natureza da mente

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Textos compilados por Tenpa Dhargye=Flávio I I N N T T R R O O D D U U Ç Ç Õ Õ E E S S À À N A T U R E Z A D A M E N T E

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Textos compilados por Tenpa Dhargye=Flávio

IINNTTRROODDUUÇÇÕÕEESS ÀÀ NATUREZA DA

MENTE

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Textos compilados por Tenpa Dhargye=Flávio

MENTE DA ATIVIDADE, NATUREZA DA MENTE

Na tradição budista, fazemos distinção entre

compreensão intelectual, experiência instável e realização estável. A compreensão intelectual, como um remendo mal costurado que vai cair com o tempo, é temporária. Se formos adiante em nossa prática, poderemos ter um vislumbre da verdadeira natureza da mente, mas, como a névoa, ele se dissipará. O que buscamos alcançar com nosso trabalho é uma realização imutável como o espaço, que por sua própria natureza nunca se altera.

Quando cresce a nossa compreensão da

impermanência e da qualidade ilusória da existência, começamos a observar os fenômenos sem projetar nossas falsas suposições; com o tempo, passamos a reconhecer o estado desperto intrínseco, aberto e nu, como a nossa verdadeira natureza e a verdadeira natureza da realidade.

Para ter acesso a experiência daquilo que é

natural, comece reconhecendo a impermanência em cada ação do seu corpo, em cada palavra da sua fala, em cada movimento da sua mente. Ao movimentar sua mão, reconheça na mudança de posição uma demonstração de impermanência. Primeiro, ela estava do lado esquerdo, depois do direito. Com sua respiração, reconheça a Impermanência, à medida que ela vai e vem, vai e vem. Com a prática, o processo intelectual deliberado de olhar para cada coisa e pensar, “Isto é impermanente”, evolui para um conhecer natural, espontâneo, da constante manifestação das mudanças. Isso ameniza nossa atitude em relação à realidade; começamos a apreciar a verdade das metáforas do Buda que descrevem os fenômenos como ilusões ou imagens de um sonho, como alucinações, ecos ou arco-íris — aparentes, mas não tangíveis nem corpóreos —, como reflexos da lua sobre a água; brilhantes, porém não sólidos.

Nossa compreensão convencional está

baseada em suposições que foram passadas a nós, suposições que dependem de formas convencionais de percepção. Fomos ensinados a dar nome às coisas, atribuindo-lhes uma realidade que não possuem. A mente convencional é muito linear, pulando de um pensamento para outro, Podemos nos imaginar como pensadores multifacetados, cujas idéias formam algo como um mosaico, mas somos tão somente seres que mudam muito depressa. Todos os conceitos e pensamentos que surgem na mente, na verdade toda a nossa experiência da realidade, não é muito diferente de desenhos feitos com o dedo sobre a superfície da água. No próprio ato em que uma imagem está sendo criada, ela deixa de existir.

A crença na solidez das nossas experiências

produz apego c aversão, os quais, por sua vez, alimentam perpetuamente o fogo do samsara até

que a realidade fica parecendo um inferno devorador. Compreender a verdade das nossas experiências é como deixar de pôr lenha na fogueira. As chamas não desaparecem imediatamente, mas sem combustível, o fogo lentamente vai morrendo.

Sem apego e aversão, não somos confundidos

pelo jogo de atração e repulsão dos fenômenos. Aí, nessa abertura natural — o espaço claro da mente ao final de um pensamento, antes que o próximo apareça — está o estado desperto.

Grandes praticantes alcançaram a iluminação

trazendo continuamente consciência para seu trabalho. Durante todo o dia, por doze anos, o mestre indiano Tilopa prensou sementes de gergelim para fazer óleo. Com cada movimento, seu estado desperto permanecia inteiramente presente; não escapava para o passado nem para o futuro, não se perdia em vôos da imaginação. O mesmo acontecia com Togtzepa, um praticante que cavava valas: a cada movimento, ele mantinha o estado desperto.

Semelhantemente, muitos dos oitenta e

quatro mahasiddhas da Índia, praticantes altamente realizados, exerciam profissões comuns. Enquanto trabalhavam, eles meditavam. Não importava o que faziam. Como repousavam em seu estado desperto, em meio às atividades a que se dedicavam, eles desenvolveram a capacidade de transformar fogo em água, água em fogo, atravessar paredes e voar pelo ar. Em vez de ficarem sujeitos à realidade ordinária, eles se tornaram senhores dela. Evidentemente, a finalidade da meditação não é transformar água em fogo, mas essas capacidades são subprodutos que aparecem naturalmente quando cortamos nosso apego às percepções ordinárias da realidade.

Certa vez, o filho de um rei foi ter com um

iogue para receber instruções sobre meditação. Depois que o iogue lhe mostrou um método, o menino disse, “Isso não dará resultado para mim. Mas eu conheço música. Haveria uma meditação que eu pudesse praticar, enquanto toco meu instrumento?”

“Lembre-se ao tocar”, respondeu o iogue, “que

o som é vacuidade, e a vacuidade é som. O som não está além da vacuidade; a vacuidade não está além do som”. Nós também seremos capazes de transformar rapidamente a mente se trouxermos consciência a todas as nossas atividades. Se você está construindo alguma coisa, mantenha a mente presente a cada movimento do martelo. Não deixe que os pensamentos se interponham. Ao escrever, mantenha sua mente junto de cada movimento da caneta ou toque das teclas do computador. Não deixe que ela fique saltando de um lado para outro. Quando você estiver cortando lenha, man-tenha a consciência junto de cada golpe do machado. Seja o que for que estiver fazendo. relaxe a mente. Nesse processo, repousamos suavemente em uma postura de abertura, imersos

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no que esta acontecendo, totalmente presentes, mas ao mesmo tempo cientes da exibição dos fenômenos. Um adulto que esteja a olhar crianças num parque, nunca perde a noção de que elas estão brincando, O adulto não se fixa, de forma deliberada, na atividade delas, dizendo, “Elas estão brincando, elas estão brincando, elas estão brincando”. Há, porém, um reconhecimento, um conhecimento desse fato.

Com freqüência perdemos esse relaxamento

da mente quando estamos completamente mergulhados em nosso trabalho; por exemplo, quando ficamos tão envolvidos com alguma coisa que estamos escrevendo, tal como se estivéssemos dentro das palavras. Ao repousarmos a mente, porém, há um pouco mais de espaço. E como estarmos um pouco fora do que está acontecendo, cientes de que é uma manifestação, uma exibição, mas sem nos distanciarmos e criarmos dualidade.

A vida dos grandes praticantes demonstra,

repetidas vezes, que para manter sua prática do dharma uma pessoa não precisa renunciar ao mundo. Tampouco é preciso renunciar ao dharma para se manter envolvido com as atividades do mundo. É possível integrar ambas as coisas em uma única vida. Gradativamente, novas prioridades e um equilíbrio necessário aparecem.

Em minha vida, testemunhei quatro pessoas

alcançarem o corpo de arco-íris na hora da morte; elas não moravam em monastérios, mas viviam com suas famílias. Quando tinha vinte e dois anos, presenciei um homem alcançar o corpo de arco-íris, e a maioria das pessoas sequer sabia que ele fazia prática espiritual. Não há necessidade alguma de qualquer exibição externa para se obter êxito no caminho espiritual. Não é o corpo que alteramos para nos tornarmos iluminados — é a mente.

Você pode adotar o estilo de vida de um

eremita, abandonar sua preocupação com comida, roupa, riqueza, amigos, família, lar e mudar-se para uma montanha, dedicando-se inteiramente à meditação. Esse é um modo de praticar perfeitamente válido, Dentro do Vajrayana, porém, há um outro modo. Sua vida externa continua com a forma habitual. Você não deixa sua casa, não renuncia a nada, mas nunca se aparta da virtude, nunca se separa do dharma, da intenção de trazer benefícios ou do estado desperto.

Tilopa disse a seu aluno Naropa, “Você é

aprisionado não pelas aparências, mas por seu apego às aparências; portanto, corte esse apego, Naropa”. Nós nos conservamos presos ao samsara não simplesmente porque temos bens materiais, um posição elevada ou amigos, mas porque nos apegamos a essas coisas.

A prática tem que acontecer de forma

consistente, bem ali onde a mente está ativa, bem ali junto de cada experiência de desejo, raiva ou

alegria — a cada momento. Então sua meditação e o seu trabalho se unem — é uma espécie de casamento. Se você deseja resultados rápidos, não é suficiente meditar apenas uma ou duas horas por dia. Nunca pense, “Agora vou trabalhar; mais tarde vou meditar”. Quem é que sabe se a sua vida vai durar tanto? É difícil adiarmos a visita do senhor da morte. Quando ele aparecer, não lhe dará ouvidos se você disser, “Sinto muito, mas tenho estado muito ocupado e agora preciso meditar. Dê-me só uma semana, um mês ou três anos”.

Através de prática com devoção,

desenvolvemos a capacidade de transformar condições negativas em condições que nos susten-tem. Chamamos a isso “trazer as adversidades para o caminho”, ou seja, não ser bloqueado, desviado ou avassalado por uma determinada coisa, mas ver nela uma oportunidade para prática.

Então, todo o mundo fenomênico serve como

um professor, ajudando-nos a desenvolver nossas habilidades de lidar com a vida. Podemos tornar tudo o que acontece conosco parte do caminho. Provações se transformam em oportunidade para prática porque nos forçam a cultivar paciência. Aprendemos a aceitar adversidades com alegria porque compreendemos que, quando sofremos, purificamos carma. Uma única dor de cabeça pode purificar o que seriam centenas de anos de sofrimento em um dos remos dos infernos. Isso não quer dizer que rejeitemos a felicidade; antes, regozijamo-nos com ela e dedicamos nosso mérito aos outros seres, rezando para que a felicidade deles seja duradoura.

Às vezes, quando começam a fazer meditação,

algumas pessoas me dizem que são um caso perdido, que é impossível controlar seus pensamentos. Eu lhes asseguro que isso é um sinal de melhora. A mente delas sempre foi revolta; acontece apenas que, finalmente, elas estão notando isso. No passado, elas deixavam sua mente vagar livremente, seguindo as correntes de pensamento que surgissem, fossem quais fossem. Agora, porém, que têm maior percepção do que ocorre na mente, elas podem começar a mudar.

Você pode se queixar de que meditação não é fácil. Mas lembre-se de que você está conduzindo sua mente como um cavalo selvagem para dentro do curral do estado desperto. Você terá certeza de que sua prática está dando resultado se não estiver mais tão dominado por suas emoções e confusão, se trouxer para todas as suas ações, onde quer que esteja, uma qualidade de abertura, de relaxamento e uma intenção de compaixão, permanecendo consciente dos movimentos da mente e da natureza de todas as coisas que acontecem à sua volta.

Certa vez, um aluno que estava tendo

dificuldade com meditação veio à presença do Buda. Quando o Buda perguntou qual era a profissão dele, o homem respondeu que era músico e tocava alaúde.

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O Buda perguntou: “Quando você está pondo as cordas no seu alaúde, você as estica com bastante força ou as deixa bem soltas?”.

O homem respondeu, “Nenhuma das duas coisas. Se eu as esticar demais ou deixá-las soltas demais, o tom sairá errado. Tenho que encontrar um ponto de equilíbrio”. Com isso, ele havia res-pondido sua própria pergunta sobre meditação. Quer seja em nossa prática ou em nosso trabalho, precisamos manter um equilíbrio — não ficaremos tensos e apegados demais, nem soltos e desleixados demais.

Conta-se a história de um ótimo lama que

tinha um aluno bastante obtuso que fazia perguntas óbvias, mas nunca entendia direito as respostas. Um dia, o professor, com grande frustração, olhou para ele e disse, “Mas você não tem chifres” — querendo dizer, “Você não é uma vaca, você deveria entender o que eu estou dizendo”.

O aluno, continuando a não entender, pensou

que o professor quisesse dizer que ele deveria ter chifres. Levando isso a sério, entrou em retiro, visualizando, a cada dia, que possuía chifres. Três anos mais tarde, o professor perguntou a um assistente, “O que foi feito daquele meu aluno que não era tão brilhante?” Quando informado de que o aluno estava em retiro meditando, o lama exclamou, “Mas como ele pode estar meditando? Ele não sabe nada. Tragam-no aqui”

Um mensageiro foi então enviado para buscar

o aluno. Ao chegar na caverna do retiro, ele espiou pela pequena porta e viu o aluno sentado lá dentro, com um belo par de chifres. O mensageiro chamou, “O seu professor quer vê-lo; venha, por favor”.

O aluno se levantou para sair, mas não conseguiu fazer com que aqueles chifres enormes passassem pela pequena porta. Ele disse ao mensageiro, “Por favor, apresente minhas desculpas ao meu professor eu gostaria de ir até ele, mas não consigo sair da caverna por causa dos meus chifres”.

O professor, ao ouvir o fato, disse, “Isso é maravilhoso! Diga a ele, agora, para meditar que não tem chifres”.

Pela força da sua concentração, o aluno removeu os chifres em sete dias e voltou á presença do lama. Depois de receber instruções adequadas sobre meditação, ele muito rapidamente alcançou realização.

As pessoas dão muitos motivos para não

fazerem prática espiritual. Algumas dizem que não acreditam nos ensinamentos; outras sentem que não estão prontas ou que não têm a capacidade necessária. Isso, porém, é um erro. Quer acreditemos ou não no samsara, é aqui que estamos. Quer acreditemos ou não no carma, nós o estamos criando. Quer acreditemos ou não nos venenos da mente, eles estão ai. Que vantagem há em não se acreditar em remédio? Quer estejamos ou não prontos para fazer prática, a morte e as doenças não vão nos esperar. Por que

não nos preparar? Por que não desenvolver a capacidade de ajudar a nós mesmos e aos outros? Estamos prontos para beber veneno, mas não para tomar remédio.

Não meditar depois de termos recebido os

ensinamentos é como comprarmos todas as nossas comidas preferidas, arrumá-las bem na cozinha, e então não comer. Vamos morrer de fome. Meditar é como comer: nossa despensa está cheia e nós partilhamos daquilo que coletamos.

Em vez de dizer, “Não tenho tempo hoje,

amanhã vou meditar. Não tenho tempo nesta semana, vou fazer a semana que vem. Este ano tem sido muito corrido, vou deixar para o próximo ano”, precisamos sentir uma necessidade imediata de fazer prática —agora mesmo, não apenas hoje, não apenas nesta hora, mas neste exato momento.

Agora, rezo para que a verdadeira natureza de

todos os seres, sem exceção, seja revelada, para que cada um de nós veja com clareza a sua verdade inerente e fique livre dos grilhões do sofri-mento e das dificuldades impostas pelas limitações da mente.

Vamos dedicar a esse fim todas as virtudes

destes ensinamentos, das mudanças que vamos viver por termos sido expostos a estas verdades, e das mudanças que as pessoas á nossa volta vão atravessar por nos verem encarnar o que aprendemos.

Possam essas virtudes se irradiar em todas as direções, em ondas de benefícios.

Capítulo do livro: “Portões da Prática Budista” de Chagdud Tulku Rinpoche

A ESSÊNCIA MAIS PROFUNDA

Ninguém pode morrer sem medo e em

completa segurança sem ter atingido a realização da natureza da mente. Porque só essa realização, aprofundada em anos de prática continuada, pode manter a mente estável no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheço de ajudar a realizar a natureza da mente, a prática de Dzogchen, a mais antiga e direta corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do budismo é a própria fonte dos ensinamentos do bardo, é a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstâncias atuais. As origens do Dzogchen remontam ao Buda Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta de grandes mestres que chega até o presente. Centenas de milhares de indivíduos na Índia, no Himalaia e no Tibet, atingiram a realização e a iluminação através dessa prática.

Alguns dos meus mestres me disseram que

este é o momento de se difundir o Dzogchen. Os seres humanos chegaram a um ponto crítico da

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sua evolução e esta época de extrema confusão pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade.

Descobri também que as pessoas de hoje

querem um caminho que elimine o dogma, o fundamentalismo, exclusivismo, metafísica, complexa e parafernália cultural exótica, um caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que não precise ser praticado em ashrams ou mosteiros, mas possa integrar-se à vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar.

O que é, então, o Dzogchen? O Dzogchen

não é apenas um ensinamento, nem mais uma filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora série de técnicas. Dzogchen é um estado, O estado primordial, aquele estado totalmente desperto que é o coração e a essência de todos os budhas e de todos os caminhos espirituais e o ápice da evolução espiritual de um indivíduo. Dzogchen é freqüentemente traduzido como Grande Perfeição. Prefiro deixar a palavra sem traduzir, porque Grande Perfeição traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para conseguir, meta que fica no final de uma longa e árdua jornada.

Nada podia estar mais distante do significado de Dzogchen: o estado já perfeito em si mesmo da nossa natureza primordial, que não precisa de "aperfeiçoamento", uma vez que, como o céu, sempre foi perfeito desde o começo.

Todos os ensinamentos budistas são

explicados em termos de "Base, Caminho e Fruição". A Base do Dzogchen é esse estado fundamental e primevo, nossa natureza absoluta que já é perfeita e está sempre presente. Patrul Rinpoche diz: “Nem é para ser buscada externamente, nem é algo que você não tinha antes ou que precise nascer agora de um modo novo em sua mente”. Do ponto de vista da Base – o absoluto – nossa natureza é a mesma que a dos budas, e nesse nível não há que ouvir ensinamentos ou fazer prática - nem um pingo, dizem os mestres.

Não obstante, temos de entender, os budas

tomaram um caminho e nós tomamos outro. Os budas reconhecem sua natureza original e tornam-se iluminados; nós não a reconhecemos e por isso nos tornamos confusos. Nos ensinamentos, esses estado de coisas é chamado “Uma base, dois Caminhos”. Nossa condição relativa é que nossa natureza intrínseca está obscurecida e precisamos seguir os ensinamentos e a prática para voltarmos à verdade: esse é o caminho do Dzogchen. Finalmente, atingir a realização da nossa natureza original é atingir a completa liberação e tornar-se um buda. Essa é a fruição do Dzogchen, que de fato é possível ao praticante em uma só vida, quando ele ou ela a isso dedica seu coração e mente.

Os mestres Dzogchen são agudamente

conscientes dos perigos de confundir o absoluto com o relativo. Quem não consegue compreender

essa relação pode subestimar ou até desprezar os aspectos relativos da prática espiritual e a lei cármica de causa e efeito. No entanto, àqueles que apreendem verdadeiramente o significado do Dzogchen terão um respeito ainda mais profundo pelo carma, bem como uma apreciação mais intensa e premente da necessidade de purificação e de prática espiritual. Isso se dará porque eles poderão perceber a vastidão daquilo que há neles e que foi obscurecido, o que os fará empenhar-se de maneira mais fervorosa, e com disciplina sempre fresca e natural, em remover o que quer que se interponha entre eles e sua verdadeira natureza.

Os ensinamentos Dzogchen são como um

espelho que reflete a Base da nossa natureza original com pureza tão elevada e liberadora, e claridade tão imaculada, que constituem uma proteção ao perigo de ficar presos em qualquer forma de entendimento conceitualmente fabricado, mesmo que sutil, convincente ou sedutor.

Qual é então, para mim, a maravilha do

Dzogchen? Todos os ensinamentos levam à iluminação, mas a singularidade do Dzogchen é que, mesmo na dimensão relativa dos ensinamentos, a sua linguagem nunca macula o absoluto com conceitos; deixa-o intacto em sua simplicidade desnuda, dinâmica e majestosa, e mesmo assim fala dela a qualquer um de mente aberta em termos tão vívidos e expressivos que, mesmo antes de nos iluminarmos, somos agraciados com o vislumbre mais forte que podemos ter do esplendor do estado desperto.

A VISÃO

Tradicionalmente, o treinamento prático do Caminho Dozogchen é descrito com muita simplicidade em termos de Visão, Meditação e Ação. Ver diretamente o estado absoluto, a Base do nosso ser, é a Visão; o modo de estabilizar essa Visão e fazer dela uma experiência contínua é Meditação; integrar a Visão à nossa realidade total e à nossa vida é o que chamamos Ação.

O que é então a Visão? É nada menos que ver o estado real das coisas como elas são; saber que a verdadeira natureza da mente é a verdadeira natureza de tudo; e atingir a realização de que a verdadeira natureza da nossa mente é a verdade absoluta. Dudjom Rinpoche diz:

A visão é a compreensão da consciência intrínseca desnuda, Dentro da qual tudo está contido: a percepção sensorial e a existência fenomênica, o samsara e o nirvana. Essa consciência intrínseca e imediata tem dois aspectos: “vacuidade” como o absoluto, e “aparência” ou percepção como relativo. O que isso significa é que todo o conjunto

das possibilidades das aparências e todos os possíveis fenômenos em todas as diferentes realidades - todos eles, sem exceção, seja no samsara ou no nirvana - sempre foram e sempre

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serão perfeitos e completos, dentro da vasta e ilimitada extensão da natureza da mente. Mais ainda, que a essência de tudo seja vazia e “pura desde o início”, sua natureza é rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades, um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que é sempre perfeito e espontâneo. [...]

Como a mente de sabedoria dos budas

pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como seu próprio rosto; está sempre com você, mas não pode vê-lo sem ajuda. Agora imagine que nunca viu um espelho antes. A introdução feita pelo mestre é colocar subitamente um espelho diante de você, no qual pela primeira vez vai ver seu próprio rosto refletido. Tal como seu rosto, a pura percepção de Rigpa [a base do nosso ser] não é algo “novo”que o mestre lhe está dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com você, mas até aquele momento, surpreendente, você nunca o tinha visto de maneira direta.

Patrul Rinpoche explica que “de acordo

com a tradição especial dos grandes mestres da linhagem dessa prática, a natureza da mente, o rosto de Rigpa, é intoduzido precisamente na dissolução da mente conceitual”. [...]

Apenas uns poucos indivíduos na história,

devido ao seu carma purificado, puderam reconhecer e iluminar-se num instante; por isso a introdução deve quase sempre ser precedida pelas práticas preliminares que apresento a seguir. São essas práticas preliminares que purificam e removem os obscurecimentos da mente ordinária, trazendo você ao estado em que “seu” Rigpa pode ser revelado.

Primeiro, a MEDITAÇÃO, antídoto supremo

da distração, traz a mente de volta e permite que ela se assente no seu estado natural.

Segundo, práticas profundas de purificação e o fortalecimento do carma positivo, através da acumulação de mérito e sabedoria, começam a enfraquecer e dissolver os véus intelectuais e emocionais que obscurecem a natureza da mente. Como escreveu meu mestre Jamyang Khyentse: “Se os obscurecimentos forem removidos, a sabedoria de Rigpa de cada um brilhará naturalmente”. Essas práticas de purificação, chamadas Ngöndro em tibetano, devem ser cuidadosamente observadas para produzir uma ampla transformação interior. Elas envolvem o ser inteiro - corpo, fala, mente - e começam com uma séria de profundas contemplações sobre:

- A singularidade da vida humana - A contínua presença da

impermanência e da morte - A infalibilidade da causa e efeito das

nossas ações - O ciclo vicioso de frustração e

sofrimento que é o samsara (...)

Mesmo sabendo que as palavras e os conceitos fracassam quando tentamos descrevê-la, vou procurar dar uma idéia do que é a VISÃO e do que acontece quando Rigpa é revelado diretamente.

Dudjom Rinpoche diz: “Esse momento é

como tirar um capuz de sua cabeça. Que amplitude infinita e que alívio! Esse é o ver supremo: ver o que não foi visto antes”. Quando você “vê” tudo se abre, se expande e se torna fresco, claro, transbordante de vida, animado de encantamento e frescor. É como se o teto de sua cabeça se desprendesse, ou se um bando de pássaros repentinamente revoasse de um ninho escuro. Todas as limitações se dissolvem e desaparecem como se, dizem os tibetanos, um selo tivesse rompido”.

Imagine-se morando numa casa no topo do

mundo. De repente, toda a estrutura da casa que limitava sua visão simplesmente desaparece e você pode ver tudo ao seu redor, tanto dentro como fora. Mas não há alguma “coisa” para ver; o que acontece não tem qualquer referência no mundo ordinário; é uma visão total, completa, sem precedentes, perfeita.

Dudjon Rinpoche diz: “Seus inimigos mais

mortais, aqueles que o mantiveram amarrado ao samsara por incontáveis vidas, desde tempos imemoriais até o presente, são o agarrar e o agarrado”.

Quando o mestre o introduz e você os

reconhece, “esses dois são completamente consumidos como penas numa fogueira, não deixando vestígios”. Agarrar e agarrado, a coisa agarrada e aquele que agarra são completamente liberados a partir mesmo da sua base. As raízes da ignorância e do sofrimento são totalmente cortadas e todas as coisas aparecem como reflexos num espelho, transparentes, bruxuleantes, ilusórias e com a qualidade de um sonho.

Quando você chega naturalmente a esse

estado de meditação, inspirado pela Visão, pode permanecer aí por um longo tempo sem qualquer distração ou esforço especial. Então não há nenhuma coisa de nome meditação para proteger ou sustentar, uma vez que você está no fluxo natural da sabedoria Rigpa. E, quando está nele, perceberá que é como se tivesse sido sempre assim, e é. Quando brilha a sabedoria de Rigpa, nem uma sombra de dúvida permanece e um entendimento completo e profundo surge diretamente e sem qualquer esforço. (...)

Esse é o momento do despertar. Um

profundo senso de humor brota de dentro e você sorri, divertido com a inadequação dos seus antigos conceitos e idéias sobre a natureza da mente.

O que surge disto é uma crescente, tremenda e inabalável certeza e convicção de que “é isto”. Não há nada além a procurar, nada a mais a ser esperado. Essa certeza da Visão é aquilo que deve

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ser aprofundado, de lampejo a lampejo, sobre a natureza da mente, e estabilizado pela contínua disciplina da meditação.

MEDITAÇÃO

Então o que é meditação do Dzogchen? É simplesmente repousar, sem distrações, na Visão, uma vez que ela tenha sido introduzida. Dudjon Rinpoche a descreve:

“A meditação consiste em ficar atento a esse estado de Rigpa, livre de todas as construções mentais, embora permanecendo totalmente relaxado, sem qualquer distração e sem agarrar-se a nada. Por isso se diz que a "meditação não é se esforçar, mas permitir que a própria meditação nos assimile naturalmente”. O ponto central da prática de meditação

Dzogchen é fortalecer e estabilizar Rigpa, permitindo que ele cresça até sua plena maturidade. A mente ordinária e habitual, com suas projeções, é extremamente poderosa. Ela fica voltando e toma conta de nós quando estamos desatentos e distraídos. Como Dudjon Rinpoche costumava dizer: “No momento, nosso Rigpa é como um bebezinho desamparado no campo de batalha onde os pensamentos irrompem com força”. Gosto de dizer que temos de começar sendo a ama-seca do nosso Rigpa dentro do ambiente seguro da meditação.

Se a meditação é simplesmente continuar o

fluxo de Rigpa após a introdução, como sabemos quando é Rigpa e quando não é? Fiz essa pergunta a Dilgo Khyentse Rinpoche e ele respondeu com sua simplicidade característica: “Se você está num estado inalterado, é Rigpa”. Se não estamos dentro da mente que de algum modo manipula e distorce a realidade, mas apenas repousando num estado inalterado de consciência pura e original, então isso é Rigpa. Se há qualquer trama ou maquinação de nossa parte, alguma forma de manobra ou de apego, já não se trata de Rigpa. Rigpa é um estado em que não há mais qualquer dúvida: não há na verdade algo como uma mente que possa duvidar: você vê diretamente. Se estiver nesse estado, certeza e confianças completas e naturais vibram com o próprio Rigpa, e é assim que você sabe.

A tradição do Dzogchen é de precisão extrema, já que quanto mais fundo você vai mais sutil são os enganos que podem surgir, e o que está em jogo é o conhecimento da realidade absoluta.

Mesmo após a introdução, os mestres

esclarecem em detalhes os estados que não são meditação Dzogchen e que com ela não devem ser confundidos. Num desses estados você perambula por uma terra de ninguém da mente, onde não há pensamentos ou memórias; é um estado obscuro, embotado e apático, onde você está mergulhado na base da mente ordinária. Num segundo estado há certa quietude e leve claridade, mas é uma quietude estagnada, ainda

enterrada na mente ordinária. Num terceiro você experimenta a ausência de pensamentos, mas está “em outra” , apenas num estado vazio de encantamento. Num quarto estado sua mente vagueia, ansiando por pensamentos e projeções. Nenhum desses é o verdadeiro estado de meditação e o praticante deve observar habilmente o que ocorre para evitar ser iludido por esses caminhos.

A essência prática da meditação no

Dzogchen está contida nesses quatro pontos:

I - Quando um pensamento passado cessou e ainda não surgiu um pensamento futuro, há uma brecha. Nesse preciso instante, não há uma consciência do momento presente, fresca, virgem, em nada alterada por conceitos, uma atenção luminosa e pura? Pois bem isso é Rigpa! II - Entretanto a mente não fica neste estado para sempre, porque outro pensamento subitamente surge, não é assim? Essa é a auto-irradiação de Rigpa. III - No entanto, se você não reconhece esse pensamento pelo que de fato ele é, no instante em que surge, ele se transformará em um pensamento comum, como antes. Essa é a chamada "cadeia da ilusão", e é a raiz de samsara. IIII - Se você é capaz de reconhecer a verdadeira natureza do pensamento logo que ele surge e o deixa em paz, sem persegui-lo, então quaisquer pensamentos que surjam se dissolvem automaticamente, retornando à vasta extensão de Rigpa, e são liberados.

É preciso uma vida inteira de prática para

entender e realizar a profunda riqueza e a majestade desses quatro pontos tão simples e tão fundamentais, e tudo o que posso fazer aqui é dar a você uma amostra da vastidão que é a meditação Dzogchen.

Talvez o ponto mais importante é que a

meditação Dzogchen vem a tornar-se um contínuo fluxo de Rigpa, como um rio que se move constantemente, dia e noite sem interrupção. Claro que isto é um estado ideal, uma vez que esse atento repouso na Visão, já introduzida e identificada, é a recompensa de muitos anos de prática permanente.

A meditação Dzogchen é sutilmente

poderosa na lida com os movimentos da mente, apresentando uma perspectiva única sobre eles. Tudo o que surge é visto na sua verdadeira natureza, não como coisa separada de Rigpa, e não antagônica a ele, mas - e isso é muito importante - verdadeiramente como nada mais que a sua auto-irradiação, a manifestação de sua própria energia.

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Digamos que você se encontre num estado de profunda quietude; ele não costuma durar muito, porque logo um movimento ou um pensamento surge, como uma onda no oceano. Não rejeite o movimento nem se apegue à tranqüilidade, mas deixe seguir o fluxo da sua pura presença. O estado penetrante e sereno da sua meditação é o próprio Rigpa e tudo que surge nada mais é que a auto-irradiação de Rigpa. Esse é o coração e a base da prática Dzogchen. [...]

À medida que incorpora a firme

estabilidade da Visão, você não é mais enganado nem distraído pelo que quer que possa surgir, e assim não cai vítima da ilusão.

Claro que no oceano há ondas violentas e ondas suaves; surgem emoções fortes como raiva, desejo e inveja. O verdadeiro praticante as reconhece não como perturbação ou obstáculo, mas como uma grande oportunidade. O fato de você reagir ao que aparece com as tendências habituais de apego e aversão é sinal não somente que está distraído, mas também de que não tem o reconhecimento e perdeu a base de Rigpa. Reagir as emoções desse modo significa reforça-las , prendendo-nos ainda mais fortemente às cadeias da ilusão. O grande segredo do Dzogchen é ver bem através delas, tão logo aparecem, percebendo-as pelo que de fato são: a vívida e elétrica manifestação da própria energia Rigpa. À medida que você aprende a fazer isso, mesmo as emoções mais turbulentas já não conseguem dominá-lo e se dissolvem como ondas bravias que aparecem e retrocedem, mergulhando de volta na calma do oceano.

O praticante descobre - e essa é uma visão revolucionária, cuja sutileza e poder vão além do que podemos entrever - que as emoções violentas não precisam necessariamente precipitá-lo no turbilhão de suas próprias neuroses; elas podem ser usadas para aprofundar, estimular, avivar e fortalecer Rigpa. Essa energia tempestuosa torna-se matéria-prima para a energia desperta de Rigpa. Quanto mais forte e ardente a emoção, mais Rigpa se fortalece. Sinto que esse método peculiar ao Dzogchen é uma força extraordinária para libertar até os problemas emocionais e psicológicos mais inveterados e mais profundamente enraizados. [...] No Dzogchen, a fundamental e inerente

natureza de tudo é chamada “Luminosidade Base”, ou “Luminosidade Mãe”. Ela permeia todas as nossas experiências e é inclusive, embora não a reconheçamos, a natureza inerente também dos pensamentos e emoções que surgem em nossa mente. Quando o mestre introduz à verdadeira natureza da mente, ao estado de Rigpa, é como ele ou ela nos desse uma chave mestra. No Dzogchen chamamos essa chave, que vai abrir a porta do conhecimento total, de “Luminosidade Caminho”, ou “Luminosidade Filha”. A Luminosidade Base e a Luminosidade Caminho são fundamentalmente as mesmas, é claro, e é só

para fins de explanação e prática que elas são categorizadas dessa forma. Mas uma vez que temos a chave da L. Caminho. dada pela introdução do mestre, podemos usá-la à vontade para abrir a porta da natureza inata da realidade. Este abrir a porta se chama na prática do Dzogchen “o encontro da Luminosidade Mãe e Filha”. Outro modo de dizer isso é que, assim que um pensamento ou emoção aparece, a Luminosidade Caminho – Rigpa – reconhece-as imediatamente pelo que são, reconhece sua natureza inerente, a Luminosidade Base. Nesse instante de reconhecimento, as duas Luminosidades se fundem e os pensamentos e emoções são liberados em sua própria base.

É fundamental o aperfeiçoamento dessa

prática de fusão das duas Luminosidades e da auto-liberação daquilo que surge na sua mente enquanto você está vivo, porque o que ocorre para todos no momento da morte é isto: a Luminosidade Base desponta com seu imenso esplendor, trazendo com ela uma oportunidade de liberação total – se, e somente se, você tiver aprendido a reconhecê-la.

Talvez fique claro agora que essa fusão das

Luminosidades e da auto-liberação dos pensamentos e das emoções é meditação no seu nível mais profundo. De fato, um termo como meditação não é verdadeiramente apropriado para a prática Dzogchen porque, em última análise, implica meditar “sobre” algo, enquanto que no Dzogchen tudo é apenas e para sempre Rigpa. Desse modo, não existe meditação separada do simples ficar na pura presença de Rigpa.

A única palavra que talvez pudesse

descrever isso é “não-meditação”. Nesse estado, dizem os mestres, mesmo se você procurar a ilusão, não encontrará nenhuma. Mesmo se você procurar pedrinhas comuns numa ilha de ouro e jóias, não terá oportunidade de encontra-las. Quando a Visão é constante, o fluxo de Rigpa é inesgotável e a fusão das duas Luminosidades é contínua e espontânea, toda a ilusão possível é liberada em sua própria raiz e toda a sua percepção aparece como Rigpa, sem interrupção.

Os mestres enfatizam que para estabilizar a

Visão na meditação é essencial, primeiro, realizar essa prática num ambiente especial, de retiro, onde todas as condições favoráveis estejam presentes; entre as distrações e a correria do mundo, as experiências verdadeiras, por mais que você medite, não surgirão na sua mente. Segundo, embora não haja diferença no Dzogchen entre meditação e vida cotidiana, até que você tenha encontrado a verdadeira estabilidade pela prática em sessões a isso dedicadas, não conseguirá integrar a sabedoria da meditação na experiência da vida diária. Terceiro, mesmo se você pratica e é capaz de assentar no fluxo de Rigpa com confiança na Visão, mas não consegue manter esse fluxo todo o tempo, em todas as situações, combinando sua prática com a vida cotidiana, isso não servirá quando circunstâncias desfavoráveis surgirem, e

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você será desviado para a ilusão pelos pensamentos e emoções. (...)

AÇÃO

À medida que a familiaridade com o fluxo de Rigpa vai se tornando realidade e permeia a vida cotidiana, as ações do praticante começam a mudar e geram estabilidade e confiança profundas.

Dudjom Rinpoche diz: “Ação é estar verdadeiramente atento aos seus próprios pensamentos. Bons ou maus, olhando para a verdadeira natureza de qualquer pensamento que surja, sem evocar o passado ou convidar o futuro, sem permitir qualquer apego a experiência de alegria nem se deixar dominar pelas situações tristes. Assim fazendo, você tenta atingir e permanecer num estado de grande equilíbrio em que bom e mau, paz e angústia, são desprovidas de verdadeira identidade”. Atingir a realização da Visão transforma de

maneira sutil, porém completa, o modo como você vê as coisas. Mais e mais eu percebi o quanto pensamentos e conceitos são tudo o que nos impede de estar sempre, muito simplesmente, no absoluto. Agora vejo com claridade porque os mestres dizem com tanta freqüência: “Procure com afinco não criar muita esperança ou medo”, porque só engendram mais tagarelice mental. Quando a Visão está presente, os pensamentos são percebidos como de fato são: fugazes, transparentes e apenas relativos. Você pode enxergar através de tudo, como se tivesse olhos de rios-X. Não se apega aos pensamentos e emoções, nem os rejeita, mas acolhe-os todos no vasto abraço de Rigpa. O que levava muito a sério antes - ambições, planos, expectativas, dúvidas e paixões - já não tem nenhum poder profundo sobre você nem o deixa ansioso, uma vez que a Visão o ajudou a perceber a futilidade e a insensatez de todas as coisas, e fez nascer em você um espírito de verdadeira renúncia.

Permanecer na claridade e na confiança de

Rigpa permite que todos os seus pensamentos e emoções se liberem naturalmente e sem esforço em sua vasta extensão, qual escrever na superfície da água ou pintar no céu. Se você aperfeiçoa verdadeiramente essa prática, não há jeito de acumular carma; e nesse estado de entrega despreocupada e sem intencionalidade, que Dudjom Rinpoche chama de tranqüilidade aberta e desnuda, a lei de causa e efeito já não pode sujeitá-lo de modo algum.

Não presuma que isso é fácil ou poderia de algum modo sê-lo. É muito difícil repousar sem distrações na natureza da mente, mesmo por um instante, e permitir que um pensamento ou emoção se auto-libere espontaneamente quando surge. Via de regra assumimos que apenas porque compreendemos algumas coisas intelectualmente, ou pensamos que

compreendemos, nós de fato as realizamos. Essa é uma enorme ilusão. A tarefa exige a maturidade que somente anos de audição, contemplação, reflexão, meditação e prática contínua podem trazer. E nunca é demais enfatizar que a prática continuada do Dzogchen sempre requer a direção e a instrução de um mestre qualificado.

De outro modo há um grande perigo, que a

tradição chama “perder a Ação na Visão”. Um ensinamento tão elevado e poderoso como o Dzogchen comporta um risco extremo. Ao iludir-se de que está liberando pensamentos e emoções, quando de fato não está nem próximo de conseguir isso, e ao imaginar que está agindo com a espontaneidade de um verdadeiro yogue Dzogchen, tudo o que você faz é acumular enormes quantidades de carma negativo. Como dizia Padmasambhava, e esta é a atitude que todos devem ter:

Embora minha visão seja tão vasta quanto o céu Minhas ações e meu respeito pela causa e efeito

São refinados como o grão de farinha.

Os mestres da tradição Dzogchen enfatizam incansavelmente que, sem um conhecimento completo e profundo da “essência e método da auto-liberação”, através de longa prática, a meditação somente incrementa o caminho da ilusão. Isso pode parecer severo mas este é o caso, porque só a auto-liberação constante dos pensamentos pode de fato acabar com o domínio da ilusão e proteger o discípulo de mergulhar outra vez no sofrimento e na neurose. Sem o método da auto-liberação você não estará apto para enfrentar desventuras e circunstâncias infelizes quando elas surgirem, e mesmo se você já tem o hábito de meditar vai perceber que emoções como raiva e desejo estão presentes, tão fortes quanto antes. O perigo de outros tipos de meditação que não tem esse método consiste em que eles se tornam como a "meditação dos deuses", extraviando-se com facilidade em uma suntuosa auto-absorção, num transe passivo, ou numa inanidade de espírito de um tipo ou de outro, e nada disso ataca e dissolve a ilusão na sua raiz.

O grande mestre Dzogchen, Vimalamitra,

falou de maneira muito precisa sobre os graus de crescente naturalidade nesse caminho de liberação: quando você domina a prática pela primeira vez, a liberação acontece simultaneamente ao que surge na mente, e aí é como reconhecer um velho amigo na multidão. Aperfeiçoando e aprofundando a prática a liberação virá junto com o surgimento das emoções e pensamentos, como uma serpente desenrolando-se. E, no estado final de mestria, a liberação é como um ladrão que entra numa casa vazia; nada do que surge traz males nem benefícios para o verdadeiro yogue Dzogchen.

Mesmo nos maiores yogues, a alegria e o

sofrimento, a esperança e o medo, ainda aparecem exatamente como antes. A diferença de uma

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pessoa comum e o yogue está em como eles vêem suas emoções e reagem a elas. Uma pessoa comum, de maneira instintiva, irá aceitá-las ou rejeitá-las, suscitando assim apego ou aversão que resultarão na acumulação de carma negativo. Um yogue, no entanto, percebe tudo o que surge no seu estado natural e originalmente puro, sem permitir o apego, ou qualquer pensamento superveniente. Como diz Dudjom rinpoche:

Em qualquer percepção que surja, você

deve ser como uma criança que entra num templo lindamente decorado: ela olha, mas o apego não entra de modo algum em sua percepção. Então você deixa tudo ali, fresco, natural, vivo e intocado.

Quando você deixa tudo no seu estado próprio, a forma não muda, a cor não esmaece, o brilho não declina. Tudo o que surge não é maculado por nenhum apego, e assim todas as coisas que você percebe surgem como a desnuda sabedoria de Rigpa, que é a inseparabilidade entre luminosidade e vacuidade.

A confiança, o contentamento, a vasta

serenidade, a força, o profundo humor e a certeza que advêm da realização direta da Visão de Rigpa são o maior tesouro da vida, a maior das felicidades, que uma vez obtida nada pode destruir, nem mesmo a morte. Dilgo Khyentse Rinpoche diz:

“Uma vez que você obtém a Visão, embora as percepções ilusórias do samsara possam surgir na sua mente, você será como o céu: não fica particularmente lisonjeado quando surge nele o arco-íris, nem particularmente desapontado quando as nuvens o encobrem. Há uma profunda sensação de contentamento. Você ri por dentro quando vê a fachada do samsara e do nirvana; a Visão o manterá constantemente maravilhado com um suave sorriso interior se esboçando, todo o tempo”.

Como diz Dudjom Rinpoche:

“Tendo purificado a grande ilusão, que é o lado escuro do coração, a luz radiante do sol não-obscurecido nascerá continuamente”.

Quem leva a sério as instruções sobre

Dzogchen e sua mensagem sobre o morrer, contidas nesse livro, irá se sentir inspirado, espero, para buscar, encontrar e seguir um mestre qualificado, e para comprometer-se a passar por um completo treinamento sob orientação dele ou dela. O coração do treinamento Dzogchen consiste em duas práticas, Trekchö e Tögal, que são indispensáveis a uma compreensão profunda do que ocorre durante os bardos. Só posso dar aqui uma brevíssima introdução a ambas. A explicação completa só é dada de mestre a discípulo, quando este já se comprometeu de todo o coração com os ensinamentos e atingiu certo estágio de desenvolvimento. O que expliquei neste capítulo –

“A Essência Mais Profunda” - é a essência da prática do Trekchö.

Trekchö significa atravessar a ilusão

essencialmente com força irresistível da visão Rigpa, como uma faca corta manteiga ou um mestre de karatê quebra uma pilha de tijolos. Todo o fantástico edifício da ilusão desmorona, como se você tivesse pulverizado seus alicerces. A ilusão é atravessada e a pureza primordial e a natural simplicidade da mente são desveladas.

Somente quando o mestre determinar que você tem uma base firme na prática do Trekchö é que ele ou ela o introduzirá na prática avançada do Tögal. O praticante do Tögal trabalha diretamente com a Clara Luz – que habita de modo inerente em todos os fenômenos e está “espontaneamente presente neles” – usando exercícios específicos e muito poderosos para revela-la dentro de si mesmo.

O Tögal tem a qualidade de ser instantâneo,

de trazer realização imediata. Em vez de viajar por uma cordilheira para alcançar um pico distante, o Tögal leva-o até lá num salto. O efeito de Tögal é tornar alguém capaz de efetivar todos os diferentes aspectos da iluminação em si próprios no decurso de uma vida. Por isso é considerado o método único e extraordinário do Dzogchen; enquanto o Trekchö é a sua sabedoria, o Tögal são seus meios hábeis. Exige imensa disciplina e é geralmente praticado em retiro. (...)

O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche – Ed. Talento

REVELANDO A NOSSA NATUREZA ESSENCIAL

Chagdud Tulku Rinpoche

(...)

A base do nosso ser é a essência búdica, a natureza búdica. Todos os seres quer grandes quer pequenos, têm essa natureza fundamental, essa pureza essencial. Como o ouro incrustado no minério, a verdade da nossa natureza, embora seja uma pureza que não teve princípio nem terá fim, não é obvia para nós. Pelo fato de ser essa a nossa natureza fundamental, podemos revelá-la por meio da prática, da mesma forma que o refinamento revela o ouro que existe de forma inerente no minério.

Essa essência, desde tempos sem princípio, é completamente isenta de substância, vazia. Embora possamos tentar encontrar características a partir das quais definiríamos e entenderíamos a vacuidade, ela não pode ser concebida por conceitos ordinários. Assim, ela é desprovida de sinais e características. Nada mais é preciso, além de mantermos o reconhecimento da nossa natureza fundamental, para que o fruto – as qualidades plenas, a realização completa dessa pureza inerente – seja revelado. O que revelamos

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não está além de nossa natureza fundamental e, nesse sentido, está além de qualquer desejo. Não há nada que esteja faltando, nada que esteja em outro lugar a que devamos aspirar para que aconteça. Ela é isenta de aspiração.

Pelo fato de não reconhecermos essa natureza – não nos darmos conta de que, embora as aparências surjam incessantemente, nada na verdade, está presente – emprestamos solidez e realidade à verdade aparente do “eu” e do “outro”. E das “ações” que ocorrem entre “eu” e “outro”. Esse obscurecimento intelectual é causa do apego e aversão, seguidos de ações e reações que criam carma, solidificam-se em hábitos e perpetuam os ciclos de sofrimento. Esse processo todo é que precisa ser purificado.

Na primeira das três etapas sucessivas de ensinamentos, chamada “o primeiro giro da roda do Dharma”, o Buda ensinou as quatro nobres verdades: a verdade do sofrimento, da origem do sofrimento, do caminho pelo qual ele é erradicado e a verdade de sua cessação. No segundo giro da roda do Dharma, ele ensinou que a verdadeira natureza de todos os fenômenos é vazia, desprovida de sinais e de aspiração: a natureza fundamental é a vacuidade, o caminho é isento de sinais e o fruto, isento de aspiração. No terceiro giro da roda, ele falou das qualidades da natureza da mente que são plenas, infalíveis e resplandecentes, falou da aparência da clara luz da sabedoria.

A tradição Vajrayana ensina a inseparabilidade, desde tempos sem princípio, de duas coisas: a união entre a natureza não-nascida da mente e as qualidades puras da clara luz da sabedoria, uma união que está além das palavras. Pura, imutável, não-composta e onipresente – essa é a natureza da nossa própria mente. No Vajrayana, somos introduzidos nessas qualidades da mente vajra.

Todas as aparências surgem da energia dinâmica, ou exibição, da nossa natureza fundamental. As experiências podem surgir de dois modos. O reflexo do não-reconhecimento da nossa natureza fundamental surge como as experiências impuras dos três reinos do samsara. Embora possamos entender que a nossa natureza seja pura, essa não é a nossa experiência ordinária. Nós não vemos, sentimos, nem pensamos sobre as coisas de modo puro. Quando começamos a nos aplicar ao caminho espiritual, a pesquisar e investigar, a ouvir os ensinamentos, repetidamente contemplando e meditando sobre eles, começamos a experimentar um misto de percepções puras e impuras. Através da prática espiritual, podemos purificar nossos obscurecimentos e alcançar o fruto. Nossa natureza fundamental, intrinsecamente pura, torna-se completamente aparente como um corpo puro de sabedoria, a plena revelação da nossa natureza de sabedoria, como manifestação de aparências puras.

Porque não é essa a nossa experiência no presente? Todas as aparências ordinárias dos elementos – terra, fogo, água, vento, carne e osso – são em essência puras. Porém, da mesma forma que uma pessoa com icterícia vê uma montanha

nevada como sendo amarela, devido aos nossos obscurecimentos não vemos as coisas de forma pura. Essa percepção impura tornou-se um hábito profundamente entranhado. Através da prática espiritual, nossa falta de reconhecimento pode ser purificada e, então, como alguém curado de icterícia que consegue ver uma montanha nevada em sua cor branca, nós, como todos os budas, veremos as manifestações de pureza tal como são: o mandala puro e incomensurável da deidade. Tudo sempre foi dessa maneira, desde tempos sem princípio. Não é algo a ser criado, mas a cintilação das qualidades inerentes da nossa natureza fundamental.

A pureza da nossa natureza, imutável ao longo dos três tempos, passado presente e futuro, encontra-se agora obscurecida, como o sol pelas nuvens. Como resultado da infalível lei do carma de causa e efeito, e como reflexo das negatividades da mente, surgem infindáveis aparências de meio ambiente e de corpos.

Através das práticas de visualização do estágio de desenvolvimento do Vajrayana, nós nos exercitamos em reconhecer a natureza e as qualidades puras do meio ambiente, corpo, fala, e mente como sendo a terra pura, e o corpo, fala e mente da deidade. Isso purifica os obscurecimentos mentais que criam os reflexos mais grosseiros da falta de reconhecimento da nossa mente: os três reinos da experiência e as três portas que são o corpo, fala, e mente, transformando o nosso hábito de perceber de modo ordinário.

Através do estágio da consumação das práticas Vajrayana, purificamos os obscurecimentos mais sutis. A visualização que criamos é completamente desfeita na vacuidade, e repousamos sem esforço no estado desperto intrínseco que percebe a natureza da mente.

No Vajrayana, reconhecemos que todas as aparências fenomênicas possíveis do samsara e nirvana, desde tempos sem princípio, são iguais, sem separação nem distinção, dentro de sua natureza búdica completamente pura; da mesma forma que o são as aparências do sonho da noite dentro da verdade do sonho. Partindo dessa perspectiva ou visão, aplicamos método e sabedoria, práticas do estágio de desenvolvimento e da consumação; como remédios utilizados para tratar uma doença, elas purificam o hábito de nos apegarmos a esses reflexos temporários das nossas ilusões e enganos como sendo sólidos, e revelam nossa pureza intrínseca.

Com a aplicação repetida desses métodos, temos a realização plena do fruto: como nuvens que são sopradas para longe e revelam o céu imutável, nossos obscurecimentos se desfazem e a pureza primordial, sem começo, é revelada.

Nossa natureza fundamental é compreendida como inseparabilidade dos três kayas. As qualidades plenas e resplandecentes do dharmakaya aparecem como o samboghakaya para bodhisattvas do décimo grau, e como nirmanakaya para seres comuns, criando incessantes benefícios.

Dado que a pureza sem princípio, dharmata, é a nossa natureza, para torná-la manifesta não

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precisamos fazer nada com ela nem tirar nada dela, não precisamos incrementá-la nem diminuí-la. Antes, usando os métodos que compõem o caminho, simplesmente a revelamos tal como é. Então, a falta de compreensão dessa natureza, os hábitos ordinários e as visões enganosas da nossa mente que se refletem na experiência samsárica impura que chamamos realidade, desfazem-se completamente na natureza absoluta.

No Vajrayana, o caminho não é concebido como alguma coisa com a qual começamos e à qual acrescentamos certas causas e condições para chegarmos a uma coisa diferente. Utilizamos o estado desperto intrínseco que percebe a nossa natureza fundamental para revelá-la como fruto do caminho. Nós simplesmente removemos os obscurecimentos temporários que impedem a realização plena disso. Ao contemplar e meditar repetidas vezes sobre esse entendimento, fica fácil nos apoiarmos no Vajrayana para termos êxito em nossa busca espiritual.

A tradição Vajrayana reúne métodos de prática externos, internos e secretos. Quando fazemos práticas externas com deidades, o que, de fato, é a deidade? Em essência, a natureza do dharmata, a verdade da nossa própria mente e de todas as experiências – é a deidade. A deidade não é algo que inventamos ou criamos, algo que ainda não existia, mas sim, a manifestação espontânea da verdade, a exibição não de algo ordinário, mas de sabedoria. Essa é o mandala da mente de bodhichitta.

A natureza de todos os seres, de todos os fenômenos, é dharmata. Dentro da natureza absoluta não há distinção nem separação entre “eu” e “outro”. Tudo tem um só sabor. Todos os fenômenos surgem indissociados da natureza absoluta, e nela estão contidos. Nenhuma de nossas experiências – nem os elementos, nem os fenômenos, nem sequer uma única molécula – está além da natureza absoluta; nem mesmo o que chamamos de espaço básico. Ela é verdadeira e tudo permeia.

Se não reconhecermos essa natureza, vivenciamos todos os fenômenos e nós mesmos como diferentes da deidade. Por exemplo, visto que uma natureza vazia permeia totalmente o sonho da noite, não há, na realidade, qualquer separação entre nós mesmos e a terra, o céu, a água. Quando acordamos, vemos que todas as experiências incessantes que surgiram durante o sonho foram apenas a exibição da mente, vazias, porém, manifestas. No entanto, se não reconhecemos que estamos sonhando, no contexto do sonho tudo parece ser, em si mesmo, verdadeiro e independente.

De modo semelhante, da perspectiva da mente ordinária, percebemos diferenças entre o corpo do dia e o da noite, entre nós e os outros, entre alguém que nos ajuda e alguém que nos cria dificuldades. No entanto, no nível da verdade absoluta, ninguém nunca veio, nem vai. Tudo é exibição da mente. Se não conhecemos a natureza das nossas experiências, se não conhecemos a deidade, então nos vivenciamos como separados da deidade; essa falta de

conhecimento nos torna prisioneiros do carma e do obscurecimento. Se tivermos realização da nossa natureza como sendo a deidade, todos os limites serão liberados, como paredes no espaço, e teremos a realização do corpo vajra. Ao conhecermos nossa natureza e mantermos o reconhecimento dela, seremos capazes de revelar nossa natureza como sendo a deidade e ter plena realização dessa revelação.

Quando alcançamos a realização do dharmakaya, obtemos benefícios para nós mesmos, sendo que a capacidade incessante de beneficiar os outros surge como o kaya da forma. Os seres são auxiliados de forma incomensurável pelas qualidades de grande conhecimento, amor, bondade e energia espiritual; também pela força da grande sabedoria e pelas preces de aspirações que são acumuladas no caminho da iluminação. Essas manifestações, para benefício dos seres, surgem como a aparência das deidades pacíficas e iradas acompanhadas de seus séqüitos – por exemplo, a forma pacífica de Manjushri com o aspecto irado de Yamantaka, ou a forma pacífica de Vajrasattva com o aspecto irado de Vajrakumara. Nessas manifestações de sabedoria pura, vindas da natureza da mente, surge o corpo – a forma e a cor da deidade; a fala – o mantra da deidade; e a grande mente – a inseparabilidade da vacuidade e compaixão. A deidade é uma fonte infalível de benefícios, capaz de conduzir os seres do samsara à iluminação.

Pelo fato de vivermos presos aos nossos obscurecimentos e não compreendermos nossa natureza como sendo igual à da deidade nós nos exercitamos nesse reconhecimento, criando a visualização e recitando o mantra da deidade, fazendo oferendas e orações. Desse modo, recebemos as bênçãos daqueles que alcançaram a iluminação. Essa é a prática da deidade externa.

Na categoria das práticas da deidade interna, visualizamos dentro do nosso próprio corpo, que toma a forma da deidade, o canal central, puro e sutil, dentro do qual se movimenta o vento da sabedoria ou energia sutil (prana), e que contém as esferas de sabedoria ainda mais sutis, chamadas bindus ou tigles. Essa é a deidade interna.

Embora a nossa experiência impura do corpo, fala e mente convencionais apareça como manifestação do vento cármico, o mandala da deidade se conserva dentro dos canais do nosso corpo sutil. Por meio da visualização desse mandala, do trabalho com o movimento dos ventos sutis e da recitação de mantras, revelamos a nossa natureza como a deidade, revelamos a bodhicitta que está além dos extremos, a grande felicidade imutável que reside no coração.

Nas práticas da deidade secreta, reconhecemos que todo o samsara e o nirvana sempre foram iguais dentro do espaço básico que está além dos extremos e que não há nada que não possa ser tornado melhor ou pior; que a natureza pura de nossa mente sempre foi uma sabedoria espontânea que não teve nascimento. Com essa compreensão, não há necessidade de colocarmos nossas esperanças em uma deidade externa, nem de fazermos esforço. Através do método budista mais

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profundo, chamado Grande Perfeição (Dzogchen / Ati-Yoga), alcançamos liberação sem esforço, espontaneamente, apenas nos conservando dentro do reconhecimento da natureza absoluta na qual tudo está contido, da qual todos os fenômenos surgem de forma indissociada, como o oceano e suas ondas, ou o sol e seus raios.

Porque há tantos caminhos diferentes? Em primeiro lugar, o Buda ensinou muitos métodos. Além disso, diferentes lamas possuem diferentes tipos de experiência e de conhecimento; os alunos possuem graus variados de capacidade, e assim, requerem métodos diferentes. Alguns sentem ligação maior com as práticas da deidade externa, outros com as práticas da deidade interna, e ainda outros com o nível secreto da prática.

Pode parecer muito fácil simplesmente reconhecer a deidade, nossa própria essência búdica, e nos conservarmos dentro desse reconhecimento. Porém na realidade, pelo fato de estarmos tão afundados em esperança e medo, apego e aversão, isso é muito difícil. Nós temos uma infinidade de conceitos e hábitos, e quando muitas experiências diferentes se apresentam, é muito difícil mantermos reconhecimento da sua natureza. É por isso que quando começamos as práticas no Vajrayana, nós nos focamos na criação e na dissolução da visualização; então trabalhamos com as práticas yogas internas e, gradualmente, ingressamos no estagio de consumação isento de esforço e nas práticas da Grande Perfeição.

Os ensinamentos do Dharma do Buda são como um jardim transbordante de flores de muitos matizes e formatos. Não é necessário escolher apenas um método, nem é necessário que uma só pessoa tente aplicar todos eles.

Se você é uma pessoa raivosa, é muito eficaz fazer prática de visualização usando a ira como antídoto para cortar a raiva que existe em sua mente. Nas práticas com deidades iradas, visualizamos seres irados, manifestações de sabedoria, com duas, quatro ou muitas pernas, pisoteando seres negativos, soltando faíscas e brandindo armas. Aqueles que são destruídos não são seres externos, mas nossos próprios venenos, nossos verdadeiros inimigos e demônios. O apego ao eu é encarnado por Rudra, um ser muito poderoso, o “dono” do samsara, que é reprimido por seres que personificam a sabedoria. Em todas essas imagens iradas, assistimos ao desenrolar de uma guerra interna: a sabedoria destrói a raiva, o apego e a ignorância. Uma pessoa raivosa conquista e libera seus pensamentos raivosos e negatividades com métodos irados de Maha Yoga.

Se você manifesta desejo muito intenso, em vez de abandoná-lo pode fazer dele seu caminho, trabalhando com os canais e ventos do corpo sutil, bem como as fontes de calor e prazer internos, treinando-se com as energias de seu corpo. As deidades representadas em união com suas consortes não correspondem ao desejo ordinário nem ao relacionamento homem/mulher convencional, mas sim, à inseparabilidade de vacuidade e grande êxtase. No nível de união

interna, os canais sutis do corpo são masculinos e os ventos ou energias sutis são femininos; o calor interno é feminino e o êxtase interno, masculino. A união dos dois produz êxtase não ordinário, mas inexaurível. Através do desejo, o praticante de Anu Yoga se conecta com o êxtase, compreendendo e vivenciando a inseparabilidade de grande êxtase e vacuidade – sabedoria. Por meio dessa prática, purificamos carma, acumulamos mérito e revelamos sabedoria.

Os caminhos de Maha Yoga e Anu Yoga requerem esforço, diligência e consistência. Aqueles cujo veneno predominante da mente é a ignorância e que são preguiçosos praticam um terceiro caminho, a Grande Perfeição ou Ati Yoga. Nesse caminho, repousamos sem esforço no reconhecimento sutil da natureza da mente. Ele é chamado o caminho do esforço sem esforço. Todos os ensinamentos e níveis de prática que levam até à Grande Perfeição trabalham com conceitos ordinários, inteligência ordinária e esforço ordinário. Na Grande Perfeição, porém, o estado desperto é, ele próprio, o caminho. Os praticantes da Grande Perfeição utilizam o método da deidade absoluta, seu próprio estado desperto intrínseco.

Todos esses três caminhos purificam obscurecimentos. Qual deles vamos usar é algo que dependerá do veneno predominante em nossa mente: ele será a porta para a prática que estará mais próxima de nós. Aquele que for o mais forte para nós e o mais familiar passa a ser o meio pelo qual removemos todos os obscurecimentos da mente.

Através dos vários métodos do caminho Vajrayana, trazemos três elementos para nossa prática: a purificação dos obscurecimentos, o amadurecimento da mente e o fortalecimento de suas qualidades positivas. Por esses meios, temos condições de, rapidamente, purificar a experiência samsárica e realizar o fruto que está além do samsara e do nirvana: os três kayas, nossa natureza fundamental na qual tudo está incluído. Através desses métodos, a sabedoria não nasce em nós – seria mais exato dizer que ela se torna óbvia, apoiando e amadurecendo nossa prática. (...)

SOBRE A NATUREZA DA MENTE

Ao realizar a natureza da mente, descobrimos que estamos no estado inseparável da presença [rigpa] e da vacuidade. Com esta realização, tomamos consciência de que permanecemos na essência do espaço. Ao permanecer na natureza da mente que se funde com o espaço e sem identificação com o que surge no espaço afeta nossa vida. Não há o que defender, nenhum eu carecendo de proteção porque nossa própria natureza é o espaço que tudo acomoda. Ninguém pode alterar o espaço. Uma opinião, uma imagem estão a mercê de ataques e podem ser atingidas, mas o espaço em que existe a opinião ou a imagem é indestrutível. Ele não envelhece, não desenvolve, não deteriora,

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não nasce e não morre. A confiança e o destemor são frutos desta realização. Apesar do incessante surgimento de vivências, permanecemos fixados no espaço imutável em que surgem. Não será necessário possuí-lo ou buscá-lo, ele já está presente, além da esperança e do medo. Quando realizamos a natureza da mente, compreendemos a perfeição espontânea de todos os fenômenos e a pureza primordial é realizada. O praticante de Dzogchen tenta primeiro compreender este espaço da natureza da mente. Depois ele/ela precisa reconhecê-lo através da meditação e das instruções do mestre e a seguir conectar-se a ele. Finalmente, o praticante se integra com o espaço, que é o que quer dizer “permanecer na natureza da mente”. Não é que o praticante se torne algo distinto. Precisamos recorrer ao artifício de um desenvolvimento para expressar o caminho, sobre como atingir o nosso objetivo. Na verdade, porém, o objetivo não existe e não há o quê desenvolver. Trata-se de despertar, reconhecendo o que já é. Quando o espaço da natureza da mente é realizado, ainda existe um fluxo. Esta é a luminosidade; existe movimento, sensação, animação. A vivência é mais rica, e não mais pobre. As qualidades surgem sem interrupção. Compaixão, tristeza, raiva ou amor podem surgir, mas o praticante não se desliga do espaço em que se originam.

Extraído do livro: “A CURA PELA FORMA, ENERGIA E LUZ” por Tenzin Wangyal Rinpoche

A natureza da mente não é um lugar para onde se vai como sujeito e se chega como se fosse um objetivo. Não há um lugar para onde se vá. Não há um lugar que se visite. Não há uma forma a ser vivenciada. O que quer dizer “não há forma”? Se esperarmos ver a forma, não veremos nada—é garantido. Estamos tão condicionados com a idéia de ver alguma coisa, em alcançar algo lá. É muito, muito difícil livrar-nos desta mente, não ter qualquer expectativa. A vivência da natureza da mente é apenas uma vivência. Não é a natureza da mente. Se vejo uma xícara posso dizer, “é uma xícara” porque é o que vejo. Mas sabemos que a natureza da mente não pode ser vista como é vista uma xícara. Não há nada para ser visto. Assim, não se pode dizer de coisa nenhuma, “esta é a natureza da mente”. Podemos nos encontrar neste espaço quando causas e condições estão presentes, quando vencemos a noção mais sutil de um sujeito que constata. Ali, ninguém está a procura da natureza da mente; ninguém interessado em olhar, ninguém está interessado em constatar a natureza da mente. Se for capaz de desenvolver o corpo correto, a energia correta e a mente correta não haverá como não vivenciar a natureza da mente. Como

sempre dizemos, ‘Não existe poder ou força que possa deter o resultado quando as causas e condições estão presentes’.

From “Healing With Form, Energy and Light” by Tenzin Wangyal

Rinpoche. Edited by Mark Dahlby. Ithaca: Snow Lion Publications,

2002. Available at Ligmincha's Bookstore.

EDITED EXCERPTS FROM ORAL TEACHINGS GIVEN BY TENZIN WANGYAL RINPOCHE, DECEMBER, 2002:

QUALIDADES DA NATUREZA DA MENTE

(Extraídos dos escritos de dois mestres de budismo)

From “The Heart Treasure Of The Enlightened Ones” by Patrul Rinpoche

and Dilgo Khyentse Rinpoche:

Extraído do livro “O tesouro do coração dos iluminados” por Patrul Rinpoche e Dilgo Khyentse

Rinpoche:

“Não adianta procurar, fora, a natureza suprema da mente – ela está dentro. Quando falamos de ´mente´ é importante descriminar entre a mente comum, referindo-se às incontáveis cadeias de pensamentos que criam e perpetuam o estado de delusão, ou como aqui, sobre a natureza da mente como fonte de todos estes pensamentos – o estado claro e vazio da presença (rigpa) totalmente destituída de delusão”. “Para ilustrar esta diferença o Senhor Buda ensinou que existem duas maneiras de meditar – a primeira, como um cão e a outra, como um leão. Quando se joga um pedaço de pau a um cão, ele corre para apanhá-lo, mas quando se joga um pedaço de pau a um leão, ele corre na direção de quem atirou. É possível jogar muitos pedaços de pau a um cão, mas a um leão só se atira um. Quando completamente bombardeados por pensamentos, aplicamos antídotos a um e depois ao seguinte, o trabalho é vão. Este exemplo é como o do cão. O exemplo do leão é melhor, devemos procurar de onde os pensamentos surgem, o vazio da presença (rigpa), em cuja superfície os pensamentos se movem como ondulações sobre a superfície de um lago, mas cuja profundidade é o estado imutável de completa simplicidade”.

From “Dzogchen: The Self-Perfected State” by Namkhai Norbu Rinpoche:

Extraído de “Dzogchen: O estado de auto perfeição” por Namkhai Norbu Rinpoche:

“A mente é o mais sutil e recôndito aspeto da nossa condição relativa, mas não é difícil notar a sua presença. Basta observar os pensamentos e como eles nos enredam no seu fluxo. Se perguntarmos, ‘O que é a mente?’ a reposta é o fluxo ininterrupto dos pensamentos que surgem e desaparecem. Ela tem a capacidade de julgar, de raciocinar, de imaginar, etc. dentro dos limites de espaço e tempo. Mas, além da mente, além dos pensamentos, existe o que se denomina ‘natureza da mente’, o estado verdadeiro da mente, além de

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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quaisquer limitações. Como está além da mente, o que fazer para nos acercarmos de uma compreensão a seu respeito?” “Tomemos, por exemplo, o espelho. Olhamos no espelho e vemos refletidas as imagens de tudo o que está diante dele, mas não vemos a natureza do espelho. Mas o que significa a ‘natureza do espelho’? Quer dizer a capacidade de refletir, descrita como a sua claridade, transparência, pureza, limpidez, condições indispensáveis para que os reflexos possam manifestar-se. A natureza do espelho não é algo que se veja, e a única forma de concebê-la será através das imagens refletidas no espelho. Da mesma forma, apenas conhecemos e vivenciamos o que esteja relacionado ao corpo, à voz e à mente. Contudo, é assim mesmo que somos levados a compreender a sua verdadeira natureza.”

“Dzogchen: The Self-Perfected State” by Namkhai Norbu Rinpoche.

Translated from the Italian by John Shane. Edited by Adriano

Clemente. New York: Arkana, 1989. Available at Ligmincha's

Bookstore.

Traduzido para o português por Tenzin Namdrol

A MENTE E A NATUREZA DA MENTE.

A descoberta ainda revolucionária do budismo

é que a vida e a morte estão na mente, e em nenhum outro lugar. A mente é revelada como a base universal da experiência-criadora da felicidade e criadora do sofrimento, criadora do que chamamos vida e do que chamamos morte.

Há muitos aspectos da mente, mas dois se destacam. O primeiro é a mente comum, chamada pelos tibetanos de sem. O mestre a define “aquilo que possui uma consciência que discrimina, aquilo que possui um senso de dualidade - que agarra ou rejeita alguma coisa externa - isso é a mente. Fundamentalmente é aquilo que pode se relacionar com um “outro” - com “alguma coisa”, que é percebida como diferente daquele que percebe”. Sem é a mente discursiva, dualista, pensante, que só pode funcionar em relação a um ponto de referência externo, projetado e falsamente percebido.

Desse modo, sem é a mente que pensa, trama, deseja, manipula, que se inflama de raiva, que cria e se entrega a ondas de emoções e pensamentos negativos, e que tem que continuar afirmando, validando e confirmando sua “existência” por meio da fragmentação, conceitualização e solidificação da experiência. A mente comum fica incessantemente mudando, presa impotente das influências externas, das tendências habituais e dos condicionamentos. Os mestres comparam sem a chama de uma vela diante de uma porta aberta, vulnerável a todos os ventos circunstanciais.

Vista de certo ângulo, sem é vacilante, instável, ávida, e se envolve infinitamente nas coisas dos outros; sua energia se consome projetando-se para o exterior. Penso nela as vezes como o feijão saltador mexicano, ou como o macaco pulando irrequieto de galho em galho de uma árvore. Vista por outro lado, entretanto, a mente comum possui uma estabilidade falsa e amortecida, uma inércia presunçosa e auto protetora, uma calma de pedra em seus hábitos arraigados. Sem é astuciosa como um político corrupto, é cética, desconfiada, especialista em truques e trapaças, “engenhosa” - como escreveu Jamyang Khyentse – “Nos jogos do engano”. É dentro da experiência dessa caótica, confusa, indisciplinada e repetitiva sem, dentro dessa mente comum, que vez após vez nós passamos por mudança e morte.

E existe a natureza mesma da mente, sua essência mais profunda, que é absoluta e intocada pela mudança ou pela morte. No presente ela está oculta dentro de nossa própria mente, nossa sem, envolvida e obscurecida pela disparada correria mental dos nossos pensamentos e emoções. Tal como as nuvens podem ser alteradas por uma forte rajada de vento, revelando o sol brilhante no céu aberto, assim também, sob certas circunstâncias especiais, alguma inspiração pode revelar-nos vislumbres dessa natureza da mente. Esses vislumbres têm diferentes profundidades e graus, mas cada um deles para alguma luz de entendimento, significado e liberdade. Isso porque a natureza da mente é a própria raiz da compreensão. Em tibetano damos a ela o nome de Rigpa, uma consciência primordial, pura, original, que é ao mesmo tempo inteligente, cognitiva, radiante e sempre desperta. Poder-se-ia dizer dela que é o próprio conhecimento do conhecimento.

Não se cometa o erro de imaginar que a natureza da mente é uma exclusividade da nossa mente. Ela é de fato natureza de tudo. Nunca é demais repetir que realizar a natureza da mente é realizar a natureza de todas as coisas.

Os santos e místicos ao longo da história sempre “adornaram” suas realizações com diferentes nomes, a que atribuíram diferentes faces e interpretações, mas o que eles basicamente experimentaram foi a natureza essencial da mente. Cristãos e judeus a chamam de “Deus”, os hindus referem-se ao “Eu”, a “Shiva”, a “Brahma” e a “Vishnu”; os místicos sufis falam de “Essência oculta”, os budistas na “Natureza Búdica”. No coração de todas as religiões existe a certeza de que há uma verdade fundamental, e de que esta vida é uma oportunidade sagrada para evoluir e compreendê-la melhor.

Quando falamos Buda pensamos naturalmente no príncipe indiano Sidarta Gautama, que obteve a iluminação no sexto século antes de Cristo, e que ensinou o caminho espiritual seguido por milhões de pessoas em toda a Ásia, hoje conhecido como budismo. Buda, no entanto, tem um significado muito mais profundo. Refere-se a uma pessoa, qualquer pessoa, que despertou completamente da ignorância e abriu-se para o seu vasto potencial de sabedoria. Um Buda é alguém que terminou definitivamente com o sofrimento e a frustração, e

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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descobriu uma felicidade e paz permanente e imortal.

Mas para muitos de nós, nesta era de ceticismo, esse estado pode parecer uma fantasia ou um sonho, uma conquista muito além do nosso alcance. É importante lembrar sempre que o Buda era um ser humano, como você ou eu. Ele nunca reivindicou divindade; apenas sabia que tinha natureza búdica, a semente da iluminação, e sabia que todo mundo também a tem. Essa natureza búdica é simplesmente o direito inato de todo ser senciente, e eu sempre digo: “Nossa natureza búdica é tão boa quanto a de qualquer Buda”. Essa foi a boa nova que o Buda trouxe para nós de sua iluminação em Bodhgaia, que tantas pessoas consideram tão inspiradora. Sua mensagem - que a iluminação está ao alcance de todos - traz consigo uma enorme esperança. Através da prática, todos nós também podemos despertar. Se isso não fosse verdade, incontáveis indivíduos até os nossos dias de hoje não teriam atingido a iluminação.

Diz-se que quando o Buda se iluminou, tudo o que ele queria era mostrar aos demais a natureza da mente, e compartilhar integralmente o que havia realizado. Mas em sua infinita compaixão ele também viu, com tristeza, como seria difícil compreendermos.

Pois embora tenhamos a mesma natureza interior do Buda, não a reconhecemos de tão envolvidos e encerrados em nossa mente individual comum. Imagine uma jarra vazia. O espaço de dentro é exatamente o mesmo que o espaço de fora; apenas as frágeis paredes da jarra separam um do outro. Nossa mente búdica está encerrada dentro das paredes da mente comum. Mas quando nos tornamos iluminados, é como a jarra se quebrasse em pedaços. O espaço “interno” se funde imediatamente com o espaço “externo”. Eles se tornam um só: nesse exato momento percebemos que nunca estiveram separados nem foram diferentes; na verdade, foram sempre o mesmo.

Do O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER - Sogyal Rinpoche

Todos têm a possibilidade da liberdade

completa que não gozamos hoje. Neste estado atual, ainda estamos na experiência de sofrimento. Enquanto tivermos a mente consciente, a experiência de iluminação não estará separada da mente iluminada. Devido ao dualismo, não somos capazes de reconhecer isto.

A NATUREZA DA MENTE E A PRÁTICA DO DHARMA Jamgon Kongtrul Rinpoche

A fixação dualística separa sujeito e objeto.

Nossa qualidade básica é o vazio, a ausência de forma, qualidade ou ponto de referência. Quando não reconhecemos a característica de nossa mente, ficamos presos à mente dual.

Devido à característica da mente vazia, existe

o surgimento não-obstruído da mente. Esta compreensão não-obstruída é que se chama de clareza ou luminosidade da mente. Não reconhecendo a existência não-condicionada da mente, temos a noção de "objeto" ou "outro" e nos fixamos nisto. A existência da mente é livre de surgimento e desaparecimento, de obstruções e sensações, e de fixação em um ponto. Assim, a natureza da mente é a inseparabilidade entre luminosidade e vazio.

Quando falamos em termos de sabedoria

suprema ou verdade absoluta, falamos desta inseparabilidade. Não estamos falando de nada fora da própria mente. Tal natureza é a natureza de todos os fenômenos. Assim, focando o ponto de vista confuso, vemos imagens externas e jogos projetados pela mente.

Do ponto de vista da onisciência da mente,

ter a compreensão da mente significa ter-se a compreensão de todas as coisas. Mas como já mencionei, não conseguimos reconhecer esta natureza da mente. O não-reconhecimento da natureza da mente, que está livre de ponto de referência, condicionamentos, limitações, deve-se ao apego dualístico.

A causa principal de nossa confusão são nossas tendências habituais e o apego aos três venenos: ignorância, raiva-ódio, desejo-apego.

A ausência de entendimento da mente é a

ignorância. Em oposição ao entendimento da luminosidade e vazio, temos o “ego”, o “outro” e os “objetos”. Isto é ignorância. Assim, temos a visão distorcida e pervertida da realidade. É devido à ignorância (eu e outro, coisas), que originam-se os demais venenos, raiva-ódio e desejo-apego. O apego a eu, meu e coisas-minhas leva à agressão aos outros lá fora. Este é o mundo pelo qual a mente funciona. A mente apegada e os objetos são o mesmo. Chama-se de dupla fixação dualística a noção de ego próprio e ego dos outros e das coisas.

Usualmente, a mente é internamente influenciada e condicionada por estes três venenos. Assim vivemos.

Somos cativados magicamente por estas três

tendências. Assim nossa mente opera, e assim subjuga nosso corpo, gestos e fala à escravidão. Deste modo, nosso corpo, mente e fala capitulam aos três venenos, havendo a expansão destas ações e energias-de-hábito. Isto é o que se diz não ter controle sobre nossa mente.

Ter controle é reconhecer a natureza da

nossa mente que fica sempre ocupada em nossas tendências habituais.

A prática do Dharma é o afastamento ao

apego egoísta, ou seja, é a própria libertação. Mas, devido a estarmos apegados ao egoísmo e dualismo, não há esperança de libertação da confusão e sofrimento.

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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No treinamento não deve haver ego A prática do Dharma não é algo superficial

como ter uma determinada experiência sensorial, etc., isto também é apego.

Visões ou sensações, fora do comum ou não, não são o objetivo. Isto seria infindável e, conduzido pela insatisfatoriedade, levaria a incessantes buscas sensoriais. Assim, a profundidade do ensinamento do Dharma dirige-se à natureza-raiz dos problemas da nossa mente.

Para que possamos ter a condição de

libertarmo-nos dos padrões habituais, temos que superar vários estágios do caminho.

Ao início, temos o Teravada, onde a ênfase é disciplina, estabilidade da mente, plena atenção e a inexistência de um ego pessoal. No Mahayana a ênfase é mais abrangente, é onde se vê a ausência de ego de todas as coisas também. O termo “yana” significa elevar e sustentar, então “Mahayana” significa a grande elevação, a grande sustentação e transporte para cima. Sua responsabilidade é também auxiliar a sustentação dos outros. O ponto básico é a experiência de bondade amorosa e compaixão. No treinamento não pode haver ego.

Há muita literatura que evidencia a

compreensão da ausência de ego de coisas e seres, a dupla-ausência-de-ego. No entanto, sem a vivência não adianta a compreensão intelectual. A crença não é útil, sem a vivência isto também transforma em apego egóico.

É necessária a abordagem analítica, e então

se entende e se tem confiança, mas aí há apego ao entendimento e ele não produz resultados. Mesmo após o procedimento de análise, os padrões habituais de comportamento e pensamento continuam a funcionar. O benefício é relativo e temporário. O benefício real só pode vir pela experiência da ausência-de-ego.

Atualmente, tudo o que fazemos é

problemático, pois mesmo que traga benefício relativo, traz acúmulos de tendências. O essencial é então bodhicita, a união da prática da mente altruísta e totalmente abrangente de todos os seres, com a prática da compaixão que é a consciência da dor e das causas da dor em todos os seres sensoriais.

Cultivar bodhicita não é encontrar ou criar o

que não se tem. Temos o potencial da bondade amorosa. Temos esta habilidade, mas desenvolvemos tais hábitos contrários que isto fica oculto. Aí a razão de cultivar a compaixão amorosa.

Desenvolvendo bodhicita, percebe-se que há a bodhicita relativa e a bodhicita absoluta. Na bodhicita relativa existe objeto e esforço, há aspiração, intenção, ação.

Aspiração e intenção ocorrem quando a

mente tem a compreensão de ser um indivíduo e de mover-se para a felicidade dos outros. E ter a aspiração de eu ser capaz de levar os outros à

iluminação e liberdade. Podemos e devemos ter esta aspiração, desde que este coração quente não se motive de uma forma apenas intelectual.

Ao olharmos os outros, devemos lembrar o

que vemos quando olhamos a nós mesmos. Não queremos sentir conflito nem sofrimento e, como os outros, também queremos felicidade. O seres sensoriais são caracterizados por isto, são os que se movem na busca da felicidade, sensações, etc. Não sabemos como nos conduzir com liberdade frente a isto, nem eles. Estamos todos imaginando que com a mente dualística podemos fazer progresso, mas, em verdade, terminamos por apenas trazer mais sofrimento.

Quanto maior for a bodhicita da aspiração, maior será a bodhicita da ação.

Ação-bodhicita é tudo o que se fizer de benefício aos outros dentro de uma visão abrangente. Todas as ações são voltadas a esta ou aquela pessoa, mas têm resultados múltiplos e abrangentes.

Normalmente, nossas vidas são regidas por

medo e pânico. A ação dos bodhisatvas, os que praticam

bodhicita, envolve as seis perfeições, os seis paramitas: generosidade (Dana), disciplina (Sila), paciência (Kshanti), zelo (Virya), meditação (Dhyana-Samadi) e a sabedoria (Prajna).

Assim, temos que treinar nossa mente para

juntar o aspecto de ação e aspiração de bodhicita em nossa vida. Na vida diária, através da atenção plena e prática formal, chega-se aí.

Treinando a bodhicita relativa chega-se à

bodhicita absoluta. Atualmente só podemos praticar a bodhicita relativa e isto envolve esforço, empenho e por isto é limitada. Quando se tem experiência de bodhicita automática, esta é sem esforço.

A bodhicita absoluta é espontânea e sem

esforço, é a experiência conjunta do vazio da mente incondicionada e de compaixão. Budhas e bodhisatvas têm a experiência de bodhicita, e via isto é que podem operar sem esforço e sem causa-e-efeito, para auxiliar os outros. Para que possamos ajudar ao máximo a nós e aos outros, devemos cultivar o coração bondoso e amoroso.

Ser capaz de estender a mente que cuida os

outros, isto é o que traz os maiores benefícios. Bondade é o maior benefício, hoje, no futuro, para nós e para todos os que forem afetados por ela.

Normalmente, nossas vidas são regidas pelo

medo e pânico, e temos a impressão que a coragem resolve; ela mesma, no entanto, é o medo que temos. A verdadeira ausência de medo só surge via bondade amorosa incondicionada e compaixão. Quando há total e incondicionada bondade amorosa, isto é a libertação do medo e da ansiedade.

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Bodhicita é o caminho da paz Todo nós deveríamos cultivar sempre um

coração bondoso e amoroso, pensando melhor sobre nós mesmos e sobre os outros, doando-nos aos outros.

A base das boas ações é o bom coração,

essencial para o verdadeiro espírito de desenvolvimento, e base para o duplo benefício de si e dos outros. Devido à ausência desta bondade o desenvolvimento espiritual não leva à essência. Perde-se aí o verdadeiro aspecto do caminho espiritual. Mesmo que não se entenda tudo o que foi falado aqui, as pessoas conscientes devem entender que isto é o melhor para nós e para os outros. Como o ser humano consciente tem a capacidade de discernir, deve ser capaz de chegar à bondade genuína.

Para trazer a bondade à nossa existência,

tanto no nível pessoal como no nível planetário, falamos sempre de nossa preocupação com a paz e harmonia, e aqui, paz e harmonia não devem ser entendidas como objetos de acordos entre partes em conflito, mas temas pessoais de cada um. Bodhicita é o caminho da paz e podemos despretensiosamente gerar harmonia ao redor - bondade amorosa que é levada aos outros sem expectativas.

Para isso temos que começar por nós

próprios e pela forma adequada, pois, não fazemos assim, acusamos os outros pela ausência de paz e esperamos que a paz nos chegue externamente e que nós sejamos cobertos de paz. Isto nos trará não “paz”mas “pedaços” (risos...). (n.e.: Sua Eminência aqui brincou com o som das palavras da língua inglesa “peace” e “pieces”.)

Essencial é então a transmissão, a iniciação,

como meio de passar o conhecimento, permissão de prática e bênçãos; é a forma de comunicar apoio e estímulo para que todos sigam este caminho.

Perguntas da platéia

-Frente a um mendigo bêbado que pede dinheiro, como devemos agir?

O tipo de motivação é o que importa. O efeito depende da motivação de sua ação. Boa motivação somada ao discernimento é essencial. Discernimento é entendermos o absoluto e não o relativo. A pureza da motivação é o ponto.

-Os Tulkus são reencarnação de quê? Sempre que se é alguém realizado e

encarnado, não ocorre isto porque se é um ego. Ego significa apego à noção de que algo realmente existe, e isto (um ego) não tem existência própria; não é pela existência de um ego que há reencarnação.

No ensinamento budista não se diz que o ego tem que ser eliminado, mas se nega sua própria existência absoluta. Isto significa libertarmo-nos da falsa visão que alimentamos. Não é uma posição, mas uma atitude de visão. Os

seres nascem involuntariamente por condicionamentos a suas tendências habituais; a distorção predominante se tornará sua realidade. É devido à continuidade da consciência e carma que você nasce. Já o renascimento dos seres iluminados é voluntário, não depende do carma, a escolha é consciente e deliberada.

A importância de tomar refúgio

(Palavras do venerável Kempo Kata Rinpoche, Rio de Janeiro, dezembro, 1988)

Tomar refúgio com o Budha é como

estabelecer um relacionamento com um médico. Um médico competente pode ajudá-lo. O ensinamento, o Dharma, é o medicamento, a Sangha são os enfermeiros que sabem quando e como se deve tomar o remédio e ajudam para que seja efetivamente usado. Nenhum deles é necessário após a iluminação ou cura. Nem o Budha, nem o Dharma, nem a Sangha são mais necessários então. Na ocasião do refúgio assumimos uma disposição muito importante, a de que desde esse momento até a iluminação completa, faremos esforços e permaneceremos refugiados no Budha, da mesma forma que uma semente até que se abra em flor. A motivação para isso é capacitar-se a prestar benefício a todos os seres sem exceção e não apenas para seu benefício temporário, mas para o bem-estar absoluto. Aí a finalidade de tomar refúgio. Há no refúgio um sentido de alegria, de que a vida dos seres pode ser preciosa e significativa, particularmente por receber os ensinamentos de um mestre tão realizado como Sua Eminência Jamgon Kongtrul Rinpoche. Vocês têm grande fortuna, esta situação não ocorre por acaso, vocês a merecem, têm o mérito necessário, seja através de contatos anteriores com o Dharma, seja através de virtudes meritórias cármicas.

(*) Esta é a transcrição da terceira palestra proferida por Sua Eminência Jamgon Kongtrul

Rinpoche III no Rio de Janeiro, em dezembro de 1988, a convite da Ordem Monástica Karma Teksum

Chohorling. Sua fala foi traduzida para o inglês por intérprete tibetano, sendo transcrita e vertida

para o português pela e equipe de Bodhisatva e revisada por Anila Karma Tsultrim Palmo.

A ILUMINAÇÃO É A META A MEDITAÇÃO É O CAMINHO

Você é o Buda, você é a verdade.

Então porque não sente isso? Por que não conhece isto muito bem?

Por que existe um véu no caminho, que é o apego às aparências, como por exemplo, a

convicção de que você não é Buda, de que você é um indivíduo separado, um ego.

Senão puder remover este véu de uma só vez, então ele terá que ser dissolvido gradualmente.

Se você conseguir enxergar através dele,

totalmente, mesmo que apenas por um instante, então poderá fazer isso novamente a qualquer

momento.

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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Onde quer que esteja, o que quer que esteja diante de você, de qualquer forma que as coisas

se apresentem; simplesmente retorne à esta clareza e abertura espaçosas e sempre presentes.

Kalu Rinpoche

Quando praticamos a meditação, o que

fazemos equivale a descascar as camadas da persona. Nós continuamos a descascando, camada por camada, cada vez mais, em direção ao centro, trazendo à superfície e soltando, um após o outro, os muitos rostos que apresentamos ao mundo e a nós mesmos. Se nós não somos os nossos pensamentos, então quem somos? Quem é esta pessoa que tenta meditar? Quem é o experimentador que experimenta? é nossa mente, nosso corpo, nossa alma, nosso espírito? A grande questão é esta, a questão da identidade.

A maioria dos meditadores traz consigo uma aspiração comum: experimentar as coisas diretamente como são, no momento presente. Agora é o único lugar onde podemos estar. Tanto as lembranças quanto os planos ocorrem no momento presente. Na meditação nós voltamos sempre a este presente que é o único, despertando gradualmente para a verdade de quem e do que somos. Nós sabemos que não podemos fugir, que precisamos voltar sempre. Respiramos, praticamos a atenção plena e descascamos camadas e mais camadas. Cada vez mais fundo. Vendo os nossos estados mentais, soltando o que nos prende, desmascarando, descascando, até finalmente chegar ao estado original, não processado, o estado natural, o ser genuíno. Esta é a natureza búdica, a natureza verdadeira - a mente natural. O Buda interior está desperto.

Simplesmente ser - em meio a todo o fazer, o atingir e o vir-a-ser. Este é o estado natural da mente, nosso estado original e fundamental de ser. É a natureza búdica autêntica. É como o reencontrar o nosso equilíbrio.

Mente grande / mente pequena. Para nos ajudar a compreender que não

somos aquilo que pensamos, os ensinamentos de Buda fazem uma distinção entre o que é chamado de Grande Mente, ou Mente Natural, e a mente “pequena” ou mente comum e iludida. A mente pequena ou iludida é a mente habitual, barulhenta, imprevisível e constantemente fora de controle. É a nossa mente finita, conceitual, racional, discursiva, pensante. A mente iludida tem muitos impulsos e necessidades, ela deseja muitas coisas. Está quase sempre confusa, atravessa flutuações constantes de ânimo e é muito inquieta. Fica com raiva, deprimida ou hiper-ativa. Alguns textos tradicionais antigos chamam esta mente pequena de “mente de macaco”, e a descrevem como um cavalo selvagem e indomável, ou então como um pequeno macaco simpático, mas totalmente caótico, pulando de árvore em árvore, procurando satisfação nos lugares errados. O que se quer dizer com Grande é a natureza essencial da

mente. É isto que chamamos de natureza búdica ou mente natural. Esta é a nossa verdadeira natureza - a consciência pura e ilimitada que reside no coração, e que é parte integrante de todos nós. O Buda a descreveu como imóvel, clara, lúcida, vazia, profunda, simples (descomplicada) e em paz. Na verdade, não é aquilo que chamamos habitualmente de nossa mente. É a natureza luminosa e mais fundamental no âmago de nosso ser. Isto é rigpa, o cerne da iluminação. É a nossa cota de nirvana aqui na terra.

O Dogchen ensina que tudo o que precisamos fazer para nos tornarmos iluminados é o reconhecer e repousar nesse estado mental natural. No zen eles chamam isto de mente original. É a percepção crua, nua, e não algo que aprendemos ou fabricamos. Isto é o Buda interior -a presença perfeita na qual podemos confiar. Despertar para esta mente natural, esta natureza búdica, é sobre o que a meditação se ocupa.

Mantendo a visão panorâmica: Lembrando-se

do quadro maior A Grande Perfeição Inata combina a visão iluminada, a meditação e a ação. Com uma visão tão larga e aberta quanto o infinito

céu luminoso; A meditação tão inabalável quanto uma montanha

imponente; A ação tão espontaneamente livre e desimpedida

quanto às ondas do oceano, O resultado é a realização da mente natural –

A Grande Perfeição Inata.

Canção de alegria yogue, da tradição oral Dzogchen.

Quando os mestres Dzogchen falam em

permanecer na visão, o que querem dizer é reconhecer o estado natural da mente, a natureza búdica, e repousar nesta percepção lúcida. Isto implica uma imediação espontânea e uma consciência sem separações ou escolhas. Esta visão ampla, ou panorâmica, significa ser capaz de viver as coisas como são, com clareza total. Essa visão, ou visão superior, não distorce. Ela é totalmente aberta e sem julgamentos. Quando permanecemos com a visão, não tentamos manipular ou alterar a verdade do que é. Um espelho não escolhe o que reflete. Da mesma maneira, a medida que os objetos surgem na mente, eles simplesmente aparecem, sem distorções nem correções, no espelho límpido da consciência.

Com esse tipo de visão, nós nos lembramos do

todo – Dzogchen, a Perfeição Natural das coisas justamente como são. Na meditação básica, praticamos a atenção plena à respiração. O treinamento Dzogchen é mais avançado; ele nos ensina como estar despertos e unos com o que é. Na prática, Dzogchen, levamos conosco aonde quer que formos, nossa consciência sem separações, para que cada momento seja um momento de atenção plena, um momento de realidade, de liberdade e iluminação. Como disse

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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um mestre zen: “A eternidade é um único instante, e esse instante é agora. Acorde para ela!”.

Isso pode soar esotérico, mas na verdade é um ensinamento muito prático. [...]

Tudo o que se tem a fazer é permanecer com a visão.

Este ensinamento introduz uma forma de manter a perspectiva maior em mente e ao mesmo tempo fluir com a grande corrente da realidade, sem ficar preso nos redemoinho da vida. Quer você esteja praticando a meditação formal ou dando banho no cachorro da família, preserve sua mente natural, permaneça consciente e desperto, em vez de se deixar carregar por pensamentos e projeções. São todos apenas aparências ilusórias. Se você puder manter esta visão, então a meditação em ação se desenvolverá espontaneamente, e haverá menos separação entre a prática religiosa formal e os atos mundanos da vida cotidiana.

Nós vivemos na ilusão e na aparência das coisas.

Existe uma realidade. Quando você compreender isto,

verá que você não é nada. E não sendo nada, você é tudo.

É só isso.

Kalu Rinpoche

O BUDHA NÃO ESTÁ MAIS DISTANTE QUE A PALMA DE NOSSA MÃO.

(Extrato do livro “Le Yoga du Rêve” de Namkhaï Norbu Rinpoche)

Traduzido do tibetano por Khenpo Palden Sherab, Khenpo Tséwong Dongyal, Deborah

Lockwood, Michael Katz.

Traduzido para o português por Karma Tenpa Dargye.

Nota do editor: o texto seguinte que trata da

via dzogchen, é traduzido aqui pela primeira vez. O autor, o grande mestre de meditação Mip’am Rinpoche (1846-1914), tentou mostrar a “verdadeira natureza da mente”.

I – Ensinamento Quintessencial sobre o

tema da Mente; O Budha não está mais Distante do que a

Palma de Nossa Mão. Inclino-me diante de Padmasambhava. E diante do ilustre Lama que é a emanação do

ser de sabedoria Manjushri 1 (e semelhante a) todos os budhas seus filhos.

Em atenção àqueles que desejam (aprender) a meditação (sobre) o reconhecimento do sentido profundo da mente,

Eu vou explicar brevemente o início da via dos conselhos do coração2.

É necessário, no início, confiar no ensinamento quintessencial de um Lama que (possui) a experiência da realização.

Se não penetrarmos (na experiência do) ensinamento do Lama, toda a perseverança e o esforço consagrados à meditação equivalerão a disparar uma flecha na escuridão.

Por esta razão, renunciem a todas as aproximações corrompidas e artificiais da meditação.

O ponto crucial é de colocar (sua consciência) no estado não-fabricado3, instalado em si-mesmo; o rosto da sabedoria sem véu que é distinto do envoltório da mente (quer dizer daquela que se identifica).

Reconhecendo (esta sabedoria), atingimos o ponto essencial.

O sentido de “permanecer desde o início” é o estado natural, não-fabricado.

Tendo desenvolvido a convicção íntima de que tudo o que surge é a essência do Dharmakaya 4, não rejeitem (este conhecimento).

(Deixar-se levar) pelas explicações discursivas (sobre o tema da via), é como correr atrás de um arco-íris.

Quando as experiências meditativas se manifestam como conseqüência da consciência lúcida do nobre estado não-fabricado, não é por meio indireto de uma concentração exterior (mas de preferência) mantendo a não-ação5.

Estupenda, (a maneira como) chegamos à este conhecimento!

II – No momento bem-aventurado em que

(atingimos) o estado intermediário A constância do estado inabalável é mantida

pela lembrança do estado espontaneamente estabelecido da “mente-em-si”.

Se colocar neste estado é suficiente. (Se obstáculos são produzidos) pelas nuvens

que se elevam da análise mental que cria a distinção entre o sujeito e o objeto da meditação.

(Lembremo-nos) então da natureza da mente que desde o início é não-fabricada – “a mente-em-si”, é vasta como o céu.

(Para) relaxar, libertemo-nos da estreiteza e dissipemos o apego à (esses conceitos).

O conhecimento espontâneo estabelecido não consiste em pensamentos que fluem em todas as direções.

Ele é vacuidade límpida e radiante, distinta de toda avidez mental.

(Este estado) não pode ser descrito por exemplos, símbolos ou palavras.

Percebemos diretamente a consciência (última) por meio da sabedoria do discernimento.

O nobre estado da consciência lúcida, imparcial, vazia não mudou, não muda e não mudará.

(Ela é) nosso próprio rosto, mascarado pelas impurezas dos conceitos repentinos, diversas vagabundagens quiméricas.

Como é triste! Que ganharemos em nos prender a uma

miragem? Qual o objetivo de perseguirmos esses sonhos

diversos?

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De que serve agarrar-se ao espaço? Por conceitos variados, colocamos a cabeça ao

contrário. Coloquem de lado essa falta de sentido

esgotante e detenham-se na esfera primordial. O verdadeiro céu é (saber) que samsara e

nirvana não são mais que uma exibição ilusória. Mesmo que existam exibições muito variadas, consideremos que elas têm o mesmo sabor.

(Ter-se estabelecido) em uma relação íntima com a meditação permite lembrar-se da consciência semelhante ao céu;

Que é consciência nua, situada em si mesma, vibrante, livre dos conceitos.

(A mente natural) está além do conhecimento ou do não-conhecimento, da felicidade ou do sofrimento.

A felicidade nasce (deste) estado de relaxamento/repouso total.

Então, no movimento ou na imobilidade, no ato de comer ou de dormir, conheceremos permanentemente este estado, e tudo é a via.

(Assim), “vigilância” [atenção] designa esta consciência semelhante ao céu. (E mesmo) no período após a sessão de meditação (formal), elaboraremos muito menos conceitos.

III – Nos momentos bem-aventurados do

estado último, Relativamente às quatro ocasiões (mover, ficar

imóvel, comer e dormir)6, As marcas dos hábitos tenazes, a partir das

quais surgem todos os conceitos e os sopros cármicos da mente, são transformados.

(Nós) possuímos a capacidade de recolher-nos na cidadela da sabedoria imóvel e inata. O que chamamos samsara7 nada mais é que um conceito. A majestosa sabedoria é livrar-se de todo conceito.

Então, tudo o que surge se manifesta como totalmente perfeito.

O estado da nobre clara luz é constante – tanto à noite como de dia.

Ele é diferente da distinção entre se lembrar e não se lembrar. [memória]

Diferente de desviar-se de seu justo lugar pelo chamado da Base fundamental que impregna toda coisa.

Então, não realizaremos nada pelo esforço. Sem nenhuma exceção, todas as qualidades

inerentes às vias e as bases – clarividência, compaixão, etc. – surgem espontaneamente8,

Crescente como a relva que chega à maturidade no verão.

Liberto de apreensão e de vaidade, liberado de esperança e medo,

É a grande felicidade não-nascida, eterna, vasta como o céu.

Essa nobre yoga é (semelhante) ao Garuda lúdico no céu da Grande Perfeição imparcial.

Maravilhoso! Confiando no ensinamento quintessencial de

um mestre, O meio de manifestar esta sabedoria da

essência do coração

É realizar as duas acumulações (de mérito e sabedoria)9 de uma maneira tão ampla como o oceano é vasto.

Então, sem dificuldade, (a realização) será colocada na sua mão.

Espetacular! Em conseqüência, possam todos os seres

sensíveis, pela virtude desta explicação, chegar a ver Manjushri juvenil, que é atividade compassiva de nossa própria consciência, mestre supremo, essência do diamante (o Dzogpa Chenpo da clara-luz).

Tendo percebido isso, nesta vida mesma, possamos atingir a iluminação perfeita.

Composto por Mip’am Jamyang Dorje

Rinpoche10 Notas: 1. Manjushri: o Bodhisattva da Sabedoria.

Segundo a mitologia budista, Manjushri foi, em uma encarnação anterior, o rei Amba que fez o voto de se tornar um bodhisattva para o bem de todos os seres.

2. Os conselhos do coração: o ensinamento do coração do lama. É um ensinamento essencial condensado, destinado à meditação e apresentado pelo lama aos seus discípulos de coração.

3. O estado não-fabricado: a consciência que surge no instante da percepção; uma pura presença que aparece sem modificação, não engendrada por causas. Para mais detalhes, ver The Cycle of Day and Night, de Namkhaï Norbu.

4. Dharmakaya: dharma significa a totalidade da existência; kaya é esta dimensão. A base essencial do ser cuja essência é a claridade e a luminosidade e no seio da qual todos os fenômenos são percebidos como despidos de existência intrínseca.

5. A experiência meditativa se manifestando por intermédio da não-ação: a meditação do Dzogchen é não-conceitual e realizada simplesmente pelo reconhecimento sem esforço de nossa própria natureza verdadeira, não condicionada. A ação ou o esforço para realizar a meditação são contrários à presença relaxada que caracteriza a prática dzogchen.

6. Mover-se, permanecer imóvel, comer e dormir: as quatro atividades, englobando todas as ações possíveis, no meio das quais um praticante dzogchen tenta manter sua consciência lúcida.

7. Samsara: existência cíclica marcada pelo nascimento, a velhice, a doença, a morte e o renascimento. Os seres sensíveis, dominados pelo desejo, a ira e a ignorância, continuam a migrar através dos seis mundos do samsara (o mundo dos deuses, dos semi-deuses,, dos humanos, dos animais, dos espíritos famintos, e dos seres infernais) segundo seu carma.

8. Qualidades inerentes que surgem espontaneamente: como conseqüência natural da meditação dzogchen, os praticantes avançados podem desenvolver qualidades transcendentais tais como uma grande sabedoria, compaixão, a clarividência etc.

9. As duas acumulações: a acumulação de mérito por meio das boas ações e da sabedoria por intermédio da contemplação. Se bem que os dois sejam importantes sobre a via do Dharma, o Budha disse que se conseguimos manter o estado de contemplação (a acumulação de sabedoria) durante o tempo que é preciso a uma formiga para ir da extremidade do nariz de uma pessoa a sua testa, isso seria mais benéfico que uma vida inteira de acumulação de méritos pela ação virtuosa e a generosidade.

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10. Mip’am Rinpoche: célebre mestre budista tibetano do séc. XIX que começou por ser aluno de Patrul Rinpoche. Mip’am foi o autor de comentários originais sobre o dzogchen e sobre outras escrituras budistas importantes.

A MENTE ESSENCIAL O rei Trisong Detsen perguntou a Orgyen

Rinpoche Padmasambhava: “Grande mestre, a fim de que os seres sencientes causais realizem o resultado do estado búddhico, bem no início a visão da realização é crucial. Então quem está dotado com a visão da realização?”

O mestre respondeu: “O ápice de todas as

visões é constituído pelas instruções essenciais e práticas para a iluminação. Todas as galáxias, todos os sugatas dos três tempos e das dez direções e todos os seres sencientes dos três reinos são uma realidade: eles estão incluídos na mente essencial da bodhichitta. Isso que é chamado ‘Mente’, é não-criada e se manifesta de vários modos”.

“Bem, então, qual é a diferença entre os

buddhas e os seres sencientes?” “Nenhuma além de sua realização e não-

realização da Mente. Desconhecida para você, o Buddha está presente dentro de você. Devido à falha em reconhecer a natureza essencial da mente, você vaga entre os seis estados da existência”.

“Bem, então, qual método há para penetrar a

Mente?” “Para isso, as instruções práticas de um

mestre espiritual são necessárias”. A assim-chamada ‘Mente’ existe como uma

experiência da atenção e do conhecimento. Não observe a Mente externamente, mas sim internamente.

Procure a Mente com a mente. Estabeleça a Mente em si com a mente. Observe: onde a Mente inicialmente surge, onde ela está localizada agora e aonde ela vai ao final? Quanto a isto, observando por você mesmo a sua Mente, nenhum lugar de origem, nenhuma localização e nenhum destino são encontrados. Não há como indicar sua natureza essencial dizendo, ‘É deste modo...’ Assim, não havendo exterior ou interior, e não havendo observador ou observado, a Mente é a Grande Sabedoria Primordial, livre de centro ou periferia, grande, vazia, sabedoria primordial, originalmente livre e permeando tudo. A Sabedoria Primordial, que é naturalmente presente em seu próprio modo de ser, não é algo criado. O reconhecimento da presença da Sabedoria Primordial em você mesmo é a visão. Esforce-se para penetrá-la!”

“O solo e o que tem o solo é como o espaço,

primordial e espontaneamente presente. É como o sol, não tendo base para a escuridão da ignorância. É como um lótus, não-manchado pelas máculas. É como o ouro, que não muda da natureza da realidade em si. É como o oceano, sem movimento. É como um rio, sem interrupção. É como uma presença, sem chegada ou partida. É com o Monte Meru, sem se mover ou mudar”.

(Citado em Naked awareness: Practical instructions on the union of Mahamudra and

Dzogchen. Karma Chagme, com comentário de Gyatrul Rinpoche, traduzido por B. Alan Wallace,

editado por Lindy Steele e B. Alan Wallace. Ithaca: Snow Lion, 2000. Pág. 109-110.)

A ESSÊNCIA, A NATUREZA E AS CARACTERÍSTICAS DA MENTE

Dagpo Tashi Wangyal

A essência da mente Apesar da natureza da mente ter geralmente sido designada por estes três termos - nominalmente, essência, natureza e características -, elas em realidade não são diferentes da essência da mente. O Amnayamanjari afirma: A vacuidade constitui a natureza intrínseca de todas as coisas [mentais e materiais]. A essência dessa vacuidade não é diferente do que foi designado como a própria natureza da mente e seu modo de se manifestar. Entretanto, do ponto de vista do [aspecto mental], ela pode ser dividida em três: essência, natureza e características, que são identificadas de acordo [com seus aspectos]. Quanto a isto o venerado Gampopa escreveu: A essência da mente consiste de três aspectos: essência, natureza e características. Sua essência consiste do estado de claridade e não-concepção, sua natureza é vazia de qualquer modo substantivo de surgimento, permanência e cessação, e suas características referem-se às aparências dualistas da existência cíclica [samsara] e da paz permanente [nirvana]. Novamente ele comenta: A mente consiste de natureza, essência e características. O termo designado “natureza da mente” significa que em sua natureza intrínseca ela é pura e não-criada, e assim abarca todos os reinos do samsara e do nirvana. O termo “essência” significa o estado desperto mais interno, que é desapegado do surgimento e da cessação. O termo “características” significa as diversas aparências de imagens surgidas das marcas psíquicas condicionadas. Je P'hagmodrupa conclui:

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Mahamudra significa [estado desperto] não-dual. Seus três aspectos são a essência, a natureza e as características. “Essência” significa a vacuidade do surgimento, cessação ou concepção. “Natureza” significa lucidez não-obstruída. “Características” significa as diversas aparências. Nos níveis do samsara e do nirvana. A essência e a natureza da mente são afirmadas como sendo idênticas em realidade. O aspecto da mente é idêntico com suas características. Isto é afirmado por Je Rangjungpa [Karmapa III]: A essência [da mente] é vazia, sua própria natureza é lúcida E seu aspecto consiste de aparências diversas e incessantes. A essência da mente é, desde o início, vazia de qualquer surgimento, permanência ou cessação substantivos. Não é maculada por conceitos dualistas dos agregados psicofísicos da vida, pelos elementos e pelas faculdades sensoriais. Ela tem a mesma natureza daqueles fenômenos que são vazios de qualquer essência própria mas são uma igualdade que tudo abarca. Isto é enfatizado no Guhyasamaja: É vazia de todas as substâncias E desapegada das discriminações dualistas Tais como agregados, elementos e faculdades sensoriais. É sem eu e igual. Esta mente é não-nascida desde o início Porque é vazia por sua natureza inata. Referindo-se à essência da mente, o Bodhichittavivarana explica: As mentes iluminadas [bodhi] dos buddhas Não são nubladas por qualquer visão de dualidades - O eu e os agregados da vida - Porque as características destas mentes São vazias em todos os tempos. Como afirmado anteriormente, quando olhamos e examinamos completamente a natureza intrínseca da mente, não encontramos qualquer base substantiva. Ao invés disso, experienciamos que o processo analítico está se aquietando ou se apagando. Este estado é descrito como sendo a realidade última, a vacuidade que tudo abarca, que é intrínseca em todas as coisas e em todos os tempos. O Satyadvaya afirma: A aparente realidade aparece como tal Mas é [vista como sendo] vazia de qualquer substância Quando sujeita à investigação lógica completa. Esta descoberta [da vacuidade] representa a verdade absoluta Que é inerente em todas as coisas e em todos os tempos.

Essa vacuidade intrínseca da mente é na verdade a vacuidade de todas as coisas, que abarca todas as aparências e existências do samsara e do nirvana. Aryadeva comenta: Uma substância representa a essência de todas as outras substâncias; Todas as outras substâncias representam a essência de uma substância. Aryadeva também diz em seu Chatuhshataka: A vacuidade de uma coisa Representa a vacuidade de todas as coisas. O Satyadvaya declara: Não há divisão qualquer na vacuidade, Nem mesmo no menor grau. A natureza da mente

O Ashtasahasrika Prajnaparamita Sutra ensina: A natureza da mente consiste da claridade luminosa, Que é a natureza intrínseca do Tathagata. Há muitas passagens como esta que descrevem a natureza da mente como sendo uma claridade luminosa. O termo “claridade luminosa” significa que é pura, não-maculada por quaisquer pensamentos discriminadores, tais como surgimento, permanência ou cessação. Não-maculada [por quaisquer máculas mentais] e desapegada das partículas dos agregados, ela permanece imutável por todo o tempo, como o espaço, ou mesmo inseparável da natureza do espaço. O Upaparipriccha explica: A mente em sua natureza é pura e luminosa. É não-substantiva, não-maculada e desapegada de quaisquer partículas subatômicas. O Uttaratantra diz: Esta claridade luminosa, sendo a natureza da mente, É imutável, como o espaço. O Jnanalokalamkara Sutra elabora: [Buddha:] Ó Manjushri, a iluminação por sua natureza inata consiste de claridade luminosa, por que a natureza intrínseca da mente é luminosamente clara. Por que ela é assim designada? A natureza intrínseca da mente é desapegada de qualquer mácula interior e é igual, ou possui, a natureza do espaço, enquanto abarca o espaço através de suas características idênticas. Por todas estas razões ela é designada como sendo claridade luminosa.

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O Vairochanabhisambodhi observa: A natureza da mente é pura, porém não pode ser concebida dualistamente como sendo externa, interna ou intermediária. E novamente diz: O que quer que seja a natureza do espaço é a natureza da mente. O que quer que seja a natureza da mente é a mente da iluminação. Por esta razão a mente, a expansão do espaço, e a mente da iluminação são não-duais e inseparáveis. O Guhyasamaja explica: Já que todas as coisas em sua natureza são luminosamente claras, Elas são puras desde o início, como o espaço. Sendo assim, alguns meditadores não-sábios, quando experienciam qualquer tipo de claridade interior, consideram-na como sendo a claridade luminosa da mente e até mesmo a assumem como sendo radiante como a luz solar. Este é um erro muito sério pois, como provado por citações anteriores, o termo “claridade luminosa” tem sido usado para simplesmente significar que a mente é de pureza intrínseca, que não é maculada pelos pensamentos discriminadores ou aflições emocionais. Se a natureza da mente se constituísse de qualquer coisa radiante e colorida, a mente teria de ser uma luz e teria uma cor. Então a doutrina [buddhista] que afirma a natureza da mente como sendo pura, isto é, desapegada de qualquer essência própria, estaria errada. Bem, então, quando certas experiências nas quais yogis percebem o próprio estado desperto comu a própria claridade como se fosse uma manifestação psíquica, uma luz interior que até mesmo ultrapassa as aparências, ou uma cor ou luz normais? Naropa esclarece isto no Drishtisamkshepta: Todas as coisas da aparência e da existência Não existem separadas do próprio estado desperto Pois as coisas aparecem e se cristalizam Assim como, por exemplo, a mente experiencia O seu próprio estado desperto. E novamente ele diz: Este próprio estado desperto é desapegado da discriminação; Ele se manifesta enquanto sendo intrinsecamente vazio; Sendo vazio ele se manifesta. A aparência e a vacuidade são, portanto, inseparáveis. Elas são como o reflexo da lua na água. Tal [experiência dos místicos] é simplesmente o despontar interior da lucidez e estado desperto

da mente. Apesar desta experiência interior ser correntemente designada como estado desperto para o objeto prático da contemplação, ela está ainda no nível da dualidade e como tal não pode ser um estado desperto real porque não é a vacuidade suprema de todas as formas, nem o poder que tudo permeia. O grande comentário sobre o Kalachakra [o Vimalaprabha] explica: O que, então, é o estado desperto? A resposta é que o estado desperto, assim designado, é o estado desperto mais interno de um tipo não-discriminativo. É a vacuidade suprema de todas as formas. Além de ser um estado desperto imutável e extasiante, ele transcende todos os conceitos. Este estado desperto é o mestre da causa e efeito. A causa e efeito estão nele como a luz e calor do fogo. O Manjushrinama Sangiti descreve o estado desperto: É o estado desperto que tudo conhece, completo e absoluto. Como tal ele transcende o reino da consciência. E novamente diz: Ele compreende tudo, a si mesmo e os outros. Por esta razão Je Drikhungpa diz: O que é conhecido como o grande selo é este estado desperto mais interior. Todas as formas de estado desperto mostradas aqui como objetos de meditação deveriam ser entendidos à luz destas passagens. Mesmo assim, a percepção interior que os místicos experienciam não pode ser construída para ser o estado desperto discernidor e a lucidez intrínseca da mente. O Samdhinirmochana explica: O estado desperto discernidor está no estado desperto não-dual. O Guhyachintya Tantra afirma: Abandonando o eternalismo e o nihilismo, O surgimento e a cessação, e outras visões extremas, A mente atinge o estado desperto transcendente Que desde o início tem sido desapegado de quaisquer distorções dualistas. O significado disto está realmente além de uma dimensão conceitual. Assim o significado de estar desperto [ou de ter insight em] cada aspecto da realidade é afirmado como sendo não-dual e além de uma dimensão conceitual. O significado da lucidez intrínseca da mente foi explicado anteriormente. As características da mente A pureza intrínseca da mente foi nublada por uma mácula transitória. A confusão resultante distorceu a consciência de seu estado natural. Através de sua interação com a discriminação fundamental

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emergiram os seres sencientes das seis esferas existenciais, com sua [capacidade de experienciar] prazer e miséria transientes. Quando as máculas são eliminadas, a natureza intrínseca da mente é realizada e o processo interativo da auto-realização é completado, atinge-se a iluminação da realidade absoluta, para que suas manifestações supremamente ilusórias apareçam para o benefício dos seres sencientes. O Drishtisamkshepta comenta: Alas, os seis níveis de seres sencientes são Emanações das mentes deludidas. Através do reino infinito do espaço Eles vagam na miséria e delusão inimagináveis. E novamente este texto aponta: Lo! Das mentes imaculadas emergem Emanações em formas sublimes. Aparecendo como os reinos puros E como as assembléias iluminadas em suas diversas formas, Estas emanações maravilhosas Permeiam o infinito espaço cósmico! Saraha diz: A mente sozinha é a semente de todas as realidades Da qual se desdobram o samsara e o nirvana. O Samputa explica: A mente maculada pela paixão e pelos outros impulsos descontrolados É na verdade a mente da existência cíclica. Descobrir a lucidez intrínseca da mente é na verdade a liberação. Não-maculada pela luxúria e impurezas emocionais, Não-nublada por quaisquer percepções dualistas, Esta mente superior é na verdade o nirvana supremo! Se a mente em seu estado natural é pura desde o início, ela não pode eventualmente ser maculada por qualquer impureza transitória. Se isto fosse possível, a mente, após ser purificada da impureza, poderia novamente ser maculada. A impureza da mente tem sido designada como transitória já que pode ser eliminada. Não é algo que subitamente emergiu do nada. De fato, a impureza da mente tem coexistido com a mente desde um tempo sem início. O Uttaratantra explica-a através de uma analogia: A pureza intrínseca [bodhi] é como o pólen no lótus comum, Como grãos no debulho e ouro na sujeira, Como um tesouro sob o solo e sementes nas vagens, Como uma imagem do Buddha enrolada em trapos, Como um príncipe no ventre de uma mulher comum, Como um monte de ouro abaixo da terra.

Assim, a natureza da iluminação permanece escondida em todos os seres sencientes Que estão dominados pela mácula transitória. Quanto mais a mente permanece nublada por uma mácula transitória, mesmo que o seu estado intrínseco seja puro, as qualidades da iluminação não se cristalizarão. Elas, entretanto, emergirão espontaneamente com a eliminação da mácula da mente. O Hevajra Tantra afirma isto: Todos os seres sencientes são buddhas, Eles apenas estão dominados pela mácula transitória. Eles se tornam buddhas no momento em que eliminam sua mácula. Nagarjuna expõe: Apesar de a preciosa vaidurya ser sempre translúcida, Se deixada não cortada, ela não brilha. Assim é a realidade que tudo abarca [dharmadhatu]; Apesar de intrinsecamente imaculada, ela é nublada pela mácula. Assim permanece latente no samsara Mas se cristaliza ao se atingir o nirvana. As características [da mente] são assim descritas como essas que se manifestam nas diversas formas do samsara e do nirvana. Os místicos do tempo presente experienciam até mesmo as manifestações da mente como sendo uma diversidade indeterminável e não-obstruída. Devido à força de suas diversas tendências não-nascidas, eles percebem as manifestações interiores como realidades externas. Elas aparecem exatamente como designadas ou moduladas pela interação do karma e das tendências não-nascidas dos meditadores. Mesmo que a natureza intrínseca [da mente] não mude, sua manifestação toma muitas formas diversas, como um tecido de lã que é transformado pelo uso de tinturas. O Lankavatara Sutra elucida: A mente em sua natureza permanece pura e lúcida. Ainda assim ela se manifesta exatamente como o intelecto quer que seja, assim como um tecido de lã branca é transformado pelo uso de tinturas. A fim de determinar o estado real da mente e como ele se manifesta em diversas formas, normalmente se estudaria os textos explicativos sobre as oito formas de consciência, incluindo a consciência-fonte e as categorias mentais. Entretanto, dei aqui apenas as informações relevantes.

(Namgyal, Takpo Tashi. Mahamudra: the quintessence of mind and meditation.

Traduzido e anotado por Lobsang P. Lhalungpa, prefácio de Chögyam Trungpa. Delhi: Motilal

Banarsidass, 1993. Pág. 213-220.)

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A PRÁTICA PRINCIPAL A apresentação à natureza da mente.

Longchenpa

Do livro: “La liberté naturelle de l’esprit”

[Págs.288-293]

Apresentado e traduzido do Tibetano por Philippe Cornu

Tradução p/português: Karma Tenpa Dhargye

Todos os fenômenos do mundo aparente, do

samsara e do nirvana são o prodígio mágico de rigpa, semelhantes à um sonho da noite passada.

O estado natural de rigpa, a essência vazia, é o Corpo absoluto; sua natureza é o Corpo de felicidade e seu modo de emergência, que aparece sob variadas formas ao sabor das circunstancias, é o Corpo de manifestação.

Então, esta emergência mesma, enquanto que processo comum da consciência no presente, é a intenção dos Budhas, a imensidão espacial livre de todos os limites.

O mestre diz então: A sabedoria de rigpa, vazia e luminosa, tem por modo de emergência manifestações de todas as espécies ao sabor das circunstâncias; Seu modo de ser não sendo de nenhum modo real, surge de si-mesmo e se libera em sua natureza, Como a água e as vagas do oceano. Os pensamentos discursivos são desde sempre o brilho luminoso do Corpo absoluto. Não há nada a meditar fora do espaço absoluto. Alguns querem rejeitar os pensamentos para meditar sem discursividade, Mas liberar as aparências como inimigas é cair na ilusão! O que quer que surja, fiquemos sem apego ou rejeição; A extensão da existência fenomenal é o terreno do veículo de Samantabhadra, Além de toda consideração de meditação e de não-meditação. Um tal caminho supremo é particularmente eminente! Permanecer equilibrado na consciência do

presente, considerando fixamente o frescor de tudo que surge, sem fabricar artifícios corretores e corruptores.

Deixemo-nos ir completamente satisfeitos na distensão, nos relaxando; reconhecendo o que surge, permaneçamos frescamente na claridade. Nos abandonando no curso natural sem nos agarrar, deixemo-nos ir espontaneamente sem apegos.

Reconhecendo todos os pensamentos discursivos nascentes, a visão os libera nessa condição. A meditação consiste, neste estado, em permanecer lucidamente na felicidade, na

claridade e na ausência de discursividade. Nesse momento, o que emerge sem que haja aí apego ao exterior nem ao interior é ação.

Quanto à liberação conforme o modo espontâneo e sem objetivos, é o fruto.

Na realidade absoluta incriada Emerge rigpa do grande curso natural; A liberdade natural é um estado de claridade sem apego, A base liberadora de Samantabhadra. Na natureza da mente, livre desde sempre, É inútil “liberar” desde o começo; Deixemos pois ir no frescor espontâneo da consciência comum... Rigpa, vazio e luminoso, que libera espontaneamente, É a grande felicidade do Corpo Triplo [Trikaya], o campo puro dos Budhas; A Base de todas as coisas é o estado do Corpo absoluto Onde os antídotos corretores não são nem bons nem maus, No espelho da mente (onde se refletem) felicidade e sofrimento, O yogui praticará no dinamismo de rigpa. Tal é o cume de todos os veículos, A Via suprema da essência Adamantina, Diz o mestre, para precisar. Extirpando desse modo toda discursividade no

momento mesmo de seu surgimento, permanecemos na unidade. Então, a essência de rigpa, a Sabedoria sem elaborações, vazia e luminosa, surge das profundezas e nos libera espontaneamente da mente do desejo.

Para os pensamentos discursivos que continuam, ela nos libera da consciência e da não-forma; limpidez e emergência-liberação estão espontaneamente presentes no grande yoga do fluxo ininterrupto.

Como preservar (este estado) após as sessões de prática.

Bem cedo pela manhã, uniremos a quietude e a visão profunda em um estado límpido como o céu, a Sabedoria sem discursividade nenhuma. Assumiremos os pontos chaves do corpo, e, sem mover os olhos, praticaremos.

Pois assim se elevarão os recolhimentos de felicidade, de claridade e de não-discursividade, realizaremos o olho divino e os conhecimentos supra-normais (siddhis) [parapsicológicos].

De manhã, sem diferençar as projeções do

estado de repouso, exerceremos o dinamismo de rigpa à auto-liberação instantânea, e nossa realização da visão profunda auto-liberadora irá aumentando.

Ao meio-dia, treinamos sem opiniões a

percepção pura de todos os fenômenos e a devoção, meditamos incansavelmente sobre o mestre, com um respeito e uma devoção extraordinários.

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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Em um estado de irrealidade, obteremos então prontamente as realizações supremas e comuns.

À tarde pensaremos nos males do samsara, os benefícios da liberação, nos convenceremos dos resultados do carma, da dificuldade de obter uma vida preciosa e plena de dons, da impermanência da vida, e aprenderemos assim a abreviar os projetos de nossa mente.

Nossa mente não abraçará mais as aparências desta vida e, para a vida seguinte, acumularemos quantidade de méritos nos aplicando com disciplina em realizar o Dharma.

À noite, chegaremos a igualdade na

felicidade, a claridade e a ausência total de discursividade, no estado onde, havendo cortado as percepções na mente, a variedade será semelhante aos sonhos. Os obstáculos se acalmam imediatamente e realizamos então a essência que destrói a ilusão ligada à realidade substancial.

À meia-noite, no momento de adormecer no

estado não-nascido da natureza de nossa mente, praticaremos no sono sem emitir nem reabsorver pensamentos discursivos, nossos sonhos surgirão como a grande felicidade luminosa. Realizaremos então a mente de Sabedoria onde dia e noite são indissociáveis.

Quando permanecermos assim com diligência

noite e dia, (pode ser que) estagnemos, que nos extraviemos ou nos dispersemos.

Ainda que tenhamos meditado muito, estagnamos se nenhum progresso surge. Quando a emergência-liberação estagna, o poder da visão profunda é fraco e ficamos como uma flâmula que flutua ao vento, incapaz de voltar a imobilidade nem por um instante.

Treinemo-nos pois na auto-liberação das projeções, e a Sabedoria da visão profunda emergirá subitamente em nossa mente.

Quando estagnam a quietude e a visão profunda, (límpidas e sem discursividade nenhuma), nosso desenvolvimento fica fraco.

Então, quando o céu está sem nuvens, voltaremos o rosto para ele e fixaremos intensamente nosso olhar no céu. A mente permanecerá sem projetar pensamentos, a Sabedoria sem elaborações, vazia e luminosa, emergirá das profundezas.

De outro modo, quando estagnar a quietude, meditemos por meio da visão profunda para destruir (este estado).

Se nossa visão profunda não avança, permaneçamos na quietude sem nenhum pensamento discursivo. É extremamente profundo!

A base dos desvios é o mesmo que errar na

via da confusão. Tendo em primeiro lugar meditado, e se, mesmo um pouco de qualidades apareçam, nos incharmos de orgulho e de vaidade, e se nos apegarmos a essas qualidades sonhadoramente, devemos meditar firmemente sobre a impermanência.

Se nos apegarmos aos altos e baixos da experiência, meditemos a fim de eliminar todo o apego.

Se não tivermos nem amor nem compaixão, contemplemos os seres dos seis reinos como nossos pais e nossas mães.

Se nosso rigpa não tiver nenhum poder sobre as circunstâncias, meditemos afim de integrar as aparências circunstanciais. Esses meios estão entre os mais profundos.

Agora, a dispersão: se a liberação sobre o

surgimento[emergência] se dispersa em discursividade, não estabilizaremos nossa mente para o interior. Meditemos então sobre a quietude.

Se nossa claridade se dispersa no apego ao prazer, nossa realização não se desenvolverá. Treinemo-nos pois sem apego na emergência-liberação das projeções dos pensamentos discursivos variados.

Por outro lado, quando nasce uma experiência de vazio, tudo nos parece vazio e o demônio que aniquila as distinções entra em nós. Esforcemo-nos então de meditar firmemente sobre a compaixão.

Se quando nasce uma experiência de compaixão, nos apegarmos aos caracteres próprios aos seis reinos samsáricos, o demônio da visão falsa onde a vacuidade parece fora de propósito faz sua entrada. É então muito importante que reconheçamos que todas coisas são sem nascimento.

Em resumo, qualquer que seja nossa meditação, nascerão experiências. Se surgir (o demônio) que aniquila o interesse pelos outros, mantenhamos os métodos que se opõem a esse obstáculo.

Isso é extremamente profundo. Se formos diligentes desse modo dia e noite,

dia após dia aparecerão novas e numerosas qualidades eminentes. Mesclando intimamente vacuidade e compaixão, não nos restará mesmo uma ponta de cabelo de apego à realidade dos fenômenos quaisquer que eles sejam, e liberaremos o sujeito e o objeto samsáricos além do sofrimento (nirvana).

Nesta vida mesma, atingiremos o nível de realização da Grande Perfeição da realidade absoluta.

A INTRODUÇÃO DIRETA SEGUNDO O SEMDE (Sems Sde)

Do livro: AS ESFERAS DO CORAÇÃO – Kun Tu Bzang Po’i Snying Tig de

Shardza Tashi Gyaltsen – Ensinamento Dzogchen da Tradição Bön.

Traduzido e comentado por Lopön Tenzin Namdak

Traduzido para o português por Tenpa Dhargye=Flávio

A natureza fundamental do estado natural

(bodhichita) é a base de todos os reflexos. Ela é semelhante ao oceano; todas as espécies de reflexos podem aí aparecer. Assim o oceano

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INTRODUÇÕES À NATUREZA DA MENTE

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reflete, de maneira igual, todas as imagens – o sol, a lua e as estrelas. Deveríamos compreender isso.

Do ponto de vista da bodhichita (quer dizer

O ESTADO NATURAL), não podemos explicar a diferença entre a Base, a Energia ou os Reflexos. Porque a natureza do estado natural é vacuidade e, na vacuidade, não pode haver distinção entre eles. Por exemplo, no oceano, a claridade da água (energia) e seus reflexos não são diferentes da água – eles aparecem, mas eles não existem fora da água.

Se olharmos do ponto de vista dos reflexos (quer dizer das aparências individuais), não há mais contradição. Com essa perspectiva, podemos ver que o oceano, sua claridade e seus reflexos são distintos uns dos outros. Entretanto, no estado natural, nenhum reflexo tem base real. Eles não possuem uma existência inerente.

Segundo o Lugyudang Drawai Dampa (lus

rgyud dang ‘dra ba’i gdams pa): “Sobre esse assunto, não falamos nem de vacuidade nem de visão. Nem a vacuidade nem a visão têm base”.

Assim o sistema do Semde serve somente para guiar os discípulos de capacidade inferior ao dzogchen, também o chamamos de Grande Selo (Mahamudra).

O texto do Chagtri (phyag khrid) por Trugel Yungdrung (Brurgyal gyng drung) e seus discípulos o aceitaram como o ensinamento mais elevado, mas esse não é o caso. Ele não pode ser comparado ao ensinamento mais elevado, como a terra não pode ser como o céu.

A INTRODUÇÃO DIRETA SEGUNDO O MENGAGDE

Em duas subdivisões: Para os melhores praticantes, há uma

segunda introdução direta; eles podem ser liberados justamente após haverem recebido diretamente esta introdução.

Esta introdução comporta duas subdivisões: a primeira é a introdução direta, e a segunda concerne à decisão de entrar na grande não-ação.

A INTRODUÇÃO DIRETA.

No que concerne à introdução direta, há três maneiras de ensinar. A primeira consiste em comentar os pontos importantes, a segunda em ligar e a terceira em adquirir determinação.

O primeiro método: o comentário dos pontos importantes Aqui, dois métodos estão presentes:

mostrar diretamente a consciência clara fundamental e mostrar a visão, a prática, a ação e o fruto.

1. Mostrar diretamente a consciência clara-raiz.

Há três descrições da consciência clara (rig pa). A primeira é a consciência clara da mente

toda penetrante; a segunda é a consciência clara da mente pensante e a terceira, a consciência clara primordial. A primeira corresponde à consciência

clara do Budha que abraça todos os seres. A segunda é a de algumas escolas de meditação como no Vipassana (visão penetrante) onde a

consciência clara é praticada na meditação. Nesse caso, se não praticarmos, não veremos a

consciência clara; às vezes ela é clara, e às vezes ela não é.

A terceira corresponde a esta visão: é a verdadeira consciência clara do dzogchenpo. Ela está sempre aí, quer pratiquemos a meditação ou não, quer a realizemos ou não. Quer a conheçamos ou não, não tem importância. O que segue nos expõe diretamente esta consciência clara.

2. A visão, a Prática, a Ação e o Fruto. No início, sentemo-nos na postura dos sete

pontos. Depois, o mestre interpela o estudante e diz: “Oh! Nobre filho, há um observador ou uma coisa que seja observada? Aonde esta coisa vai? E aonde ela não vai?” Não podemos encontrar o objeto à observar ou o observador. Nesse momento, tudo se torna como o céu. Não mudamos nada, não fazemos nada. Esta natureza é inexprimível. Nesse instante, não há mais nomes ou conceitos de claridade, de vacuidade ou de unificação.

“Não podemos mostrar isso por um exemplo: não a podemos verificar ou reconhecê-la pelos pensamentos”. Somos incapazes de fazê-la desaparecer, e, entretanto ela jamais vai embora. Ela não tem raiz – é vazia. Quando estivermos neste estado a claridade está presente continuamente, pura e sem entraves. A claridade se manifesta por si mesma, ela não tem antídotos. Ela estará sempre na felicidade. Sempre nua, ela não pode ser iludida. Não podemos descrever o que vemos, ainda que seja sempre brilhante. Sua natureza é incessante. É a natureza inexprimível e a sabedoria incessante. Não há motivo para que as visões estejam presentes; sem pensamentos, a claridade está aí.

“Sem distinguir o sujeito do objeto, a sabedoria está presente. Quer dizer a sabedoria sem objeto nem sujeito, sem substância. É o caminho do grande segredo da Grande Perfeição – o sangue do coração das Dakinis – é o don de Drenpa Namkha (drag pa nam mkha’). E é também o ensinamento essencial de Rigpa Rangshar (rigpa rang shar)”.

“Compreenderam? Realizaram? Maravilhoso!”

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A FONTE SUPREMA

O Tantra Fundamental para o Dzogchen Semde - Comentários por Chogyal Namkhai Norbu & Adriano Clemente [Extraído de SNOW LION, P.O. Box 6483 Ithaca, NY 14851 USA, vol 14, número 4, fall 1999, pag 1, 2 e 3. Tradução por André Collasiol - revisão pelo Lama Padma Samten - CEBB Caminho do Meio - março 2000]

A meta do Dzogchen é o redespertar do

indivíduo para o estado primordial de iluminação que é encontrado naturalmente em todos os seres. O mestre introduz o estudante a sua natureza real, a qual já é perfeita e iluminada, porém, somente pelo reconhecimento desta natureza e estabilidade neste estado de reconhecimento durante todas as atividades diárias é que o estudante torna-se um autêntico praticante do Dzogchen do caminho direto de auto-liberação. O praticante do Dzogchen está consciente da claridade absoluta e pureza da sua própria mente e, sem tentar modificar o que por si mesmo já é perfeito, sem lutar para obter de qualquer outro lugar o estado de realização, permanece sempre na natureza real da existência, a suprema fonte de todos os fenômenos. “Os que tentam meditar e realizar esta condição por meio do esforço são tais como um cego que tenta moldar o céu”.

Neste livro, o ensinamento do Dzogchen é

apresentado por meio de um dos seus textos mais antigos, o tantra Kundjed Gyalpo, “O Rei que Tudo Cria” - uma personificação do estado primordial de iluminação. Este tantra é a escritura fundamental da Semde - a tradição Dzogchen da “Natureza da Mente” - e é a fonte mais autorizada para se entender a visão do Dzogchen. O comentário oral por Chogyal Namkhai Norbu facilita intuir as profundezas deste texto desde um ponto de vista prático. Adriano Clemente traduziu a seleção de passagens principais do tantra original. A Fonte Suprema será de grande interesse para todos os estudantes de budismo tibetano.

O que segue é um extrato deste livro.

O Atiyoga do Dzogchen Com o Atiyoga alcançamos a culminância

dos caminhos da realização: o Dzogchen - “a Perfeição Total” - cujo caminho característico, baseado no conhecimento da auto-liberação, não demanda qualquer outra transformação. De fato, quando entendemos o princípio da auto-liberação, reconhecemos que nem mesmo o método transformador do tantra é o caminho final. O ponto fundamental da prática do Dzogchen, chamado de tregchöd, o “relaxamento das tensões”, é repousar no estado da contemplação, enquanto que o caminho de permanecer neste estado é chamado chogshag, “deixando como está”.

Fazer uma visualização, uma prática de transformação da visão impura em um mandala e etc. significa “construir” alguma coisa, trabalhar com a mente, enquanto que no estado da

contemplação, o corpo, fala e mente estão totalmente relaxados, e é necessário que seja assim. Um termo usado muito freqüentemente no Dzogchen é machöpa, “não corrigido”, “não alterado”, enquanto que transformação significa corrigir, considerando que, por um lado, há visão impura e, pelo outro, visão pura. Então, tudo o que se necessita para se entrar no estado de contemplação é relaxar, não havendo necessidade de qualquer prática de transformação. Algumas pessoas crêem que o Dzogchen é apenas a fase final do processo tântrico, semelhante ao Mahamudra da tradição moderna, mas isso se dá porque o ponto de chegada do caminho do anuyoga, também é chamado de Dzogchen. Na verdade, o atiyoga do Dzogchen é um caminho completo em si mesmo e que, como mencionado acima, é independente do caminho dos métodos de transformação.

Quando seguimos o ensinamento do Dzogchen, se tivermos capacidade suficiente, poderemos iniciar diretamente pela prática de contemplação. A única coisa que é indispensável é a prática de guru yoga, a “unificação com o estado do mestre”, pois é do professor que recebemos a introdução direta ao conhecimento.

Os tantras originais sobre Atiyoga, como o Kundjed Gyalpo, afirmam freqüentemente que a qualidade característica do Dzogchen é a falta dos dez requisitos para a prática do tantra: iniciação, mantra, mandala, visualização e etc. Por que estes não estão presentes no Dzogchen? Porque são maneiras de corrigir ou alterar a natureza própria do indivíduo, mas na realidade nada há para ser mudado ou melhorado, tudo o que é necessário é a descoberta da condição real e permanecer repousado neste estado. Assim, é importante que se compreenda que a palavra Dzogchen refere-se ao estado (original) do indivíduo, e que o propósito do ensinamento do Dzogchen é capacitar à pessoa a entender esta condição.

Em geral, o ensinamento do Dzogchen é

explicado por meio de três aspectos fundamentais: a Base, o Caminho e o Fruto. A Base é o estado primordial do indivíduo e será explicado posteriormente por meio do princípio das ‘três sabedorias’, isto é, as três condições naturais: essência, natureza e energia. Um dos exemplos mais claros que auxiliam a compreensão deste ponto é o espelho. De fato, a condição relativa e a absoluta podem ambas ser representadas por um espelho, a primeira pelas imagens refletidas e a última, pela capacidade intrínseca do espelho de refletir. O mesmo acontece com o estado do indivíduo. O que é o indivíduo? É aquele que possui o estado primordial de consciência, comparável à natureza do espelho que é pura, clara e límpida. Isto corresponde às três condições chamadas “essência, natureza e limpidez”. Tal como um reflexo emerge do espelho e, de certo modo, é uma qualidade do espelho, todos os pensamentos e todas as manifestações de nossa energia, quer seja bonita ou feia, são apenas a nossa própria reflexão, uma qualidade de nosso estado primordial. Se estivermos conscientes e se realmente estivermos neste estado, tudo se torna

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uma qualidade de nós e não haverá mais qualquer separação entre sujeito e objeto ou qualquer consideração sobre relativo ou absoluto.

Dissemos que, como indivíduos, somos compostos por nosso próprio estado primordial como essência, natureza e energia. Contudo, não devemos pensar nestes três aspectos como se fossem três objetos separados: a condição original é somente uma, e o fato de ser explicada por meio de três conceitos distintos é apenas para auxiliar a sua compreensão. Na verdade, não podemos definir ou distinguir “isto é pureza, aquilo é claridade e esse outro é limpidez”.

O que é a essência? A fim de descobrir o

que é o estado primordial é necessário refletir, o que neste caso envolve o corpo, fala e mente, mais particularmente esta última. De fato, é da mente que os pensamentos surgem. Se um pensamento surge enquanto estamos observando a mente, poderíamos procurar de onde o pensamento se originou, onde ele se mantém, onde ele desaparece. Contudo, no momento em que reconhecemos o pensamento, ele desaparece e não encontramos nada sequer: não há origem, não local onde se mantenha, nem lugar onde ele desaparece. Encontramos que não há nada, de onde se diz que a essência é vacuidade.

O conceito de vacuidade, sunyata, é muito

divulgado no Budismo Mahayana, particularmente na tradição Prajñaparamita. Contudo o ponto fundamental a ser entendido é que a vacuidade é a essência real dos fenômenos materiais e não uma entidade abstrata e separada. De fato, o mesmo exercício no qual se procura a origem do pensamento pode ser aplicado a qualquer objeto perceptível aos sentidos. Se enxergarmos um objeto bonito e analisarmos de onde vem essa “beleza” e onde ela desaparece, não achamos nada que seja concreto: tudo está no mesmo nível, tanto o objeto quanto o sujeito são, em essência, vacuidade. Assim também é a condição última da individualidade.

O que é claridade? Se a essência é

vacuidade isto não quer dizer que não exista nada. Quando observamos um pensamento e ele desaparece, imediatamente a seguir surge outro pensamento, que poderia ser “estou procurando a natureza do pensar e não estou achando nada!”. Isto também é um pensamento, não é? É um pensamento que pensa sobre a origem do pensar. Desta forma, muitos pensamentos surgem continuamente. Mesmo que possamos estar convencidos de que sua essência é vacuidade, eles ainda se manifestam continuamente. O mesmo se aplica aos nossos sentidos: todos os objetos que percebemos são o surgimento incessante de nossa visão kármica. Esta, então, é a natureza da claridade.

O que é a energia, ou a potencialidade da

energia? É a função ativa e ininterrupta da natureza de nosso estado primordial. Em geral, se fala da “função de sabedoria” em relação à visão pura de um ser iluminado e da “função da mente”

em relação à visão impura de samsara. Por exemplo, pensamos em algo e então seguimos este pensamento e entramos em ação. Ou ainda, enquanto estamos praticando, transformamo-nos em uma deidade com o mandala daquela deidade e dimensão pura. Tudo isto evidencia a visão pura de energia nos aspectos de sua continuidade e sua capacidade de produzir algo. Através de nossa energia surgem todas as manifestações em termos de sujeito e objeto, as quais podem ser puras ou impuras, bonitas ou feias, etc. Se colocarmos um cristal na luz solar, vemos imediatamente que ele irradia muitos raios luminosos. Neste caso, o cristal representa o estado do indivíduo e as cores que se manifestam externamente representam tudo o que vemos e percebemos pelos sentidos. Este “modo de manifestação” da energia, no qual a reflexão se manifesta externamente, é chamado tsal em tibetano. A visão impura ligada ao karma e à dimensão material e a visão pura no nível de sujeito e objeto são ambas manifestações de energia tsal.

Há também um modo no qual a energia se

manifesta “internamente”, no sujeito em si, da mesma forma que imagens se refletem num espelho: isto é chamado de rolpa. Por exemplo, quando fazemos uma prática tântrica e transformamos a nós mesmos na dimensão da deidade com seu mandala, estamos trabalhando com este tipo de energia, pois tudo está ocorrendo dentro de nós. Obviamente, no primeiro estágio da prática de transformação, é muito importante utilizar a mente, a concentração, etc., a fim de alcançar esta função concretamente. Mas em um certo ponto, a dimensão pura do mandala pode se manifestar mesmo sem qualquer esforço da nossa parte, e isto ocorre por meio da energia de rolpa.

A terceira maneira pela qual a energia se manifesta é chamada de dang, e representa somente a condição básica da energia, sua potencialidade para assumir qualquer forma conforme as circunstâncias. O exemplo tradicional é o de um cristal colocado em um tecido: o cristal assumirá a cor do tecido mesmo sendo por si mesmo transparente e sem cor.

Essência, natureza e energia são chamadas

de “as três sabedorias” porque elas representam o estado de iluminação em sua inteireza. O indivíduo possui estes três aspectos desde o próprio princípio e continua a tê-los mesmo após a realização da iluminação completa. Poderia se pensar “qual é, então, o objetivo de se fazer prática, se já temos as mesmas qualidades que um Buda tem?” “Basta apenas ficarmos quietos sem fazer nada!” É claro que podemos ficar quietos sem fazer nada pelo tempo que for possível se não tivermos perturbações, pelo tempo que for possível se estivermos realmente neste estado. Mas, se for de outra maneira, significa que somos escravos do dualismo, condicionados pelo objeto. Neste caso, não é suficiente pensar que temos a essência, natureza e energia: condicionados pela visão dualista que é exatamente o obstáculo que necessitamos superar para permitir que o sol do estado primordial brilhe novamente.

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Este é o motivo pelo qual o caminho é

necessário, o qual, por sua vez, engloba os três aspectos da visão, meditação e conduta. No Dzogchen a “visão”, ou perspectiva, não se refere a algo externo, significando simplesmente a observação de si mesmo para se descobrir a própria condição verdadeira. Basicamente, significa discernir o condicionamento dualista atuando no corpo, na fala e na mente a fim de superá-lo pela prática. O ensinamento do Dzogchen de forma alguma sugere que se deva construir uma nova gaiola no lugar desta na qual já nos encontramos; pelo contrário, serve como a chave que abre a porta desta gaiola. De fato, não basta descobrirmos que estamos presos na prisão do dualismo: necessitamos sair dela, este é o propósito de “meditar”.

Com relação ao segundo aspecto,

meditação, mesmo desde o princípio é necessário fazer uso dos métodos de concentração, respiração, etc., para acalmar a mente e dar o sustento a uma condição de estabilidade, o real propósito da meditação é a continuidade do estado desperto, isto é, a presença do estado primordial. Aqui deveríamos falar sobre contemplação, o ponto essencial do qual é a presença instantânea pura, ou rigpa. O praticante do Dzogchen procura compreender este estado de presença por meio de diversas experiências de vacuidade, clareza, sensações prazerosas, e assim por diante. De fato, a meta dos métodos dos sutras e tantras é tão somente também incitar experiências. O caminho verdadeiro do praticante do Dzogchen, contudo, é a contemplação. De fato, apenas quando estivermos contemplando é que todas as tensões de corpo, fala e mente são finalmente liberadas sem esforço: até descobrirmos e mantermos estabilidade neste estado, nossa experiência de relaxamento será incompleta. Contemplação, como sugerimos anteriormente, pode estar ligada a uma experiência de vacuidade, de clareza ou de gozo, mas seu estado é somente um: a presença instantânea de rigpa. Há vários métodos para reconhecer, estabilizar e integrar este estado a todas as circunstâncias da vida cotidiana em correlação às séries fundamentais do Dzogchen: Semde, Longde e Mennagde.

“Conduta”, o último dos três aspectos do

caminho, diz respeito à atitude que os praticantes devem ter com relação ao momento no qual eles “saem” de uma sessão contemplativa e assumem as suas demais atividades. O propósito disto é alcançar a integração total da contemplação com a vida cotidiana, superando qualquer diferenciação que possa haver entre meditação e não-meditação.

Retomemos agora o terceiro e último aspecto do ensinamento do Dzogchen, o fruto ou o “resultado” da prática: a realização. Já dissemos que o estado primordial contém de forma potencial a manifestação da iluminação. O sol, por exemplo, possui naturalmente luz e raios, porém, quando o céu está nublado, ninguém

pode vê-los. As nuvens, neste caso, representam nossos obstáculos que são um resultado do dualismo e condicionamento: quando forem superados, o estado da auto-perfeição brilha com todas as suas manifestações de energia, sem que nada tenha sido alterado ou melhorado. Este é o princípio característico do Dzogchen. Não compreender este ponto pode levar à idéia de que o Dzogchen é o mesmo que o Zen e o Ch’an. Em seu âmago, o Zen, que sem dúvida alguma é um ensinamento budista elevado e direto, é baseado no princípio da vacuidade tal como esta é explicada em sutras como o Prajñaparamita. Mesmo deste ponto de vista, em conteúdo, não há diferença com o Dzogchen, a particularidade do Dzogchen reside na introdução direta ao estado primordial não como “vacuidade pura” mas sim como este estando dotado com todos os aspectos da auto-perfeição de energia. É por meio da aplicação destes que se atinge a realização.

Com respeito ao fruto, há os três kayas,

“corpos” ou “dimensões”: Dharmakaya, Samboghakaya e Nirmanakaya. De forma alguma os kayas são níveis de realização: não há como haver um Dharmakaya sem um Nirmanakaya, e vice-versa. Para entender o seu significado, devemos retornar aos conceitos de essência, natureza e energia. Kaya significa “corpo”, e, por isso, a dimensão completa, tanto a material quanto a imaterial, na qual nós próprios nos achamos. Assim, o Dharmakaya é a dimensão total da existência, sem qualquer exclusão. Por isso, corresponde à essência, a condição inefável e imensurável além dos conceitos e limites do dualismo.

Sambogha quer dizer “bem-aventurança”,

“desfrute”, portanto, Samboghakaya quer dizer “a dimensão da bem-aventurança”. Neste caso, bem-aventurança não se refere a algo material, mas sim, às qualidades perfeitas-por-si-mesmas que se manifestam através das substâncias dos elementos, isto é, por meio das cores. De fato, quando os elementos tomam o estado material, eles passam do nível de “cor” ao nível sólido dos elementos físicos. Em resumo, tudo o que consideramos ser a dimensão pura da mandala e da deidade pertence ao Samboghakaya, a fonte de transmissão do tantra. Este corresponde ao aspecto da “natureza” de claridade do estado primordial.

Nirmana significa “manifestação”,

“emanação” e corresponde ao aspecto da energia ininterrupta. Então, Nirmanakaya quer dizer “dimensão da manifestação”. De fato, através da energia, tanto a visão pura quanto a impura podem se manifestar e ambas são acreditadas como dimensão Nirmanakaya. A visão pura transcende a dimensão material e constitui a essência dos elementos, enquanto que a visão impura ao que é chamado de “visão kármica”, produzida como a conseqüência de determinadas ações feitas no passado.

A palavra nirmanakaya pode também se

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referir a um indivíduo realizado, tal como o Sakyamuni Buddha, que assumiu uma forma física para transmitir os ensinamentos. De fato, apenas no Nirmanakaya é que os ensinamentos podem ser ditos e transmitidos em termos de sujeitos e objeto. O Samboghakaya é aquela dimensão na qual as potencialidades de som, luz e raios (sgra, ‘od e zer), as três fontes fundamentais da manifestação, aparecem como a visão pura da mandala, a origem dos ensinamentos tântricos. Os livros chamados “tantras”, que contêm as revelações destas manifestações, constituem o testemunho de mestres que tiveram contato direto com o Samboghakaya e, somente depois, puseram por escrito. No que toca ao ensinamento do Dzogchen em particular, os seus tantras se diz que emanaram diretamente do Dharmakaya, simbolizado pelo Buda primordial Samantabhadra, cuja imagem é a de um Buda azul celeste, nu e sem adornos, a pureza original do estado do indivíduo. No terceiro dia da oitava Lua do ano de Kuei Chou, o segundo Ano da Era Hsien T'ien (A.D. 713), depois de alimentar-se no Monastério Kuo En, o Patriarca Hui Neng, dirigiu-se aos seus discípulos como segue: “Por favor, sentai-vos, pois eu vou me despedir”. Logo após Fa Hai falou ao Patriarca, “Mestre, vós podeis deixar para a posteridade instruções exatas por meio das quais as pessoas sob ilusão possam perceber a natureza de Buddha?” - “Não é impossível”, respondeu o Patriarca, “para estes homens perceberem a Natureza de Buddha, contanto que eles se harmonizem com a natureza dos seres sensíveis comuns. Mas buscar o Estado Búddhico sem tal conhecimento seria em vão até mesmo se a pessoa gastasse eons de tempo na procura”.

A NATUREZA DE BUDDHA Hui Neng

“Agora, irei mostrar-vos como vos familiarizar

com a natureza dos seres sensíveis dentro das vossas mentes, e assim perceber a Natureza Buddha oculta em vós. Conhecer Buddha significa nada mais do que conhecer os seres sensíveis; sendo os últimos ignorantes de que são Buddhas em potencial, um Buddha [ao contrário] não vê nenhuma diferença entre ele mesmo e os outros seres. Quando os seres sensíveis percebem a Essência da Mente, eles serão Buddhas. Se um Buddha está sob ilusão em sua Essência da Mente, ele é então um ser comum.

Pureza na Essência da mente faz de seres comuns, Buddhas. Impureza na Essência da Mente reverterá mesmo um Buddha em um ser comum. Quando vossa mente está distorcida ou corrompida, sereis seres comuns com a Natureza Buddha em vós. Por outro lado, quando vós direcionais vossas mentes para a pureza e

correção por até mesmo um momento, vós sereis um Buddha.

Dentro de nossa mente há um Buddha, e aquele Buddha interior é o Buddha real. Se Buddha não for buscado dentro de nossa mente, onde acharemos o Buddha real?

Não duvideis que aquele Buddha está dentro de sua mente, fora da qual nada pode existir. Considerando que todas as coisas ou fenômenos são a produção de nossa mente, o Sutra diz, ‘Quando a atividade mental começa, coisas vêm a existir; quando a atividade mental cessa, as coisas deixam igualmente de existir’.

Ao separar-me de vós, irei vos legar versos intitulados ‘O Buddha Real da Essência da Mente’.

Em futuras gerações, os que entenderem seu significado perceberão a Essência da Mente e atingirão o Estado Búddhico. Assim são os versos”:

A Essência da Mente ou Tathata (Assim Ser) é o

Buddha real, Enquanto as visões errôneas e os três elementos

venenosos são Mara. Iluminado por Visões Corretas, nós estimulamos o

Buddha dentro de nós. Quando nossa natureza é dominada pelos três

elementos venenosos É dito que somos possuídos por Mara;

Mas quando Visões Corretas eliminam de nossa mente estes elementos venenosos

Mara será transformado em um Buddha real. O Dharmakaya, o Sambhogakaya e o Nirmanakaya

– Estes três Corpos emanam do Um (a Essência da

Mente). Aquele que pode perceber este fato intuitivamente

Semeou a semente, e recolherá os frutos do Esclarecimento.

É do Nirmanakaya que nossa Natureza Pura emana;

Dentro do último, o primeiro será achado. Guiado pela Pura Natureza, o Nirmanakaya trilha

o Correto Caminho, e vai algum dia atingir o Sambhogakaya, perfeito e

infinito. ‘Pura Natureza’ é uma conseqüência natural de

nossos instintos sensuais; Libertando-nos da sensualidade, atingimos o Puro

Dharmakaya. Quando nosso temperamento é tal que não somos

mais escravos dos cinco objetos da sensação, E quando percebemos a Essência da Mente mesmo

que por apenas um momento, então a Verdade nos é revelada.

Se formos afortunados a ponto de sermos seguidores da Escola Súbita nesta vida,

Em um instante veremos o Bhagavat de nossa Essência da Mente.

Aquele que busca o Buddha (externamente) praticando certas doutrinas

Não sabe onde o Buddha real será achado. Aquele que pode perceber a Verdade dentro da sua

própria mente Cultivou a semente do Estado Búddhico.

Aquele que não percebeu a Essência da Mente e busca o Buddha externamente

É um tolo motivado por desejos equivocados.

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Eu deixei portanto à posteridade o ensinamento da Escola Súbita

Para a salvação de todos os seres sensíveis que se preocuparem em praticá-lo.

Ouçam-me, discípulos futuros! Seu tempo será desperdiçado se negligenciares

em pôr este ensino em prática. Tendo recitado estes versos, ele acrescentou, “Cuidem-se. Depois de minha passagem, não caiam nos hábitos mundanos, chorando e lamentando. Nem mensagens de condolência devem ser feitas, nem luto ser usado. Estas coisas são contrárias ao Ensino Correto, e aquele que as faz não é meu discípulo. O que vós deveis fazer é conhecer vossas próprias mentes e perceber vossa própria Natureza Búdica que nem descansa nem se move, não nasce nem deixa de existir, não vem nem vai, não afirma nem nega, não fica nem parte. Para que vossas mentes não sucumbam à ilusão e assim não capteis o [correto] significado, eu repito estas palavras para permitir-vos perceber vossa Essência da Mente. Depois de minha morte, se levais a cabo minha instrução e a praticardes adequadamente, o fato de meu ser estar longe de vós não fará diferença. Por outro lado, se vós fordes contra meu ensino, nenhum benefício seria obtido, até mesmo se eu continuasse aqui”.

Então ele proferiu outros versos:

“Imperturbável e sereno, o homem ideal não pratica nenhuma virtude.

Auto-centrado e imparcial, ele não comete nenhum pecado.

Tranqüilo e silencioso, ele deixa de ver e ouvir. Harmônica e bem organizada, sua mente não

habita em nenhuma parte.

Havendo articulado tais versos, ele se sentou reverentemente até a terceira hora da noite. Então, abruptamente disse aos seus discípulos,

“Parto agora”, e rapidamente faleceu. Uma fragrância peculiar penetrou seu quarto, e um arco-íris lunar surgiu, parecendo unir terra e céu. As árvores na floresta empalideceram, e os pássaros e feras choraram tristemente.

Na décima primeira Lua daquele ano a

controvérsia sobre em qual lugar o corpo do Patriarca descansaria deu lugar a uma disputa entre os funcionários governamentais de Kuang Chou, Shao Chou e Hsin Chou, cada grupo ansioso por ter os restos do Patriarca removidos para seu próprio distrito. Os discípulos do Patriarca, junto com outros monges e leigos, tomaram parte na controvérsia. Estando impossibilitados de chegar a qualquer acordo entre eles, eles queimaram incenso e rezaram ao Patriarca para que ele indicasse na direção do vento da fumaça o lugar que ele escolheria. Como a fumaça virou diretamente a Ts'ao Ch'i, o santuário (no qual o corpo foi mantido) junto com

o manto herdado e a tigela, foi levado de volta adequadamente para lá no 13º dia da 11ª Lua.

No ano seguinte, no 25º dia da sétima Lua, o corpo foi tirado do santuário, e Fang Pien, um discípulo do Patriarca, emplastou-o com barro perfumado. Recordando a predição do Patriarca que alguém cortaria sua cabeça, os discípulos, como precaução, envolveram seu pescoço com aros de ferro e panos envernizados antes do corpo ser colocado no stupa. De repente, um raio de luz branca saiu do stupa, foi diretamente para o céu, e não se dispersou até três dias depois. O incidente foi informado apropriadamente ao Trono pelos funcionários do Distrito de Shao Chou.

Através de ordem imperial, foram erguidas tábuas registrando a vida do Patriarca.

O Patriarca herdou o manto quando tinha 24 anos, teve o cabelo raspado (i.e., foi ordenado) aos 39, e morreu à idade de 76. Durante trinta e sete anos ele pregou para o benefício de todos os seres sensíveis. Quarenta e três dos seus discípulos herdaram o Dharma, e através de seu consentimento expresso se tornaram seus sucessores; aqueles que atingiram o esclarecimento e assim saíram do plano dos homens comuns eram muito numerosos para serem contados.

O manto transmitido por Bodhidharma como insígnia do Patriarcado, o manto Mo Na e a tigela de cristal presenteados pelo Imperador Chung Tsung, a estátua do Patriarca feita por Fang Pien, e outros artigos sagrados, foram postos sob responsabilidade do guardião do stupa. Eles seriam mantidos permanentemente no Monastério Pao Lin para guardar o bem-estar do templo.

O Sutra falado pelo Patriarca foi publicado e divulgado para tornar conhecido os princípios e objetivos da Escola do Dharma.

Todos estes passos foram dados pela prosperidade das Três Jóias (Buddha, Dharma, e Sangha) assim como para o bem-estar geral de todos os seres sensíveis.

EXTRATO DO Sutra da Plataforma

O ESTADO DE BUDDHA Dilgo Khyentse Rinpoche

Como o samsara se manifesta? O que quer que percebamos ao nosso redor com nossos cinco sentidos, todos os tipos de sentimentos de relação e repulsão, se formam em nossa mente. Não são as percepções em si que nos mantém no ciclo de existências, mas sim o modo pelo qual reagimos a elas e o modo pelo qual as interpretamos. É nisso que o Vajrayana nos dá meios extraordinários para não perpetuar o samsara: ele nos mostra como perceber os fenômenos como sendo a exibição pura da sabedoria.

O ódio ou a raiva que possamos sentir por alguém não são inerentes àquela pessoa. Eles existem apenas em nossa mente. Assim que vemos o nosso inimigo, nossos pensamentos se fixam na

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memória do mal que ele fez para nós, em seus ataques presentes e naqueles que poderá fazer no futuro. Nos tornamos irritados a ponto de não sermos mais capazes de suportar o som de seu nome. Quanto mais liberdade nós damos a estes pensamentos, mais a raiva irá nos invadir e, com ela, a vontade irresistível de pegar uma pedra para lhe jogar, ou de um bastão para lhe bater. Deste modo, um simples instante de raiva nos conduz ao paradoxo do ódio.

O ódio parece muito poderoso para vocês, mas de onde ele tira o poder de dominá-los a esse ponto? É uma força externa, com braços e pernas, armas e guerreiros? Ou é uma força interna, que está dentro de vocês? Se esse for o caso, vocês podem identificá-la em seu cérebro, em seu coração, ou em alguma parte de vocês?

Apesar de ser impossível de localizá-lo, o ódio parece ter uma presença muito concreta que tende a amarrar a mente, a solidificá-la, e desse modo desatrelar todo um processo de sofrimento para vocês e para os outros. Assim como as nuvens que, apesar de serem insubstanciais para suportar o menor peso, podem encobrir o céu e o sol, do mesmo modo os pensamentos podem obscurecer o brilho da consciência iluminada. Reconheçam a vacuidade da mente, sua transparência, e ela retornará por si mesma ao seu estado natural de liberdade. Reconheça a vacuidade do ódio e ele perderá seu poder de fazer o mal. Ele se tornará a sabedoria que é como o espelho.

Quando falamos da ignorância, nos referimos ao fato de que não estamos conscientes de nossa natureza de Buddha. Comportamos-nos como um mendigo que possui uma jóia preciosa, mas a joga fora porque não sabe do seu valor. É por causa da ignorância que não acreditamos no karma, nas conseqüências inevitáveis de nossos atos. Congelados pela ignorância, falhamos em reconhecer a vacuidade e persistimos em acreditar na realidade dos fenômenos. Esta crença é a fonte de todas as percepções ilusórias e é a raiz das oitenta e quatro mil emoções negativas.

Porém, ao contrário das trevas de uma caverna subterrânea, escondida da luz solar, a ignorância não é eterna. Como qualquer fenômeno, ela pode emergir apenas da vacuidade e não tem existência independente. Uma vez que vocês tenham reconhecido sua verdadeira natureza, a vacuidade, a ignorância se transforma na sabedoria da dimensão absoluta.

Deixados por si mesmos, os pensamentos criam o ciclo das existências. Na ausência do exame crítico, eles retêm sua realidade aparente, perpetuando o samsara com uma força que aumenta cada vez mais. Porém, nenhum deles, seja bom ou ruim, possui a menor realidade tangível. Todos, sem exceção, são inteiramente vazios, como arco-íris, imateriais e intocáveis. Nada pode alterar a natureza de Buddha, mesmo quando os véus superficiais a escondem de nossa visão.

Os pensamentos são o jogo da consciência. Eles surgem nela e se dissolvem nela. Se reconhecermos que esta consciência está na própria origem dos pensamentos, deveremos

compreender que os pensamentos nunca começaram, continuaram ou deixaram de existir. Neste ponto, os pensamentos são incapazes de perturbar a mente.

Enquanto corrermos atrás de nossos pensamentos, seremos como o cachorro que corre atrás de uma pedra; não importa quantas pedras joguemos, ele correrá atrás delas a toda hora. Porém, se olharmos para a consciência, que está na origem de todos os pensamentos, cada pensamento surgirá e se dissolverá dentro do espaço dessa consciência, sem gerar outros pensamentos. Deste modo, seremos como um leão, que não corre atrás da pedra, mas sim atrás daquele que a jogou... e só se joga uma pedra em um leão!

Para conquistar a cidadela não-criada da natureza da mente, devemos ir à fonte e reconhecer a origem dos pensamentos. De outro modo, um pensamento dará origem a um segundo, então a um terceiro e assim por diante. Assim, estamos constantemente obcecados pelas memórias do passado, antecipamos o futuro e perdemos a consciência do momento presente.

Vamos preservar o estado da simplicidade. Se experimentarmos felicidade, sucesso, abundância e outras condições favoráveis, devemos considerá-las como sonhos, ilusões, e não nos apegarmos a elas. Se formos golpeados pela doença, calúnia, destituição ou por outras provações físicas ou morais, devemos evitar ficar desencorajados, reavivar nossa compaixão e desejar que os sofrimentos de todos os seres esgotem-se pelo nosso sofrimento. Então, em todas as circunstâncias, sem cair nos estados de euforia ou desespero, vamos permanecer livres, à vontade, desfrutando da serenidade imperturbável.

Se a nossa mente, for livre do passado e do futuro, e repousar em um estado de consciência clara, sem ser atraída por objetos externos ou preocupar-se com elaborações mentais, ela ficará na simplicidade primordial. Neste estado, a mão de ferro da vigilância forçada não tem a necessidade de imobilizar os pensamentos. Diz-se que “o estado de Buddha é a simplicidade natural da mente”. Uma vez que tenhamos esta simplicidade, devemos preservá-la com uma atenção livre de esforço. Devemos assim desfrutar da liberdade interior, dentro da qual é desnecessário bloquear os pensamentos ou temer que eles interrompam a meditação.

O estado de Buddha parece ser uma meta distante, virtualmente fora de nosso alcance. Porém, a vacuidade natural de nossa mente é o Corpo Absoluto (Dharmakaya), sua expressão luminosa é o Corpo do Êxtase Perfeito (Sambhogakaya), a compaixão universal que emana dele é o Corpo Manifesto (Nirmanakaya), e a unidade intrínseca destes três corpos é o Corpo Essencial. Estes quatro corpos do Buddha, ou kayas, sempre estiveram presentes em nós; é apenas por ignorar a sua presença que nós os consideramos como sendo uma meta externa.

“Minha meditação está correta? Quando farei progresso? Jamais atingirei o nível de meu mestre espiritual”. Dividida entre a esperança e a dúvida,

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nossa mente nunca está em paz. Conforme o nosso humor, um dia praticamos intensamente e, no dia seguinte, nem tanto. Somos apegados às experiências agradáveis que emergem do estado de calma mental e desejamos abandonar a meditação quando falhamos em tentar reduzir o fluxo de pensamentos. Esse não é o modo correto de praticar.

Qualquer que seja o estado em que nossos pensamentos estejam, devemos nos aplicar constantemente à prática regular, dia após dia, observando o movimento de nossos pensamentos e voltando até a origem deles. Não devemos esperar ser imediatamente capazes de manter, dia e noite, o fluxo de nossa concentração. Quando começamos a meditar sobre a natureza da mente, é preferível fazer sessões curtas de meditação, várias vezes por dia. Com perseverança, realizamos progressivamente a natureza de nossa mente, e essa realização se tornará mais firme. Neste estágio, os pensamentos terão perdido o poder de nos perturbar e de nos subjugar.

A vacuidade, a natureza última do Dharmakaya, o Corpo Absoluto, não é um simples “nada”. Ela possui, intrinsecamente, a faculdade de conhecer os fenômenos. Esta faculdade é o aspecto luminoso ou cognitivo do Dharmakaya, cuja expressão é espontânea. O Dharmakaya não é o produto de causas e condições; é a natureza original da mente.

O reconhecimento desta natureza primordial assemelha-se ao nascer do sol da sabedoria na noite de ignorância: a escuridão é dissipada instantaneamente. A claridade do Dharmakaya não aumenta e diminui como a lua; é como a luz imutável que brilha no centro do sol.

Quando as nuvens se amontoam, a natureza do céu não é corrompida; e quando as nuvens se dispersam, ela não é melhorada. O céu não se torna menos ou mais vasto. Ele não muda. É o mesmo com a natureza da mente: ela não é deteriorada pela chegada dos pensamentos, nem melhorada pelo desaparecimento deles.

A natureza da mente é a vacuidade; sua expressão é a claridade. Estes dois aspectos são, essencialmente, um único aspecto – simples imagens projetadas para indicar as diversas modalidades da mente. Seria inútil se apegar em torno da noção de “vacuidade” e então da “claridade”, como se fossem entidades independentes. A natureza última da mente está além de todos os conceitos, de toda definição e de toda fragmentação.

“Eu poderia caminhar sobre as nuvens!”, diz uma criança. Mas se ela alcançasse as nuvens, não encontraria lugar algum para colocar seus pés. Igualmente, se não examinarmos os pensamentos, eles apresentam uma aparente solidez; mas se os examinarmos, nada há lá. Isso é o que se chama ser, ao mesmo tempo, vazio e aparente.

A vacuidade da mente não é o nada, nem um estado de entorpecimento, pois ela possui, por sua própria natureza, uma faculdade luminosa de conhecimento (Sambhogakaya), que é chamada de consciência, ou consciência iluminada. Estes

dois aspectos, a Vacuidade e a Consciência, não podem ser separados. Eles são essencialmente um, como a superfície do espelho e as imagens que são refletidas nela.

Os pensamentos se manifestam dentro da vacuidade e são reabsorvidos nela, assim como um rosto que aparece e desaparece em um espelho; o rosto nunca esteve no espelho, e quando cessa o reflexo, ele não deixa de existir realmente. O próprio espelho nunca mudou. Assim, antes de entrarmos no caminho espiritual, permanecemos no assim chamado estado “impuro” do samsara, que é, aparentemente, governado pela ignorância. Quando nos comprometemos nesse caminho, cruzamos por um estado onde a ignorância e a sabedoria estão misturadas. Ao final, no momento da Iluminação, apenas o conhecimento puro existe, mas ao longo do caminho desta jornada espiritual, apesar de aparentemente existir uma transformação, a natureza da mente nunca mudou: ela não era corrompida ao entrar no caminho e não foi melhorada na hora da realização.

As qualidades infinitas e inexprimíveis do conhecimento primordial – o verdadeiro nirvana – são inerentes à nossa mente. Não é necessário criá-las, fabricar algo novo. A realização espiritual serve apenas para revelá-las através da purificação, que é o próprio caminho. Finalmente, se considerarmos do ponto de vista último, estas qualidades são, por si mesmas, apenas o vazio. Assim, o samsara é vacuidade, o nirvana é vacuidade – e, conseqüentemente, um não é “mal” e nem o outro é “bom”. Quem realizou a natureza da mente é livre do impulso de rejeitar o samsara e de obter o nirvana. É como uma criança que contempla o mundo com uma simplicidade inocente, sem conceitos de beleza ou feiúra, de bem ou mal. Ele não é mais vítima de tendências conflitantes, a fonte dos desejos ou aversões.

De nada serve preocupar-se com os rompimentos da vida diária, como uma criança que se alegra ao construir um castelo de areia e que chora quando ele desmorona. Veja como os seres pueris se jogam nas dificuldades, como uma borboleta que mergulha na chama de um lampião, para se apropriarem do que desejam e se libertarem do que odeiam. É melhor deixar o fardo, que todos estes apegos imaginários trazem, do que suportá-lo em cima de nós.

O estado de Buddha contém, em si mesmo, cinco “corpos” ou aspectos do estado búdico: o Corpo Manifesto, o Corpo do Êxtase Perfeito, o Corpo Absoluto, o Corpo Essencial e o Imutável Corpo de Diamante. Eles não devem ser buscados fora de nós: eles são inseparáveis do nosso ser, de nossa mente. Assim que tenhamos reconhecido esta presença, há um fim para a confusão. Não teremos mais qualquer necessidade de buscar a Iluminação a partir de fora. O navegante que aportou em uma ilha feita inteiramente de fino ouro não irá encontrar uma simples pedra, não importa o quanto procure. Devemos entender que todas as qualidades do Buddha sempre existiram inerentemente em nosso ser.

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Extrato do livro: Natureza de BudaNatureza de BudaNatureza de BudaNatureza de Buda O Uttaratantra de Budha Maitréya

(Págs. 16-19)

Comentado por Khenchen Thrangu Rinopoche

Traduzido por Tamas Virag

Algumas religiões acreditam que, se

satisfizermos a Deus, ou aos deuses, seremos recompensados e obteremos maior felicidade. Também acreditam que, se os ofendermos, sofreremos infortúnios e iremos para reinos infernais. Isto não ocorre nos ensinamentos budistas. O que acontece a qualquer ser em particular não é o resultado de agradar ou desagradar a algum deus. Os ensinamentos do Budha baseiam-se no estudo da verdadeira natureza das coisas; somente quando a natureza dos fenômenos é completamente compreendida é que realizará a condição de Budha (correspondendo à liberação e à felicidade suprema). Caso contrário, continua-se a viver uma existência condicionada (samsara).

A chave para todos os ensinamentos budistas é a dupla ausência de identidade, tanto própria quanto dos fenômenos.

Nota: Existem dois tipos de ausência de

identidade – a não-identidade do outro, ou seja, a vacuidade dos fenômenos externos; e a não-existência do eu pessoal, a vacuidade de si mesmo. A ausência de identidade da pessoa afirma que, quando examinamos ou procuramos por ela (por sua realidade última), constatamos que ela é vazia e sem identidade. A pessoa não possui uma identidade independente ou substancial (atmam). A maioria das escolas budistas sustenta este ponto de vista.

A doutrina da não-identidade dos fenômenos afirma, da mesma forma, que, quando examinamos os fenômenos externos, descobrimos que os mesmos são também vazios, ou seja, não têm uma natureza independente ou substância própria. Este ponto de vista é sustentado apenas pelas escolas Mahayana.

A não-identidade dos fenômenos, nos escritos de C. Trungpa Rinpoche, inclui a falta de existência inerente da consciência. Esta visão vem de Maitreya e é denominada Shentong, enquanto que na perspectiva da meditação analítica, proposta pelos mestres Nagarjuna e Chandrakirti, denomina-se visão Rangtong. Nesta última, já que os fenômenos existem apenas em dependência da consciência que os percebe e vice-versa, não faz sentido discutí-los como se fossem entidades independentes (em outras palavras, percepção e consciência são inseparáveis).

Normalmente, acreditamos que somos uma

identidade separada; semelhante crença surge da idéia de um ‘eu’ (tal crença, junto com o desconhecimento da nossa verdadeira natureza, denomina-se “ignorância básica”). Assim que pensamos ‘eu’, ‘si-mesmo’, cria-se a tendência de

tentar manter esta identidade num estado de felicidade e conforto, gerando o que denominamos desejo. Quando este “eu” sente-se ameaçado, gera a raiva. Este ‘eu’ também acredita ser superior ou melhor do que os outros, gerando orgulho. Se este ‘eu’ teme haver outros que são tão bons ou melhores do que ele próprio, gera-se a inveja ou ciúme. Resumindo, assim que surge a crença de que um ‘eu’ individual existe como uma entidade real, todas as cinco emoções negativas (kleshas) do desejo, raiva, ignorância, orgulho, e inveja-ciúme são geradas. Crer na existência dos fenômenos é uma conseqüência direta da crença na realidade do ‘eu’. Acreditando que existimos separadamente, passamos a acreditar que todos os fenômenos também existem assim.

Nota: não enxergando que a natureza da nossa

mente é a vacuidade, falhamos em reconhecer este fato. Então, falsamente fabricamos a noção de uma identidade separada, existente por si mesma, e nos apegamos a ela como algo sólido. Ao mesmo tempo, a mente possui o aspecto da lucidez desobstruída. Falhando em reconhecer este aspecto claro e desobstruído da mente, pensamos que as outras coisas existem, e nos apegamos a elas como sendo distintas e reais. Tendo gerado a presunção de que ‘eu’ e ‘outro’ existem verdadeiramente, por conta própria, apego e aversão se sucedem – o apego vindo da proximidade, e a aversão, da sensação de distância. [ou do gostar e do não gostar]. O apego produz o “agarrar-se” aos objetos de desejo, [apropriar-se] e a aversão, o afastamento daquilo que desgostamos. Conceitos duais decorrentes do não-reconhecimento da nossa natureza vazia e clara da mente brotam do apego e da aversão. Esta dualidade precisa ser superada. Devido a apegarmo-nos à dualidade do ‘eu’ e do ‘outro’, agarramo-nos a todas as experiências e coisas como existindo de forma concreta ou abstrata (através da imputação).

Jamgon Kongtrul Rinpoche

O objetivo principal da prática budista é

eliminar a crença na realidade (absoluta, separada, em si mesmo) do ‘eu’ e, portanto, dos fenômenos. A melhor maneira de fazer isso é investigar a localização daquele que pensa ‘eu sou’. Quando pensamos ‘eu’, indagamos: “Quem está pensando ‘eu’?”. A seguir tentamos encontrar este ‘eu’ em algum lugar. Ao meditar sobre isso e fazendo uma investigação apurada, não encontramos nada que possa ser chamada de ‘eu’. Através deste processo, compreenderemos que esta identidade não tem existência objetiva. [...]

A crença na existência de fenômenos reais e

substanciais é mais dificil de eliminar. Contudo, quando se considera a natureza das aparências mais de perto, começamos a ver que os fenômenos se assemelham muito mais a uma bolha na água, ou a um sonho. Eles não são nem sólidos nem reais.

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[...] A vacuidade é a ausência de uma identidade própria, mas ela não deve ser compreendida como um vácuo completo, nem como um espaço em branco ou o nada. Shunyata tem uma qualidade diferente; esta vacuidade é, por natureza, claridade luminosa (Tib. Salwa: brilho, claridade, luminosidade; não como uma luz física, mas como consciência contínua, a capacidade de conhecer, que a mente sempre possui). Ter a natureza da claridade luminosa significa que, quando os seres ainda estão num estado impuro, todas as variadas aparências dos fenômenos podem manifestar-se dentro da mesma. Quando os indivíduos eliminam as suas impurezas [obstáculos], dentro dessa mesma claridade, a condição Budha pode manifestar-se através dos corpos de Budha (Sansc. Kayas) e atividades búdicas.

Tal vacuidade está preenchida de todas as

possibilidades. Para que tudo possa manifestar-se nas fases pura e impura, a vacuidade deve ser inseparável da claridade luminosa, que representa o muito vívido aspecto de Sabedoria da Natureza de Budha ou da Essência Búdica. Esta união é a essência de todos os Budhas e está presente na mente de todos os seres. Se pudermos experenciar a unidade da vacuidade com a claridade luminosa, poderemos alcançar a Condição de Budha, cuja essência está presente em todos os seres, independente de raça, classe social, gênero, etc.

O motivo pelo qual não reconhecemos a

essência da iluminação é por ela estar obscurecida por máculas. Podemos distinguir três estágios de obscurecimentos na fase impura, no estágio dos seres comuns, a essência búdica está totalmente encoberta; na segunda fase, a dos Bodhisattvas, as impurezas estão levemente removidas e os obscurecimentos estão parcialmente dissolvidos; por fim, na fase da pureza total, tornamo-nos Budhas.

O conceito de Natureza Budha é central nos

ensinamentos budistas e é, por vezes, referido pela palavra sânscrita gharba*, que significa o cerne mais profundo. Por exemplo, se tivermos um grão com casca, ou casulo, o miolo do grão é chamado de “gharba”. Da mesma maneira, os seres humanos contêm a essência da Condição de Budha, mas impurezas transitórias a recobrem. Este cerne, a Natureza de Budha, ou Essência Búdica, é o tópico principal do Uttaratantra.

Conforme mencionado antes, há duas

maneiras diferentes pelas quais esta Natureza de Budha pode ser compreendida. A tradição de Loden Sherab, baseada na abordagem mais intelectual, está conectada à escola Madhyamaka. A tradição de Tsen Kawoche envolve a apreensão imediata do tema através da meditação. Esta ultima abordagem é mais direta, nela medita-se sobre o Mahamudra e sobre o significado real da natureza dos fenômenos.

* Tathâgatagharba = Essência do Tathagata, Essência Búdica, Natureza Budha ou Natureza da Mente.

Compilação dos textos: K. T. Dhargye

INTRODUÇÃO À NATUREZA DA MENTE

As instruções orais desenvolvidas pelo precioso Mestre do Dharma:

Chetsangpa Ratna Sri Budhi

Extrato do livro: “La simplicité de la Grande Perfection” – James Low - [págs. 99-129] – Tradução

p/Português, K. Tenpa Dhargye

Enquanto tivermos as liberdades e as

oportunidades de uma preciosa existência humana que é tão difícil de obter, é importante conseguir o resultado permanente da budeidade. Para tanto, é necessário praticar o santo é precioso Dharma. Dizemos que os métodos da prática da Via do santo Dharma estão bem além da compreensão, mas para nós, grandes meditantes, as explicações e os comentários internos dos tantras não são tão importantes. Temos necessidade de uma instrução oral de nosso santo e realizado mestre, pela qual possamos compreender que a essência da mente é a raiz do samsara e do nirvana. Se isso ficar verdadeiramente esclarecido, então todas as doutrinas expressas pelo Budha, sutras e tantras, e as doutrinas e os tratados de instruções cruciais dos grandes discípulos estarão totalmente presentes em nossa própria mente. Quando se produz isso, acontece o que chamamos “saber uma coisa, liberar todas as coisas”. Se a essência da mente não for compreendida, ainda que conheçamos numerosos Dharmas – tal conhecimento será vasto, mas seu centro é vazio – saberemos muito, mas não poderemos realizar uma única coisa. Por esta razão, somente a compreensão da essência da mente é necessária.

Se perguntarmos como a mente deve ser compreendida, bem, é graças a um conhecimento claro dos três aspectos que são a Base [gZhi], a Via [Lam] e o Fruto [‘Bras-Bu].

1. A BASE Consideremos de início a condição natural da

Base. A condição natural de nossa própria mente é primordial, não bloqueada, e surge sem esforço. Ela não é produzida pela meditação dos budhas e não é afetada pela ignorância dos seres sensíveis. A natureza original da mente não depende de causas e condições. Ela é vazia, sem substância própria inerente, e é livre da elaboração conceitual. No início a mente em-si é sem origem, também é vazia. No meio, é sem morada, também vazia. No final, não tem destino, e também é vazia. A essência da mente não pode ser agarrada como isto ou aquilo (objeto), é mesmo vazia. Pois não tem forma nem cor, é vazia. Esta vacuidade, porém não é o nada, porque a claridade natural da mente é pura e permeia todas as coisas.

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A mente em si-mesma é a criadora do samsara e do nirvana. Imutável, ela aparece sem esforço. Todas as coisas podem aparecer, mas não têm nenhuma substância própria inerente. A mente é profunda, precisa, e além de qualquer medida. Ela pode parecer existir, mas na verdade, é vazia de entidade própria e de sinais. Ela pode parecer existir, entretanto mostra numerosas formas ilusórias. A natureza original da mente está além do pensamento e não se torna um objeto do pensamento. É impossível dizer com que ela se parece. Ela está além do pensamento, e é inexprimível. Não é manchada por nenhuma falta ou boa qualidade, quaisquer que sejam. A natureza original da mente não é obscurecida por nenhuma das boas ou más condições cármicas. Não se suja com nenhuma impureza da crença em símbolos. Os nomes de todos os fenômenos do samsara e do nirvana lhe não podem ser aplicados.

A natureza original da mente é livre de qualquer limitação dualista tal como permanente e impermanente, esperança e dúvida, refrear e encorajar, aceitar e rejeitar, bom e mau, grande e pequeno, alto e baixo, preso e livre, alegre e triste, etc.

A natureza original da mente não foi feita por ninguém. Não podemos lhe atribuir nenhum tamanho ou dimensão. É livre de toda parcialidade. Ela está além do fato de alguma coisa ser designada por: “é isso”. Sempre foi perfeitamente pura e permanece na grande equanimidade diante de tudo que existe no samsara e no nirvana. Para aqueles que realizam isso, ela é o fundamento ou a Base [gZhi] da budeidade. Para aqueles que não realizam, ela é a base dos seres sensíveis. É por isso que a chamamos a Base de Tudo (Kun-gZhi].

2. A VIA

No que se refere ao Caminho, a prática

consiste em compreender o engano a fim de que a confusão seja liberada. Primeiramente, no que se refere ao modo de extravio, resumidamente, a condição natural da mente permanece enquanto essência, natureza e energia. Sua essência é vazia e livre de elaboração conceitual. Sua natureza é claridade surgindo sem esforço. Sua energia aparece sem cessar enquanto diversidade.

Após tempos sem início, a mente em-si mesma permanece enquanto presença desses três modos [sKu-gsum] perfeitamente puros, ela é eventualmente obscurecida por impurezas adventícias das três formas de ignorância. Portanto, não a reconhecemos como nossa natureza própria.

a) A via da confusão. Primeiramente, existe a ignorância co-

emergente, devido a ela nosso reconhecimento inato da condição natural da mente enquanto três modos (corpos) não se produziu. Por isso, existe a ignorância, as trevas, o obscurecimento, o tatear às cegas, e a profunda ausência de visão. As boas qualidades dos corpos e do reino de

Budha não são conhecidas. E as faltas grosseiras do carma e das emoções perturbadoras dos seres sensíveis não são ainda conhecidas. Assim, encontramo-nos com um conhecimento muito fraco e duvidoso – isso é a ignorância co-emergente.

Depois, pelo fato do aparecimento dos hábitos sutis do apego à esta ignorância aparecida precedentemente, e por causa da influência enganosa dos objetos dos seis sentidos, a consciência enganosamente parece ser interna, e tomamos as condições e os eventos por reais. Em seguida, considerando os objetos como bons ou maus, aceitamos ou rejeitamos. Os objetos parecem então reais e encontramo-nos com os três venenos que são a ignorância, a aversão e o apego. Depois, diante de tudo o que surge como aparência para os seis sentidos, se nos parece bom, nasce o desejo. Se não parece bom, temos aversão. E se não os consideramos nem bons nem maus, há a ignorância embotada da ausência de pensamento. Desse modo há o desejo e a aversão, aceitação e rejeição, encorajamento e inibição. Isso é chamado de ignorância de imputação total (de uma realidade fictícia).

Deste modo, à partir da raiz da ignorância, as seis aflições (kleshas), aparecem sem controle e errantes, percorremos os seis reinos e experimentamos os tormentos de cada um deles. Isso é chamado “a ignorância da incompreensão das causas e dos seus efeitos”.

Assim, pode ser descrita a maneira segunda a qual as três formas de ignorância amadurecem para produzir o samsara.

b) A Via da liberação. Após tempos sem começo, a Base é pura

enquanto essência, natureza e energia, os três modos surgem sem esforço. Portanto, compreendendo sua própria natureza, a claridade do auto-conhecimento aparece como o sol dissipando a obscuridade da ignorância co-emergente. Ao reconhecer a manifestação variada e incessante da energia inata da consciência desperta, a aparência que vem dela mesma libera-se em si-mesma, e isso dissipa a ignorância da imputação total. Como a ignorância da imputação total foi purificada, a raiz da força da vida das más ações foi cortada, e a ignorância da incompreensão das causas e de seus efeitos é purificada por si-mesma.

Por outro lado, aqueles que compreendem seu próprio engano são chamados “budhas” e aqueles que não compreendem seu próprio engano são chamados “seres sensíveis”. Mas isso não é mais que termos convencionais porque não há a mais ínfima diferença entre a condição natural de um Budha e a de um ser sensível. Eles não se distinguem senão pelo fato de compreender ou não compreender isso. No centro do samsara e do nirvana, há somente a letra kk(quer dizer a vacuidade-luminosidade) – essa é realmente a verdade.

A proteção da presença da auto-compreensão de nosso próprio engano compreende três aspectos: a Visão, a Meditação e a Ação.

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A Visão: a Visão significa uma confiança clara e determinada em nosso reconhecimento presente da condição natural despida dos obscurecimentos da ignorância. Trata-se dos três corpos surgindo sem esforço.

A Meditação: o fato de manter esta Visão é chamado Meditação. A isto está ligado o ensinamento dos métodos para manter a mente estável. Para começar, parar as atividades de nosso corpo, palavra e de nossa mente. Rezar para nosso mestre, que tem todas as qualidades necessárias. Fundir nossa mente com a sua e, nesse estado, não perseguir idéias passadas. Não antecipar as idéias futuras. Conservar nossa consciência desperta atual despida de qualquer artifício, deixando-a esgotar-se facilmente à sua vontade. Não a modifiquemos com bons pensamentos. Não a misturemos aos maus pensamentos. Qualquer que seja a maneira como se apresente, não a modifiquemos de nenhuma maneira.

Guardemos a mente clara, alegre, nua, luminosa, aberta, tranqüila e relaxada. Conservemos a essência enquanto alegria vazia, a natureza enquanto alegria clara, e a energia sem entraves. Sem nenhum objeto de meditação designado, permaneçamos sem vacilar nem que seja por um instante.

Se os pensamentos surgem desse estado, esses pensamentos são sem fundamento ou raiz, também olhemos claramente a essência do que aparece. Sem aceitação nem rejeição, permaneçamos relaxados e abertos. Uma prática muito intensiva criará o problema de numerosos pensamentos sobrecarregados e excitados, então permaneçamos relaxados e livres. Se ficarmos muito relaxados, isso causará problemas de torpor e de sentir-nos pesados, então permaneçamos alertas, no estado de consciência desperta.

Permanecendo assim, a verdadeira natureza de nossa própria consciência desperta é claridade vazia despida de substância. Sem agarrar, ela é livre. Sem desejos ardentes ela é alegra. Sem pensamentos ela é completamente natural. Sem interior nem interior, ela é direta. Ela não é tocada por nenhum erro ou nenhuma boa ou má ação. Ela não é bloqueada nem liberada. Ela é nua, calma, sem mácula, não obscurecida. Ela não é construída nem alterada por coisa alguma.

Quando aparece uma realização clara e direta desta realidade primordial sem artifícios e sem esforço, então tudo o que possa aparecer desse estado, quer seja felicidade, clareza e ausência de pensamentos, torpor ou excitação com pensamentos bons e maus, ou pensamentos de aflições, ou pensamentos de apego que surgem diante das aparências e os sons que são produzidos, por causa dos objetos dos seis sentidos – tudo que possa surgir, tomamos como objeto de meditação. Sem aceitar ou rejeitar, inibir ou encorajar de alguma maneira, permaneçamos claros e relaxados quaisquer que sejam as aparências, ou os pensamentos que apareçam. Desta maneira, os pensamentos não têm necessidade de serem rejeitados. A mente em si-mesma não é somente vacuidade porque

sua claridade inata aparece naturalmente enquanto Sambhogakaya ou modo radiante. Em todo o momento, quer seja comendo, dormindo, andando, ou sentados, devemos manter sem vacilar o estado de não-meditação.

Se constatarmos que perdemos o reconhecimento de nossa claridade natural, então como expliquei mais atrás, ficaremos cegos pela ignorância. Pouco importa quanto de virtude acumulemos com nosso corpo e nossa palavra, assim afetados, isso não sairá do campo da ignorância co-emergente. Porque isto é assim? A essência da ignorância é indecisão, esquecimento, obscurecimento, opacidade, torpor, inconsciência, não-reconhecimento, desatenção e preguiça. A essência da consciência desperta é a consciência espontânea de nosso próprio engano, também ele é claridade e vacuidade. Ela é nua, solitária, única, pura, sua natureza transcende a conceituação. Assim permaneçamos com muita exatidão na consciência desperta, sem outra coisa a fazer.

A Ação: A qualquer momento e em todas as

situações, não permitamos à consciência desperta ficar submetida ao poder das boas ou das más condições. Exteriormente, não nos liguemos às atividades mundanas. Interiormente coloquemos um fim na nossa atividade do Dharma. Não façamos nenhuma prática do Dharma, qualquer que seja. Tornemo-nos completamente familiares com a única prática que consiste em fazer de nossa própria consciência desperta a essência de todos os Budhas dos três tempos.

3. O resultado (Fruto) Uma vez terminada esta prática da nossa

própria consciência desperta, esta fica presente sem esforço nem atividade intelectual. Assim, os três modos (corpos) da consciência desperta são realizados em seu próprio âmbito e obtemos o resultado que é classicamente chamado de budeidade.

E ainda, a essência da consciência desperta é o modo natural inato (vacuidade). A natureza da consciência desperta é a claridade inata do modo radiante. A energia da consciência desperta é o modo da manifestação toda penetrante. Na natureza original, os três modos são inseparáveis enquanto único ponto da realidade. Portanto, indiferenciado do modo natural Samantabhadra, nossa consciência desperta, vai diretamente para Akanishta onde obteremos definitivamente a budeidade enquanto samyak-sambudha.

Por favor, guardem isso na mente.

O RESULTADO DOS TRÊS MODOS (CORPOS RESULTANTES)

Rinpoche diz também: O ponto essencial que nós, praticantes do

Dharma, devemos conhecer, é o surgimento sem esforço dos três modos, pela Base, Via e Resultado (Fruto).

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E mais, a base possuindo as duas purezas é chamada o modo natural. O que significa isso?

Pureza natural: Desde tempos sem início, a

base é naturalmente pura. Sua essência é vazia, desprovida de substancia própria. Ela é despida de qualquer interpretação. Ela não é um objeto para a consciência comum e transcende causas e condições. Ela está além do pensamento e da expressão. Ela é vacuidade, campo de percepção da consciência desperta. Após tempos sem início, ela é naturalmente e perfeitamente pura.

Pureza inalterável: As impurezas das três

formas adventícias da ignorância são eliminadas pelos três modos da consciência desperta revelando a claridade vazia da consciência desperta livre de obstruções. Nossa própria claridade é crua, firme, nua, única, ilimitada e solitária. Esta pureza inata existe sem entraves, sem exterior nem interior. É o que chamamos o modo natural dotado das duas purezas.

A Via é o modo radiante dotado das cinco

certezas. Como a claridade do modo natural de nossa própria consciência desperta, sua própria natureza, o modo radiante reside na presença das cinco certezas. Isso se aplica onde nos situamos na Via dos procedimentos de desenvolvimento ou de perfeição. Seu lugar correto é a dimensão natural livre de toda interpretação. Os ensinamentos corretos são as expressões pacífica e irada da claridade inata da consciência desperta. O círculo correto (sangha) são os Bodhisatvas em união, a manifestação espontânea incessante da consciência desperta.

O Dharma correto é o reconhecimento da sua própria natureza através de sua manifestação espontânea. O tempo correto é a manutenção da imutabilidade sem esforço. É isso que chamamos as cinco certezas do modo radiante.

O Resultado é o modo de manifestação dotado das cinco incertezas. Uma vez realizadas a compreensão do modo natural inato e o fluxo poderoso do modo radical incessante, as formas de energia variadas surgem de si-mesmas e se liberam em si-mesmas. Graças a isso, o modo de manifestação que daí resulta age pelo bem dos seres sensíveis através da cinco incertezas. Assim, a incerteza do lugar é a capacidade, nos seis reinos, de entregar-se em qualquer lugar onde seja necessário, para o bem estar daqueles que estão presos. A incerteza da forma é a capacidade de manifestar-se não importa em qual forma apropriada para ensinar os seres. A incerteza do círculo é a capacidade de estar disponível para qualquer ser que tiver necessidade, quer seja elevado ou não, bom ou mau. A incerteza do Dharma é a capacidade de ensinar os diferentes veículos segundo as aptidões dos diferentes indivíduos. A incerteza do tempo é a capacidade de aparecer qualquer que seja o tempo – passado, presente ou futuro – quando os discípulos estão prontos.

E mais, o modo de manifestação tem duas

formas, o modo de manifestação supremo e o

modo de manifestação variado. O modo de manifestação supremo compreende dois aspectos, o modo de manifestação descendente da compaixão e o modo de manifestação ascendente para os veículos. No que se refere ao modo de manifestação descendente da compaixão, é a partir do modo natural dotado das duas purezas que aparece a força inata do modo radiante dotado das cinco certezas. Pois, é disso que as manifestações especiais se produzem. Quanto ao modo de manifestação ascendente para os veículos, ele toma a forma de yoguis no caminho, praticando a via a fim de agir para o bem dos seres sensíveis.

O modo de manifestação variado compreende

dois aspectos, um manifestando a forma dos seres dos seis reinos e o outro não manifestando-se em tais formas. O primeiro toma uma forma que pertence aos seis reinos e age segundo os costumes locais. Assim, ensina realizando tudo o que é necessário a esses seres. Ao assumir esse tipo de forma, ou uma forma que é a sua antítese1, ele manifesta-se para trabalhar para o bem dos seres. O modo de manifestação que não tem forma de um ser dos seis reinos manifesta-se como terra, água, fogo, vento ou espaço, ou como barcos, pontes, pinturas ou estátuas que aparecem espontaneamente. Ele toma a forma de templos, stupas, de refúgios, etc., e age assim para o bem de todos os seres sensíveis.

Isso conclui a breve explicação sobre a modalidade da realização do triplo resultado: a Base, modo natural dotado de duas purezas; a Via, o modo radiante, dotado das cinco certezas; e o Fruto, modo de manifestação, dotado das cinco incertezas.

Por favor, guardem isso em suas mentes.

Nota: 1. Por exemplo, aparecer como um homem honesto em terras de ladrões.

APONTANDO O BASTÃO PARA O VELHO HOMEM

Quando o grande mestre Padmasambhava

estava no Eremitério da Grande Rocha, em Samye, Sherab Gyalpo de Ngog, um homem inculto de 61 anos que tinha a mais alta fé e grande devoção pelo mestre, serviu-o por um ano. Enquanto isso, Ngog não pediu qualquer ensinamento, nem o mestre lhe deu qualquer um. Quando, depois de um ano, o mestre decidiu partir, Ngog ofereceu-lhe um prato de mandala, sobre o qual colocou uma flor de uma onça de ouro. Então ele disse: Grande mestre, pense em mim com bondade. Em primeiro lugar, eu sou inculto. Em segundo, minha inteligência é pequena. Em terceiro, estou velho, então meus elementos estão fatigados. Peço que você dê um ensinamento a um velho homem à beira da morte, que seja simples de entender, que possa cortar totalmente a dúvida, que seja fácil de realizar e de aplicar, que tenha uma visão efetiva, e que me ajude em vidas futuras.

O mestre apontou seu bastão de andarilho

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para o coração do velho homem e deu esta instrução: Ouça aqui, velho homem! Olhe para a mente desperta de sua própria consciência! Ela não tem forma nem cor, nem centro nem borda. Primeiro, ela não tem origem, mas sim é vazia. Depois, ela não tem lugar de permanência, mas sim é vazia. No fim, ela não tem destinação, mas sim é vazia. Esta vacuidade não é feita de qualquer coisa, e é clara e cognitiva. Quando vir isto e a reconhecer, você conhecerá seu rosto natural. Você entenderá a natureza das coisas. Você verá então a natureza da mente, determinará o estado básico da realidade e cortará completamente as dúvidas sobre tópicos do conhecimento.

Esta mente desperta da consciência não é feita de qualquer substância material, é auto-existente e inerente a você mesmo. Esta é a natureza da mente que não é fácil de realizar porque não é encontrada em qualquer lugar. Esta é a natureza da mente que não é constituída por um observador concreto e por algo percebido sobre o qual se fixar. Ela desafia as limitações da permanência e da aniquilação. Nela não há qualquer coisa a despertar; o estado desperto da iluminação é a sua própria consciência, que é naturalmente desperta. Nela não há qualquer coisa que vá para os infernos; a consciência é naturalmente pura. Nela não há qualquer prática a ser conduzida; sua natureza é naturalmente cognitiva. Esta é a grande visão do estado natural presente em você mesmo: saiba que isto não é encontrado em qualquer lugar.

Quando você entender a visão deste modo e quiser aplicá-la na sua experiência, onde quer que você esteja será o retiro na montanha de seu corpo. Qualquer aparência externa que você perceber será uma aparência naturalmente ocorrente e uma vacuidade naturalmente vazia; deixe-a ser, livre de construções mentais. As aparências naturalmente livres se tornarão suas ajudantes e você poderá praticar enquanto toma as aparências como caminho.

No interior, o que quer que se mova em sua mente, o que quer que você pense, não tem essência, mas sim é vazio. As ocorrências de pensamento serão naturalmente liberadas. Quando lembrar da essência de sua mente, você poderá tomar os pensamentos como caminho e a prática será fácil.

Como conselho mais interior: não importa que tipo de emoção perturbadora você sinta, olhe para a percepção e ela cessará sem deixar rastros. A emoção perturbadora é assim naturalmente liberada. Isto é simples de praticar.

Quando você puder praticar deste modo, seu treino de meditação não será confinado a sessões. Conhecendo que tudo é um ajudante, sua experiência de meditação será imutável, a natureza inata será incessante e sua conduta será inabalável. Onde quer que permaneça, você nunca está separado da natureza inata. Uma vez que você tenha realizado isto, seu corpo material poderá ser velho, mas a mente desperta não envelhecerá. Ela não conhece qualquer diferença entre jovem e velho. A natureza inata está além da inclinação e da parcialidade. Quando você

reconhecer que a consciência, o despertar inato está presente em você mesmo, não haverá diferenças entre faculdades aguçadas ou fracas. Quando você entender que a natureza inata, livre da inclinação ou parcialidade, está presente em você mesmo, não haverá diferença ente um aprendizado grande ou pequeno. Mesmo que o seu corpo, o suporte da mente, caia, o Dharmakaya da sabedoria da consciência será incessante. Quando você obtiver estabilidade neste estado imutável, não haverá diferença entre um tempo de vida longo ou curto.

Velho homem pratique o verdadeiro significado! Leve a prática ao coração! Não permita a fala inútil e tagarelice sem objetivo! Não se envolva em metas comuns! Não se perturbe com a preocupação de ter prole! Não almeje excessivamente comida e bebida. Pretenda morrer como um homem comum! Sua vida está correndo, então seja diligente! Pratique esta instrução para um velho homem à beira da morte!

Por ter apontado o bastão para o coração de Sherab Gyalpo, isto é chamado “A Instrução do Apontar o Bastão para o Velho Homem”. Sherab Gyalpo de Ngog foi liberado e atingiu realização.

Isto foi anotado pela princesa de Kharchen [Yeshe

Tsogyal] para o bem das futuras gerações. É conhecido pelo nome “A Instrução do Apontar o Bastão”.

(Originalmente publicado em Advice From The Lotus Born, Rangjung Yeshe Publications)

“SOBRE A NATUREZA DA MENTE”

Tenzin Wangyal Rinpoche

Traduzido para o português pela monja Tenzin Namdrol

Extraído do livro: “A CURA PELA FORMA, ENERGIA E LUZ” de Tenzin Wangyal Rinpoche

From “Healing With Form, Energy and Light” by Tenzin Wangyal Rinpoche. Edited by Mark Dahlby. Ithaca: Snow Lion Publications, 2002. Available at Ligmincha's Bookstore. EDITED EXCERPTS FROM ORAL TEACHINGS GIVEN BY TENZIN WANGYAL RINPOCHE,

DECEMBER, 2002:

Ao realizar a natureza da mente, descobrimos que estamos no estado inseparável da presença rigparigparigparigpa e da vacuidade. Com esta realização, tomamos

consciência de que permanecemos na essência do espaço. Ao permanecer na natureza da mente que se funde com o espaço e sem identificação com o

que surge no espaço, isso afeta nossa vida. Não há o que defender, nenhum eu carecendo de proteção porque nossa própria natureza é o espaço que

tudo acomoda. Ninguém pode alterar o espaço. Uma opinião, uma imagem estão a mercê de ataques e podem ser atingidas, mas o espaço em que

existe a opinião ou a imagem é indestrutível. Ele não envelhece, não se desenvolve, não deteriora, não nasce e não morre. A confiança e o destemor

são frutos desta realização. Apesar do incessante surgimento de vivências, permanecemos fixos no espaço imutável em que surgem. Não será necessário

possuí-lo ou buscá-lo, ele já está presente, além da esperança e do medo. Quando realizamos a natureza da mente, compreendemos a perfeição

espontânea de todos os fenômenos e a pureza primordial é realizada.

O praticante do Dzogchen tenta primeiro compreender este espaço da natureza da mente. Depois ele/ela precisa reconhecê-lo através da meditação e

das instruções do mestre e a seguir conectar-se a ele. Finalmente, o praticante se integra com o espaço, que é o que quer dizer “permanecer na

natureza da mente”. Não é que o praticante se torne algo distinto. Precisamos recorrer ao artifício de um desenvolvimento para expressar o caminho,

sobre como atingir o nosso objetivo. Na verdade, porém, o objetivo não existe e não há o quê desenvolver. Trata-se de despertar, reconhecendo o que

já é.

Quando o espaço da natureza da mente é realizado, ainda existe um fluxo. Esta é a luminosidade; existe movimento, sensação, animação. A vivência é

mais rica, e não mais pobre. As qualidades surgem sem interrupção. Compaixão, tristeza, raiva ou amor podem surgir, mas o praticante não se desliga

do espaço em que se originaram.

Extraído do livro: “A CURA PELA FORMA, ENERGIA E LUZ” por Tenzin Wangyal Rinpoche

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A natureza da mente não é um lugar para onde se vai como sujeito e se chega como se fosse um objetivo. Não há um lugar para onde se vá. Não há

um lugar que se visite. Não há uma forma a ser vivenciada.

O que quer dizer “não há forma”? Se esperarmos ver a forma, não veremos nada — é garantido. Estamos tão condicionados com a idéia de ver

alguma coisa, em alcançar algo além. É muito, muito difícil livrar-nos desta mente, não ter qualquer expectativa.

A vivência da natureza da mente é apenas uma vivência. Não é a natureza da mente. Se vejo uma xícara posso dizer, “é uma xícara” porque é o

que vejo. Mas sabemos que a natureza da mente não pode ser vista como é vista uma xícara. Não há nada para ser visto. Assim, não se pode dizer

de coisa nenhuma, “esta é a natureza da mente”. Podemos nos encontrar neste espaço quando causas e condições estão presentes, quando

vencemos a noção mais sutil de um sujeito que constata. Ali, ninguém está a procura da natureza da mente; ninguém interessado em olhar,

ninguém interessado em constatar a natureza da mente.

Se for capaz de desenvolver o corpo correto, a energia correta e a mente correta não haverá como não vivenciar a natureza da mente. Como

sempre dizemos, “Não existe poder ou força que possa deter o resultado quando as causas e condições estão presentes”.

QUALIDADES DA NATUREZA DA MENTE

Extraídos dos escritos de dois mestres de budismo.

Traduzido para o português pela monja Tenzin Namdrol

From “The Heart Treasure Of The Enlightened Ones” by Patrul Rinpoche

and Dilgo Khyentse Rinpoche:

Extraído do livro “O tesouro do coração dos iluminados” De Patrul Rinpoche e Dilgo Khyentse

Rinpoche. “Não adianta procurar, fora, a natureza suprema da mente – ela está dentro. Quando falamos de “mente” é importante discriminar entre a mente comum, referindo-se às incontáveis cadeias de pensamentos que criam e perpetuam o estado de delusão, ou como aqui, sobre a natureza da mente como fonte de todos estes pensamentos – o estado claro e vazio da presença (rigpa) totalmente destituída de delusão”. “Para ilustrar esta diferença o Senhor Buda ensinou que existem duas maneiras de meditar – a primeira, como um cão e a outra, como um leão. Quando se joga um pedaço de pau a um cão, ele corre para apanhá-lo, mas quando se joga um pedaço de pau a um leão, ele corre na direção de quem atirou. É possível jogar muitos pedaços de pau a um cão, mas a um leão só se atira um. Quando completamente bombardeados por pensamentos, aplicamos antídotos a um e depois ao seguinte, o trabalho é vão. Este exemplo é como o do cão. O exemplo do leão é melhor, devemos procurar de onde os pensamentos surgem, o vazio da presença (rigpa), em cuja superfície os pensamentos se movem como ondulações sobre a superfície de um lago, mas cuja profundidade é o estado imutável de completa simplicidade”.

Extraído de “Dzogchen: O estado de auto perfeição” por Namkhai Norbu Rinpoche:

From “Dzogchen: The Self-Perfected State” by Namkhai Norbu Rinpoche:

“A mente é o mais sutil e recôndito aspeto da

nossa condição relativa, mas não é difícil notar a sua presença. Basta observar os pensamentos e como eles nos enredam no seu fluxo. Se perguntarmos, “O que é a mente?”, a reposta é, “O fluxo ininterrupto dos pensamentos que surgem e desaparecem”. Ela tem a capacidade de julgar, de raciocinar, de imaginar, etc. dentro dos limites de espaço e tempo. Mas, além da mente, além dos pensamentos, existe o que se denomina ‘natureza da mente’, o estado verdadeiro da mente, além de quaisquer limitações. Como está além da mente, o que fazer para nos acercarmos de uma compreensão a seu respeito?” “Tomemos, por exemplo, o espelho. Olhamos no espelho e vemos refletidas as imagens de tudo o que está diante dele, mas não vemos a natureza do espelho. Mas o que significa a ‘natureza do espelho’? Quer dizer a capacidade de refletir, descrita como a sua claridade, transparência, pureza, limpidez, condições indispensáveis para que os reflexos possam manifestar-se. A natureza do espelho não é algo que se veja, e a única forma de concebê-la será através das imagens refletidas no espelho. Da mesma forma, apenas conhecemos e vivenciamos o que esteja relacionado ao corpo, à voz e à mente. Contudo, é assim mesmo que somos levados a compreender a sua verdadeira natureza”. "Dzogchen: The Self-Perfected State" by Namkhai Norbu Rinpoche. Translated from the Italian by John

Shane. Edited by Adriano Clemente. New York: Arkana, 1989. Available at Ligmincha's Bookstore.