narrativas de língua portuguesa: temas de fronteira para crianças e

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. 1 NARRATIVAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: TEMAS DE FRONTEIRA PARA CRIANÇAS E JOVENS Alice Áurea Penteado MARTHA 1 Resumo - Neste texto observamos como jovens leitores podem reconhecer suas angústias, faces diversas do medo – morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, afetividades - a partir da leitura de narrativas contemporâneas, destinadas ao público infantil e juvenil, cuja temática envolva acontecimentos problemáticos para os seres humanos em qualquer tempo e espaço. E como reside, justamente, na possibilidade de perceber nos textos que lemos aquilo que nos incomoda, esperança de encontrar soluções para nossos problemas, podemos pressupor a existência de umas das principais funções da literatura em tais narrativas: expressar, traduzir e dar forma às emoções e aos sentimentos que nos enlevam e atormentam, muitas vezes, ao mesmo tempo. A compreensão da natureza e função da literatura leva-nos à abordagem de “temas de fronteira” na literatura brasileira contemporânea para jovens leitores, enfim, situações-limite, que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser humano e que possam traduzir modos de preservação da identidade individual e sociocultural sem abster-se da participação do processo de universalização. Em razão da necessidade de um recorte na produção, elegemos, como corpus literário para análise, narrativas de língua portuguesa como Os olhos de Ana Marta (Caminho, 1990), de Alice Vieira, Cruzando caminhos (Ática, 1994), de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha (Manati, 2007), de Graziela B. Hetzel, O tempo das surpresas (SM, 2007), de Caio Riter, O guarda-chuva do vovô (DCL, 2008), de Carolina Moreyra, O gato e o escuro (Cia das Letrinhas, 2008), de Mia Couto, e Todos contra Dante (Cia das Letras, 2008), de Luís Dill. A partir dos modos de construção nas obras selecionadas, considerando especialmente elementos fundamentais da estrutura narrativa, narrador/focalizador e personagens, procuramos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e acompanhamos a instauração do processo de identificação entre crianças e jovens e os seres do mundo ficcional, responsável por propiciar aos receptores a possibilidade de refletir sobre sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo. Palavras-chave: Literatura infantil e juvenil; narrativa; temas de fronteira; leitores. 1 Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua Carlos Chagas, 1055. CEP: 87015-240. Paraná. Brasil. [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3

SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa.

1

NARRATIVAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: TEMAS DE FRONTEIRA PARA CRIANÇAS E JOVENS

Alice Áurea Penteado MARTHA1

Resumo - Neste texto observamos como jovens leitores podem reconhecer suas angústias, faces diversas do medo – morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, afetividades - a partir da leitura de narrativas contemporâneas, destinadas ao público infantil e juvenil, cuja temática envolva acontecimentos problemáticos para os seres humanos em qualquer tempo e espaço. E como reside, justamente, na possibilidade de perceber nos textos que lemos aquilo que nos incomoda, esperança de encontrar soluções para nossos problemas, podemos pressupor a existência de umas das principais funções da literatura em tais narrativas: expressar, traduzir e dar forma às emoções e aos sentimentos que nos enlevam e atormentam, muitas vezes, ao mesmo tempo. A compreensão da natureza e função da literatura leva-nos à abordagem de “temas de fronteira” na literatura brasileira contemporânea para jovens leitores, enfim, situações-limite, que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser humano e que possam traduzir modos de preservação da identidade individual e sociocultural sem abster-se da participação do processo de universalização. Em razão da necessidade de um recorte na produção, elegemos, como corpus literário para análise, narrativas de língua portuguesa como Os olhos de Ana Marta (Caminho, 1990), de Alice Vieira, Cruzando caminhos (Ática, 1994), de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha (Manati, 2007), de Graziela B. Hetzel, O tempo das surpresas (SM, 2007), de Caio Riter, O guarda-chuva do vovô (DCL, 2008), de Carolina Moreyra, O gato e o escuro (Cia das Letrinhas, 2008), de Mia Couto, e Todos contra Dante (Cia das Letras, 2008), de Luís Dill. A partir dos modos de construção nas obras selecionadas, considerando especialmente elementos fundamentais da estrutura narrativa, narrador/focalizador e personagens, procuramos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e acompanhamos a instauração do processo de identificação entre crianças e jovens e os seres do mundo ficcional, responsável por propiciar aos receptores a possibilidade de refletir sobre sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo. Palavras-chave: Literatura infantil e juvenil; narrativa; temas de fronteira; leitores.

1 Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua Carlos Chagas, 1055. CEP: 87015-240. Paraná. Brasil. [email protected]

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Temas de fronteira

Em suas origens, a literatura para crianças e jovens não privou seus leitores de

temas violentos, mesmo porque as raízes do gênero estão profundamente arraigadas em

contos populares, narrativas pródigas em violência de toda sorte, como muitos contos de

fadas, que veiculam relatos macabros, cenas sangrentas, com sacrifícios humanos,

inclusive. Um dos motivos recorrentes em tais contos é o assassinato: irmão que mata

irmão; marido assassina esposa; madrasta envenena filhos do marido; súditos matam o

rei, entre outros. Em tais contos, os temas violentos foram, na passagem do receptor

adulto para o infantil, muitas vezes, abrandados com o poder da magia e da vara de

condão. Belas adormecidas voltavam à vida com o beijo de um príncipe; princesas eram

desenterradas vivas ao lado de figueiras e avós saiam ilesas de ventres de lobos vorazes,

em versões mais brandas de Chapeuzinho Vermelho.

No Brasil, na década de 70 do século passado, o propósito de mostrar aos

leitores a vida a partir de uma visão “realista” de mundo, originou, na literatura para

crianças e jovens, a corrente denominada “verista”, cujos pressupostos se

materializaram na Coleção do pinto, da editora Comunicação, de Belo Horizonte. Os

resultados dessa empreitada podem ser observados em textos como O menino e o pinto

do menino e Os rios morrem de sede, de Wander Piroli; Pivete, de Henry Corrêa de

Araújo, para citar apenas alguns desses títulos. Entretanto, como observa Zilberman

(2003, p.199), o fato dos temas de denúncia serem tratados em livros para crianças

acabou gerando uma série de questões não resolvidas, especialmente porque as causas

dos problemas denunciados não foram esclarecidas, as situações problemáticas

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continuavam, de modo geral, insolúveis, além de que o ponto de vista da narrativa era o

do adulto, inviabilizando a participação das crianças.

Apesar dos percalços, como observamos no caso brasileiro, a produção

contemporânea de literatura para crianças e jovens consolidou uma vertente bastante

fértil que se caracteriza pelo abandono da concepção idealizada da infância e juventude

como paraíso perdido, época de despreocupação e felicidade da vida, crença bastante

útil a instituições como a escola e a família. A literatura higienizada, cujo processo de

criação ou adaptação primava por apagar todo sofrimento e crueldade, parece estar em

decadência. Personagens idealizados e perfeitos, criados em ambientes igualmente

impolutos, são substituídos por crianças e adolescentes que se debatem em conflitos

psicológicos, vivem ambientes inóspitos e experimentam sentimentos e emoções

violentas. Os temas de fronteira em obras para crianças e jovens – compreendidos como

situações-limite que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser

humano – ganharam força e podem ser aliados importantes para que esses leitores

reconheçam suas angústias, faces diversas do medo que enfrentam cotidianamente –

morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas,

afetividades - a partir da leitura de narrativas contemporâneas.

Os livros lidos por crianças e jovens, como toda literatura, são espelhos nos

quais os leitores recebem, pela percepção estética, situações e sentimentos direta ou

indiretamente ligados a questões prementes para o ser humano. Desse modo, parece ser

quase impossível selecionar temas e assuntos que não possam constar do cardápio

literário para crianças e jovens, pois, na literatura infantil e juvenil, ajustados às

peculiaridades do gênero, todos os sentimentos, desejos, aspirações e medos do homem

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devem estar presentes, especialmente, porque sabemos que a violência, estampada em

sua plenitude na mídia impressa e televisa, além de jogos e do cinema, atinge seu

apogeu no cotidiano de crianças e jovens abandonados, drogados, prostituídos e

atingidos por balas perdidas no caos da vida contemporânea. Entretanto, como a

literatura para essas faixas etárias não deve tratar as questões existenciais com a mesma

intensidade que a literatura para adultos, acreditamos que se trata de descobrir, nos

livros infanto-juvenis, modos como os conflitos enfrentados por todo ser humano em

momentos semelhantes aos que vivem seus leitores, em qualquer época ou espaço, são

apresentados a esse público diferenciado.

Narrativas de Língua Portuguesa

Em razão da necessidade de um recorte no corpus literário para a composição

deste texto, elegemos narrativas de língua portuguesa como Os olhos de Ana Marta

(Lisboa: Caminho, 1990), de Alice Vieira, Cruzando caminhos (Ática, 1994), de Fanny

Abramovich, O jogo de amarelinha (Manati, 2007), de Graziela B. Hetzel, O tempo das

surpresas (SM, 2007), de Caio Riter, O gato e o escuro (Cia das Letrinhas, 2008), de

Mia Couto, Todos contra Dante (Cia das Letras, 2008), de Luís Dill, e O guarda-chuva

do vovô (DCL, 2008), de Carolina Moreyra.

Os modos de construção das obras selecionadas são observados por meio de

elementos fundamentais da estrutura narrativa, narrador/focalizador e personagens. A

partir deles, procuramos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e

acompanhamos a instauração do processo de identificação entre jovens leitores e os

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seres do mundo ficcional, que oferece aos receptores a possibilidade de refletir sobre

sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo.

As narrativas em questão apresentam maneiras diferenciadas de contar fatos e

emoções vividas pelas personagens. O narrador ora se apresenta como protagonista,

narra situações e conflitos por que passa, ora a voz narrativa está fora da história, não

participa dos eventos que relata. Considerar o modo de manifestação da voz narrativa é

fundamental para avaliarmos o grau de proximidade entre personagens e leitores,

propiciado pela atuação desse elemento na estrutura textual. Acreditamos que o narrador

de uma obra pode alcançar efeitos artísticos bastante complexos, pois sua atuação pode

ser mais arbitrária, introduzindo comentários e manipulando emoções, ou mais

emancipadora, permitindo que o leitor reflita criticamente tanto sobre o mundo do texto

como sobre o seu próprio (ZILBERMAN, 1982). Como observamos anteriormente, nas

produções da chamada corrente “verista” da literatura infanto-juvenil brasileira, nos

anos 70, um dos problemas levantados por Zilberman foi exatamente a predominância

do ponto de vista do narrador adulto.

Nas obras em pauta, como narrador protagonista, temos Os olhos de Ana Marta,

de Alice Vieira, O tempo das surpresas, de Caio Riter e Todos contra D@nte, de Luís

Dill e O guarda-chuva do vovô, de Carolina Moreyra. Nas demais, Cruzando caminhos,

de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha, de Graziela Hetzel, e O gato e o escuro,

de Mia Couto, a voz narrativa, ainda que fora do relato, mostra-se muito próxima das

suas personagens, como pretendemos observar.

Em Os olhos de Ana Marta, de Alice Vieira, no que se refere especificamente à

estrutura, a narrativa é organizada em vinte e sete capítulos, narrados pela voz de Marta,

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a protagonista de onze anos que, condenada a viver a vida de Ana Marta, a irmã morta,

descobre lentamente os fios que a ligam à tragédia familiar e à conseqüente insanidade

materna. As ações e atitudes das personagens deflagram, mantêm e, por fim, solucionam

o conflito instaurado pelo desejo de reconhecimento e afirmação da identidade de

Marta.

As principais perspectivas no texto de Vieira são perspectivizadas, caso do

narrador que se divide em múltiplas visões e das personagens que também se

fragmentam em protagonistas e secundárias. Esse processo de múltiplos olhares

promove relações diferentes com o objeto em pauta e, em conseqüência, nenhum deles

pode representar integralmente o objeto estético, que somente se constitui graças às

relações estabelecidas entre as diferentes perspectivas. O que parece fundamental na

construção narrativa da escritora portuguesa é o modo como o narrador instaura, na

estrutura e organização do mundo narrado, a interdição, pois, a partir dessa estratégia,

atitudes e sentimentos do protagonista/narrador e das demais personagens enredam-se e,

constituindo a constelação de perspectivas da narrativa, possibilitam a emersão do

objeto estético. Procurando esclarecer o que chama de estrutura de lugares vazios no

texto ficcional, o teórico afirma que é necessário ter em mente os diferentes modos

como os segmentos são apresentados ao leitor, especialmente, no plano do mundo

narrado, a forma mais elementar de manifestação desse fenômeno, ou seja, a

perspectividade. (ISER, 1999, p.147)

O modo de narrar, o relato dos acontecimentos pela protagonista a um interlocutor

determinado - a irmã morta – como projeção de sua consciência, configura a catarse,

uma vez que o ato de contar a libera da repressão a que foi submetida em toda a

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infância. Entretanto, mesmo sendo o relato posterior aos fatos, o que significa pleno

domínio no momento em que os narra, a voz narradora, com o intuito de infligir a seus

leitores clima de interdição semelhante ao que sofreu, priva-os também do acesso ao

conhecimento, liberando-o, pouco a pouco, processo com o qual rompeu as barreiras da

interdição. Desse modo, vai abrindo trilhas, que ela mesma, Marta, buscou para o

deciframento de sua história. Os leitores, a partir dessa dinâmica, procuram entender os

meandros do narrado, acompanhando perspectivas inconclusas de outras personagens:

mãe, pai, Leonor, D. Pepa e Lumena, principalmente.

Nas linhas iniciais do primeiro capítulo, Marta, dirige-se ao interlocutor, cujo

reconhecimento ainda é interditado aos leitores, revela as incertezas acerca de sua

origem, procurando justificar o fato da mãe não pronunciar seu nome:

Trocaram-me de mãe no hospital. Como nos filmes, sabes.

[...]

Juro-te: durante muitos anos foi o que pensei.

[...]

Só assim entendia que ela nunca dissesse o meu nome, que repetisse

tantas vezes que estava velha demais para ser mãe fosse de quem fosse

[...]. (VIEIRA, 2005, p 9. Grifamos)

A voz narrativa responsabiliza o bloqueio da história de Marta como gerador de

suas crises íntimas e conseqüentes dificuldades de relacionamento com o pai e com as

demais criaturas ficcionais. O caráter irremediavelmente comprometido das ligações

com o mundo que a cerca pode ser observado na recusa materna em pronunciar seu

nome e no silêncio do pai, que teme pela sanidade da esposa caso o segredo seja

revelado. Entretanto, os leitores podem superar, da mesma forma que ela, as barreiras

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encontradas no percurso da reconstituição de sua identidade, manifestas, inclusive, na

atitude cerceadora das personagens que a cercam, a partir da rede de perspectividade do

texto. As dificuldades da tarefa são imediatamente explicitadas pela voz narrativa que,

metalingüisticamente, enfatiza os percalços da busca. Os “quartos fechados” - metáfora

da impossibilidade de reconhecimento - não se abrem tão facilmente, pois as

perspectivas textuais não ultrapassam os obstáculos impostos pela tragédia:

Lembro-me de ter passado muitos dias a espreitar pelo buraco da

fechadura dos quartos fechados para ver se descobria, nalguns deles, o

tal berço de ouro. Mas o ângulo de visão era fraco, e sempre o mesmo.

Acabei por desistir. (VIEIRA, 2005, p.10. Grifamos)

Os fios da existência de Marta tramam-se também a partir da perspectiva da mãe,

Flávia, e da de Leonor, a velha ama que acompanha a família desde a infância do pai, e

que lhe conta histórias como as do Príncipe Graciano e da Alminha–da-Senhora,

garantindo a integridade psíquica, afetiva e social da menina.

Pedro, narrador protagonista de O tempo das surpresas, tem catorze anos e

leucemia; rememora, em longa noite de vigília que antecede o transplante da medula

que recebe do irmão de cinco, seus afetos, a ausência paterna, a amizade e confiança em

Peter, o marido da mãe, bem como a surpresa com a descoberta da doença e seus

desdobramentos, os temores que enfrenta desde então. A partir de um relato bastante

sensível, sem ser piegas, os leitores podem compartilhar as alegrias e as tristezas

daquele tempo de convivência com a doença, responsável, inclusive, pelo

amadurecimento do garoto:

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O tempo corre. O tempo pára. Já não me importo muito com ele. Por

vezes, um desejo de que passe logo e que me traga boas novas. Outras

vezes, fico a querer que pare mesmo, e para sempre, sobretudo quando

minhas forças retornam, ou quando fico sabendo, caçando as palavras

distraídas de uma ou outra enfermeira a dizer que algum dos

adolescentes hospitalizados ali se foi.

[...]

Ela [a mãe] tem seus medos. Assim como eu. Sempre me fala tudo,

porém sei que há coisas em que ela evita tocar. (RITER, 2007, p 11)

Nos momentos em que consegue dormir, sonha recorrentemente que se encontra

em uma floresta, com muitas serpentes, e alguém o segue, mas, no momento em que

verá seu perseguidor, acorda. Somente pouco antes de ir para o centro cirúrgico

consegue terminar o sonho e é o pai quem toca em seus ombros:

Minha mãe se mexe na cama ao lado. Fecho bem meus olhos, não

quero despertar deste sonho inventado, deste sonho acordado. Quero a

resposta.

Os dedos pousam em meu ombro e me viro bem devagar. Olhos nos

olhos, ele me sorri. Diz: Fique tranqüilo, meu filho. Sou eu. (RITER,

2007, p. 98)

Ao contrário do que possa parecer, o garoto não relata apenas esse momento

difícil em que se encontra, com grave problema de saúde. Narra também suas

experiências com as meninas, os primeiros amores; revela a força do sentimento que o

une ao grupo de amigos; trata com naturalidade o segundo casamento da mãe e o bom

relacionamento com o padrasto e não esconde a carência provocada pelo distanciamento

“afetivo” do pai:

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Meu pai teve que retornar aos seus afazeres. Ele sempre tem que

retornar aos seus afazeres. Dia sim, dia não, ele me liga.

Pergunta se tô bem, se preciso de alguma coisa. O “alguma

coisa” dele deve ser dinheiro. Deposita na conta da minha mãe,

sem qualquer dia de atraso, a pensão. (RITER, 2007, p 11)

Já em Todos contra D@nte, de Luís Dill, a narrativa, além daquela que fala de

uma posição exterior aos acontecimentos, apresenta a voz de Dante, garoto que relata

em seu blog, ao poeta florentino de A divina comédia, seus sonhos e as violências

perpetradas contra ele pelos colegas de escola. Da mesma maneira, na caixa de diálogos,

há espaço para outras vozes, as das comunidades de amigos da escola. No que concerne

ao narrador do texto, a exploração do foco narrativo mostrou-se fundamental para

construir a narrativa de maneira inovadora e aproximá-la de seus possíveis leitores; há

estreita coincidência entre os dois mundos, uma vez que tanto o tema - a violência entre

jovens - como o ambiente escolar constituem o cotidiano do jovem leitor.

A diversidade de vozes narrativas - com onisciência neutra, narrador-

personagem e fluxo de consciência, por exemplo - enriquece o texto, pois, ao evitar a

voz autoritária, que poderia conduzir a leitura por um único caminho, a estrutura textual

permite ao leitor maior liberdade de interpretação:

Manuela olhou para a mesa posta. A claridade vinda da rua penetrava

fácil pelas amplas janelas em L da sala, parecia ressaltar a cor e a

textura dos pratos: suflê de legumes, salada de alface roxa com cubos

de ricota e aipo, carne de frango ao molho de nata e alecrim.

Esforçava-se para conter a tontura... (DILL, 2008, p. 08).

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Olá, meu xará florentino. Estou aqui de novo. Por quantos tormentos

tiveste que passar até chegar ao Paraíso? O Inferno, depois o

Purgatório, não é mesmo? Seiscentos e oitenta e cinco anos após tua

morte, meu velho amigo, estou aqui em pleno Inferno. Tenho treze

anos, o que me faz ter esperança de que, em breve, pule pra minha

próxima etapa e conquiste o que todos buscam... (DILL, 2008, p. 15).

O que parece fundamental na construção narrativa de Todos contra D@nte é o

modo como o narrador insere, na estrutura e organização do mundo narrado, a violência,

pois, a partir dessa estratégia, atitudes e sentimentos do narrador, do protagonista e das

demais personagens enredam-se e, constituindo a constelação de perspectivas da

narrativa, possibilitam a emersão do objeto estético. As perspectivas da narrativa são

todas perspectivizadas, especialmente, o narrador que se divide em múltiplas visões. A

organização da narrativa vale-se de diferentes estruturas textuais, bastante apreciadas e

próximas do leitor jovem (links, chats, blogs). Em vários links (1, 2, 3, 5, 6, 7, por

exemplo), situados nas páginas à esquerda, o narrador, onisciente neutro, fala em

terceira pessoa e conhece sentimentos e pensamentos das personagens:

Graças à insistência do colega e vizinho, Davi aceitou manter o

horário que tinham reservado na quadra de saibro. Já no aquecimento,

percebeu o erro: não conseguiria jogar como de costume. Quatro

meses de invencibilidade, já. Perdera apenas um set nesse período.

Rejeitava a idéia de contratar um treinador e seguir carreira. Dizia que

era apenas lazer, não competição. Seus planos eram outros ... (DILL,

2008, p. 12).

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Outros links (4, 8, 12, por exemplo), por sua vez, constituem transcrições de A

divina comédia, de Dante Alighieri, e dialogam com as páginas inseridas à direita,

intituladas Blog, nas quais o narrador é protagonista. Nessas páginas (que são dez), o

menino Dante relata ao escritor Dante Alighieri a falta que sente de Geovana, que é,

segundo ele, "o equivalente aqui no futuro, em pleno século XXI, à morte da tua amada

Beatriz do século XIII" (DILL, 2008: 15) e descreve-lhe os tormentos sofridos na

escola, promovendo a intertextualidade explícita com A divina comédia, como podemos

ler no primeiro texto do blog:

Por quantos tomentos tiveste que passar até chegar ao Paraíso? O

Inferno, depois o Purgatório, não é mesmo? Seiscentos e oitenta e

cinco anos após tua morte, meu velho amigo, estou aqui em pleno

Inferno (DILL, 2008, p. 15).

As questões referentes à representação da fala do narrador e das personagens

constituem outro aspecto diferenciado no texto de Dill. Nas páginas intituladas diálogo

(que são vinte e uma e estão à direita no volume), observamos o emprego do discurso

direto, diálogos entre as personagens no telefone celular e, também, pessoalmente, com

a consequente restrição da voz do narrador. Ainda nas páginas à direita, há a transcrição

da comunidade criada em um site de relacionamento da "internet", intitulada Eu

sacaneio o Dante, na qual seus colegas têm a oportunidade de discutir questões como:

"defina o nariz do Dante", "doença ou feiúra mesmo?", "vc já sacaneou o koisafeia esta

semana?", entre outras. Nessas páginas, a voz do narrador também desaparece, já que os

comentários são transcritos diretamente pelos participantes da comunidade.

Carolina Moreyra (Escritora Revelação/2009-FNLIJ), em O guarda-chuva do

vovô (DCL, 2008), com uma narrativa minimalista, não resvala na pieguice ou no

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chavão ao tratar do tema da morte sob a perspectiva infantil. A linguagem coloquial,

com frases curtas, simples e objetivas, valoriza a voz da criança que relata a visão

singela do afastamento gradual, sem traumas, até culminar no falecimento do avô: “Um

dia achei o vovô diferente e perguntei pro meu pai se ele estava encolhendo”.

(MOREYRA, 2008, s/n)

A construção do texto, em íntima conexão com o desfecho narrativo - após um

período de enfermidade, o avô falece -, revela como as crianças podem compreender

com naturalidade as etapas da vida, aceitam perdas e percebem nelas pequenas

conquistas, como ganhar o guarda-chuva do avô após sua morte:

Começou a chover e ela me deu um guarda-chuva.

- O guarda-chuva do vovô! – eu falei.

Mas ninguém disse nada.

Eu olhei pra casa da vovó, que não era mais a casa do vovô.

E ganhei um guarda-chuva de presente. (MOREYRA, 2008, s/n)

As personagens, mesmo a que narra a história, não têm nomes; são todas

nomeadas de acordo com o grau de parentesco com a garota – vovô, vovó, papai – o que

pode contribuir para a inserção dos leitores no mundo narrado: “A vovó fazia bolo de

chocolate para o lanche e então chamávamos o vovô. Mas ele nunca vinha”.

(MOREYRA, 2008, s/n)

No que se refere às imagens que constituem a narrativa não-verbal, o trabalho de

Odilon Moraes é impecável: delicado, sem deixar de valorizar a alegria das cores, está

em sintonia com a qualidade da linguagem verbal. As ilustrações, luminosas, entre a

capa e a contracapa negras, relatam como a vida pode ser enfrentada com a clareza da

percepção infantil, ainda que surjam momentos difíceis A belíssima capa preta, com

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uma janela recortada, por onde pode entrar a luz da vida, mesmo nesse espaço e tempo

de luto.

Quanto aos narradores que se apresentam fora do mundo narrado, temos em

Cruzando caminhos (Ática, 1994), uma narrativa organizada em forma de diário, com

quatro blocos, nomeados de acordo com os dias de um feriado prolongado, que relatam

as atividades de cada personagem, dia a dia, na pequena cidadezinha praiana, mas o

narrador está fora do relato, não participa dos fatos narrados.

Entretanto, além da voz do narrador, há outra, veiculada no paratexto, espécie de

mensagem que antecede e ajuda a explicar a narrativa aos leitores. De quem é essa voz?

Da editora? Da autora? Ou de todas essas instâncias juntas? O que parece significativo é

que ela encaminha a leitura, marcando a perspectividade como elemento fundamental

do texto. Não temos dúvidas que o objetivo desse paratexto é, sejamos favoráveis ou

não, a condução do leitor pelos caminhos que podem ser trilhados na leitura da

narrativa:

Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Questão de ponto

de vista.

Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Muda o que

aconteceu conforme o lugar onde cada um estava ou a vontade do

momento. Questão de aproximação ou distanciamento. Siga com seus

olhos os olhos de cada personagem. Cada um vive a mesma história

de outro jeito. Questão de cada um ser diferente do outro e enxergar

conforme o seu envolvimento.

Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Cada um altera os

fatos conforme o que viu e como viu. Questão de localização na

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mesma hora. Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Cada

um mostra como sentiu, como se viu. Questão de olho.

(ABRAMOVICH, 1994, p.06)

No primeiro capítulo, Quinta-feira à noite, o olhar perspectivizado do narrador

nos revela as expectativas de cada uma das personagens para o final de semana em uma

pequena cidade praiana. São quatro jovens – Leila, David, Cléa e Nélson -

acompanhados de amigos, primos ou irmãos, que pretendem usufruir toda diversão que

o local puder oferecer. Não se conhecem, mas o encontro é inevitável dada a exigüidade

de espaços para a diversão na cidadezinha. Os jovens terão um rápido e casual encontro

com o garoto alcoolizado e passam ao leitor uma visão quase unívoca sobre a questão

discutida no texto: o excesso do consumo de bebida por adolescentes. Percebemos

também o distanciamento das personagens em relação ao problema; é como se a questão

não lhes dissesse absolutamente respeito. Leila, sempre muito preocupada consigo

mesma, egoísta, como ela se definirá mais tarde, tem uma visão limitada sobre o garoto

e a bebida; vê o fato como uma “baixaria”; David também não tem muita paciência para

o que ocorre com o garoto: “uma praga”. Quanto à Cléa, que vê o menino embriagado

na companhia da amiga Melissa, há dois sentimentos antagônicos: “um nojo e um dó”;

entretanto, em razão da atuação das meninas em momentos posteriores, percebemos que

o “nojo” é de Melissa e o “dó”, de Cléa; já, a partir da perspectiva de Nélson, recebemos

maiores informações sobre o garoto: era da vizinhança e devia ter uns quinze anos,

idade média das personagens da narrativa.

O fato de alguns dos jovens presenciarem a morte do garoto foi, naturalmente,

traumático, mas a situação tende a se agravar com a divulgação da notícia de que houve

suicídio. Se já lhes parecia incompreensível a morte por acidente ou imprudência, que

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um adolescente quisesse morrer e que conseguisse realizar seu intento é algo

inconcebível para aquela turma do feriado prolongado na praia.

No velório, David e Benjamin leem o bilhete suicida, texto que explica, sob a

perspectiva de um jovem, a vida e a morte. Para o adolescente, a solução de seus

conflitos pode se traduzir na atitude de recorrer às drogas, ao álcool, à rebeldia e

desobediência, à promiscuidade sexual, aos comportamentos agressivos e, inclusive, ao

suicídio. Em discurso indireto, uma espécie de autópsia psicológica, o conteúdo da

carta de despedida é dissecado, expondo a angústia do garoto em relação à dependência

alcoólica e com ela a impossibilidade de relacionar-se afetivamente com a família, com

amigos e amores.

Ao tomar conhecimento como ocorreu a morte do garoto e a revelação do

conteúdo do bilhete, os jovens reunidos no barzinho passam por sofrido processo de

reflexão, questionando atitudes e valores do ser humano e, naturalmente, não têm, nesse

momento, respostas, que somente poderão vir com o tempo, com a vida vivida. Nesse

momento, as perguntas não têm um emissor definido, não revelam dúvidas desta ou

daquela personagem, indicam uma perspectiva única, a visão da juventude posta à

prova, frente a um momento ímpar da vida, a morte. O teor do bilhete deprime e assusta

os adolescentes, pois têm consciência de que todos seus sonhos e expectativas são

semelhantes aos do garoto morto e que a impossibilidade de realização deles levou-o ao

trágico desfecho. O bilhete é o relato do desamparo de um menino como eles.

Uma carta de quem tinha resolvido que aquele era o caminho.

Um sofrimento só. Pasmo geral. Como alguém acaba com a própria

vida aos quinze anos?? Por que tais coisas aconteciam? O que girava

na cabeça e que cabeça era esta?? Morrer era terrível, era o fim de

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tudo. Se preparar pra morrer, um sofrimento. Agora, querer morrer

não dava pra entender. E se matar em público, no meio da praia, com

gente olhando e alguns, como Nélson, quase se afogando pra tentar

salva-lo. Absurdo, sem cabimento, incompreensível. Não teria escrito

a carta pra tirar sarro, fazer alguma ameaça, sem querer mesmo fazer o

que tinha escrito?? Será que não tinha mudado de idéia na última hora,

escorregado do penhasco, e tinha sido um azar, um acidente??

Ninguém sabia a verdadeira resposta. Ninguém nunca tiraria esta

dúvida. O silêncio se fez. Aumentou. Nenhuma voz se ouvia,

nenhuma mexida da cadeira ou assobio acompanhava a canção que a

banda tocava. Baixo-astral geral. (ABRAMOVICH, 1994, p.61)

Desse modo, desaparecem as perspectivas particulares, individuais, de cada

jovem, porque a angústia diante do imponderável é uma só: é a voz da juventude,

questionando não só a morte, mas o fato de um jovem querer morrer. Ocorre, então, a

interação, configurada como o processo de comunicação, marcado, sobretudo, pelo

confronto, uma vez que o leitor é instigado à compreensão dos embates entre as

diferentes perspectivas: do narrador, das personagens, do próprio enredo e também do

leitor fictício. O prazer da leitura só pode ser alcançado quando os textos permitem que

os leitores exerçam a sua capacidade produtiva. (ISER, 1999, p. 10)

Já em O jogo de amarelinha (Manati, 2007), narrativa de Graziela Hetzel para

crianças, embora relate tema difícil – a superação da perda da mãe e a aceitação da

madrasta – o narrador, em terceira pessoa, focaliza Letícia e conta a história da menina

que, no jogo infantil “amarelinha” não quer chegar ao “céu”, pois ali estão todas as

criaturas que amava e perdeu: “No céu está seu cachorrinho Xerife, a preá Joaninha... no

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céu está Clara, a mãe de Letícia. Será que ninguém entende por que ela nunca vai lá?”

(HETZEL, 2007, p. 08)

Ainda que a voz narrativa esteja em terceira pessoa, o que poderia indicar

distanciamento entre o narrador e os fatos, o recurso empregado pode encurtar essa

distância. Como observamos no excerto anteriormente transcrito, na primeira parte do

enunciado, reconhecemos com certa facilidade a voz de um narrador que se refere à

menina e às perdas sofridas por ela, mas, quando ocorre o questionamento – “Será que

ninguém entende por que ela nunca vai lá?” – os leitores não podem discernir a autoria

da indagação, pois, com o emprego do discurso indireto-livre, as vozes mostram-se

embaralhadas, reduzindo o distanciamento entre a voz que relata e da criança. O

emprego de semelhante recurso lingüístico promove também a aproximação entre

leitores e os fatos relatados.

A voz narrativa de O gato e o escuro, texto de Mia Couto para crianças, parece

assimilar a fala do velho contador de histórias tribais, presente nos contos

moçambicanos; mas é a partir da focalização da mãe que a história de como Pintalgato,

ao encontrar o escuro, um dos seus grandes medos, compreende e supera seus temores:

“Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem

sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às

pintas. Tanto que lhe chamavam Pintalgato.” (COUTO, 2008, p 06)

O conto, ao valorizar a curiosidade natural das crianças que, no processo de

crescimento, arriscam-se a percorrer pela primeira vez os caminhos que as afastam da

proteção familiar, revela como obstáculos criados pela superproteção de adultos podem

atrapalhar a maturidade infantil, fato comentado pelo autor em seu prefácio à obra:

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Espero que o gatinho que habita estas páginas possa afastar

idéias escuras que temos sobre o escuro. A maior parte dos medos que

sofremos, crianças e adultos, foi fabricada para nos roubar curiosidade

e matar a vontade de querermos saber o que existe para além do

horizonte. COUTO, 2008, p.05)

Representação da infância, o gatinho só será capaz de vencer o pavor do

desconhecido quando o enfrentar; por isso, apesar da proibição da mãe, ele namoriscava

o perigo: “O filho dizia que sim, acenava consentindo. Mas fingia obediência. Porque o

Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá”. (COUTO, 2008, p.10)

Literatura e autoconhecimento

A compreensão sobre o modo como se constituem os conflitos na estrutura das

narrativas parece-nos fundamental para que percebamos também como a reação

provocada pelas perspectivas das personagens pode ser observada a partir do que Jauss

denomina “categorias de recepção” (JAUSS, 1974), elementos fundamentais no

reconhecimento da interação entre leitores e texto, desejada por todos que se debruçam

sobre questões relativas à leitura do literário. Acreditamos que as reações adversas

provocadas pela perspectividade das narrativas convergem para a interação entre texto e

leitor, uma vez que a atuação das personagens provoca duas modalidades de

identificação, principalmente: a “catártica”, própria da tragédia, e a “irônica”, que se

manifesta com reações antagônicas do leitor, de aproximação e de rejeição.

Quanto às personagens das narrativas em questão, destacamos as protagonistas,

crianças e adolescentes, moradores de grandes centros urbanos. A descrição da vivência

individual das personagens, associada à fase de maturação, especialmente em momentos

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incomuns, marcados pela dor e por indagações sobre dificuldades da existência,

corresponde à tendência mais comum. São criaturas construídas, essencialmente, pela

reflexão, de modo que os leitores possam contribuir em sua caracterização. A

elaboração de cada uma delas acontece aos poucos, à medida que atuam e refletem

sobre o mundo narrado ou se expõem aos olhos dos leitores, por meio de recursos

conhecidos como fluxo de consciência, discurso indireto-livre e monólogo interior.

Vivem em espaços essencialmente urbanos, em grandes cidades; pertencem a núcleos

familiares que indicam rupturas e novas formulações – pais separados e com novos

parceiros - frequentam escolas, praticam esportes, namoram, mantêm relações de

amizade e adoram a convivência com jovens da mesma idade. São, enfim,

representações de crianças e adolescentes que conhecemos e, ao lado dos quais, como

coadjuvantes, atuam mães, pais, novos parceiros dos pais, professores e tios, adultos

cumprindo funções nem sempre agradáveis na estrutura das intrigas.

Ainda no que se refere ao processo de construção das personagens, o fato de que

a infância e a adolescência não sejam vistas como preparação para a maturidade, mas

enfocadas como etapas decisivas no processo de vida, plenas de significado e valor,

portanto, desperta a atenção dos leitores. Em outras palavras, as personagens não são

construídas como ainda-não-adultos ou como já-não-mais-crianças, mas como

portadoras de uma identidade própria e completa. É verdade também que se envolvem

em situações que as obrigam a refletir e a reformular conceitos que possuem a respeito

de si mesmas e do mundo.

Quanto à linguagem, as narrativas apresentam o predomínio do registro oral,

tanto na voz do narrador quanto nas falas das personagens, aspecto bastante previsível

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em textos narrados em primeira pessoa e muito importante por não promover o desnível

de vozes no mundo narrado quando há um narrador em terceira pessoa. A linguagem

atua como meio de interação entre leitores e universo ficcional, com períodos de

estruturas simples, ordem direta, uso de expressões correntes entre a faixa etária de

leitores, sem clichês, a não ser aqueles empregados intencionalmente, com o objetivo de

revigorá-los por novos usos.

É a partir desse processo, que a literatura, ao mostrar-se como verdadeira

experiência de autoconhecimento, pode contribuir na formação do sentimento de

identidade de leitores, notadamente, crianças e adolescentes, humanizando-os, no

sentido mais amplo da palavra, ainda que, por vezes, as experiências das personagens

pareçam estar distantes daquelas vividas pelos jovens em seu ambiente real.

Referências bibliográficas

ABRAMOVICH, Fany (1994). O estranho mundo que se mostra às crianças. São Paulo:Summus. COUTO, Mia (2008). O gato e o escuro. São Paulo: Companhia das Letrinhas. DILL, Luís (2008). Todos contra D@nte. São Paulo: Cia das Letras. HETZEL, Graziela B. (2007). O jogo de amarelinha. Rio de Janeiro: Manati. ISER, Wolfang. (1999) O ato da leitura (Vol 2). Trad.Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34. JAUSS, Hans Robert (1974). “Levels of identification of hero and audience”. New literary history. Charlotte Ville, Virgínia (v.5, n.2). MOREYRA, Carolina (2008). O guarda-chuva do vovô. São Paulo: DCL. RITER, Caio (2007). O tempo das surpresas. São Paulo: Edições SM.

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