nas relaÇÕes com populaÇÕes do...

45
PROJETO UNIDADES DE CONSERVAÇÃO Brasília, dezembro de 2000 RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO UNIDADES DE DAS CONSERVAÇÃO ENFOQUE DE GÊNERO NAS

Upload: hatuyen

Post on 10-Nov-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

PROJETO UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Brasília, dezembro de 2000

RELAÇÕESCOM POPULAÇÕES

DO ENTORNO

UNIDADES DE

DAS

CONSERVAÇÃO

ENFOQUE DE GÊNERONAS

Page 2: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

2

Texto elaborado pela consultora Berlindes Astrid Küchemann

Brasília, dezembro de 2000

Page 3: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

3

Sumário1. Considerando interesses diferenciados na proteção das unidades de conservação....... 52. Elementos do enfoque de gênero .......................................................................................... 8

2.1 Gênero e relações de gênero......................................................................................... 82.2 Papéis de gênero............................................................................................................ 102.3 Necessidades práticas e interesses estratégicos.......................................................... 112.4 Perspectiva de gênero.................................................................................................... 13

3. Gerenciando com enfoque de gênero................................................................................... 154. Relações de gênero no manejo dos recursos ....................................................................... 16

4.1 Recursos físicos.............................................................................................................. 174.2 Flora................................................................................................................................ 194.3 Fauna...............................................................................................................................224.4 Considerações gerais..................................................................................................... 23

5. Gênero, recursos naturais e necessidades básicas.............................................................. 255.1 Saúde...............................................................................................................................255.2 Alimentação.................................................................................................................... 27

6. Planos de ação com enfoque de gênero s ............................................................................ 276.1 Basear projetos no conhecimento diferenciado dos grupos envolvidos................... 286.2 Incentivos à criação de organizações e associações comunais para

compartilhar responsabilidades................................................................................... 286.3 Iniciativas produtivas com ênfase em alimentos de origem local ............................. 296.4 Programas de intercâmbio de conhecimentos entre diferentes

grupos populacionais.................................................................................................... 296.5 Introdução de conteúdos de educação ambiental nos programas de

educação formal e informal.......................................................................................... 306.6 Incentivar a participação masculina em programas de educação ambiental

e sua aplicação no âmbito doméstico.......................................................................... 306.7 Estimular a habilitação no manejo dos recursos por meio de um enfoque

não convencional........................................................................................................... 306.8 Estimular a promoção do artesanato........................................................................... 316.9 Fomentar a diversificação de proteínas nas populações do entorno....................... 316.10 Promover a implementação de experiências ecológicas em nível micro.................. 326.11 Promover a difusão da informação sobre produtos não recicláveis......................... 326.12 Favorecer pesquisas com enfoque de gênero.............................................................. 326.13 Ações de apoio a grupos locais específicos ................................................................ 33

7. Procedimentos para incorporar o enfoque de gênero no gerenciamento das Unidades ......................................................................................................................... 35

7.1 Métodos........................................................................................................................... 37Bibliografia .............................................................................................................................. 44

Page 4: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

4

Page 5: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

5

1. Considerando interesses diferenciados naproteção das unidades de conservação

A Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada durante a Conferência das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio/92 , da qual o Brasil é signatário, estabe-lece em seu artigo 8, entre outros, que os Governos devem promover o desenvolvimento econômi-co sustentável e ambientalmente sadio em áreas adjacentes às unidades de conservação a fim dereforçar a proteção destas.

Para tanto, faz-se necessária uma política de integração das unidades de conservaçãocom os diversos segmentos populacionais da área de influência, mediante estratégias definidasconjuntamente. Contudo, não basta querer proteger as unidades de conservação com uma visãoantrópica e participativa a partir de conceitos como, por exemplo, “família” ou “comunidade”.Tais conceitos revelam uma homogeneidade que nem sempre dá conta da diversidade de atribui-ções, necessidades, interesses, responsabilidades e potenciais dos diversos segmentos populacionaisque conformam a sociedade humana.

Fala-se muitas vezes “dos interesses da comunidade” ou dos “interesses das famílias”quando, na verdade, trata-se tão somente dos interesses articulados pelos representantes formaisde uma determinada comunidade (as autoridades) ou de determinadas famílias (os chefes, sobretu-do homens) e não dos reais interesses de homens, mulheres, crianças, idosos, enfim dos segmen-tos populacionais específicos de uma comunidade ou família.

Não basta, pois, definir “comunidade” como sendo uma área geopolítica contínua, e“família” como uma instituição formada por pais, filhos e parentes. A comunidade e a unidadefamiliar encobrem uma série de papéis, interesses e potenciais diferenciados entre homens e mu-lheres que não se tornam visíveis à primeira vista. A unidade familiar contém um conjunto alta-mente diversificado de pessoas que, no nível comunitário, fazem parte de segmentos diferencia-dos quanto à sua inserção social e seus interesses particulares. Consequentemente, é muito prová-vel que uma mulher, mãe e dona-de-casa tenha necessidades e interesses que se assemelham maisaos de outras mulheres da comunidade do que aos do marido ou da filha que trabalha o dia todofora de casa.

É preciso, pois, partir da premissa de que, devido à divisão de trabalho entre sexo e idade,a realização de atividades produtivas e reprodutivas se diferencia. Por isso, o manejo dos recursosnaturais pode ser tão diversificado quanto o é a integração dos membros de uma família na comu-nidade.

Os segmentos sociais, pelo fato de serem unidades mais homogêneas que o coletivo“família” e “comunidade”, apresentam-se como unidades privilegiadas para definir e levar a efeitoas ações requeridas pelo desenvolvimento eqüitativo.

Page 6: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

6

Mas, é preciso levar em consideração que enquanto a atuação de alguns segmentos (porexemplo, a associação de produtores) aparece notabilizada no cenário comunitário, a de outrospode ser de difícil visualização. Isto ocorre porque as práticas subordinativas tradicionais podemlimitar severamente a autodeterminação e legitimidade de expressão de alguns segmentos.1 Acoleta de informações relativas à participação dos membros de uma comunidade deve, pois, res-peitar o fato de que em toda e qualquer comunidade existem segmentos populacionais significati-vos, mas invisíveis, tais como aqueles formados por grupos de mulheres.

Respeitando-se os diversos segmentos populacionais, haverá maior reconhecimento dostrabalhos específicos desenvolvidos por mulheres, tais como os que garantem a reprodução davida (administração da lenha e da água, preparo dos alimentos, cuidado das crianças, idosos edoentes), os realizados no âmbito da casa e do quintal com fins lucrativos (cuidado de animais depequeno porte, manufatura e venda de queijos, manteiga, geléias, carne-de-sol, peixe defumadoetc.), e os pára-produtivos (seleção de sementes, ordenha das vacas, limpeza dos chiqueiros, repa-ro das redes de pesca). Todas essas atividades são realizadas em apoio à produção, não sendoconsiderados “trabalho”, senão apenas “ajuda”.

Nem sempre o trabalho feminino tem sido considerado fundamental. Na área rural, porexemplo, é comum os técnicos e membros da comunidade (homens e mulheres) compartilharem aidéia de que somente as atividades requeridas pelos cultivos básicos e quando desempenhadaspelos seus titulares (os homens adultos) podem ser consideradas “trabalho”. Quando as mulherese crianças desempenham estas mesmas atividades entende-se que estão “ajudando”, e quandorealizam outras atividades a elas atribuídas (como o transporte da lenha ou da água e o cuidado dosanimais), considera-se que nem ajudam nem trabalham, simplesmente cumprem o seu dever. 2

Essa curiosa percepção a respeito do trabalho de mulheres e crianças encontra sustentonão somente no imaginário rural brasileiro, mas também na teoria econômica, já que esta distingueas atividades de produção de bens das atividades de reprodução da vida, para, em seguida, estabe-lecer que trabalho é somente a atividade de cujo desempenho resulta a produção de bens. Dessemodo, o conceito “trabalho” exclui todas as atividades necessárias para reproduzir a vida, taiscomo preparação alimentos, cuidados de higiene, tratamento de doentes e outras.3

Sob este enfoque, a produção de bens passou a ser super valorizada em detrimento dareprodução da vida. Portanto, os atributos relacionados à produção de bens materiais (conquista,competitividade e agressividade, por exemplo) tornam-se socialmente mais valorizados que aque-les atribuídos ao trabalho reprodutivo (regeneração, solidariedade, receptividade).4

1 Libardoni/Suárez,s.d.112 Küchemann 1991;130; Rede Mulher de Educação 1994.3 Libardoni/Suárez, s.d., 24 Assim, ao longo da história dois mundos se polarizaram: o mundo daqueles que se dedicam à criação de bens materiais e o mundo

dos negócios, conhecido como trabalho produtivo e o mundo da criação de bens destinados a reprodução da vida e da força detrabalho, chamado reprodutivo. Um mundo valorizado e outro renegado. Um mundo mormente a cargo dos homens e outro acargo das mulheres. Um mundo dominador e outro subjugado (Küchemann/Zimmermann/Viezzer 1996).

Page 7: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

7

O questionamento dessa relação e o reconhecimento das atividades desenvolvidas pelasmulheres como trabalhos essenciais é de suma importância para avaliar objetivamente as açõespraticadas e a adequar ações corretivas. Oferece igualmente uma excelente oportunidade para queas chefias das unidades de conservação, técnicos das instituições envolvidas e integrantes dascomunidades tomem consciência da importância da contribuição do trabalho realizado pelas mu-lheres e demais segmentos na consecução dos objetivos democratizantes relacionados ao desen-volvimento sustentável.

Em nossa sociedade, como em inúmeras outras, as mulheres podem ter até os mesmosdireitos que os homens, mas não contam com as mesmas oportunidades no que tange à satisfaçãodas suas necessidades. Nossa sociedade não é eqüitativa. Não somente ocorre uma acentuadadivisão sexual do trabalho, como também são reduzidas as chances das mulheres terem acesso aosrecursos e transporem as barreiras existentes.

O conceito de eqüidade evidencia o propósito de intervir na sociedade, estimulando aextensão dos direitos de cidadania a todos os seus segmentos. Apóia não somente a contribuiçãodaquelas categorias sociais que desempenham papéis produtivos importantes, mas pouco reco-nhecidos, como também as iniciativas que visam transpor as barreiras impostas.

Embora tenha havido um razoável esforço da sociedade brasileira em tornar visível ecorrigir a iniqüidade de gênero, a experiência mostra que o livre jogo dos processos econômicos epolíticos não proporciona igualdade de oportunidades e de benefícios entre homens e mulheres.Para ocorrer equiparação entre os sexos, faz-se necessária uma mudança considerável nos com-portamentos e atitudes das pessoas, bem como na intervenção governamental, mediante reformasdas atuais políticas públicas e uma série de medidas de “ação afirmativa” 5.

Nos projetos de conservação e proteção do meio ambiente é importante que se conheçaas necessidades de homens e mulheres, o tipo de recursos naturais mais requeridos por eles, asformas de acesso e os mecanismos de controle sobre tais recursos. Diferenciar entre “ter acesso” e“ter controle” sobre os recursos naturais é um exercício importante a ser feito, pois elucida rela-ções de poder.6

Tratando-se do manejo dos recursos naturais na área de influência das unidades de con-servação, as chefias deveriam conhecer aspectos como:

• quais os recursos naturais mais utilizados pelas pessoas da área de influência e quem(homens e mulheres) deles necessita e deles faz uso,

5 As ações afirmativas são, segundo a Organização Mundial do Trabalho, medidas de caráter transitório dirigidas a combater asconseqüências diretas e indiretas da discriminação e de criar novas práticas no contexto das instrumentos legais existentes,neutros desde o ponto de vista de gênero. A ação afirmativa visa fechar a brecha entre a condição social das mulheres e a doshomens nas áreas de emprego, educação, saúde e outras. É uma combinação de ações corretivas, de práticas novas e demedidas de promoção, (OIT, 1993).

6 Acesso significa ter a oportunidade de usar determinados recursos para satisfazer necessidades e interesses pessoais oucoletivos. Controle significa ter autoridade para decidir sobre o uso e o resultado dos recursos em questão. E quem controlatem poder.

Page 8: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

8

• quais desses recursos provêm da Unidade e quem deles se beneficia,

• quais dos recursos retirados da Unidade afetam negativamente a mesma,

• quem tem o controle sobre quais desses recursos,

• quem desperdiça recursos e quais,

• quem será prejudicado por determinadas medidas restritivas a serem tomadas,

• quais as alternativas que poderiam ser desenvolvidas no entorno,

• quais os segmentos potenciais para ações corretivas.

A elaboração de um perfil de manejo que envolve aspectos tão diversos (como sexo,idade, estado civil, local de residência, grau de instrução, atividade produtiva e reprodutiva) cons-titui-se numa tarefa bastante complexa. Mas torna-se fundamental para toda e qualquer interven-ção a favor das unidades de conservação. Do seu reconhecimento depende o sucesso ou o fracas-so das ações desenvolvidas pelas chefias e suas equipes na área de influência da Unidade.

Assim sendo, não se pode pensar em ações sem contar com a participação eqüitativa dehomens e mulheres, pois ambos são agentes tanto da conservação como da destruição do meioambiente. Cada qual, dentro do seu raio de ação, tanto pode conservar como depredar os recursosnaturais na área de influência das unidades de conservação. Daí porque antes de planejar qualqueração é preciso ter amplos conhecimentos sobre os homens e as mulheres das comunidades emquestão: de que vivem, como vivem, como se relacionam com o ambiente, quais suas necessida-des, quais seus interesses e quais os seus potenciais de mudança.

Esses conhecimentos poderão ser obtidos mediante a adoção do enfoque de gênero. Oque vem a ser este enfoque e como ele poderá ser útil às chefias de Unidades de Conservação seráabordado a seguir.

2. Elementos do enfoque de gênero

2.1 Gênero e relações de gênero

Gênero diz respeito à construção social do masculino e feminino, ou seja, aos papéiscunhados e moldados pela sociedade e regidos por valores culturais, religião, leis, posição social,economia e sistema político. Esta categoria de análise aborda todas as formas de relações sociaisque contribuem para fixar e perpetuar as identidades e os papéis das pessoas de acordo com seusexo.

Portanto, gênero não é sinônimo de sexo. Sexo é biológico e refere-se aos componentesfisiológicos que distinguem os machos das fêmeas da espécie humana. A identidade de gênero de

Page 9: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

9

homens e mulheres, por outro lado, é um fenômeno social, psicológico, histórico e culturalmentedeterminado.

Gênero é, pois, uma construção social e se manifesta como um sistema que influi nosmais diversos aspectos do comportamento humano. Reflete a maneira como somos feitos homense mulheres para vivermos em sociedade. Desta forma, não se refere apenas à mulher, como pen-sam muitos.

O conceito “gênero” abarca as relações entre homens e mulheres na sociedade, relaçõesdesiguais e construídas ao longo da História, que trazem em seu bojo relações de subordinação/dominação e de poder forjadas na divisão sexual do trabalho. Embora se manifestem no planoindividual, vão além das singularidades individuais e se fazem presentes em todas as relaçõeshumanas. Tomam formas que não podem ser analisadas isoladamente, à parte de outras relaçõesexistentes numa determinada sociedade. Vêm acompanhadas por outras relações desiguais, comoas relações de classe e as que se estabelecem entre diferentes etnias.7 Gênero deve, pois, ser con-siderado como uma categoria transversal e constitutiva de toda e qualquer relação humana e comouma das muitas formas de diferenciação social.

Sendo as relações de gênero construídas ao longo da história, elas não são imutáveis efixas. Manifestam-se de formas diferenciadas dependendo do lugar, da cultura, da sociedade e daépoca. Sendo esse processo histórico e culturalmente variável, ele pode ser direcionado para oalcance de relações eqüitativas.

A conquista de melhores resultados na conservação da biodiversidade, por meio da par-ticipação eqüitativa de homens e mulheres, é justamente o que se persegue mediante a adoção doenfoque de gênero no gerenciamento das unidades de conservação. Este enfoque está centradoem vivência e incorporação de ações de homens e mulheres com o objetivo de apontar diferençase semelhanças, igualdades e desigualdades e de buscar propostas concretas que garantam a parti-cipação efetiva e eqüitativa de ambos os sexos, tanto na modelagem como na obtenção dos resul-tados.

Como qualquer outro enfoque, o enfoque de gênero não é neutro. Visando elucidar asdesigualdades e corrigir a iniqüidade entre homens e mulheres, ele privilegia a igualdade nãoapenas de direitos, senão de oportunidades entre ambos os sexos. Como, via de regra, as oportu-nidades das mulheres são menores que a dos homens, este enfoque visa, então, inserir as mulheresnão apenas como meras ajudantes, mas como sujeitos da conservação do meio ambiente. Paratanto, proporciona conceitos, metodologias e estratégias que contribuam a:

• questionar as perspectivas de gênero implícitas ou explícitas nos processos de planeja-mento,

• modificar papéis e flexibilizar estereótipos,

7 Kuchemann/Viezzer/Zimmermann, 1996, 15.

Page 10: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

10

• reestruturar as relações de poder,

• gerar um novo modelo de gerenciamento das Unidades,

• buscar a sustentabilidade dos projetos e programas,

• entender que a relação entre gênero e gerenciamento das unidades de conservação éum processo.

Em vista disso, nas políticas públicas ou nos projetos voltados à conservação dos recur-sos naturais, o enfoque de gênero questiona e redimensiona papéis, comportamentos, atividades,necessidades, interesses e potencialidades diferenciadas de homens e mulheres visando reforçar acontribuição de ambos os sexos no processo de desenvolvimento sustentável, do qual fazem parteas unidades de conservação.

2.2. Papéis de gênero

A cada um dos sexos, a sociedade tem atribuído papéis diferenciados, os assim chama-dos papéis de gênero. Ao nascer, o ser humano cai num palco onde lhe é atribuído um papelclaramente definido: o der ser homem ou mulher. A começar pela cor do enxoval dos bebês (azulpara meninos e rosa para as meninas), passando pelos brinquedos oferecidos (bonecas para asmeninas e carros e armas para os meninos) até as escolhas profissionais, as esferas de poder nasquais atuarão, tudo está definido pelos papéis de gênero. Assim, desde cedo, aprendemos comodevemos nos comportar de modo a sermos percebidos pelos outros/as, e por nós mesmos/as,enquanto meninos e meninas.

De acordo com o tipo de papel designado a um e outro sexo, condiciona-se o grau deaceitação ou de repúdio pela atuação de cada indivíduo. Em busca de aceitação, homens e mulhe-res assumem seus respectivos papéis, os quais tendem a separá-los em diferentes esferas de ação.De uma maneira geral, pode-se dizer que se valoriza mais a atuação dos homens na esfera pública(nas organizações, no trabalho remunerado e na política) do que a atuação das mulheres na esferafamiliar e doméstica, ou seja, na esfera privada.

A diferenciação de papéis por sexo passa, pois, a ser um elemento indispensável naestruturação das relações de poder. Mediante a valorização diferencial de papéis e esferas mascu-linas e femininas, o gênero estabelece uma hierarquia de poder. A sociedade construída pelo siste-ma de gênero valoriza o papel masculino – e desta maneira a esfera pública – acima do feminino,institucionalizando a discriminação social, política e econômica da mulher e limitando seu poderno âmbito público. Desta feita, minimiza-se o potencial das mulheres, como sujeitos de mudança,podendo-se concluir que o sistema de gênero promove a iniqüidade entre os sexos, mediante aprioridade dos interesses masculinos.

Page 11: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

11

E, para que essas formas de pensar e de atuar se mantenham, a sociedade criou váriosmecanismos. As leis, as escolas, o pensamento científico, as instituições religiosas e políticas,todas elas estão orientadas para cristalizar as desigualdades entre os sexos masculino e feminino.

Nascemos, pois, macho ou fêmea, mas nos tornamos homem ou mulher na medida emque assumimos comportamentos e desempenhamos funções e papéis sociais que ao longo dahistória foram considerados como femininos ou masculinos. Desta maneira8, os chamados papéisde gênero:

• refletem as diferentes atividades, atitudes e comportamentos atribuídos às mulheres eaos homens;

• são moldados pela sociedade e regidos pela cultura, religião, posição sócio-econômi-ca e sistema político;

• são cunhados por meio do processo de socialização;

• podem variar nas diferentes culturas e sociedades;

• variam até mesmo em cada sociedade de acordo como idade, classe social e origemétnica/racial;

• são dinâmicos, ou seja, podem ser influenciados e modificados.

Uma decorrência significativa da diferenciação de papéis e de esferas de ação é que asnecessidades, os interesses e as oportunidades dos homens e das mulheres também diferem sensi-velmente. O sistema de gênero, determina, assim, que homens e mulheres vivam experiências devida bastante distintas e bastante desiguais.

2.3. Necessidades práticas e interesses estratégicos

Estreitamente vinculados aos papéis de gênero estão dois outros conceitos: o das neces-sidades práticas e dos interesses estratégicos.

Necessidades práticas de homens e mulheres são aquelas decorrentes da sua condição devida. São específicas e, por assim dizer, palpáveis. Via de regra essas necessidades apontam parauma situação de carência e:

• abrangem áreas específicas da vida e se referem à satisfação das necessidades básicas,tais como água, moradia, saúde, educação, etc.;

• são facilmente observáveis e quantificáveis;

• referem-se a grupos sociais específicos dentro de um contexto específico;

8 Küchemann/Zimmermann/Viezzer, 1996, 15

Page 12: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

12

• podem ser satisfeitas mediante recursos específicos, como equipamento, treinamentotécnico, crédito;

• podem ser satisfeitas por outros, ou seja, outorgadas;

• sua satisfação permite um melhor desempenho das atividades associadas aos tradici-onais papéis de gênero, e, portanto;

• podem ser satisfeitas sem transformar os tradicionais papéis de gênero.

Já os interesses estratégicos dizem respeito à posição que mulheres e homens ocupam nasociedade. Relacionam-se, portanto, com a conquista da eqüidade e:

• são invisíveis à primeira vista, porque implicam mudanças nas relações de poder;

• são comuns ao conjunto de mulheres e ao conjunto de homens. Sua manifestaçãovaria de acordo com fatores como etnia, religião, idade e outros;

• exige consciência de sua posição e estratégias de médio e longo prazo;

• requerem processos pessoais e coletivos de apropriação;

• implicam transformação nas relações de gênero;

• sua satisfação visa eqüidade entre homens e mulheres e substanciais mudanças nomodelo sócio-econômico e cultural vigente.

Como vemos, o enfoque de gênero não visa apenas à satisfação das necessidades práti-cas, mas também à articulação e ao reconhecimento dos interesses estratégicos, sobretudo dossegmentos menos “visíveis” da comunidade em questão, entre eles, as mulheres. Isto porque amera satisfação de necessidades práticas nem sempre leva ao questionamento das relações depoder entre os sexos. Esse questionamento se fará ao serem articulados os interesses estratégicos,pois estes visam a mudanças nas relações.

Diferenciar necessidades práticas de interesses estratégicos permite, portanto, compreen-der boa parte da complexa dinâmica das relações de gênero e auxilia as chefias a gerenciaremmelhor suas Unidades. Torna-se, pois, fundamental que as chefias e sua equipes conheçam ereconheçam quais os recursos físicos, florísticos e faunísticos que homens e mulheres das comuni-dades do entorno utilizam para a satisfação de suas necessidades práticas e como os utilizam, bemcomo, quais os prováveis interesses estratégicos que ambos, de forma diferenciada, possam ter emrelação ao uso e manejo dos recursos naturais.

Este procedimento constitui a mola mestra para todo e qualquer projeto ou programa quea chefia de uma Unidade se propõe a planejar e executar em conjunto com os diversos segmentospopulacionais da área de influência. Então, para que haja um planejamento participativo, é precisoque haja uma boa articulação com os segmentos envolvidos e o reconhecimento das necessidadese dos interesses diferenciados.

Page 13: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

13

Apesar da importância que esses dois conceitos têm para todo e qualquer projeto, a ex-periência mostra que poucos são os projetos que se preocupam com as necessidades de gênero. Amaioria objetiva tão somente a satisfação de necessidades práticas do grupo beneficiário como umtodo. Menor ainda é o número de projetos nos quais são levados em consideração os interessesestratégicos de gênero. Contudo, se os interesses estratégicos das mulheres não forem atendidos,não haverá mudanças nas relações de gênero e consequentemente as chances de uma participaçãoeqüitativa de mulheres e homens em assuntos que dizem respeito à conservação ambiental conti-nuarão limitadas.

2.4 Perspectiva de gênero

Toda e qualquer relação humana, nos âmbitos mais diversos, é permeada pela visão ouperspectiva que os seres humanos têm de si mesmos, do seu sexo e do sexo oposto. Perspectiva degênero é um modo de olhar e de avaliar as pessoas: suas atitudes, seus comportamentos e suasatividades.

Dessa forma, todo o ser humano tem uma perspectiva de gênero. Esta perspectiva é frutoda socialização que recebemos, do tipo de família em que nascemos e nos criamos, da educaçãoformal que recebemos, da religião que praticamos, das leis que nos assistem. Pode variar de umapessoa para a outra, mas guarda alguns aspectos comuns a todos os membros de uma determinadasociedade.

O enfoque de gênero torna-se essencial para compreender pelo menos quatro visõesestereotipadas que se interrelacionam na atuação cotidiana das pessoas enquanto seres sociais. Aprimeira delas é a visão segundo a qual o fato de ser homem ou mulher se associa “naturalmente”com algumas atividades, potencialidades, limitações e atitudes. Exemplo: os homens são inteli-gentes, bons dirigentes, bons administradores, fortes, sexualmente ativos e pouco afetivos; asmulheres são intuitivas, criativas, pacientes, boas educadoras, expressam muito afeto e possuemhabilidades manuais.

A segunda visão, correlativa à anterior, é a de que algumas características ou atitudes sãocultural e socialmente classificadas como sendo parte da natureza dos sexos. Exemplo: para osexo masculino vale a agressividade, capacidade de conquista e o gosto por aventuras, ao passoque para o sexo feminino vale a sensibilidade, o carinho e a fragilidade.

A terceira visão diz respeito à valorização diferenciada das atividades identificadas comomasculinas ou femininas. Valoriza-se, por exemplo, o poder político, identificado como masculi-no, ao passo que o cuidado dos filhos, atividade identificada como feminina, é pouco valorizada.

Finalmente, a quarta visão estereotipada refere-se à valorização diferenciada de uma mesmaatividade, de uma mesma atitude ou comportamento quando o sujeito for homem ou mulher.Exemplo: se a pessoa que cozinha é uma mulher, trata-se de uma cozinheira, se for homem, é um

Page 14: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

14

chef. Quando quem chora é a mulher, isto demonstra sensibilidade. Se é o homem, trata-se de umfraco.9 O avanço em direção a uma sociedade mais eqüitativa entre homens e mulheres dependeda maneira como essas visões são superadas.

Como a perspectiva de gênero é fruto de várias influências sociais recebidas desde quenascemos, ela não é homogênea. Dependendo da forma como esta perspectiva se posiciona frenteàs mudanças nos papéis e comportamentos dos indivíduos de uma sociedade, ela pode ser consi-derada como: conservadora, renovadora ou transformadora do status quo. Em relação ao acesso econtrole dos recursos naturais, ela passa a ser conservadora quando contribui para solidificar este-reótipos, renovadora quando almeja renovar alguns desses atributos e, transformadora quandocontribui para que haja mudanças radicais naqueles papéis e comportamentos que inibem a parti-cipação plena e eqüitativa de homens e mulheres.10

Adotar o enfoque de gênero é adotar uma perspectiva de gênero sem preconceitos, semestereótipos. Significa abrir caminho para ver, avaliar, apoiar e valorizar o trabalho efetivamenterealizado pelas pessoas e seu potencial de mudança. Implica, pois, uma outra maneira de ver arealidade e a adoção de uma outra postura. Técnicos agrícolas, ao observarem uma colheita desoja, por exemplo, geralmente levam em conta circunstâncias tais como a força de trabalho empre-gada, a qualidade do produto, o nível de mecanização das atividades, as condições decomercialização. Raramente se preocupam com os elementos que diferenciam a atuação das pes-soas. Se esses técnicos adotassem o enfoque de gênero, eles passariam a considerar, entre outros,quais trabalhos produtivos e reprodutivos são necessários (dentro e fora da lavoura) para realizar acolheita da soja e quais são as pessoas (homens e mulheres de diferentes idades) que os realizam.11

Para as chefias das unidades de conservação, uma perspectiva de gênero sem estereóti-pos torna-se uma ferramenta útil para visualizar e contextualizar o emprego dos recursos naturaisde acordo com os diversos segmentos populacionais da área de influência. Torna possível ater-seàs diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito às diferentes formas de apropriação(acesso e controle) dos recursos naturais e às diferentes maneiras de utilizá-los.

Como a perspectiva de gênero norteia toda e qualquer ação humana, as ações planejadase executadas se configuram de acordo com a perspectiva (implícita ou explícita) dos indivíduosnelas envolvidos. Em ações e projetos que objetivam a conservação dos recursos naturais e omanejo eficaz das unidades de conservação é, pois, de suma importância ter uma idéia clara sobrea perspectiva de gênero da qual os envolvidos partem e sobre a perspectiva que pretendem adotar.

9 Küchemann/Zimmermann/Viezzer, 1996, 17-18.10 Classificação utilizada por Berlindes Astrid Küchemann e Maria Tereza Augusti, coordenadoras e moderadoras do Seminário

“Identificando e Reformulando Perspectivas de Gênero nos Projetos de Desenvolvimento”, PNUD, Brasília, abril 1998.11 Rede Mulher de Educação, 1994.

Page 15: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

15

3. Gerenciando com enfoque de gênero

Gerenciar com enfoque significa valer-se de um conjunto de conceitos e métodos quevisam integrar os saberes, necessidades e interesses estratégicos de gênero em todas as etapas doprocesso de planejamento. Significa abrir caminho para ver, avaliar e apoiar o trabalho efetiva-mente realizado por homens e mulheres, suas aspirações e potencialidades, considerando-as comoprotagonistas das estratégias a serem desenvolvidas em prol do manejo sustentável dos recursosnaturais das Unidades de Conservação e de sua área de influência.

Em ações e projetos que objetivam a utilização sustentável dos recursos naturais e omanejo eficaz das unidades de conservação é deveras importante ter uma idéia clara da perspecti-va de gênero da qual se parte e para a qual se pretende chegar.

Para tanto, requer-se de uma estratégia que combine vários dos seguintes aspectos:

• A sensibilização das chefias de Unidades e de suas equipes e dos representantes dosdiversos segmentos populacionais do entorno para a importância do enfoque de gêne-ro no manejo dos recursos naturais;

• A capacitação dos mesmos para levarem adiante medidas e ações de planejamento egestão participativos;

• A consulta aos segmentos populacionais envolvidos, mediante técnicas participativas,para saber como homens e mulheres se relacionam com o meio ambiente, quais seuspapéis, saberes, necessidades, interesses e potenciais em relação ao uso sustentadodos recursos naturais.

Estas ações podem ser empreendidas a partir de recursos como:

• Meios de trabalho da própria unidade e de outras entidades locais que queiram aderirà proposta;

• Apoio de entidades locais e/ou distantes, em materiais e assessorias que possam pres-tar;

• Materiais da própria unidade, da comunidade local e das entidades colaboradoras;

• Divulgação da idéia, do trabalho, através dos veículos disponíveis.

• Apoio dos recursos públicos ou privados, destinados ao meio ambiente.

Para saber como mulheres e homens se relacionam com o meio ambiente é preciso levarem conta cinco questões-chave, a saber:

Recursos – É preciso levantar e mapear os recursos naturais da comunidade. Paratanto, temos que responder a perguntas tais como: quais são os recursos importan-

Page 16: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

16

tes para a vida local? Quais os mais utilizados? Quais dos recursos utilizados pro-vêm da Unidade de Conservação ou afetam a mesma?

Utilização – Quem utiliza quais recursos? Numa comunidade, os mesmos recursospodem ser utilizados para diferentes finalidades e por diferentes pessoas ou gruposde pessoas, atendendo a diferentes necessidades e interesses. Esse uso diferenciadopode ser complementar ou conflitante.

Controle – Quem controla as decisões sobre os recursos utilizados? Saber quemtoma as decisões, ajuda a entender porque as pessoas fazem o que fazem e quais asopções que têm.

Investimento – Quem está ajudando a manter os recursos e quem se beneficia disso?Os recursos podem se exaurir se não existirem esforços para sua manutenção. Masos que investem nos recursos podem não ser os que deles se beneficiam.

Mudança – Como a situação está mudando? As mudanças ambientais afetam pes-soas diferentes de formas diferentes, e isso vai influir em como as pessoas podemutilizar, controlar e gerenciar seus recursos. As mudanças positivas não acontecemsimplesmente ao se colocar estas questões. Elas só vão acontecer se houver umacomunicação eficaz com os diversos segmentos populacionais das comunidades doentorno.

4. Relações de gênero no manejo dos recursos

A partir da reflexão feita até aqui, contamos com elementos suficientes para pressuporque tanto no processo de conservação como no processo de degradação dos recursos naturais,homens e mulheres são agentes ativos, mas com papéis, saberes, necessidades, interesses e poten-ciais diferenciados. De uma maneira geral podemos pressupor que:

• homens e mulheres fazem uso diferenciado dos recursos naturais;

• mulheres e homens têm acesso e controle diferenciado sobre os mesmos;

• homens e mulheres exercem diferentes níveis de pressão sobre os recursos naturais, osquais variam segundo os níveis sócio-econômicos;

• mulheres e homens têm necessidades práticas e interesses estratégicos diferenciados;

• homens e mulheres têm um saber diferenciado e, por isso, transmitem também saberese comportamentos diferenciados às novas gerações;

• mulheres têm pouca mobilidade devido aos afazeres domésticos;

• homens e mulheres têm possibilidades e espaços diferenciados de articulação de suasnecessidades e defesa de seus interesses;

Page 17: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

17

• o grau de organização das mulheres e o espaço de representação de seus interesses sãomenores que os dos homens. Sua participação nos processos decisórios é menor;

• homens e mulheres se beneficiam de maneira diferenciada dos projetos e das ações dedesenvolvimento;

• mulheres e homens são afetados de maneira diferenciada pela degradação do meioambiente;

• homens e mulheres têm potencialidades diferenciadas de combate à degradação ambi-ental.

Lamentavelmente existe pouca informação sobre as relações de gênero no manejo dosrecursos naturais. Habitualmente trabalha-se com categorias genéricas (comunidade, família, po-pulação etc.), as quais não atendem às especificidades apresentadas pelos diversos segmentospopulacionais. Disso resulta a falta de uma informação sistematizada sobre a participação dosdiversos segmentos populacionais das comunidades locais no manejo dos recursos naturais dasunidades de conservação e de suas áreas de abrangência. Devido a essas limitações, a análise quesegue tem somente o propósito de motivar as chefias das Unidades a exercitarem um olhar especí-fico sobre as relações de gênero e de sugerir questões que possam ser incorporadas no planeja-mento da Unidade.

4.1 Recursos físicos

4.1.1 Água

Obter e administrar esse recurso essencial à vida humana é, na maioria das culturas, umatarefa eminentemente feminina. Daí porque, quando em abundância e em ótima qualidade, trazalívio ao seu trabalho, e quando em falta ou contaminada, acarreta conseqüências sérias tanto paraelas como para seus familiares. Em lugares onde não existe água potável, geralmente as mulheresse encarregam de obter esse recurso. Para tal atividade elas, muitas vezes, valem-se da ajuda dosfilhos. Aos homens cabe a construção de poços e cisternas. É igualmente tida como tarefa mascu-lina a tomada de decisões comunitárias em relação a esse recurso, apesar do relevante papel que asmulheres exercem na obtenção e administração da água.

Embora exista a consciência de que a água não é um recurso inesgotável, esta ainda vemsendo mal utilizada por homens e mulheres. A maioria das pessoas ainda não se deu conta dagrave ameaça que a falta de água saudável representa para a vida no planeta e de que, cabe atodos, a responsabilidade de preservar esse recurso vital.

A conseqüência disso é que a água continua sendo utilizada como um depósito de dejetosdos mais variados tipos, por motivos e agentes os mais diversos. A população urbana, por exem-

12 Heikel, 1996, 19.

Page 18: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

18

plo, muitas vezes não percebe o problema da escassez e do custo de água em locais que nãodispõem desse serviço básico.12 As mulheres, como administradoras de uma grande parte dastarefas domésticas, nem sempre percebem a relação entre o desperdício de água e o impacto queessa conduta tem, tanto na disponibilidade, nos custos e na saúde dos segmentos populacionaismenos favorecidos. Também não levam em consideração a inversão de tempo das mulheres eco-nomicamente mais carentes na aquisição desse recurso. Para obter água, as mulheres que nãodispõem de água potável necessitam estender as horas de trabalho dedicadas aos afazeres domés-ticos em detrimento de outras atividades produtivas e reprodutivas.13 Há milhares de mulheres poreste país afora que, em determinadas épocas do ano, necessitam percorrer quilômetros para obterágua, e esta, nem sempre é de procedência confiável.

Os fatores qualidade e tempo necessário para aquisição de água não devem ser subesti-mados pelos planejadores, haja visto que toda e qualquer ação visando melhorar o acesso à águade boa qualidade incide em benefício direto para as mulheres e suas famílias.

Mas não apenas a relação disponibilidade versus desperdício da água é questão a seraprofundada, senão também os aspectos referentes à coleta e à conservação da mesma.14 Muitasvezes, são utilizadas fontes naturais contaminadas e as formas de coleta e armazenamento nemsempre oferecem garantias de salubridade.

No cuidado com a água cabe lembrar também algumas práticas culturalmente assumidas,especialmente em áreas rurais e suburbanas, para a realização de tarefas domésticas. Não é raro asmulheres utilizarem a mesma bacia para limpar verduras, lavar louça, lavar roupa e para a higienepessoal de toda a família. Também é comum lavarem as roupas às margens dos rios e arroios ouutilizarem os cursos de água para a eliminação de sabão e derivados, tais como graxas, sebos, sodacáustica, produtos que podem contaminar a água.

Algumas populações ribeirinhas, cuja dieta alimentar se baseia na pesca, podem ter suaprincipal fonte de alimento contaminada devido à falta de cuidados com a água. O cultivo dehortaliças é outra atividade que pode ser seriamente afetada pelos sistemas artificiais de irrigaçãonão controlados em termos de salubridade, com sérios prejuízos à saúde.

Grande parte dos problemas de saúde oriundos do tratamento indevido dos recursoshídricos, tanto da parte da indústria como da agricultura e da população em geral, podem serevitados mediante ações comunitárias em prol da manutenção da boa qualidade da água. Essasações devem partir do conhecimento de como se dá a dependência desse recurso entre os diversossegmentos populacionais afim de que possam ser encontradas respostas diferenciadas.

Cabendo geralmente às mulheres a tarefa de administrar a água utilizada para a satisfaçãodas necessidades familiares, questões como, por exemplo, onde buscar água, como transportá-la e

13 Heikel, 1996, 19.14 Idem.

Page 19: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

19

depositá-la devem ser discutidas com elas e não apenas com representantes da comunidade. Medi-das favoráveis ou restritivas devem contar com o apoio das mulheres, pois, sendo elas as princi-pais protagonistas no manejo desse importante recurso natural, toda e qualquer medida vai afetá-las mais que a qualquer outro membro da família. Para que as mulheres possam co-participar nasdecisões comunitárias em relação à água, cabe criar condições para que elas de fato possam exer-cer o seu direito de cidadania.

4.1.2 Solo

As relações de gênero também estão presentes na utilização do solo. Para boa parte dasmulheres, a relação com este recurso se dá no âmbito doméstico, ou seja, no cultivo da horta, nacriação de animais domésticos e no cuidado do jardim da casa. Para os homens, esta se dá sobre-tudo no âmbito do trabalho extra-doméstico. Para as agricultoras, a relação extrapola o âmbitodoméstico já que, de uma ou outra forma, elas participam das atividades na lavoura.

Na agricultura, como em outras atividades, ocorre uma clara divisão de trabalho entrehomens e mulheres. Embora possa haver variações de uma região para a outra, as agricultoras, demaneira geral, participam mais da roça e menos das lavouras grandes. A limpeza do terreno geral-mente é tarefa dos homens, ao passo que às mulheres cabe participar no plantio, na rega, na capinae na colheita.

A utilização do solo para satisfazer às necessidades de moradia e lazer, para passagensou estradas, para a agricultura, para o reflorestamento, para projetos urbanísticos e outros, geral-mente é tida como assunto que diz mais respeito aos homens do que às mulheres. Nas decisõestomadas a esse respeito as mulheres geralmente participam pouco.

Para as chefias das unidades de conservação é, pois, de suma importância conhecer quaisos tipos de ocupação e uso do solo e sua relação com a apropriação dos recursos naturais. A máutilização destes recursos e suas conseqüências negativas sobre as unidades de conservação advindasde atividades econômicas que empregam pesticidas, herbicidas, fertilizantes, metais pesados, deri-vados de petróleo, etc. deve merecer especial atenção. Também deve merecer atenção o fato deque, muitas vezes, a má utilização do recurso solo se dá pela falta recursos econômicos e devidoao desconhecimento de técnicas mais apropriadas ou de opções sustentáveis.

4.2 Flora

De maneira geral, esses recursos são utilizados por quase todas as mulheres e homens docampo. Entre os recursos florísticos utilizados, sobretudo pelas mulheres, destacam-se a lenha, asplantas e ervas medicinais, os frutos e as matérias-primas destinadas ao artesanato. Entre os recur-sos mais utilizados pelos homens destacam-se a madeira e os frutos silvestres.

4.2.1 Madeira e lenha

Mundialmente a madeira utilizada com finalidades comerciais (construção de casas, mó-veis, cercas, pontes, barcos, currais, brinquedos, instrumentos musicais etc.), é um recurso maisutilizado pelos homens do que pelas mulheres. Corte de árvores para a produção de madeira e

Page 20: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

20

lenha é tarefa essencialmente masculina. Nas madereiras geralmente trabalham homens e os do-nos das mesmas também são homens.

A demanda de madeira para a produção artesanal é feita geralmente por homens. Mundi-almente mais homens se dedicam à produção de peças esculpidas. Quando se dedicam ao trabalhoartístico de esculturas, as mulheres, via de regra, fazem os trabalhos de acabamento, tais comolixar, polir e pintar. As mulheres, quando trabalham diretamente com a madeira, o fazem paraproduzir peças menores, tais como colheres, máscaras, adornos os mais diversos, vasilhas e ou-tros. Muitas vezes também são elas que comercializam essa produção.

Já a lenha é um recurso florístico utilizado preferencialmente por mulheres, pois, emquase todas as culturas, cabe às mulheres coletar, transportar e armazenar lenha para uso domésti-co. A lenha, no entanto, pode representar, tanto para homens como para mulheres, uma importan-te fonte de renda. Responsáveis pelo corte de arbustos ou árvores para a produção de lenha ou docarvão são, via de regra, os homens. Também a comercialização dessa lenha está em suas mãos.

Quanto ao corte da lenha comercializada para utilização caseira, pode haver variaçõesregionais. Há vezes em que cabe aos homens o corte da lenha e outras vezes às mulheres. Masmesmo sendo os homens quem corta a lenha, esta tarefa, não costuma ser vista como uma tarefamasculina. Quando o fazem, trata-se de uma espécie de “ajuda à patroa”.15

Estudos realizados em várias partes do mundo mostram que as mulheres do campo, ape-sar de dependerem da lenha para a calefação e para o preparo dos alimentos, são bastante cuidado-sas em relação ao uso deste recurso. Costumam coletar apenas a lenha morta e, apenas em casosde escassez, passam a derrubar arbustos e árvores para suprir as necessidades do cotidiano.

A escassez ou até mesmo o desaparecimento deste recurso, devido ao desmatamento,têm para os diversos segmentos populacionais, conseqüências incalculáveis. Para as mulheres, emespecial, o desaparecimento das florestas pode representar:

• maiores trajetos a serem percorridos para a obtenção de lenha;

• a necessidade de serem auxiliadas pelas crianças em detrimento da ida destas à esco-la;

• a necessidade de recorrerem a recursos alternativos para o cozimento dos alimentos,tais como eletricidade, gás, nem sempre disponíveis e mais onerosos. Há vezes em quenecessitam fazer uso do estrume.

• mudanças nos hábitos alimentares. Com a escassez de lenha, elas se vêem obrigadasa selecionar alimentos que requerem um cozimento menor, ou reduzem o número derefeições quentes, fato que muitas vezes ocasiona problemas para a saúde da família;

• redução das possibilidades de processar e conservar alimentos ( p.e. a defumação);

15 Küchemann, 1991, 135.

Page 21: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

21

• diminuição ou desaparecimento de uma das fontes de renda da família, em casos deescassez, ou aumento dos gastos, caso tenham que comprar lenha vinda de outroslugares;

• o abate de arbustos e árvores em vez de galhos secos.

4.2.2 Plantas e ervas medicinais

Os recursos não madeireiros, exceto a lenha, são, via de regra, bem mais utilizados pelasmulheres do que pelos homens. Entre esses produtos encontram-se as plantas e ervas medicinais eos frutos silvestres.

No caso das plantas e ervas medicinais, cabe às mulheres selecionar e coletar tais recur-sos, já que zelar pela saúde da família é tarefa atribuída a elas. De uma maneira geral, possuem umbom conhecimento sobre as propriedades e possíveis usos de plantas medicinais e espécies silves-tres na alimentação, nos preparos cosméticos e na cura de doenças. É, pois, comum a todos ossegmentos de mulheres (indígenas, brancas, agricultoras, donas de casa etc.) o conhecimento es-pecífico sobre tipos de chás e remédios utilizados para esta ou aquela indisposição ou infeção.Resgatar, sistematizar e aproveitar esse seu conhecimento em programas ambientais e de saúdepode ser tarefa de pesquisadores das mais diversas áreas.

4.2.3 Frutos silvestres

As florestas tropicais oferecem uma enorme quantidade de arbustos e árvores cujos fru-tos são largamente conhecidos pelos habitantes da floresta e comunidades do entorno. Para muitasdessas populações, para as quais os frutos silvestres representam parte importante da alimentaçãodiária, o desmatamento ou a proibição de coleta dos mesmos pode significar uma perda significa-tiva, tanto em termos econômicos como para a saúde. É preciso, pois, conhecer os hábitos alimen-tares das populações que vivem dentro ou no entorno das unidades de conservação para avaliar oprejuízo de uma medida restritiva a ser tomada. É preciso também conhecer como se dão os papéisde gênero na coleta e na utilização dos frutos coletados, para avaliar o impacto de ações e medidasrelacionadas a esses recursos naturais.

De uma maneira geral, entre as populações brancas do nosso país, a coleta é sobretudouma atividade feminina e a comercialização uma atividade masculina. Contudo, não se pode partirde uma regra geral, válida para todo os segmentos populacionais e todas as regiões do país. Asvariações devem ser conhecidas e consideradas no manejo das Unidades.

Lamentavelmente são poucos os estudos sistemáticos sobre o comportamento dos povosindígenas em relação ao consumo de frutos silvestres. Sabe-se, de maneira geral, que a dependên-cia é grande, mas temos poucas informações sobre o comportamento de homens e mulheres emrelação a esse consumo. Para os índios da Amazônia, por exemplo, os frutos silvestres fazem parteessencial do seu cardápio alimentar. Segundo uma estimativa feita por Posey,16 os índios caiapós,

16 Posey, 1983, 235

Page 22: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

22

por exemplo, consomem frutos silvestres de mais de 250 espécies e nozes de mais de 100 tipos deárvores.

Quem colhe e quem comercializa esses produtos? Com base em estudos antropológicos,sabemos que entre os povos indígenas a divisão sexual de trabalho é menos rígida que entre aspopulações brancas. Entre os índios, nem sempre a coleta de frutos silvestres pode ser atribuídasomente às mulheres ou somente aos homens, mas provavelmente também há variações, depen-dendo do tipo de fruto e segmento populacional que faz uso dele. Há indícios de que também entreos índios a comercialização desses produtos (por exemplo, castanha-do-pará ou palmito) é predo-minantemente feita pelos homens. De qualquer forma, também aqui as informações que temos sãoisoladas e residuais. Eis um bom motivo para que as chefias das unidades de conservação incluamentre suas sugestões de pesquisa, temas como estes.

4.2.4 Outros produtos

Há uma enorme variedade de outros recursos florestais advindos da flora, essenciais paraa sobrevivência das famílias que vivem na área de influência das unidades de conservação. Entreeles, podemos citar o látex, a enorme variedade de raízes, as folhas secas utilizadas para fins osmais diversos, as plantas para fabricação de tintas, a palha para construção de casas e os frutospara a fabricação de óleo. Há, ainda, uma infinidade de recursos da flora brasileira que são utiliza-dos na fabricação do artesanato. Estes são coletados, utilizados e comercializados tanto por ho-mens como por mulheres.

Enfim, há uma infinidade de recursos advindos da flora destinados tanto ao consumodireto dos habitantes das região como para a comercialização ou fabricação de produtos secundá-rios. Para inúmeras famílias a coleta desses produtos representa a principal fonte de renda. Se oacesso a esses recursos é dificultado por impedimentos legais ou por degradação ambiental, épreciso encontrar novas opções de alimentação e renda.

4.3 Fauna

Se na obtenção e utilização dos recursos florísticos a atuação de homens e mulheres édiversificada, mas constante, o mesmo não ocorre quando se trata dos recursos faunísticos. Aquiprevalece a atuação masculina.

A captura dos animais e sua comercialização é geralmente tarefa atribuída aos homens.Neste caso, o maior transmissor de conhecimentos sobre como obter o alimento e lidar com ele éo homem e não a mulher. São os homens que ensinam aos filhos (geralmente meninos) comopenetrar na mata ou na água para apropriar-se dos recursos faunísticos necessários à sobrevivênciada família.

4.3.1 Animais silvestres

Quando o assunto é caça, prepondera a atuação do homem. Mas também aqui há umadivisão de trabalho que não deve ser subestimada. Na caça pode haver tarefas que são executadas

Page 23: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

23

exclusivamente por homens e outras que são executadas exclusivamente por mulheres. Os ho-mens geralmente se encarregam da captura do animal, enquanto as mulheres administram o recur-so. Em alguns casos, as mulheres indígenas também participam da obtenção, e há casos em queestas acompanham os homens na caça, participando tanto no transporte dos utensílios requeridos,como no transporte das presas obtidas.

4.3.2 Pesca

Uma regra geral é que a pesca de alto mar cabe aos homens, enquanto as mulheres sededicam mais à pesca feita à margem dos rios. Contudo, na pesca as mulheres exercem um papelfundamental no que diz respeito à fabricação e ou conservação de instrumentos de trabalho, comono caso das redes de pesca. Quanto à comercialização, esta pode ser feita tanto por homens comopor mulheres. Como as variações podem ser grandes, elas devem ser analisadas caso a caso.

4.4 Considerações gerais

A análise do manejo dos recursos naturais feita acima aponta para comportamentos, ne-cessidades e interesses diferenciados de homens e mulheres em relação aos recursos naturais.Respeitando as características culturais e locais, podemos apontar algumas tendências, importan-tes a serem consideradas nos planos de manejo das unidades de conservação. Em linhas geraispodemos dizer que:

· A relação dos homens com os recursos naturais efetua-se, sobretudo, na esfera dotrabalho extra-doméstico, ao passo que a das mulheres ocorre no âmbito doméstico.

· Cabe à mulheres obter a maioria dos recursos naturais requeridos para o sustentodireto da família. As porções adquiridas geralmente são menores e os meios de obten-ção mais rudimentares. No caso do transporte da lenha ou da água, a força físicamuitas vezes é o seu único recurso. “A escassa disponibilidade de ferramentas ade-quadas transforma as mãos, as costas e as cabeças das mulheres agricultoras emfontes humanas de energia”17.

· Os homens, via de regra, utilizam ferramentas mais complexas e tecnologias maissofisticadas. Este é, por exemplo, o caso da obtenção de lenha ou madeira em grandesquantidades, que requer máquinas, tratores e caminhões, ou o caso da pesca em altomar, que exige barcos e redes.

· Tratando-se do uso doméstico de recursos naturais, cabe predominantemente às mu-lheres a decisão sobre o tipo de uso. Quando os recursos têm finalidades comerciais,geralmente são os homens que decidem. Exemplos: argila para a fabricação de telhase tijolos; a água em grande escala ou a fauna e seus derivados quando se destinam àvenda. No tráfico de peles praticamente não encontramos mulheres, embora sejamelas as grandes consumidoras das mesmas.

17 Heikel 1996, 16

Page 24: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

24

· A reposição de recursos naturais é, via de regra, baixa. Isso se deve à falta de umaconsciência ambiental, tanto em homens como em mulheres. No caso da flora, já setem alcançado algum avanço, mas no caso da fauna, ainda pouco se tem feito. Areposição da fauna silvestre ou a criação da mesma é hábito desconhecido pela mai-oria dos grupos étnicos do país. Os casos de criadores de certas espécies ocorrem emcondições extraordinárias, fora da prática habitual das comunidades da área de influ-ência das unidades de conservação.

· Quanto maior a adversidade do meio ambiente, maior a atuação das mulheres emrelação ao uso dos recursos naturais.

· A falta de oportunidades de trabalho para a ala masculina na comunidade localpode favorecer a presença das mulheres. Quando os homens saem em busca de traba-lho, as mulheres responsabilizam-se pelos trabalhos locais, quer domésticos quercomunais. Um motivo a mais para que elas sejam consultadas.

· As normas estabelecidas para as mulheres quanto à conduta e aos espaços permiti-dos ou proibidos socialmente reduzem ou impedem a participação das mesmas empráticas e atividades que têm sido tradicionalmente definidas como masculinas. Isto,por exemplo, torna-se evidente em atividades de obtenção do recurso fauna, nas quaisas mulheres participam pouco.

· Uma comparação entre mulheres de diferentes idades, indica que geralmente as mu-lheres mais idosas possuem maiores conhecimentos sobre os recursos naturais. Istopelo fato delas serem as principais responsáveis pelos trabalhos domésticos voltados àreposição da força de trabalho familiar e para a saúde dos membros da família.

· A relação tradição/modernidade também joga um papel importante. Homens e mu-lheres mais jovens dão menos importância aos conhecimentos tradicionais. Já as pes-soas mais velhas costumam orientar sua conduta em conhecimentos recebidos da fa-mília, transmitidos de geração em geração, de mulher para mulher, de homem parahomem. Nas zonas rurais, o vínculo com estes recursos é mais direto e intensivo, ob-servando-se a perda de conhecimentos à medida em que a urbanização aumenta. Nocaso dos indígenas, ocorre ainda o agravante da perda da língua nativa. O nome dasplantas e das ervas que conhecem não são encontradas no vocabulário português e,com isso, perde-se uma boa parte da sabedoria popular nativa. Assim, com amodernidade, as pessoas tendem a perder o contato com a fonte dos recursos natu-rais, fazendo com que haja uma relação mais distante e mediatizada com os mesmos.

· O estado civil também influi na relação entre os recursos naturais e as pessoas. Ge-ralmente as mulheres e os homens, ao se casarem, passam a assumir maiores respon-sabilidades e papéis de gênero condizentes ao seu novo estado civil. No caso dasmulheres chefes de família (no Brasil 23% dos domicílios são chefiados por mulheres),há um acúmulo de tarefas e nem sempre essa diferenciação de papéis pode ser mantida.

Page 25: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

25

· O nível de instrução parece ser inversamente proporcional ao conhecimento dos re-cursos naturais, já que os saberes tradicionais estão em vias de perda e não são repos-tos por outros novos. A educação formal pode até contribuir para a aquisição deconhecimentos teóricos e para uma maior consciência ambiental, contudo, não ga-rante um manejo mais adequado dos recursos naturais. Isto se deve ao fato de ser umconhecimento e uma orientação não vinculados ao dia-a-dia das pessoas. Já grandeparte dos homens e das mulheres do campo, embora não possuam o primeiro graucompleto, têm um grande saber tradicional sobre os recursos existentes em seu meio esobre a utilização dos mesmos.

· A relação dos homens e das mulheres com os recursos naturais também guarda rela-ção com o tipo de trabalho que exercem. Para as mulheres que não trabalham fora decasa esta relação é sem dúvida menos mediatizada do que para aquelas que traba-lham fora. Muitas vezes essa relação, além de ser menos direta, contribui para o desa-parecimento do conhecimento prático.

Do exposto até aqui podemos concluir que tratar de conhecer as relações de gênero nomanejo dos recursos naturais é, de fato, uma tarefa complexa, para a qual as chefias das Unidadesdeverão contar com a colaboração de parcerias diversas. Sabemos que cada um dos/das chefes deunidades de conservação é capaz de relatar experiências valiosas nesse sentido, mas o importanteé que se comece a sistematizar essas experiências a fim de que se tornem acessíveis ao acervocoletivo.

5. Gênero, recursos naturais e necessidadesbásicas

Inúmeros são os aspectos que poderiam ser abordados sobre a relação entre gênero, re-cursos naturais e necessidades básicas. Boa parte destes já foram trabalhados nas páginas anteri-ores. Neste capítulo centraremos nossa atenção em apenas dois aspectos que são a saúde e aalimentação, por considerarmos esses dois de suma importância para o manejo sustentável dosrecursos naturais da área de abrangência das unidades de conservação.

5.1 Saúde

Se concebemos saúde como um conceito ecológico de vida, caracterizado não apenaspela ausência de enfermidades, senão por uma forma de vida digna e solidária, inseparável docontexto sociocultural e ambiental, então a saúde não é um atributo apenas individual do serhumano, mas um atributo intimamente ligado ao estado de saúde da comunidade em que vivemos,

Page 26: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

26

ou seja, é um atributo que diz respeito a harmonia do indivíduo com seu meio ambiente interno eexterno.

Há, pois, uma relação direta entre saúde individual, pública e do meio ambiente. Via deregra são as mulheres quem mais contribuem para que essa relação seja positiva, já que grandeparte da atenção primária e preventiva à saúde é realizada por elas, tanto na família como nosserviços públicos e privados.

Os serviços domésticos e comunitários de saúde exercidos pelas mães e avós baseiam-seem elementos caseiros, muitas vezes, como alternativa de acesso a outras formas de atenção.Trata-se de um serviço não remunerado que as mulheres prestam às suas famílias e à sua comuni-dade, assentado no pressuposto de que no âmbito familiar essa atividade faz parte das obrigaçõesdomésticas da mulher, e no âmbito público, nos serviços de saúde oferecidos à comunidade, repre-senta a extensão da primeira.

Embora essencial, tanto para a família como para a comunidade, este serviço nem sempreé reconhecido socialmente. Mesmo que possa acarretar riscos para a própria saúde da mulher,decorrente do contato com os enfermos da família, da lavagem de suas roupas, do banho e dodesgaste que uma atenção constante provoca, ele é prestado sem questionamento: é tido comonatural! A conseqüência disso é que muitas das profissões ligadas à saúde (como, por exemplo, aenfermagem) são tidas como tipicamente femininas.

A falta de serviços básicos de saúde em muitas comunidades é compensada pelo trabalhovoluntário das mulheres. Muitas vezes este seu trabalho voluntário é recompensado pelo prestígioque lhes confere no interior da comunidade. Contudo, é preciso ater-se ao fato de que nem toda aexperiência caseira para com o tratamento de enfermos se faz acompanhar apenas de efeitos posi-tivos. Há crenças e práticas de saúde, baseadas no conhecimento empírico das mulheres,questionáveis, sobretudo quando a coleta dos insumos é feita em lugares deveras poluídos e con-taminados.

De qualquer forma, as habilidades acumuladas das curandeiras e sanitaristas familiares ecomunitárias devem ser capitalizadas pelos programas de saúde pública, pois o conhecimento queelas possuem sobre o tratamento de certas doenças endêmicas e infecciosas a partir de ervas nãodeixa de ser “um bem comunitário”, que deixa de ser gerido na medida em que desaparece a floraoriginal. Paralelamente ao desaparecimento da flora medicinal original ou da contaminação damesma, ocorrem perdas para a saúde da população. A reposição das plantas ameaçadas pela de-gradação ambiental deve fazer parte de programas tanto de saúde como ambientais. E mais, essesprogramas deverão prever também em suas agendas a possibilidade das mulheres participaremdas decisões tomadas, haja vista serem elas quem dominam o saber popular sobre plantas medici-nais e ervas em geral. O seu saber e sua experiência, deve ser integrados nos projetos e programascomunitários.

O manuseio de agrotóxicos, medicamentos e venenos contra insetos, tanto em áreas ur-banas quanto rurais, é outra questão que afeta a saúde dos segmentos populacionais das áreas de

Page 27: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

27

influencia das unidades de conservação. As mulheres, por exemplo, mesmo não sendo usuáriasdiretas desses produtos, armazenam os mesmos e quando este armazenamento não é feito correta-mente pode produzir acidentes graves, muitas vezes até fatais.

Além do consumo e do armazenamento de produtos tóxicos, as mulheres são as princi-pais responsáveis pela aquisição e processamento do alimento familiar. Assim sendo, pordesinformação ou por descuido, elas podem se tornar cúmplices da aquisição de alimentos emmau estado ou contaminados e do contato com químicos prejudiciais à saúde.

Esses são apenas alguns dos aspectos que dizem respeito à saúde pública das comunida-des das áreas de influência das unidades de conservação. Os poucos exemplos acima apresenta-dos mostram o quanto os aspectos de saúde estão relacionados com aspectos ambientais e deconservação da biodiversidade.

5.2 Alimentação

Esta é uma questão tipicamente feminina, já que a satisfação das necessidades nutricionaisda família é tida como uma das atividades domésticas das mulheres, quer trabalhem ou não fora decasa. Assim sendo, a saúde de todos os membros da família depende, em grade parte, da habilida-de com a qual as mulheres lidam com essa questão.

As decisões das mulheres quanto à seleção de alimentos para o consumo próprio e deseus familiares guarda relação a aspectos os mais diversos tais como: tempo disponível para prepa-rar os alimentos, suas possibilidades econômicas, o conhecimento do valor nutritivo dos alimen-tos, a cultura culinária vigente e a disponibilidade dos alimentos em forma natural. Quanto maiora dependência de alimentos naturais, tanto maior será a necessidade de que as mulheres conheçamformas adequadas de preparo, conservação e reposição desses alimentos.

Faltam estudos no Brasil sobre a presença das mulheres na área de segurança alimentar ecriação de alternativas. Mas, segundo algumas organizações não governamentais e Prefeituras, apresença das mulheres nessa área, é majoritária.18 Entre as iniciativas bem sucedidas contamoscom os projetos de multimistura19, os quais têm contribuído para uma sensível melhoria do nívelalimentar de mais de um milhão de famílias no Brasil e da economia média de 30% nos gastosfamiliares com alimentação.20

6. Planos de ação com enfoque de gênero s

18 Rede Mulher de Educação, 1994, 7419 A multimistura é um complemento alimentar com nutrientes e sais minerais feito de folhas, cascas, talos, polpas e sementes que

geralmente são jogadas fora, incrementado com recursos provenientes da fauna.20 Castro/Abramovay, 1997, 59

Page 28: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

28

Trabalhar questões ambientais com o enfoque de gênero na área de influência das unida-des de conservação permite evidenciar os papéis diferenciados que homens e mulheres desempe-nham no manejo cotidiano dos recursos naturais. Além disso, revela quais os saberes que ambosos sexos possuem sobre os recursos naturais, evidencia o potencial transformador de ambos paraa conservação dos recursos naturais e auxilia na busca de ações afirmativas junto aos segmentosenvolvidos - sobretudo mulheres - para que possam participar eqüitativamente na solução de ques-tões de manejo.

As estratégias abaixo relacionadas são sugestões apenas. Em absoluto pretende-se esgo-tar aqui o leque de possibilidades, até porque, não se pode antever o tipo de ações sem um diag-nóstico da situação, já que cada unidade de conservação tem características próprias21.

6.1 Basear projetos no conhecimento diferenciado dosgrupos envolvidos

Promover o resgate, a sistematização e a divulgação dos conhecimentos que mulheres ehomens dos distintos segmentos populacionais possuem sobre os recursos naturais pode resultarnuma atividade de grande proveito para as unidades de conservação. O conhecimento sobre osdiversos usos dados pelos(as) moradores(as) da área de influência da Unidade à flora local podeser citado aqui como um dos exemplos possíveis. Há, sem dúvida, práticas populares inadequa-das, mas também relevantes conhecimentos e procedimentos sobre o uso de plantas e ervas medi-cinais, cujos benefícios à saúde, por exemplo, não podem ser subestimados e que estão correndoo risco de caírem em desuso. Via de regra esse capital de conhecimentos é transmitido às geraçõesseguintes pela tradição oral, não havendo quase material escrito sobre o assunto. Com a crescenteurbanização, esse conhecimento, se não sistematizado, corre o risco de perder-se. Para essa siste-matização, o saber diferenciado por sexo e etnia e as formas de transmissão deste saber para asgerações futuras é de suma importância para uma série de ações que se queira desenvolver junto àscomunidades.

6.2 Incentivos à criação de organizações e associaçõescomunais para compartilhar responsabilidades

Para um melhor aproveitamento dos recursos naturais, a contribuição das organizações,associações e cooperativas dos diversos segmentos da comunidade revela-se fundamental. O lemaaqui é compartilhar responsabilidades. Há inúmeros exemplos que demonstram a importância deuma ação coordenada e organizada da população quanto ao manejo adequado dos recursos natu-

21 Programas de educação ambiental e de ecoturismo são duas estratégias já bem conhecidas pelas chefias das Unidades deConservação, motivo pelo qual não estão contempladas aqui.

Page 29: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

29

rais. Quando a obtenção dos recursos da fauna, flora e outros ocorre de maneira organizada, comdistribuição de responsabilidades de maneira eqüitativa, o desperdício será menor e a unidade deconservação só tende a ganhar. Isso vale para todos os segmentos da comunidade local e tambémpara os segmentos supralocais, ou seja, para donas de casa que coletam lenha, água ou plantasmedicinais ou para pescadores profissionais ou para empresas madeireiras.

6.3 Iniciativas produtivas com ênfase em alimentos deorigem local

Há inúmeras possibilidades de apoiar iniciativas produtivas nas comunidades do entor-no, todas elas visando a preservação da natureza e de seus recursos.

Em relação aos recursos florísticos, pode-se, por exemplo, apoiar a criação de hortas epomares domésticos e /ou comunitários com plantas/ervas medicinais e ornamentais, condimentosflorestais e frutos. Também podem ser apoiadas iniciativas de reflorestamento, envolvendo osmais diversos segmentos da comunidade.

Em relação à fauna, poder-se-ia incentivar - tanto no nível doméstico como comunitário- a piscicultura e a criação de animais de pequeno porte.

Estas práticas, além de incidirem diretamente na recuperação e reposição dos recursosnaturais mais utilizados, estariam conduzindo as comunidades rurais a produzirem fontes alterna-tivas de nutrição, promovendo uma melhoria da qualidade de vida mediante a disponibilidade denutrientes a baixo custo e com tempos prolongados de armazenamento. Além do mais, estariamcontribuindo para ocupar os membros das famílias, especialmente os jovens, o que proporcionariauma fonte de renda familiar adicional, durante grande parte do ano.

6.4 Programas de intercâmbio de conhecimentos entrediferentes grupos populacionais

Respeitando o contexto de cada um dos grupos, seria recomendável permutar os conhe-cimentos específicos e comuns dos diferentes grupos de uma comunidade ou região. Os gruposque, por exemplo, costumam defumar carne, que têm experiência em carne seca ou na fabricaçãode queijos, poderiam mostrar e ensinar essa técnica a outros grupos. Grupos de mulheres quecostumam conservar frutas e legumes em vidros de conserva poderiam divulgar sua técnica e, emtroca, aprender outras técnicas. A utilização dessa prática na economia doméstica é muito impor-tante, sobretudo para as pessoas que não contam com centros de abastecimento próximos e preci-sam aproveitar os recursos sazonais. Além do mais, contribui tanto para diversificar o cardápioalimentar local, como para divulgar práticas alimentares regionais.

Page 30: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

30

6.5 Introdução de conteúdos de educação ambiental nosprogramas de educação formal e informal

Os conteúdos sugeridos seriam o manejo dos resíduos, a utilização do adubo orgânico, oprocessamento de alimentos, técnicas de cultivo, áreas silvestres protegidas etc. Os programaseducativos deveriam contemplar a dimensão ambiental de maneira prática e real, aproveitando oconhecimento local, em especial o conhecimento das mulheres.

As mulheres detêm saberes empíricos, contudo, muitas vezes faltam elementos para umareflexão sobre a sua aplicação no entorno mais imediato. Para a implementação de programaseducativos ambientais poderiam ser utilizados os meios de comunicação locais, principalmente orádio, tendo em vista ser este o meio informativo mais popular e abrangente.

Poder-se-ia também organizar campanhas de educação ambiental dirigidas aos homens emulheres enfatizando as alternativas para o âmbito doméstico. Tanto os jornais da comunidadecomo as escolas locais devem fazer parte de tais campanhas. Há inúmeras experiências que mos-tram o quanto a comunidade ganha convidando, por exemplo, homens e mulheres da comunidadepara, juntamente com os alunos, desenvolverem ações as mais diversas: criação de hortas escola-res, cardápios escolares com receitas de multimistura, reflorestamento etc.

6.6 Incentivar a participação masculina em programas deeducação ambiental e sua aplicação no âmbito doméstico

Incentivar a participação masculina em programas de educação ambiental que incidamdiretamente no âmbito doméstico pode resultar em um grande benefício para a família e a comu-nidade. Aqui os homens são motivados a participarem de atividades domésticas, tais como a coletaseletiva do lixo, reciclagem de resíduos e coleta, preparo e conservação de materiais para o artesa-nato.

6.7 Estimular a habilitação no manejo dos recursos pormeio de um enfoque não convencional

Todas as atividades apoiadas pela chefia das unidades de conservação deveriam extrapolaro enfoque tradicional que vê as mulheres apenas como agentes coletores e processadores dosrecursos naturais. As mulheres, em quase todos os recursos naturais, exercem um papel protago-nista, contudo, via de regra, a elas não cabe opinar em questões que envolvem o manejo eficaz dosrecursos naturais da comunidade.

Os programas de gestão do meio ambiente deveriam incorporar os conhecimentos e aspráticas tradicionais das mulheres, sobretudo das mulheres rurais, em relação ao uso e à gestãosustentável dos recursos naturais.22. Para que as mulheres possam participar efetivamente, é preci-

Page 31: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

31

so levar em consideração que devido aos afazeres domésticos, elas dispõem de menos tempo. Daíporque é preciso respeitar os horários do seu trabalho cotidiano, evitando, por exemplo, marcarreuniões nas horas em que as mulheres estejam impedidas de participar.

6.8 Estimular a promoção do artesanato

Tanto no campo quanto na cidade, as possibilidades para o trabalho artesanal são enor-mes. As iniciativas existentes podem ser melhoradas em todos os sentidos e novas iniciativaspodem surgir. Aqui é preciso ter um especial cuidado com a inserção das mulheres, pois a experi-ência mostra que elas são as que mais carecem de condições para desenvolver trabalhos voltadosà melhoria da qualidade e à competitividade nos mercados locais e regionais. Capacitar, por exem-plo, os artesãos e artesãs para a coleta seletiva dos recursos naturais, a fim de evitar danos irreparáveisàs espécies, é contribuir diretamente para a sustentabilidade da natureza. Assim sendo, apoiar asiniciativas existentes e criar condições para que outras se instalem, significa contribuir não apenascom a preservação do meio ambiente, senão também com a cultura local e com a geração de novasfontes de renda.

6.9 Fomentar a diversificação de proteínas nas populaçõesdo entorno

A segurança alimentar é uma das grandes questões brasileiras. Significativa parcela dapopulação come menos do que deveria e também come mal. Modificar hábitos alimentares, utili-zando recursos locais à luz de novos conhecimentos pode trazer grandes benefícios para as popu-lações rurais e urbanas. Há inúmeros exemplos bem sucedidos de diversificação de proteínas noscardápios familiares, sobretudo das populações mais carentes. Aqui merecem destaque os projetosde multimistura desenvolvidos em inúmeras escolas públicas brasileiras.23

Há uma infinidade de plantas mal aproveitadas por falta de informação sobre o seu realvalor nutritivo. Muitas vezes consumimos apenas os frutos por desconhecermos que as folhas, oscaules e as flores também possuem valor energético e protéico. Converter o atual desperdício emfonte alimentar é contribuir para o bem-estar da população. Ademais, por meio da produção empequena escala de variedades faunísticas, como a piscicultura, apicultura e outros, em muito con-tribui para que segmentos populacionais da área de influência das Unidades passem a se alimentarmelhor.

22 Nações Unidas, 1996, 23923 Para uma definição de multimistura, veja nota 19

Page 32: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

32

Como geralmente cabe às mulheres a tarefa de zelar pela boa alimentação da família, sãoelas as mais indicadas para ações dessa natureza. Contudo, temos que pensar também em açõesque favoreçam a participação dos homens.

6.10 Promover a implementação de experiênciasecológicas em nível micro

As experiências ecológicas em nível micro (grupos familiares e comunitários) incidemnos mais diversos aspectos da vida humana. Dado o seu caráter transversal, elas podem incidirtanto na área da saúde, da alimentação, da moradia, da educação e de muitas outras áreas. Exem-plos de experiências dessa natureza podem ser: reflorestamento de espécies diversas para finsenergéticos, alimentares e outros (plantas que dão sombra, frutos nativos e exóticos e lenha);reposição de espécies raras, disposição e reciclagem de lixo; utilização de resíduos como fontes deenergia; cultivos orgânicos; controle biológico de pragas e utilização de adubos de diversas fontes.Em todas as experiências é preciso contemplar a participação eqüitativa de homens e mulheres.

6.11 Promover a difusão da informação sobre produtos nãorecicláveis

As ações de proteção e conservação das unidades de conservação requerem informaçãoe atitudes positivas que vão mais além do universo conceitual imediato dos homens e das mulheresda área de influência das Unidades. Como exemplo, podemos mencionar a informação necessáriapara a reciclagem de determinados produtos, como o plástico, cuja composição é alheia ao univer-so de muitas pessoas que ainda crêem na capacidade de reciclagem da natureza. Difundir umainformação adequada e atualizada nas comunidades do entorno deveria ser uma das prioridadesdas chefias de unidades de conservação. Procurando as parcerias certas (escolas, jornais, rádio,prefeituras, sindicatos etc.) é possível desenvolver um bom programa.

6.12 Favorecer pesquisas com enfoque de gênero

A oferta de oportunidades para o desenvolvimento de pesquisas científicas é um dosobjetivos a serem atingidos pelas unidades de conservação. Parte-se do pressuposto de que asatividades de manejo, seja no nível de planejamento ou de execução, necessitam basear-se emresultados de pesquisas científicas que ofereçam os subsídios necessários para uma correta interfe-rência sobre a área ou sobre os recursos específicos.24 Ora, se essas pesquisas devem “fornecer

24 IBAMA, 1997, 21

Page 33: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

33

subsídios para solucionar as questões que possam surgir no manejo dos recursos das unidades deconservação”25, elas devem também contemplar questões referentes às comunidades do entorno edentre essas, as ações diferenciadas de homens e mulheres.

Dentre as pesquisas que a serem apoiadas, poder-se-ia pensar em:

• Promover o desenvolvimento de programas de investigação e ações que privilegiam aharmonia entre a produtividade econômica específica da região (agricultura, pecuá-ria, pesca, indústria, agroindústria, mineração, turismo etc.) e a preservação do meioambiente, levando em conta o potencial diferenciado de homens e mulheres para umaação transformadora.

• Fomentar pesquisas sobre as atividades de homens e mulheres, particularmente daspopulações rurais e indígenas, em relação à coleta e produção de alimentos, a conser-vação do solo, o cuidado com os recursos hídricos, o saneamento, a gestão de recur-sos marinhos e costeiros, o controle as pragas, o planejamento do uso da terra, aconservação dos bosques e dos espaços naturais comunitários, a pesca, a prevençãode desastres naturais e fontes energéticas novas e renováveis entre outros.26

• Incluir programas de pesquisa que relacionem a degradação do meio ambiente com aperda da saúde e da qualidade de vida da população do entorno.

• Resgatar o conhecimento que as mulheres têm sobre as plantas e ervas medicinais. Aperda do conhecimento tradicional nos remete ao alerta de que hoje, mais do quenunca, este conhecimento deve ser sistematizado e difundido.

• Identificar e fomentar tecnologias “brandas”, ou seja, que respeitem o meio ambiente,desenhadas, elaboradas e aperfeiçoadas com a participação de homens e mulheres,aptas para o uso de ambos, a fim de propiciar a participação eqüitativa de homens emulheres tanto no desenvolvimento como no benefício das mesmas.

• Buscar e proporcionar substitutos às fontes energéticas não renováveis e à utilizaçãode alternativas energéticas, por exemplo, o uso de tecnologia solar ou eólica. A utiliza-ção de energia solar no nível doméstico traria benefícios enormes, sobretudo para asmulheres.

6.13 Ações de apoio a grupos locais específicos

Na implementação de projetos ou atividades que visam buscar sócios na conservação epreservação dos recursos naturais da área de influência, as chefias deveriam ater-se em ações quevenham apoiar e fortalecer os grupos e as iniciativas já existentes na comunidade e incentivar a

25 IBAMA, 1997, 2226 Nações Unidas, 1996, 239

Page 34: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

34

participação dos segmentos menos “visíveis”, mas nem por isso menos ativos no manejo dosrecursos naturais.

Dentre as possíveis ações, destacamos:

• Fortalecer iniciativas de organizações sociais de homens e mulheres em prol de ummanejo eficiente dos recursos naturais e do meio ambiente que objetivam reverter oquadro do mau uso de tais recursos.

• Desenvolver projetos de ação comunitária voltados ao melhoramento da qualidade devida. Os projetos de intervenção comunitária, empreendidos especialmente por jo-vens, poderão contribuir para a sua permanência na comunidade, sobretudo naque-las de grande emigração.

• Definir e implementar uma linha de crédito (fundos rotativos) para atividades de jo-vens empenhados na recuperação e preservação dos recursos naturais. Entre outras,pode-se apoiar estratégias de conservação da água (desde o cuidado das nascentesaté a coleta e o armazenamento doméstico), a rotatividade de cultivos, o cuidado daspraças e espaços comunitários de recreação, programas de arborização ou cultivo desementes para reflorestamento e campanhas de arborização em volta dos domicílios.

• Apoiar a capacitação de mulheres e homens em iniciativas que impliquem inovaçõesno tratamento dos recursos naturais, em aspectos tais como: a preservação de alimen-tos, a coleta e conservação de plantas medicinais, e o uso da água para lavagem deroupa e higiene da casa.

• Difundir e apoiar o uso de fontes renováveis e alternativas de energia, naquelas regiõesem que é possível potencializar a produção de alimentos, como a instalação de moi-nhos de vento para melhor utilização de água, moinhos hidráulicos para moer outrilhar grãos, energia solar para higiene pessoal e cozimento.

• Incorporar técnicas de processamento de alimentos que resultem eficazes e poupado-ras de energia e tempo de trabalho. Como exemplos, podemos lembrar os projetos dedefumação de carnes (peixe, porcos) e a construção de fornos para a fabricação depães. A arte de fazer doces e conservas também não deve ser esquecida. Aqui deve-sedar preferência aos fornos/cozinhas comunitários, já que estes exercem também umafunção sociocultural e não meramente energética.

•Promover a criação e o fortalecimento de feiras e mercados locais abastecidos comalimentos hortigranjeiros, plantas e ervas medicinais, roupas, comidas e produtos deartesanato produzidos localmente e de maneira sustentável pelos diversos segmentospopulacionais das comunidades da área de influência da Unidade.

Page 35: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

35

• Fomentar, nos recintos domésticos, áreas de inovação ambiental, seja para fins orna-mentais (jardinagem), para o consumo ou para a produção (hortas). Estas pequenasiniciativas domésticas podem servir de exemplo para o manejo de áreas maiores nonível da comunidade.

• Fomentar, no nível doméstico, a implementação de inovações na área sanitária, inclu-indo a participação de todos os membros da família, mas sempre apoiadas na experi-ência das mulheres.

• Apoiar a elaboração caseira de produtos, como o sabão, óleos, fertilizantes e outros deuso diário com fórmulas e ingredientes não poluentes.

• Fomentar a consciência da necessidade de reciclar os recursos naturais e os dejetosnão tóxicos. Uma boa capacitação envolvendo outros membros da família, pode darlugar a iniciativas de reciclagem rentáveis, cuja renda poderá ser agregada ao orça-mento familiar ou destinada a projetos comunitários.

• Incentivar os mais diversos segmentos populacionais do entorno a definirem, com aparticipação das mulheres, linhas de ação que visem a poupança doméstica e comuni-tária de combustível.

7. Procedimentos para incorporar o enfoque degênero no gerenciamento das Unidades

Para que o enfoque de gênero possa ser incorporado satisfatoriamente no gerenciamentodos recursos naturais das Unidades e de sua área de influência, faz-se necessário um diagnósticosituacional, com a participação de homens e mulheres dos mais diversos segmentos populacionais.Para este diagnóstico, os passos a serem dados são:

a) Definição dos conteúdos, do cronograma e dos métodos.

Concluídas as definições prévias sobre o enfoque e a abrangência do diagnóstico, e reco-lhida alguma informação secundária, devemos reunir as pessoas-chave que serão envolvidas narealização do mesmo. É o momento de se definir os principais problemas enfrentados, de confron-tar a informação das fontes escritas (se é que existem) com o conhecimento empírico dos partici-pantes. É neste contexto que devemos definir, de forma precisa, o conteúdo do diagnóstico (o quequeremos saber?), formular hipóteses (quais são as possíveis conclusões?) e definir métodos etécnicas de pesquisa (como vamos chegar a saber?). É também o momento de elaborar umcronograma de trabalho, respeitando sempre a disponibilidade de tempo dos participantes da co-munidade, sobretudo dos grupos com tempo menos elástico, como por exemplo, os grupos demulheres.

Page 36: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

36

b)Trabalho de campo

É a etapa central de um diagnóstico situacional comunitário. Trata-se da fase de levanta-mento dos dados, da análise, interpretação e apresentação dos mesmos. Dependendo dos métodosutilizados, essa etapa pode ser bem mais rápida que a anterior. É a etapa mais participativa, commaior envolvimento das pessoas-chave e dos pesquisadores.

Para diagnósticos situacionais, existe um bom número de métodos e técnicas, porém nemtodos são adequados para um diagnóstico que incorpore o enfoque de gênero. É preciso optar pormétodos que se complementam no processo de conhecimento da realidade que se quer estudar.Eles devem formar uma seqüência lógica, embora não rígida, de passos a serem seguidos durantea realização do diagnóstico. Precisamos estar atentos para o fato de que cada método serve parainvestigar apenas parte das questões levantadas em nosso roteiro de pesquisa, ou para analisar asmesmas questões sob ângulos diferentes.

c) Análise e interpretação dos dados

Os resultados do diagnóstico podem ser analisados e interpretados por parte ou em seuconjunto. Importante nessa etapa do diagnóstico é a participação dos entrevistadores, moradores elideranças da comunidade. Dependendo do método ou métodos empregados, essa fase é posteriorou concomitante ao levantamento dos dados.

Os dados quantitativos devem ser apresentados em números absolutos e em percenta-gens e sempre desagregados por sexo e idade para permitir uma melhor comparação e interpreta-ção dos resultados. Mas cuidado! A simples desagregação por sexo não revela, por si só, o quadrocompleto de trabalho e vida das mulheres. Isso porque:

• as técnicas de coleta e mensuração não são igualmente válidas para homens e mulhe-res. A evidência mostra que mulheres e homens vivenciam seu ambiente econômico,social e ambiental de modo diferente e isto afeta a forma como eles/elas respondem aquestões referentes à sua situação; e

• as categorias conceituais convencionais não carregam o mesmo sentido para todas aspessoas de um grupo ou uma comunidade. O conceito trabalho, por exemplo, nemsempre significa a mesma coisa para ambos os sexos. Para as mulheres, o trabalhopode estar completamente absorvido nas atividades não remuneradas que realizam,ao passo que para os homens o trabalho geralmente é socialmente visível e, na maio-ria das vezes, recompensado financeiramente.

d) Devolução e discussão dos resultados

Após a discussão dos resultados do diagnóstico com o grupo mais restrito de pesquisado-res e lideranças comunitárias (formais e informais), devemos voltar à comunidade para expor asconclusões ao conjunto das pessoas que participaram das reuniões e discussões em grupo, e queforam entrevistadas pelas equipes de pesquisa.

Page 37: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

37

Nessa devolução dos resultados devemos encontrar formas de apresentação e visualizaçãoda informação que sejam acessíveis aos participantes. É o momento propício para traçar estratégi-as de ação.

7.1 Métodos

Como já frisamos anteriormente, há um bom número de métodos que podem ser usadospara explorar questões de gênero e de meio ambiente. Métodos que dão a conhecer como homense mulheres das comunidades do entorno se relacionam com o meio ambiente, para a partir daí,poderem ser traçadas estratégias de uso sustentável dos recursos naturais.

Geralmente os dados secundários existentes são insuficientes e demasiadamente genéri-cos. Em função disso, há a necessidade de se levantarem dados específicos. A escolha de ummétodo é importante. Nem sempre os métodos acadêmicos são os mais apropriados, tendo emvista que costumam ser demorados, caros, extremamente especializados e teóricos. Há, no entantouma série de outros métodos menos onerosos em dinheiro, pessoal e tempo, entre os quais pode-mos destacar: a observação direta, as entrevistas estruturadas e semi-estruturadas, as entrevistasespecíficas e aprofundadas e as discussões em grupo. São métodos que se complementam e quepor isso são geralmente usados de forma combinada.

Um método bastante adequado para introduzir o enfoque de gênero nas questões de meioambiente, já largamente utilizado em várias partes do mundo, é o Diagnóstico Rápido e Participativo,por ser ágil, simples, prático e eficaz.

7.1.1 Observação direta

Quem visita a comunidade e observa atentamente a paisagem, as habitações, os roçadose as plantações, logo descobre muitos dados sobre a realidade. E isso é possível sem conversarcom ninguém, sem fazer perguntas ou entrevistas.

Andando pela comunidade podemos observar as vias de acesso, algumas instalaçõesexistentes (tais como: tipos de casas, posto de saúde, rede elétrica, açude, casa de farinha, fábricas,escolas e outras), o relevo do terreno, a vegetação, as fontes e cursos d’água. Podemos observarigualmente como se dá o uso da terra (se há mata ou capoeira, pastos, plantações) e a condição dosolo (se há sinais de degradação). Podemos, inclusive, detectar alguns indicadores da estruturafundiária e do sistema produtivo (roçados de pequenos agricultores, áreas de monocultura ou depasto das fazendas) bem como da diferenciação social, como por exemplo, o tipo de casas e decarros e a forma como as pessoas se vestem.

A observação direta é como uma fotografia. Registra o que há de momento. Contudo, háalguns aspectos presentes na comunidade que não podem ser vistos no momento. São aspectossazonais, próprios de algumas épocas do ano ou de momentos específicos: o clima, as diferenteslavouras e suas técnicas de produção, o processo de comercialização. Algumas informações não

Page 38: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

38

podem ser obtidas pela observação direta, como por exemplo, o número de proprietários de terra,a distribuição de renda familiar, ou o grau de sindicalização dos trabalhadores rurais. Essas infor-mações deverão ser obtidas por meio de outros métodos.

O cuidado que devemos ter é com a má interpretação daquilo que vemos. Por isso, todaessa informação obtida pela observarão direta deve ser completada com informações escritas eorais.

É importante ter presente de que a observação direta não se esgota na primeira visita. Porisso, convém realizar observações em momentos e época diferentes. Em visitas posteriores podeocorrer que nos deparamos com alguns aspectos não vistos antes ou não comentados em diálogose entrevistas com técnicos e a população local, mas que são importantes para o diagnóstico. Podeocorrer também que alguns dos aspectos, numa segunda ou terceira visita, passem a ser interpreta-dos de maneira complemente diferente, devido a informações adicionais que não tínhamos naocasião da primeira visita.

Resumindo, podemos dizer que a observarão direta representa um método útil e necessá-rio para o diagnóstico situacional, mas limitado e parcial. Não fornece a informação completa;portanto, um diagnóstico jamais poderá ser feito apenas com base neste método.

7.1.2 Entrevistas com moradores e lideranças comunitárias

Para conhecer mais sobre a comunidade ou sobre determinadas questões, é preciso con-versar com as pessoas envolvidas. Estas, dependendo do assunto, podem ser grupos de moradores(homens e mulheres), lideranças sindicais, empresários, autoridades locais ou outras.

Geralmente, ao chegarmos numa comunidade, procuramos primeiro as lideranças for-mais e com elas fazemos entrevistas não estandartizadas. Contudo, nem sempre essas pessoas nosdarão as informações que estamos buscando. Com essas lideranças e autoridades podemos buscarinformações gerais sobre a comunidade, como por exemplo, história, infra-estrutura, recursos na-turais, população. Muitas dessas informações podem cobrir boa parte das informações gerais queestamos necessitando, mas nem todas. Outras precisam ser confirmadas mediante outros métodosde pesquisa.

Embora o conhecimento produzido pelas entrevistas vá além do resultado da mera obser-vação direta, ele também é limitado, pois se baseia na visão subjetiva dos entrevistados, proporci-onando assim um conhecimento apenas parcial da realidade. As entrevistas devem, pois, sercomplementadas com informações obtidas por outros métodos.

7.1.3 Discussões de grupo

As entrevistas com lideranças e autoridades podem oferecer muitas informações valiosassobre a realidade da comunidade em questão. Mas elas não são suficientes para concluir um diag-nóstico. É preciso, portanto, ampliar e diversificar mais o universo entrevistado.

Devemos, portanto, reunir outras pessoas e organizar entrevistas coletivas, ou melhor,discussões em grupos. Para essas discussões, convém utilizar mapas mentais, diagramas e traves-

Page 39: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

39

sias, próprios do diagnóstico rápido e participativo. As discussões grupais feitas com o auxílio detais métodos são de grande utilidade, pois os grupos-chave elaboram, em conjunto, um consensomínimo. Une-se aqui o conhecimento e a experiência de várias pessoas e se oferece a possibilida-de do grupo confrontar opiniões diferentes. Além de propiciar ao grupo a oportunidade de discutirsobre a sua realidade e não sobre uma realidade qualquer, essas discussões contribuem para umamaior tomada de consciência coletiva.

Organizar a discussão em grupo nem sempre é tarefa fácil. Deve-se decidir quem serãoos participantes, onde e quando ocorrerá o encontro, levando em conta a participação eqüitativados sexos masculino e feminino. O ideal sempre é discutir assuntos específicos com grupos igual-mente específicos: aqueles diretamente envolvidos com a questão. Assim sendo, é bem provávelque se tenha que fazer discussões só com homens ou só com mulheres, somente com idososhomens e mulheres, somente com jovens e depois comparar os resultados da discussão. As discus-sões em separado são aconselháveis sempre e quando alguns grupos apresentam experiênciasbem distintas dos demais membros da comunidade. Assim sendo, convém discutir com pessoasidosas se queremos resgatar a história da comunidade e perceber as mudanças do ecossistema e daagricultura nos últimos 40 ou 50 anos. Vamos discutir com agricultoras e agricultores quandoqueremos obter uma informação mais precisa sobre o calendário sazonal e com outros gruposespecíficos, quando queremos mapear os recursos naturais utilizados, e assim por diante.

7.1.4 Entrevistas com questionário

As entrevistas registradas em questionário não são tidas como um método participativo,já que o entrevistado é visto, em primeiro lugar, como fonte de informação e apenas secundaria-mente como parceiro num diálogo. Contudo, não deixa de ser um método útil e, por vezes neces-sário, para complementar informações sobre questões de gênero e meio ambiente.

É útil quando se quer quantificar a informação e quando se necessita obter uma visão dasdiferenças existentes entre os entrevistados, dada a possibilidade de cruzamento de dados. Quantoao conteúdo e à forma do questionário, não existe nenhuma receita ou modelo rígido. O tipo dequestionário (estruturado, semi-estruturado) e o tamanho do mesmo vão depender do tipo de in-formação que se está buscando e da habilidade e experiência de quem o confecciona. Se for muitolongo, cansa o entrevistado e acarreta maior trabalho para processar e analisar os dados coletados.

7.1.5 Entrevista aprofundada e específica

Para construir um conhecimento mais sistemático sobre um ou outro aspecto, convém, àsvezes, realizar algumas entrevistas mais aprofundadas. Por exemplo, quando queremos conhecermais sobre as práticas de obtenção, armazenamento e uso da lenha, convém entrevistar as pessoasenvolvidas com este recurso natural e, se queremos conhecer algo mais sobre o uso de defensivosagrícolas utilizado nas lavouras, temos que entrevistar os agricultores e agricultoras que dele fa-zem uso.

Page 40: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

40

As entrevistas específicas e aprofundadas podem ser muito úteis, mas como os demaismétodos já analisados, devem ser vistas apenas como um método complementar da coleta e análi-se de informação.

7.1.6 Diagnóstico rápido e participativo (DRP)

O DRP é um conjunto de métodos e técnicas que envolvem a participação dos maisdiversos segmentos populacionais (agricultores, empresários, políticos, sindicalistas, associações,grupos informais), em todas as fases de um projeto ou programa.

O DRP surgiu da necessidade de uma comunicação mais aberta entre os extensionistas,pesquisadores e a população local. Engloba uma variedade de métodos de levantamento e análisede dados, caracterizando-se pela participação conjunta de pesquisadores e da população local naconstrução do conhecimento. Mais do que um levantamento ou uma análise da dados, o DRP éum processo de aprendizado que almeja identificar preocupações locais e apoiar mudanças sus-tentáveis.

Ele se centraliza em entrevistas semi-estruturadas, conduzidas por perguntas iniciais, emque novos assuntos podem surgir durante as discussões. Prioriza a confecção de diagramas. Osdiagramas podem ser observados por todos e qualquer pessoa pode participar. Eles induzem adebates calorosos e a uma análise coletiva. Favorecem a apresentação daquilo que os participantesconsideram importante.

Quanto aos temas, eles podem ser discutidos por vários grupos usando o mesmo métodoou métodos diferentes. Dessa forma, podem ser compreendidos vários pontos de vista.

Uma das mais importantes características deste método é que os segmentos populacionaisda comunidade não são concebidos como meros objetos de estudo, mas atores e sujeitos do diag-nóstico. Eles participam como pesquisadores na produção do conhecimento e todas as etapas dapesquisa são discutidas com eles. Assim, o diagnóstico se torna um processo pedagógico e uminstrumento de conscientização que contribui para perceber e compreender melhor a realidade emque vivem e os problemas que enfrentam.

O desafio para quem vem de fora é iniciar e encorajar as discussões, mas depois devemestar preparados para recuar e deixar a população local analisar os temas.

O DRP se vale de uma gama de métodos de levantamento de dados e de análise, todoseles participativos, envolvendo pessoas e grupos os mais diversos, em conjunto ou separadamen-te. Vejamos alguns deles:

Mapas e Modelos Participativos

São alguns dos métodos mais diretos do DRP. Começar é fácil. Peça que as pessoasajudem a entender a comunidade, desenhando a área da sua comunidade e alguns dos principaisrecursos. Elas devem decidir o que desejam mostrar e como fazê-lo. Os mapas podem incluirqualquer tópico relacionado aos recursos naturais ou dependências sociais. São feitos com materi-ais locais. A escrita pode ser empregada, mas somente se for proveitosa para todos.

Page 41: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

41

Os mapas são particularmente úteis nos estágios iniciais do trabalho com a comunidade.Eles são divertidos de se fazer e excelentes para provocar discussões sobre preocupações locais.

As pessoas envolvem-se rapidamente, adaptando e analisando o mapa à medida em queele é construído. Como todos os diagramas de DRP, no final se faz uma cópia fiel. A cópia podeser usada para novas consultas no trabalho de campo ou quando se planeja novas atividades nacomunidade.

Exercícios dessa natureza podem ser úteis e interessantes para compreendermos, porexemplo, o quão diferente pode ser a visão que as mulheres têm de sua comunidade comparada àdos homens. Daí porque convém que a confecção dos mapas da comunidade e seus recursos sejafeita separadamente. Terminada a tarefa, os dois mapas são comparados e discutidos. Tanto paraos pesquisadores como para as mulheres e homens que confeccionaram o mapa podem surgirconhecimentos importantíssimos. Um deles é o reconhecimento de que, de fato, homens e mulhe-res avaliam de forma diferente a existência ou a falta de alguns serviços e empreendimentos nacomunidade. Trata-se de um excelente exercício para se travar na comunidade uma discussãosobre papéis de gênero, necessidades e interesses estratégicos de gênero.

Travessias

Travessias são caminhadas planejadas através da área que se deseja explorar, tendo osmoradores locais como guias. Se houver mapa da localidade, ele pode ser usado para que sedecida, em conjunto, a rota a seguir. Esta pode ser fora da trilha já demarcada anteriormente,durante a preparação do trabalho.

A travessia pode passar por toda a comunidade ou apenas por alguns campos, levandosomente algumas horas ou um dia inteiro. Durante a caminhada, o grupo pode parar ao longo docaminho para discutir não apenas o que se vê, mas também a história local ou a distribuiçãofundiária, por exemplo. As travessias são muito úteis na descoberta dos problemas existentes, pararecordar soluções já testadas e para avaliar possíveis alternativas de solução.

Calendários sazonais

Calendários sazonais podem ajudar a vistualizar como diferentes aspectos da vida daspessoas mudam de mês para mês. O ano pode ser dividido de várias formas. Em nosso país, osagricultores costumam dividir o ano em doze meses, mas isso não precisa ser a norma. Pode-seperfeitamente dividir o ano em quatro estações. Depois de simbolizar os meses, são discutidostópicos diferentes e consideradas as variações sazonais.

Os materiais utilizados são os encontrados no local. A escrita é usada tão somente quan-do todos os participantes são alfabetizados. Para calendários desse tipo, costuma-se muito utilizarvaras e desenhar o calendário no chão mesmo.

Na primeira linha pode-se, por exemplo, especificar as várias atividades agrícolas. Estaspodem ser representadas por diferentes folhas ou grãos, colhidos localmente, mas que simbolizam

o que se planta, quando se planta, o que e quando se colhe. Em outra linha são comparadas as

Page 42: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

42

temperaturas relativas.

À medida em que o calendário vai sendo confeccionado, pode-se discutir os problemasque as pessoas enfrentam ao longo do ano, bem como as formas de resolvê-los.

Os calendários sazonais são muito úteis para revelar como questões as mais diversaspodem estar relacionadas entre si.

Diagramas de Ven

Os diagramas de Ven ajudam a entender quais são os grupos formais e informais, ouquais são os indivíduos-chave que na comunidade desempenham papel relevante, e qual a impor-tância que eles têm para as pessoas que estão participando do diagrama. A própria comunidade érepresentada por um círculo central. Depois de discutir que grupos ou indivíduos-chave existem,peça ao grupo para mostrar a importância deles através do tamanho do círculo. Quanto maior foro círculo que eles fizerem, maior a importância que eles dão. Peça aos participantes que coloquemos círculos dentro e em torno da comunidade. Quanto mais perto são colocados os círculos umperto do outro, mais estreito será o contato entre eles. Mas cuidado! As pessoas podem ficarconfusas. Dê a elas o tempo que for preciso para decidir a colocação e explique aos participantesque a distância entre os círculos deve representar a grau de contato e não a distância geográfica. Àmedida em que o diagrama se desenvolve, mais grupos podem ser identificados. A discussão podese concentrar em áreas de cooperação, possíveis conflitos e lacunas existentes. Também é útilperguntar sobre os grupos tidos como mais antigos e os tidos como mais novos.

Matrizes de critérios

Uma matriz é útil para representar visualmente as diferentes opções que as pessoas têmem relação a assuntos específicos. Dependendo do assunto, pode ser extremamente útil dividir ogrupo em homens e mulheres e pedir que cada grupo faça a sua matriz. Uma vez confeccionada amatriz, os dois grupos apresentam o seu resultado. As diferenças que aparecem podem ocasionardiscussões bastante calorosas e interessantes.

Um exemplo de matriz de critérios pode ser a comparação dos serviços de saúde que acomunidade oferece e as alternativas de melhoria. As alternativas são representadas e colocadasem uma linha. Para a construção da matriz, peça ao grupo para identificar as vantagens e desvan-tagens de cada alternativa. Os símbolos para essas avaliações são colocados em uma coluna. Ogrupo avalia o quanto as alternativas são satisfatórias atribuindo pontos. Para tanto, podem serutilizadas sementes ou pedras. Quanto mais pedras ou sementes, mais pontos. Uma discussãoacalorada pode ser provocada, conforme as pessoas vão avaliando as diferentes alternativas. Essaanálise de critérios serve para revelar preferências e limitações.

Diagramas de fluxo

São úteis para avaliar o impacto de um problema ou de uma atividade na vida das pesso-as. Para que um diagrama possa ser eficaz, o tópico escolhido deve ser bastante específico. Se, porexemplo, queremos discutir com um grupo de mulheres que cultiva plantas medicinais em uma

Page 43: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

43

horta comunitária, como essa sua atividade tem impactado na saúde do grupo ou da comunidade,cabe ao grupo assinalar os efeitos mediante símbolos. Por exemplo: diminuição das despesas comremédios é assinalada com dinheiro. Após elaborarem a lista dos efeitos, o grupo mostra comocausa e efeito estão interligados. Cada efeito pode ser analisado mais detalhadamente. Uma expe-riência com agricultoras no Paraná revelou que as plantas medicinais melhoraram não apenas asaúde das mulheres, mas também o seu nível de energia (esta representada por uma faca) notrabalho. Além disso, o trabalho com as plantas medicinais, fortaleceu a solidariedade entre elas, oque por sua vez, as uniu mais.

Os diagramas de fluxo são úteis para verificar se todos os participantes de um projeto, oude uma ação, sentem o mesmo impacto ou se há variações, e quais.

Page 44: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

44

Bibliografia

Castro, Mary Garcia/ Miriam Abromovay: Gênero e Meio Ambiente, Cortez Editora, São Paulo,

1997.

Heikel, Maria Victoria: Aportes a una Política Ambiental con perspectiva de Género, SSERNMA/

MAG/GTZ, Asunción, mayo 1996.

IBAMA/GTZ: Roteiro Metodológico Para o Planejamento de Unidades de Conservação de Uso

Indireto, Brasília, agosto 1996, versão 3.0.

IBAMA: Marco Conceitual das Unidades de conservação Federais do Brasil, Projeto Unidades de

conservação, IBAMA,GTZ, Brasília,1997.

IBAMA Resultados dos Grupos de Trabalho do Workshop sobre Política de Unidades de Conser-

vação, em 29/11 a 2/12 de 1994. Inédito.

Küchemann, Berlindes Astrid: “A Trabalhadora Invisível em Busca de Sua Identidade”, em:

Siqueira, Deis E.; Gabriel L.C.Teixeira Maria Stela Grossi Porto (Org.): Tecnologia

Agropecuária e a Organização dos Trabalhadores Rurais, Pax Gráfica Editora, Brasília,

1991, S. 128- 138.

Küchemann, Berlindes Astrid/Neusa Zimmermann/Moema Wiezzer (Org): Relações de Gênero no

Ciclo do Projetos. Manual de apoio para consultoras locais, GTZ/Rede Mulher de Educação,

Brasília, 1996.

Libardoni, Marlene/ Mireya Suárez: Desenvolvimento Rural com Perspectiva de Gênero: Guia de

coleta de informação ao nível local, Instituto Interamericano de Cooperação para a Agri-

cultura, Brasília, s.d..

Masulli, Blanca A. de, e outros: El Rol de la Mujer en la Utilización de los Recursos Naturales en

el Paraguay: Un enfoque multicisciplinário, Universidade Nacional de Asunción, Asunción,

1996.

Mater Natura: Ecolista. Cadastro Nacional de Instituições Ambientalistas, Instituto de Estudos

Ambientais, Curitiba, 1996.

Nações Unidas/Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, IV Conferência Mundial sobre as

Mulheres, Beijing, China 1995, Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 1996.

Nações Unidas: La Mujer el Medio Ambiente y la Salud, Programa de las Naciones Unidas para

el Medio Ambiente. Resumen medioambiental Nr.1/80, Nairobi, 1980.

Organização Internacional do Trabalho (OIT): Equal Opportunity and Legal Rigths für Women

Workers, Genebra, 1993.

Page 45: NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNOigeologico.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Berlindes.pdf · ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES

ENFOQUE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES COM POPULAÇÕES DO ENTORNO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

45

Posey, Darrell A.: “Indigenous Ecological Knowledge and Development of Amazon”, in: Emilio

F. Moran.(Ed.): The Dilemma of Amazonian Development, Boulder, 1983, p. 225-158.

Proequidad/GTZ: Guía de Orientaciones para Incorporar la Equidad de Género en los Planes de

Desarrollo Departamentales e Municipales, Módulo 3, Proyecto Proequidad, Bogotá, 1998.

Rede Mulher de Educação: Um Outro Jeito de Ser: Novas relações entre homens e mulheres na

produção e consumo de alimentos, Rede Mulher de Educação, São Paulo,1994.

Rede Mulher de Educação: Mulheres, Pragas e Veneno: O papel dos gêneros na comunidade

rural, com ênfase nas atividades de produção e defesa vegetal, no exemplo dos municípios

de Piedade e Velhinhos (SP), São Paulo, 1996.