a partir de outras mediaes,

    ao longo de sua trajetria intelectual e militar, ou seja, ao longo de suas duas vocaes.

    19Bastos. Elide Rugai &. Leo Rego, Walquria D (org.). Intelectuais e Poiica: A moralidade do compromisso. S. P., Editora Olho d'gua, 1999, p. 5. 20Leo Maar, Wolfang. A Reificao como realidade social: prxis, trabalho e crtica imanente era HCC in Antunes, Ricardo & Leo Rego, "Walquria D (org.) Lukcs.-.op.cit., p. 41. 2!

    Lowy, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios...op.cit

    31

  • Na natureza particular da origem de classe, como ressalta Sodr em sua leitura

    ocorre uma simbiose que uma caracterstica do Brasil, que apresenta uma moralidade

    que intrnseca a setores da pequena burguesia . Mas insisto que a moralidade, como

    aspecto norteador de uma conduta, , de certa forma e talvez necessariamente no seu caso,

    umbilcalmente associada ao compromisso da participao poltica e aproxima-se mas

    tambm supera a especificidade daquela simbiose ntima da pequena burguesia como

    categoria social e/ou categoria de anlise, quando apontada isoladamente. Por essa razo,

    em nossa leitura, a moralidade aprendida ou apresentada de forma diferenciada, ainda que

    apresente pontos de aproximao interessantes para a elucidao de nossa problemtica.

    Em relao mediao da poltica na obra de Nelson Werneck Sodr, no h como

    no nos referirmos ao Modelo Democrtico burgus, ainda que alguns apontamentos

    preliminares sejam necessrios. O modelo aponta para uma leitura e uma estratgia com base nos apontamentos de Lnin e nas teses do 6 Congresso da III Internacional para os pases chamados de coloniais e neocoloniais, propiciando fundamentos tericos para o

    projeto de revoluo em pases como o Brasil, caracterizados fundamentalmente por estarem em transio do feudalismo para o capitalismo. E nesse sentido que,

    historicamente, teve incio no PCB uma leitura que prope uma anlise etapista do processo

    revolucionrio brasileiro, tendo em vista a pequena burguesia, e posteriormente, a

    burguesia como mediao de vanguarda. A primeira etapa desse processo seria a etapa

    democrtico burguesa que, se bem sucedida, teria a liderana do proletariado. A etapa

    subsequente seria a da Revoluo socialista. Esse um aspecto que, indubitavelmente

    constitui um objeto de muitas tenses no debate com o autor e sua obra. Raimundo Santos, por exemplo, sugere uma explicao bem interessante quando

    pontua que face ao fato de que nem sempre tenha ficado assentado na cena pblica quais eram as relaes entre Sodr e o PCB, a de sua obra e sua linha poltica oficial so de expressiva convergncia, e de mtua aceitao. Neste caso, veremos ao longo deste estudo,

    que no h porque duvidar da sinceridade de alguns equvocos nessa linha de argumentao

    crtica. Os exemplos que se seguem so muitos e Reis por sua vez, afirma sem rodeios que

    a umbilicidade das teses de Sodr e as teses da II IC so explcitas e diretas. Na leitura de Guido Mantega, Nelson Werneck Sodr seria o principal artfice dessa linha de

    22 Entrevista de NWS a Marco Aurlio Nogueira ....op.cit, p.22.

    32

  • interpretao, consolidada em sua obra a partir dos estudos no ISEB, particularmente nos referenciais desenvolvidos pelo autor a partir da publicao da Introduo Revoluo Brasileira, de 1958; Formao Histrica do Brasil de 1962; Histria da Burguesia Brasileira, de 1964. Nessa mesma linha de anlise, seguem as concluses de Moraes, que tambm aponta essa trilogia como o principal arcabouo terico daquele modelo, o qual influenciaria fortemente o PCB no ps 1958, quando foi elaborada a Declarao Poltica de Maro. Por fim. temos a concluso de Dria, que afirma que foi reservada a Sodr, conjuntamente com Alberto Passos Guimares, a tarefa de ler a histria do Brasil como os marxistas conheciam. 3

    Pontuemos o contraditrio. Na verdade, quem bem recupera a fundamentao terica desse modelo e sua instrumentalizao poltica no Brasil, expressa na Declarao Poltica de Maro de 1958, Jacob Gorender quando afirmou ser esta uma obra conjunta de quadros intelectuais do PCB, e de dirigentes como Giocondo Dias, Mrio Alves, Alberto Passos Guimares, Armnio Guedes e ele prprio.24 A participao de Sodr nesse processo foi inexistente, aspecto este confirmado por Armnio Guedes em entrevista com o autor. 5

    Jos Paulo Netto j sugere que havia uma certa proximidade destas inflexes, ainda que ressalte que uma necessidade mais do que premente a de realizar estudos comprobatrios sobre o autor e sua obra, ressaltando inclusive que esta deve estar dissociada de uma muralha de preconceitos.18 O ponto de partida , sem dvida interessante. E por qu?

    Estes apontamentos so importantes na medida em que o historiador foi sempre adjetivado como terico, ou mesmo que suas leituras e pesquisas tivessem o compromisso de substanciar a linha poltica do PCB. Entendo que seja um exagero, para no dizer o mnimo, e talvez possamos sinalizar que essa relao poderia sugerir uma coincidncia ou um paralelismo, sem nos abstmios de pontuar que tambm houve necessariamente uma proximidade de reflexes. A rigor, procuremos demonstrar neste trabalho que as teses vigentes do modelo j eram teses suas, e de um perodo anterior sua entrada no PCB. Se ocorreu uma simbitica identidade poltica, esta no se travestiu necessariamente de

    2-5 Santos, Raimundo. Duas Geraes de intelectuais pecebistas in O Pecebismo inconc!uso:...op.cit, p. 81;

    Reis, Jos Carlos. As Identidades do Brasil:...opxit, p.151; Mantega, Guido. Economia Poltica Brasileira...op.cit, cap.1V; Dria, Carlos Alberto. O Dual, o Feudal e o etapismo na Teoria da revoluo Brasileira in Moraes, Joo Quartim. (Org). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. II:.. op.cit, p. 215. 24

    Gorender. Jacob. Combate nas Trevas, S. P., Ed. tica, 1987, p. 29 e ss. "Armnio Guedes. 11 '03/99 em entrevista com o autor.

    33

  • unidade terica. No o caso de tambm de concordar com tais leituras ou delas discordar,

    bem como no h razo para prolongarmos essa questo neste momento. So somente

    observaes que retomaremos ao longo dos captulos subsequentes. Apontada a polmica,

    veremos ao longo deste trabalho, como desenvolvemos nossa leitura desses apontamentos,

    mas, com certeza, o autor no foi o nico intelectual a sofrer esse tipo de (in)compreenso e algumas outras contribuies diferenciadas, autnomas e at em contracorrente s

    elaboradas por muitos de nossos intelectuais comunistas, ainda hoje so solenemente ignoradas, e privilegia-se uma leitura crtica, de senso comum, de subordinao quele

    ditame da III Internacional Comunista. Veremos, ao longo deste texto, algumas

    contribuies que se coadunam com essa hiptese.

    Para entender o seu pensamento, no debate terico acima citado, bem como os

    autores e categorias referenciais pontuadas, vale o indicativo dos outros mecanismos

    metodolgicos utilizados. De certa forma, ocorreram em nveis diferenciados, mas foram

    igualmente correlatos. Um primeiro, e j sinalizado nesta introduo, um dilogo com as obras do autor no perodo que vai at 1945, fazendo a ressalva das limitaes correntes de sua elaborao memorialstica realizada a posteriori do golpe de 1964. No entanto, esta foi de importncia mpar e podemos destacar as Memrias de um Soldado e Memrias de um

    Escritor como fundamentais na reconstituio de sua trajetria e associados s obras recentemente publicadas como A Luta pela Cultura, A Ofensiva Reacionria, A Fria do Calib, entre outros pequenos trabalhos como O Fascismo Cotidiano, todos apreendidos

    como continuidade desse projeto memorialstico, ainda que estes ltimos, refletem o perodo posterior a 64, somando tambm nesse conjunto, a Histria da Histria Nova e Tudo Poltica:"'

    Nesta linha de argumentao que entendemos como constituindo tambm uma

    reflexo de complementao autobiogrfica o j clssico Histria Militar do Brasil , em especial os captulos referentes aos anos de nossa problemtica, intensamente vivenciados

    pelo autor. Alm da memorialstica citada entre outros trabalhos, valorizaremos neste

    26Netio. Jos Paulo Netto na reedio de O Naturalismo no Brasil...op.cit p. 28 e 29. 27Sodr, Nelson Werneck. Memrias de um Soldado. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 967; Memrias de um Escritor. Rio de Janeiro. Civilizao Brasileira, 1970; Histria da Histria Nova. Petrpolis. Vozes, 1986, A Ofensiva Reacionria. R. J., Bertrand Brasil, 1992; A Fria do Calib, R.J, Berirand Brasil. 1994: Tudo Poltica: 50 anos do pensamento de Nelson Werneck Sodr em textos inditos e censurados/Nelson Werneck Sodr (textos); Ivan Alves Filho (org.). RJ., Mauad, 1998.

    34

  • desenvolvimento as publicaes do perodo situado entre 1938 e 1945, destacando como importantes referncias dessa etapa; Histria da Literatura Brasileira, 1938 e 1942; Panorama do Segundo Imprio, 1939; Oeste; ensaio sobre a grande propriedade pastoril, 1941; Orientaes Sobre o Pensamento Brasileiro, 1942; O que se deve ler para conhecer o Brasil, 1943; Sntese do Desenvolvimento literrio no Brasil, 1943; Formao da Sociedade Brasileira, 194429 Em que pesem as dificuldades de acesso s primeiras edies de algumas obras de Sodr. somente uma delas, a Sntese do Desenvolvimento literrio no Brasil de 1943 no pde ser contemplada em nossa reflexo, j que, apesar dos esforos vrios, no foi encontrado um nico exemplar disponvel para consulta. um livro virtualmente desaparecido.

    Esse conjunto de obras est inserido na fase que aqui problematizamos e que o autor minimiza apontando como indigno de (re)edio. Veremos posteriormente as razes. Neste nvel, vale salientar as contribuies correlatas de autores que estabeleceram um dilogo crtico com Sodr e sua obra, e que sero pontuadas ao longo de nosso debate. Por antecipao, destacamos a importncia das contribuies dos ensaios de Jos Paulo Netto, Paula Beiguelman e Leandro Konder.

    No segundo nvel da pesquisa, concentro-me fundamentalmente no seu arquivo

    pessoal, composto de 597 pastas consistindo em milhares de artigos, cartas, planilhas de

    cursos, documentos, etc, hoje disposio dos pesquisadores na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Os artigos constituem uma das fontes mais importantes na feitura deste

    trabalho, secundarizados pelas cartas e documentos, na tarefa de reconstruo poltico

    biogrfica que procuraremos empreender. No perodo sinalizado, podemos registrar a

    leitura de 1000 artigos publicados ao longo de sua trajetria at os 50. Mas esta somente uma parte do material disponvel.

    Por fim, uma outra fonte importante neste processo de pesquisa foram as vrias

    entrevistas realizadas. Estas se dividem em 02 grupos: um primeiro, com interlocutores

    28 Sodr. Nelson Werneck . Histria Militar do Brasil Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1965.

    ~

    9Sodr. Nelson Werneck. Histria da Literatura Brasileira: Seus Fundamentos Econmicos. 1 edio, So Paulo, Edies Cultura Brasileira S/A, 1938; 2 edio, Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora. 1940; Panorama do Segundo Imprio, 2 edio, Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1998; Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril, Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora, 1941; Orientaes Sobre o Pensamento Brasileiro, Casa Editora Vecchi Ltda., 1942; O que se deve ler para conhecer o Brasil, 3 edio. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1967; Formao da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora, 1944.

    35

  • crticos de Sodr e, de certa forma, tambm a grande maioria de amigos de um convvio

    intelectual e militante de longa data. Essa convivncia transcorreu com relativa facilidade e

    muitas vezes com gratificantes trocas de pontos de vistas, bem como com reflexes sobre o

    autor e sua obra. Em um segundo grupo, a tarefa foi mais complexa, uma vez que consistia

    em entrevistar companheiros de partido, muitos deles militares e antigos colegas de farda

    que, em alguns casos, pediram o anonimato. Face s dificuldades, que foram muitas, vale

    a referncia e claro, pontuar os agradecimentos bem como o meu reconhecimento.

    Este texto est desenvolvido em cinco captulos. O primeiro objetiva propiciar um cenrio histrico e terico para uma aproximao de nossa problemtica, procurando

    demonstrar que muitas das influncias que, em ltima instncia, nortearam o pensamento

    poltico de Nelson Werneck Sodr, tm origem no pensamento socialista do sc. XIX.

    Nesse contexto, buscamos mostrar que essa influncia ou transio tambm encontra alguns

    nexos no republicanismo radical e pde se desenvolver de forma autnoma em relao aos

    esquemas umbilicais que identificam o pensamento de esquerda s teses da III IC. Na

    medida em que essa possibilidade se apresenta historicamente em nossa leitura por

    caminhos tortuosos e muitas vezes emblemticos, quando no contraditrios, sem dvida,

    percebemos que essas mediaes pavimentam a construo de uma influncia que estar

    presente na Escola Militar e consubstancia aquilo que entendemos ser uma terceira via

    nacionalista. Est ltima, veio a influenciar no s o autor, mas tambm considerveis

    fraes da esquerda militar; razo pela qual encontramos ainda nesse debate, um Sodr

    tenente e esquerda.

    O segundo captulo, apresenta o autor ainda Tenente, mas fortemente influenciado

    por um nacionalismo e que, em alguns momentos, sugere uma identificao do autor com

    as polticas em curso do regime de Vargas. O captulo remete s vrias tenses de uma

    intelectualidade pequeno burguesa, procurando se situar entre a lgica dos extremos

    vigentes naquela ocasio (o integralismo e o marxismo da III IC), bem como as demais influncias norteadoras de Sodr, pautadas nas obras de Pareto e Azevedo Amaral. Vale a

    ressalva de que, apesar de o autor no ter renunciado crtica poltica, travestida em ltima

    instncia em crtica literria, neste captulo pontuamos tambm a origem de algumas de

    suas futuras teses como a Histria Nova, do Exrcito Democrtico e da Burguesia

    36

  • Nacional, as quais esto totalmente desvinculadas de uma leitura do Modelo Democrtico Burgus.

    No terceiro captulo, procuramos desenvolver as mediaes concernentes que pavimentariam sua transio de um iderio tenentista ao pensamento marxista. No caso, tambm se pode se verificar a construo de sua tese sobre ofeudalismo e a de uma leitura nacionalista estreitamente ligada a idia de projeto nacional, em que paralelamente se verifica o incio do fim daquelas influncias estabelecidas nos anos 30, e uma gradual aproximao do referencial marxista com a incorporao de seu instrumental analtico. o perodo de impasses e rupturas de um ainda, sempre tenente.

    No quarto captulo, procuraremos demonstrar a rotao esquerda do autor e as mediaes scio-polticas que o aproximaram do PCB. Nesse captulo, verificamos que sua reflexo pontua teses ainda nucleadas por uma prxis advinda de um contexto particular relacionados sua formao social e sua trajetria intelectual e militar, mas que permitiram-lhe refletir sobre outras teses como a questo democrtica e o imperialismo, j com um referencial marxista mais elaborado, bem como inserido em uma discreta militncia partidria.

    No ltimo captulo, pontuamos o autor inserido na poltica de suas duas vocaes, em que se percebe um Sodr na militncia do Clube Militar, mas com leituras autnomas e singulares, ligadas s do PCB. Mas no s. O texto tambm procura demonstrar como a tica de um Tenente se mantm e se reconfigura no marxismo, que resulta nas bases fundantes de seu projeto de revoluo brasileira e estabelece, na confluncia de suas vocaes pela mediao da poltica, o encontro entre o intelectual e o revolucionrio.

    37

  • CAPTULO I

    Influncias e Confluncias: a formao tica de um tenente

    Origens Pioneiras de um Pensamento Social de Esquerda Ponderaes para um debate: do republicanismo radical ao marxismo

    As novas mediaes da esquerda militar

    A Escola Militar como palco de debate

    Primeiras Manifestaes Os tenentes entram em cena

    Um observador poltico pouco discreto Participao involuntria esquerda O embrio de futuras teses

    39

  • CAPTULO I

    Antes de relatar a rnnha experincia literria individual, indispensvel situ-la historicamente, isto , dar os traos da poca, caracterizar a fase, a situao, a gigantesca moldura do quadro mundial e a moldura menor do quadro brasileiro. Sem essa caracterizao, o depoimento perde consistncia, pois todos os fenmenos, episdios, processos, fatos s adquirem significao quando apresentados em seus condicionamentos. o que falta em geral nas autobiografias e nas biografias, como nos depoimentos e memrias; o que desejo que no falte aqui, pois tudo seria insignificante se no devidamente inserido no tempo e no espao.'J Neison Werneck Sodr

    Na perspectiva de entender o significado da atuao poltica dos militares e, por

    conseqncia, a formao do pensamento poltico de Nelson Werneck Sodr. penso ser

    primordial, como ponto de partida, entendermos que o incio de sua participao poltica

    de esquerda, ou de carter progressista, no recente e tem, de certa forma, uma tradio de

    contestao que remonta ao imprio ps-guerra do Paraguai. Desse argumento, podemos

    concluir que:

    Com efeito, apesar das evidentes diferenas de formao intelectual, de formulao doutrinria, de forma de atuao e de perspectiva programtica, parece-nos clara a continuidade da inspirao tico - poltica dos jovens oficiais abolicionistas e republicanos, dos 'tenentes' dos anos 20, dos militares antiimperialistas dos anos 50, dos antigolpistas dos anos 60. Essa continuidade rompeu-se com os amplos expurgos que os golpistas vitoriosos em 1964 promoveram nos quadros das foras armadas.31

    Nessa linha de argumentao desenvolvida por Quartim entre outras leituras que tambm corroboram esta tese, percebe-se que, embora relacionada a uma postura orgnica

    30Sodr, Nelson Werneck. Memrias de um Escritor... op. cit.; p. 15 j l As concluses do Arquivo Brasil ~ Nunca Mais relatam que: Tratou-se, por assim dizer, de executar uma

    interveno cirgica que no deixasse intacto qualquer ncleo capaz de reanimar o esprito rebelde que se espraiara nas armas durante as lutas nacionalistas e em defesa das ditas Reformas de Base A pequena incidncia de processos atingindo militares nos anos posteriores parece significar que, nesse campo, a cirvgia foi encetada com xito. Perfil dos Atingidos. Mitra arquiodiocesana de So Paulo. Petrpolis, Vozes, 1987. p. 120: Morei, Edmar. O golpe comeou em Washington. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,

    41

  • de esquerda, a inspirao tico-poltica ou militante hoje, sem dvida, residual quanto sua presena nas foras armadas. Mas a substncia que o conceito esquerda adquiriu em sua construo histrica aponta principalmente para seu aspecto tico, na perspectiva de um grupo ou de um indivduo que, no seu tempo histrico, se posicionou a partir de valores ou idias referenciais concretas e mesmo progressistas, seja na causa da igualdade expressa no abolicionismo, no nacionalismo ou mais recentemente, na democracia''". Sodr, por exemplo, utiliza o conceito esquerda como indicativo de atuao em uma linha progressista. Em todo caso. entendemos que esse um conceito que no perde sua contemporaneidade e representa, por tradio, as lutas sociais de transformao frente do seu tempo, pelo menos at os anos 60.

    Origens Pioneiras de um Pensamento Social de Esquerda

    A etapa de nossa histria militar que aqui pontuamos para o incio do debate, recebe

    de Nelson Werneck Sodr a denominao de fase autnoma do exrcito0*. Historicamente, foi nessa fase que ocorreram as tomadas de posio abolicionistas ou de confronto na

    questo militar, apoiadas em grande medida por jovens oficiais intelectuais da esquerda republicana. Como decorrncia desse processo, acontece a fundao, no apagar das luzes

    do imprio, do Clube Militar, instituio que estar presente em nosso debate e que ser

    decisiva para vrias manifestaes militares ao longo do sculo XX. No quadro de ebulio

    poltica que surge no perodo ps- monarquia que podemos sinalizar que o exrcito

    emergia na cena poltica colocando-se em seu lado esquerdo. 4

    O quadro de foras organizadas que emergem desse cenrio, sugere a confirmao

    dessa hiptese, j que, no perodo inicial republicano, eram trs as foras polticas relevantes e presentes na cena nacional: os militares, que na ocasio tinham uma forte

    representao no congresso constituinte; os republicanos histricos e os republicanos de 16 de novembro. Travestida nesta ltima corrente, estava a velha ordem oligrquica

    1965, p. 248 e ss; .Moraes, Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil: da conspirao republicana guerrilha dos tenentes. So Paulo, Siciliano, 1991, p. 07. '~ Sodr. Nelson Werneck. A Repblica: uma reviso histrica. Ed UniverstriaAJFRGS, 1989, p.70. "Sodr, Nelson Werneck . Histria Militar do Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1965. j4Morae5. Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil op.cit. pg. 43.

    42

  • monrquica que, com a descentralizao poltica, reconfigura o antigo baro em novo

    coronel, e recupera gradualmente os antigos espaos at a consolidao de seu status quo

    com a eleio de Prudente de Morais. Nos perodos subsequentes, at os anos 30, exceto

    pelo mandato de Hermes da Fonseca (possvel devido a uma dissidncia interna das oligarquias), o cenrio foi o da alternncia poltica configurada na poltica caf-com~leite. Foi, no entanto, uma fase conturbada e, neste sentido, vale retomar algumas ponderaes

    exploratrias importantes para desenvolvimentos tericos futuros.

    Inicialmente um ponto nos chama a ateno. Aps os conflitos e desgastes de uma

    atribulada fase inicial, reacende-se com o governo civil a questo da reforma do exrcito,

    que desperta urna velha preocupao dos militares com sua sobrevivncia e sua legitimao

    como instituio. Esta uma questo que, a rigor sempre veio a despertar controvrsias ao

    longo do sculo XX. Vale lembrar que o estopim da queda da monarquia decorreu de um

    boato que previa a dissoluo do exrcito em proveito da guarda nacional. Foi essa uma

    tese dos primeiros anos da Repblica que no chegou a ser abandonada, e que os

    subsequentes governos oligrquicos civis colocaram na ordem do dia em vrios momentos.

    Naquele primeiro momento, ao que parece, a superao dessa quase poltica foi

    apresentada nada menos que por Rui Barbosa e, ao que tudo indica, como uma soluo de

    compromisso. O artigo que reza que o exrcito e a marinha so as instituies nacionais e

    permanentes, com o atributo de defesa externa e interna, bem como da lei e da ordem, foi

    incorporado por Rui Barbosa constituio republicana e mantido quase como clusula

    ptrea pelas constituies subsequentes^.

    Esse pressuposto, sem dvida, um ponto interessante de anlise, j que seria incorporada pelos setores da esquerda, como tambm pela direita militar^ , como um

    princpio de ecumenismo institucional, com vias diferenciadas no seu entendimento mas

    bem sugestiva de futuras intervenes. Na medida em que parte do pressuposto de que o

    exrcito era a nica instituio patritica e mesmo, a nica que pensava o Brasil acima de

    3;Sobre este debate ver: Nogueira, Marco Aurlio. As Desventuras do Liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a Repblica. So Paulo, Ed. Paz e Terra, 1984, p. 53; Hahner, June. As Relaes entre civis e mi!itares(1889-1898) . So Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1975, cap. I e VI e Costa, Wilma Peres. Os militares e a primeira Constituio da Repblica in A Tutela Militar / Joo Quartim de Moraes, Wilma Peres Costa, Eizer Rizzo de Oliveira. So Paulo, Vrtice, Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 19 a 53 36Prestes. Anita Leocdia. Tenentismo Ps 30: continuidade ou ruptura? So Paulo, Ed. Paz e Terra, 1999, p. 44 e ss.

    43

  • interesses mesquinhos, assume como uma firme misso salvar o pas face ao colapso e inoperncia das demais instituies. Este princpio levaria tambm ao longo do tempo, a fazer do exrcito uma instituio funcionando quase como um Estado dentro do Estado, as segurando-lhe uma proeminncia de que as demais instituies no desfrutavam. Ou seja, as instituies passam, o exrcito permanece.

    Para demonstrar o significado desse conturbado e conflituoso processo, e caminhar para o cerne da proposta de anlise que tem incio nos anos 20, vamos a outras ponderaes, com vistas a apontar os eixos ideolgicos de esquerda entre os militares brasileiros: o Jacobinismo e o Positivismo, esta ltima expressando a doutrina do soldado cidado. Inicialmente Michael Lowy nos apresenta uma interessante umbilicidade em nvel poltico, apreendendo o jacobinismo com a radicaidade intelectual que se verifica a partir do que o autor definiu como:

    ala esquerda da pequena burguesia, combinao especfica de democracia plebia e de moralismo romntico (Rosseau) tende a entrar em conflito com a prtica liberal individualista da grande burguesia."1

    Essa determinao permear nossa problematizao, mas somente em sua fase

    terminal, quando as possibilidades de emancipao pela via da poltica se mostraro

    ilusrias e com conseqncias futuras a serem avaliadas. Importa destacar que, naquele

    momento e em nosso cenrio, o jacobinismo adquiriu um outro carter, tornando-se quase sinnimo de florianismo, face sua hegemnica expresso poltica e s polticas

    decorrentes, ainda que no fosse regra geral. Talvez seja essa a razo, pelo qual Nelson Werneck Sodr valoriza sobremaneira o papel histrico de Floriano Peixoto naquele

    contexto. Ao compar-lo, como militar e poltico, a alguns generais contemporneos. Sodr

    refere-se a ele como uma personalidade eminente e sugere uma concordncia com o

    conceito de florianismo definido por Suely Robles como: a suspeio desconfiada para

    Lo\vy: Michael. Para uma sociofogia dos intelectuais revolucionrios...op.ci. p. 5.

    44

  • com o estrangeiro e a extrema susceptibilidade aos arranhes que o brio nacional pudesse

    sofrer* O florianismo, tal como descrito Robles, foi exemplo de um efmero projeto de

    esquerda, at sugestivo de extrapolao mas, sem dvida, de outra ordem, j que representava com intransigncia o nacionalismo. Seu significado sugeria um vis de

    industrializao e a sustentabilidade do iderio patritico, como tambm de valores

    democrticos. O resultado visvel, como no caso de seu congnere francs, que no

    parlamento, naquele momento, no foram poucos os personagens que assumiram posies

    espacialmente esquerda no cenrio poltico, como tambm de esquerda pelo que

    representava o iderio jacobinista. Ainda assim, o movimento pouco avanou politicamente, no se firmando como uma proposta conseqente para as geraes futuras,

    ainda que sua ressonncia perdurasse por algum tempo. Na verdade, floresceu enquanto

    esteve personificado no poder por Floriano Peixoto, e talvez, tenha sido essa a sua maior

    fragilidade e uma das explicaes de seu desaparecimento. A lamentvel concluso a que

    chegamos a de que a sua lealdade aos princpios republicanos significou, e at

    possibilitou, de certa forma, o enterro do projeto jacobinista. Apesar de seu prestgio pessoal o Marechal de Ferro (F. Peixoto) afianou a sucesso oligrquica e, ao final, mais uma vez o poder poltico demostrou o seu condicionamento ao poder econmico.

    Pensamos, que o fator decisivo para o desaparecimento do jacobinismo do cenrio poltico foi outro. O movimento carecia de uma base social atuante e significativa, fator

    mobilizador caracterstico dos movimentos anlogos nos pases da Europa, nos quais o

    nosso, em grande medida, se inspirava. Mais uma vez o povo faltou ao encontro. A derrota

    da III expedio a Canudos e a morte de seu maior lder, Moreira Csar, escrevem seu

    obiturio, confirmado pouco depois, quando alguns grupos jacobinos enveredaram para o ultra-nacionalismo e, quase em desespero de causa, em sua fase terminal, para o

    terrorismo"5 . Ainda assim, percebe-se que esse iderio ter um significado importante para

    as geraes subsequentes e, em particular, com temas histricos como a defesa

    n Sobre este debate, ver: Reis de Queiroz, Suely Robles. Os Radicais da Repblica. So Paulo, Brasiiense, 1986. p. 150 e Cosia, Wilma Peres. A Espada de Dmocles: o Exrcito, a Guerra do Paraguai e a crise do Imprio. So Paulo: Editora Hucitec, Editora Unicamp, 1996.

    45

  • intransigente da soberania nacional, proteo de nossa indstria, a laicidade do Estado e

    identificao da causa republicana causa patritica e popular*, muito caros esquerda no sculo XX.

    O segundo eixo ideolgico de esquerda entre os militares o positivismo como

    doutrina do soldado cidado. Ainda segundo Quartim, essa era, h muito, a doutrina do exrcito, e posteriormente adquiriria a feio no muito bem vinda de doutrina da

    segurana nacional, leitura essa tambm desenvolvida na anlise de Anita Leocdia

    Prestes41. Entretanto, naquela ocasio, tal doutrina do soldado cidado tinha forte prestgio

    entre os pares. Para esclarecer esse ponto, preciso acrescentar que a instituio exrcito

    era provavelmente a nica possibilidade de ascenso social para muitos jovens dissociados da elite oligrquica vigente, e uma possibilidade concreta para jovens oriundos da pequena burguesia, configurada em um palco de debates privilegiado, j que fervilhava nas Escolas Militares do perodo uma intensa atividade literria e cientfica. As conseqncias se

    apresentam da seguinte forma:

    Da a larga permeabilidade dos oficiais e mais ainda dos alunos das escolas militares s idias polticas e aos valores culturais que julgavam - no mais das vezes ingenuamente - como os mais avanados do seu tempo, e que lhes forneciam uma perspectiva crtica sobre uma sociedade que contestavam. Da tambm seu duplo diletantismo, enquanto militares e enquanto intelectuais.42

    Esse apontamento, ainda que vlido, no responde a uma outra constatao, que no

    deixa de ser tambm uma curiosidade: a singular relao entre o positivismo, como

    doutrina conservadora e burguesa na Europa, e a forma como apreendido em nosso

    cenrio - como um instrumento de agitao cultural e atividade poltica. As razes

    sinalizadas mais uma vez remontam ao imprio e grande influncia que essa doutrina

    *l9Isto no exclui outros giros explicativos para esta questo, a exemplo de Nogueira in As Desventuras do

    Liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a Repblica...op.cit. p. 145 ou na linha oposta apresentada por Hahner, June. As Relaes entre civis e militares(l889-1898) ...op.cit., cap. VII e VIII. 40

    Moraes. Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil... op.cit. p. 71. 4'ldem, pg. 74; Prestes, Anita Leocdia Tenentismo Ps 30...op.cit, cap. II. Tambm Peregrino e Costa

    apontam pistas interessantes sobre a origem do positivismo ainda no Imprio, e que sugere concordncia com s interiocues privilegiadas nesse trabalho. Peregrino, Umberto. Histria e Projeo das Instituies Culturais do Exrcito. RJ, Jos Olympio Editora, 1967, p. 19; Costa. Wilma Peres. Os militares e a primeira Constituio da Repblica...op.cit, p. 30.

    46

  • despertava nos meios cientficos, em particular na Escola de Engenharia do Exrcito, na 2 metade do sculo XIX. Salvo algumas polmicas sobre esse aspecto, tudo indica que aqueles intelectuais absorveram somente as facetas otimistas e utpicas e, de certa forma. tambm aquelas realisticamente negadas pela histria da doutrina de Augusto Comte:

    A doutrina difundiu-se acima de tudo como estado de esprito, mais que como religio da humanidade ou seita filosfica. Fora da ortodoxia e recorrendo a uma manobra de adaptao, muitos de seus propugnadores conseguiram granjear simpatias para as partes da doutrina melhor ajustadas realidade nacional, mais teis contestao ou pregao progressista. 4j

    Neste sentido, Quartim aponta que:

    a cincia abriria a era do congraamento dos povos e da paz mundial, mas tambm respeito do prprio significado da funo militar, consubstanciado na doutrina do soldado cidado.44

    0 melhor exemplo dessa influncia foi Benjamim Constant que, como ningum naqueles tempos, procuraria exprimir e formar alunos em uma concepo que sintetizava o

    positivismo com a reivindicao de cidadania desde os tempos do Imprio. Como Ministro

    da Repblica, foi introduzida a doutrina com a reforma do ensino militar. No entanto, esses

    so pontos inconclusivos de um debate e, nesse sentido, a cautela se faz necessria, na

    medida em que o ideal de cidadania que a doutrina do soldado cidado veicula, tem um

    interesse histrico, alm de poltico prospectivo.

    Historicamente esse ideal se apresenta como parte de uma matriz cientificista-

    humansta, que tem como principal objetivo a formao tico intelectual. Sem dvida, um argumento razovel para se pensar o conceito de esquerda entre os militares e a

    possibilidade de que, de acordo com Lowy45, esse eixo se apresente (a radicalidade intelectual pequeno burguesa) como uma etapa de superao do capitalismo e alternativa ao

    42 Moraes, Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil, op.cit., p. 74.

    ^Nogueira. Marco Aurlio. As Desventuras do Liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a Repblica...op.cit., p. 80. 44Moraes. Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil, op.cit., p. 76. 4;Lowy. Mchaei. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios...op.cit.. p. 9.

    47

  • socialismo. Seu contedo poltico (e nesse sentido alguns pontos so esclarecedores) sinaliza para a misso civilizadora, eminente moral e humanitria do exrcito, como corpo ri fie ao da honra nacional e melhor ainda, como cooperador corno garantia da ordem e da paz pblica. Disso decorre naturalmente que o militar precisa de uma suculenta e bem dirigida educao para que esteja habilitado em relao aos seus deveres, que tambm so deveres sociais, entre outros aspectos. Dessa leitura, conclui-se que:

    Ao difundir entre a jovem oficialidade e os cadetes da Praia Vermelha, a concepo positivista da cidadania militar e a conseqente rejeio da obedincia passiva alimentaram a turbulncia e a disciplina engendradas desde a Questo Militar, pela insatisfao corporativa e pela constante agitao poltica em que se envolviam os militares, inclusive os de alta patente.."'

    As sucessivas rebelies militares entre os cadetes e jovens oficiais, posteriores ao perodo republicano sugerem a confirmao desse argumento, e seus reflexos teriam a

    continuidade que se verificou a partir de 1922. Desse processo, adveio uma amarga concluso: a ordem desejada que os positivistas inscreveram como lema na bandeira nacional apontava uma contradio, ou seja. era uma ordem inimiga do progresso. Essa constatao tornar-se-ia evidente, com os conflitos sucessivos entre os militares e as

    oligarquias agrrias no poder, e entre estas com o poder central, na medida em que foram

    ficando arraigados os brios nacionalistas, face ousadia autonomista de muitos

    governadores de vrios estados. Essa constatao tambm levou muitos militares a

    despertarem para a urgente necessidade da modernizao do exrcito, seja em nvel de seus equipamentos, seja em nvel de doutrina.

    Um dado novo veio a se apresentar no horizonte sob vrios aspectos. O perodo em

    que vigora o mandato do Marechal Hermes da Fonseca, face sua condio de militar de

    prestgio, sugeria uma nova ordem, com a volta do exrcito ao poder, apesar da entusistica

    e de certa forma inovadora campanha civilista de Rui Barbosa. No houve surpresas

    naquelas eleies, e sua posse tambm no alterou o quadro de fundo da poltica caf-com-

    leite. logo restabelecida, salvo pontuais tenses que resultaram em fissuras no bloco

    agrrio, face freqncia com que esteve presente as tentativas de interveno nos estados

    48

  • conhecida como poltica de salvaes. Para muitos intelectuais pequeno burgueses (vale lembrar o caso de Astrojildo Pereira), um momento de redefinio, rotao e, principalmente, de tomada de posies, na medida em que pela primeira vez, foram os subalternos que protestaram de armas na mo, assustando inclusive setores da nascente burguesia brasileira. Durante o perodo e ao longo dos anos seguintes, acontecem, em 1910, a revolta da chibata na Marinha e pouco depois, em 1915 e 1916. a revolta dos sargentos no Exrcito, todas brutalmente reprimidas. As ltimas com um dado novo a ser considerado, ou seja, aconteceram com a participao de intelectuais de orientao socialista. ' independente do grau de influncia que tais intelectuais exerceram nesse processo, sua interveno foi sem dvida a p de cal nas iluses daquela repblica.

    Os anos 20 se aproximavam e com ele um novo momento. Na continuidade desta linha de argumentao, percebe-se nessas revoltas a presena de um vis de esquerda, no somente pelo carter de membros de uma instituio que se manifestava cada vez mais hostil a corrupo e aos privilgios oligrquicos, mas tambm ao que parece, pela sua proximidade ao movimento operrio. Trata-se de um momento de definies e redefinies rico de possibilidades, seguido de rupturas de vrias ordens. A aproximao entre a esquerda militar e o movimento operrio foi no entanto, de curta durao4 , logo seguida de um divrcio, face s vrias greves que tiveram incio a partir de 1917 e que apontavam para novos rumos e um novo debate. Se o casamento foi curto, a reconciliao ainda demorar um pouco mais, postergada talvez, para a dcada de 60.

    45 Moraes. Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasil, op.cit, p. 80.

    4,'Sobre a participao de intelectuais socialistas nas revoltas dos suboficiais, ver Moraes, Joo Quartim. A

    Esquerda Militar no Brasil... op.cit., p. 122. Na Revolta da Chibata, houve, influncias externas ao movimento, talvez at com a participao de intelectuais socialistas. Vaie ressaltar que. na Inglaterra, os marinheiros brasileiros designados para assumirem os navios da esquadra recm adquirida, conviveriam por um perodo de 02 anos de treinamento, com um dos mais politizados e organizados proletariados do mundo bem como com os marinheiros russos do Encouraado Potemkim, que, aps a revolta de 1905, encontrariam exlio naquele pas. Sobre este debate, ver: Morei, Edmar. A Revolta da Chibata, Rio de Janeiro, Graai, 1986, Cndido; Maestri, Mrio. 1910: A Revolta dos Marinheiros. So Paulo, Global, 1982: Silva, Marcos A. Contra a Chibata: marinheiros brasileiros em 1910. So Paulo, Brasiliense, 1982; Pereira do Nascimento, lvaro. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra. Dissertao de Mestrado em Histria, Unicamp, 1997; Joo. Joo Cndido, o Almirante Negro. Rio de Janeiro. Gryphus: Museu da Imagem e do Som. 1999.

    49

  • Ponderaes para um debate: do republicanismo radical ao marxismo

    O debate e a opo nacionalistas adquirem historicamente vrias possibilidades de

    apreenso e, entre elas, com certeza, a presena da esquerda nacionalista, muitas vezes

    confundida com ou interligada ao iderio socialista. Este referencial se apresenta tanto

    como uma possibilidade de superao de uma radicalidade, adquirindo mesmo uma

    inegvel exponencializao poltica e ideolgica, como sugere Lauerhass49, como podendo

    ainda, em uma de suas variaes, confluir com o nacionalismo tenentista sugerido pela

    leitura de Almeida3 . Vamos sinalizar neste tpico para outras mediaes concernentes a

    essa questo, considerando que, essa hiptese seguramente est relacionada, nessa fase

    histrica, com a esquerda militar. Por essa via, entendemos tal relao como uma variante

    sugestiva de uma aproximao nossa problemtica, tornando, o nacionalismo corno um

    fenmeno valorizado a partir da queda do imprio e do incio da Repblica. Nesse sentido,

    a questo da identidade nacional ganha um relevo singular, bem como assume nas leituras

    de muitos intelectuais, particularmente nos vrios momentos de crise, o significado de um

    despertar dos problemas nacionais e, claro, o impulso de recuperar ou construir um iderio

    de nao.

    Esse processo histrico particular, que abordamos topicamente, um subsdio

    importante para consubstanciar a construo do pensamento poltico de Nelson Werneck

    Sodr, na medida em que se apresenta na fase subsequente como decorrncia dessa linha

    terica embrionria com contornos polticos - o projeto nacionalista de configurao socialista - denominado Revoluo Brasileira. No se trata ainda a polmica do momento,

    at porque a fase que configuramos neste debate vai estar muito influenciada pelos anos 30.

    Os apontamentos norteadores so outros.

    As referncias ao pensamento socialista no Brasil datam da segunda metade do

    sculo XIX e remetem influncia de vrias correntes, ainda que de forma confusa e

    muitas vezes contraditrias. sugestivo que esse debate esteja permeado por equvocos e

    Sodr, Nelson Werneck. O Tenentismo. Porto Alegre, Mercado Aberto, 985, p. 53. Moraes, Joo Quartim. A Esquerda Militar no Brasii. op.cit., p. 112. 49Lauerhass Jr, Ludwig. Getho Vargas e o triunfo do Nacionalismo Brasileiro: Estudo do advento da gerao nacionalista de 1930. B.Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp. 1986, p. 17. "Almeida. Lcio Flvio. Ideologia Nacional e Nacionalismo. So Paulo. Educ, 1995, p. 107.

    50

  • influncias de vrias ordens e tenha resultado em uma babel terica de difcil apreenso,

    ainda que fosse marcadamente socialista e hegemnica no Brasil. Por essa razo,

    pontuamos que os termos socialista e marxista eram comumente utilizados e at

    confundidos. Nessa linha de argumentao, sinalizamos que a utilizao do conceito

    marxista deve ser pontuada principalmente na virada dos anos 20/30,52 Concordamos com

    tal aproximao para delimitar algumas das influncias que seguramente podem ter

    influenciado a obra e o pensamento de Sodr. Em uma fase inicia!, como autor de esquerda

    e materialista, face leitura de algumas correntes na Escola Militar, advinda do confuso

    debate terico que caracterizou o pensamento social brasileiro na virada do sculo XX, e no

    perodo posterior, j como autor e militante marxista. Todavia, entendo que vale o registro de alguns aspectos que, gestados nessa fase,

    viriam a ser decisivos para o entendimento do perodo subsequente, bem como de uma

    leitura do nacionalismo e da esquerda militar. O primeiro refere-se composio social dos

    socialistas brasileiros, que eram majoritariamente pertencentes pequena burguesia. Neste caso, percebe-se que so fundamentalmente intelectuais, entre outras profisses, incluindo

    militares e distante de qualquer homogeneidade, pontuando um amplo arco que

    compreende os protagonistas da Revista Nitheroy^3 e tambm grupos de socialistas

    brasileiros originrios de vrias concepes tericas ou influncias ideolgicas mais que

    dspares. A presena desse grupo constitui uma determinao importante e necessria, na

    linha exposta por Michael LowV4, e que recuperada historicamente, em relao aos

    militares pequenos burgueses, por Sodr". Ou seja, uma determinao em relao construo de seu pensamento poltico, e que, por caminhos tortuosos influenciariam aquilo

    que pontuamos como esquerda militar e nacionalista.

    5'Utilizo a expresso Babel Terica no sentido de caracterizar o conjunto das correntes ideolgicas de

    variadas e confusas matrizes tericas, tendo como aditivo ao processo, o fato de se expressarem em vrios idiomas caractersticos dos grupos imigrantes que se instalaram no pas a partir da metade do sculo XIX. ~

    2Konder. Leandro. A derrota da Dialtica:...op.cit; Batalha, Cludio H. A difuso do marxismo e os Socialistas Brasileiros na virada do sculo XIX in Moraes, Joo Quartirn. (Org). Histria do Marxismo no Brasil. Vo. II: Os influxos Tericos. Campinas, Ed.Unicamp, 1995, p. 11; Cerqueira Filho, Gislio. A Influncia das idias socialistas no pensamento poltico Brasileiro: 1890/1922. So Paulo, Ed. Loyola, 197S, p.18 ~

    3Pinassi, Maria Orlanda. Trs devotos, uma f, nenhum milagre: Nitheroy Revista Brasiiense de Cincias e Artes. So Paulo, Fundao editora Unesp, 1998. p. 41 e ss. "

    4Lowy. Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios:., op.cit. "Sodr. Nelson Werneck. O Tenentismo....op.cit., p.55.

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  • A existncia de uma lacuna terica que possibilitasse a orientao do movimento socialista em nosso contexto constitui uma de nossas hipteses de aproximao dessa problemtica. O debate era fraco e confuso e, sem dvida, esse um aspecto a ser ressaltado e, de certa forma, uma caracterstica at meados da dcada de 50. No perodo a que nos referimos, uma das razes explicativas para esse fato deve-se fundamentalmente origem abolicionista e republicana da composio de alguns desses grupos socialistas. Muitos deles foram influenciados pela posies da ala esquerda republicana, identificada com Silva Jardim, em sua maioria decepcionados com uma repblica distanciada e cada mais ausente dos anseios das classes subalternas. Esse aspecto pode muito bem ser verificado no apelo do recm-fundado Partido Socialista Brasileiro, em 1902, que prometia aos militantes republicanos preencher as expectativas frustradas, enquanto programaticamente, configurava o socialismo proposto como etapa decorrente de um republicanismo radical. Em uma interessante passagem publicada, est posto que:

    O socialismo no Brasil, perante a forma republicana, j agora iludida e falseada em todas as relaes qu