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EXPLICAR O MUNDO, EXPLICANDO-SE... NARRATIVAS DE CRIANÇAS
COM TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO/ HIPERATIVIDADE–
TDAH E SEUS (RE) POSICIONAMENTOS SUBJETIVOS FRENTE A SI
MESMA, A FAMÍLIA E A ESCOLA
Suzana Maria Capelo Borges – Universidade Estadual do Ceará
RESUMO
O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada em três cidades do Baixo
Jaguaribe: Limoeiro do Norte, Morada Nova e Tabuleiro do Norte, Ceará, a partir das
narrativas, de três meninos e uma menina diagnosticados com TDAH, com idades entre
9 e 11 anos. Buscou-se compreender, ouvindo suas vozes, como percebiam a si mesmas,
suas famílias e suas escolas e como eram vistas na comunidade escolar e no seio das
famílias. O TDAH pressupõe problemas cognitivos, embora não seja uma dificuldade de
aprendizagem. Interfere no comportamento e na interação social dos indivíduos e seus
principais sintomas são a hiperatividade/ impulsividade e a falta de atenção e
concentração. Tendo como objetivos investigar os significados construídos pelas crianças
acerca de si, de suas famílias e suas escolas através de entrevistas narrativas; compreender
a criança que apresentam de TDAH como sujeito singular que age e sofre influências
ambientais e históricas; analisar através de entrevistas narrativas, as percepções infantis
sobre si, suas famílias e as escolas através de suas falas, vivências e experiências
subjetivas; conhecer o papel da escola na formação e na forma dos professores
interagirem com essas crianças; destacar semelhanças e diferenças nos significados das
(re) construções subjetivas das crianças, segundo níveis de escolaridade, faixa etária,
gênero, condição social e cultural. Os resultados mostraram que as crianças tem uma
percepção real acerca do que são e do que são os outros. Avaliam suas possibilidades e
querem ter voz ativa em suas vidas. Gostam das famílias como são, embora apresentem
incompreensões. Percebem que suas escolas são boas, mas não atendem às suas
necessidades. Gostam das professoras, dos colegas e apresentam aspectos que precisam
mudar para tornarem-se melhores. Ao dar-lhes voz, elas refletem e avaliam-se e também
analisam famílias, escolas e sociedade.
Palavras-chave: Crianças com TDAH. Narrativa infantil. Famílias. Escola.
Introdução
A investigação narrativa, tem se constituído fonte profícua e fértil de
conhecimento por utilizar a fala do sujeito como foco de investigação. Diferentes estudos
(MACEDO e SPERB, 2007; RABELO, 2011; NELSON, 2011) nas ciências humanas,
destacam a forma como as estórias, sejam elas escritas ou através da oralidade, constituem
uma possibilidade de compreender a natureza e as condições de vida humana, tanto no
contexto individual quanto no social. A compreensão de que é possível conhecer melhor
as situações, histórias e acontecimentos da existência humana através das narrativas pode
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favorecer a percepção acerca do que as crianças elaboram sobre si próprias, sobre a escola
enquanto espaço de vivências e socialização compartilhada com colegas e professores,
pois é o local onde permanece por várias horas durante o dia. Tomar a criança como
centro de suas preocupações, vê-la como sujeito de reflexão e direitos, favorece avaliar a
compreensão que ela tem sobre si mesma, suas escolas e famílias, recorrendo às
observações e entrevistas, em suas respectivas escolas.
Tendo por objetivo investigar os significados construídos por essas crianças
acerca de suas famílias e de suas escolas através de entrevistas narrativas e ainda:
compreender a criança que apresenta TDAH como sujeito singular que age e sofre
influências ambientais e históricas; analisar, a partir de entrevistas narrativas, as
percepções infantis acerca da família e da cultura escolar através de suas falas, vivências
e experiências subjetivas e o papel da escola em sua formação enquanto sujeitos; conhecer
as formas dos professores interagirem com essas crianças; destacar semelhanças e
diferenças nos significados das (re) construções subjetivas das crianças, segundo seus
níveis de escolaridade, faixa etária, gênero, condição familiar e cultural. Buscou-se ainda
verificar os comportamentos e desempenho dessas crianças em sala de aula.
Fundamentou esta pesquisa os trabalhos de Brown (2007), Conners (2009) Mattos
(2003) Capelo Borges (2005) estudiosos da temática, que facilitaram compreender e
aprofundar o tema.
Os procedimentos metodológicos incluíram: observação participante e entrevistas
individuais por meio de historias. A observação participante realizada com as 04 crianças,
totalizou 06 horas de sessões de 50 minutos com cada uma. As observações foram
desenvolvidas em sala de aula, em atividades escolares variadas. As entrevistas
individuais foram efetuadas através de uma historinha com um personagem imaginário,
a quem demos o nome de Chico. O mesmo chegava à cidade e queria conhecer as escolas
e as famílias das crianças. As questões exploravam aspectos das atividades escolares, o
que gostavam e o que não gostavam em suas escolas, aspectos das relações familiares,
como se sentiam em casa e na escola, dentre outras, as quais foram respondidas pelas 04
crianças ao destacarem suas formas de viver e compreender a si mesmas e ao mundo.
As crianças, sujeitos da pesquisa foram três meninos e uma menina diagnosticados
com TDAH, com idades entre 9 e 11 anos. Elas foram selecionadas por gestores das
escolas dos 03 municípios: 01 criança em Limoeiro do Norte, 02 em Morada Nova e 01
em Tabuleiro do Norte. Todas as crianças estudavam em escolas públicas de seus
municípios.
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Algumas considerações sobre o TDAH
O Transtorno de Déficit de Atenção Hiperatividade é considerado pela medicina
um problema neurobiológico que ocorre no cérebro devido ao mau funcionamento de
neurotransmissores, dentre os quais a dopamina e a norepinefrina, responsáveis pela
regulação das funções executivas do cérebro, relacionadas ao planejamento e a execução
das atividades, à memória de trabalho, inicialização e finalização de tarefas. A atenção
sustentada, a inibição dos impulsos e o controle das emoções se desenvolvem nos
primeiros anos de vida, não obstante, a criança com TDAH apresenta déficit nessas
funções e dificuldades em manter e sustentar a atenção na realização das tarefas
(MOOJEN et al. 2003).
Se considerarmos apenas a visão médica, essas crianças precisam usar medicação
estimulante e que regula a atividade do córtex cerebral, região do cérebro responsável por
essas funções. A prescrição e o uso da medicação dependerão de cada caso e servirão para
facilitar seus processos de atenção, concentração e aprendizagem. Como parece ter
origem genética, pois há sempre alguém da família que apresenta o transtorno, sabe-se
que ocorre devido à interação de fatores de risco ambientais e biológicos. Porém, o
indivíduo que vive em um ambiente familiar desestruturado ou estressante, terá ampliada
a probabilidade de desenvolvimento dos sintomas (CONNERS, 2009).
Há registros sobre as características do TDAH há quase dois séculos. Inicialmente
foi visto como uma impulsividade orgânica, disfunção cerebral mínima, síndrome
hipercinética, distúrbio do déficit de atenção, dentre outras denominações. Na versão do
Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-IV-1995), o termo Transtorno de
Déficit de Atenção/ Hiperatividade, passou a defini-lo até os dias de hoje.
As características aparecem ainda na infância e intensificam-se quando a criança
vai à escola e lhe exigem atenção e concentração. Os principais sintomas são a
desatenção, a hiperatividade e uma impulsividade exageradas, em relação às demais
crianças da mesma idade. A hiperatividade é o sintoma mais comum e lembrado pelos
professores porque as crianças levantam-se das carteiras, são inquietas, correm muito,
não conseguem concentrar-se e manterem-se paradas quando estão sentadas. Geralmente
são vistas como preguiçosas e rápidas no falar e agir. Os professores relatam que elas
metem-se na conversa dos outros, não esperam sua vez de falar e têm dificuldades para
iniciar e terminar suas tarefas. (LOUZÃ-NETO, 2010)
Como o TDAH não é uma dificuldade de aprendizagem, mas tem consequências
sobre ela pela falta de atenção e concentração, interfere na vida escolar das crianças e
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gera baixo rendimento escolar. Essas dificuldades são ampliadas quando as pessoas com
esse transtorno sentem-se inferiores aos outros, pois não conseguem realizar suas
atividades a contento, nem explicar porque não conseguem. Esses sentimentos minam o
interesse em aprender e pode prejudicar o autoconceito e baixar a estima e até gerar
depressão.
O diagnóstico não é um procedimento rápido e deve ser confirmado após alguns
meses de observação por parte dos profissionais, pais e professores e, somente, quando
as Pessoas que apresenta o TDAH, manifestam seis dos nove sintomas de desatenção ou
seis dos nove sintomas de hiperatividade/impulsividade. As características do TDAH são
divididas em três subtipos: o tipo desatento, o tipo hiperativo/impulsivo e o tipo
combinado, com características dos outros dois tipos. Essas complicações envolvem
dificuldades nas diversas funções cognitivas e comprometem também a qualidade de vida
do indivíduo nos aspectos familiar, social e profissional. Pode haver ainda incidência de
transtornos associados: Transtorno Opositor Desafiante, Transtorno de Ansiedade,
Transtorno de Conduta, dentre outros (BROWN, 2009).
Para compreender como a criança se percebe e é (re)conhecida pelos outros, foram
elaboradas questões sobre elas, as escolas, colegas, professoras e famílias, utilizando-se
o personagem imaginário, Chico, que chega à escola e pede que lhe contem o que sabem
sobre a escola, as professoras e como são suas famílias e as relações com seus pais e
irmãos. Suas respostas foram divididas em blocos que serão apresentadas nessa ordem:
as atividades escolares e as professoras; o que gostam da escola e o que não gostam; o
que gostam da família e o que não gostam; como se percebem e percebem suas famílias
e professoras (LAJONQUIÈRE, 2003).
As narrativas das crianças sobre as escolas e suas famílias.
Pretendíamos com essa pesquisa olhar a infância levando em conta a capacidade
da criança de nomear-se, nomear o mundo e narrá-lo. E enquanto constrói significados,
constitui seu próprio discurso e constitui a si mesma e ao mundo, de certa maneira. Ela
é capaz de refletir sobre suas experiências, narrar suas vivências e experiências e
considerar a escola e a família como primeiros espaços de formação e significativas
repercussões ao longo da vida.
As crianças e a escola
Todas as crianças receberam nomes fictícios para não serem identificadas no
decorrer do trabalho. O primeiro bloco de perguntas envolveu as atividades e rotinas
escolares e suas respostas mostraram que dos quatro alunos, apenas um, a quem
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chamaremos Dito, tem uma percepção negativa da escola e quer deixar de estudar porque
prefere trabalhar no campo, ajudar na plantação de feijão do avô e andar com ele, de moto,
pelo cercado.
Em contrapartida, os outros três tem uma visão positiva da escola, gostam de estar
lá e se relacionam bem com as professoras e os colegas.
Inquiridos sobre os objetivos para irem à escola, respondem de maneira clara e
convicta, que vão à escola para aprender, estudar, saber ler e “ficarem inteligentes”. A
escola é também o espaço em que brincam, jogam bola, conversam e é, enfim, um lugar
de muita diversão. Todas as crianças afirmam preferir brincar a estudar, o que não nos
surpreende, porque julgamos que a escola parece sempre incapaz de satisfazer às
necessidades lúdicas dos alunos. Essa compreensão nos instiga a encontrar novas e mais
interessantes formas de trabalhar com a aridez dos conteúdos curriculares, especialmente
com as crianças pequenas.
Para o aluno sair-se bem na escola e ter bom comportamento, era necessário ser
quieto, calado, conversar pouco, fazer favores e ser gentil, segundo Ana, que tem 09 anos
de idade, faz o 4º ano e foi a única menina indicada. Para ela seus colegas são divertidos,
brincalhões e danados, embora ela goste mais das meninas que dos meninos. Ana acha
que as atividades na escola dos adultos são mais difíceis, muito mais que na escola de
crianças. As outras três crianças corroboram essa ideia afirmando que os alunos grandes
mostram indiferença ou batem nos pequenos e na escola dos grandes se estuda e não se
brinca.
O segundo bloco de questões inquiria sobre como se sentiam na escola, o que mais
gostavam e o que não gostavam. Três crianças relatam que fazem as atividades, gostam
de brincar, estudar e conversar com os colegas e consideram as professoras e os colegas
muito legais. Ana afirma gostar de conversar com a professora, mas acha que deveria ser
mais paciente e não brigar com ela quando pede para beber água ou ir ao banheiro. Quer
que sua escola tenha mais carteiras e a sala de aula seja mais bonita, pois está muito feia
e estragada. Isso demonstra o estado deplorável em que algumas escolas municipais se
encontram.
Ana é uma criança com vários problemas, pois além de apresentar TDAH, tem
perda auditiva severa e deficiência intelectual. Não obstante essas dificuldades, a criança
está evoluindo, aprendendo e consegue sair-se bem na escola. Sua professora a vê como
uma aluna com deficiências, que consegue superá-las lentamente, desenvolvendo-se bem,
pois tem boa grafia, relaciona-se bem, não gosta de brigas ou confusões e é educada, bem
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cuidada, e vem à escola todos os dias usando uniforme, limpa e cheirosa. Ana percebe
que em sua família há muito carinho por ela. Sua professora compreende que ela só
consegue superar suas dificuldades porque sua mãe é dedicada e comprometida com o
desenvolvimento escolar da filha, preocupa-se com ela, leva-a as consultas e está sempre
presente na escola. Percebe-se a importância que o apoio dado pela família e a aceitação
da professora, refletem-se em seu desempenho escolar e em seu desenvolvimento.
Ao perguntarmos se gostavam das atividades escolares e o que faziam na escola,
Dito, 10 anos, 3º ano, considerava a escola legal, explicando como eram essas atividades
e rotinas:
É bom na escola... eu brinco... eu chego na sala de aula e a professora conta
uma história... Hoje ela contou uma história de um menino que não sabia
abraçar. Eu vou pra brincar, vou pra jogar bola... e eu estudo às vezes, faço
o dever, a lição de casa, leio livros de historinha, ... Brincar eu brinco, mas
dou trabalho à professora...
Dito, gosta da professora porque passa poucos deveres e argumenta que sente
preguiça de estudar. Ele explica que os colegas batem nele e aí se aborrece, revida e parte
para cima, dando “muita pancada”. Ele julga que os meninos grandes não devem ficar
junto dos pequenos e sim separados para não “tirar brincadeiras” com os pequenos, como
era o seu caso. Por essa razão, acha que deveria haver escolas para pessoas grandes e para
pequenas. Sobre as condições da escola, reivindica uma coberta para a quadra, que é
muito quente, e que haja mais bolas para jogar, pois uma só gera briga e confusão na hora
do recreio. Não gosta também que sua professora brigue com ele porque conversa muito
e porque não o deixa sair para beber água, não o deixa sentar como quer e nem permite
que vá mais cedo para casa. Dito afirma que não quer mais estudar, mas não pode ir contra
a vontade de sua mãe.
A minha mãe não deixa eu parar de estudar e eu quero parar... por que eu
não gosto, porque é ruim... gosto não... porque a gente fica aqui até tarde...
Eles gostam que eu estude... às vezes eu dou trabalho na escola e eles me
orientam a não dar trabalho... e não deixam que eu pare de estudar...
Dito, tem dificuldade de aprendizagem e apresenta dificuldade para concentrar-se
e fazer suas tarefas, o que afeta seu desempenho na escola. Sua professora afirma que ele
não se concentra nas atividades, nas explicações porque fica mexendo com os colegas.
Durante as observações percebemos que ele frequentemente saía da sala se estava
inquieto e valia-se de a sede e da necessidade de tomar água como forma de escapar das
aulas. E como não se concentra, levanta-se e passeia entre as carteiras dos colegas, não
obedece e nem coopera com a professora.
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Dito concorda com seus pais, quando brigam com ele quando chegam reclamações
da escola, pois sabe que dá trabalho à professora. Ele considera sua professora ruim, uma
má professora, argumentando que ela reclama de tudo o que ele faz em sala.
É, ela é ruim! Por que ela fica só brigando com a gente... o cabra não pode
sentar na cadeira... do jeito que a gente quer... que ela fica só reclamando...
quando a gente vai beber água, ela fica reclamando...tudo reclama... Não é
boa professora!
Breno, de 11 anos de idade e que faz o 2º ano, gosta da escola porque é boa, legal
e afirma que vai ao colégio para estudar, brincar e jogar no recreio. É uma boa escola
porque lá aprende a ler e escrever. Entretanto, quer trocar de sala porque um colega lhe
bate e porque tem que voltar no contra-turno, para o reforço escolar. Ele gosta da
professora porque ela lhe dá coisas para brincar e o ajuda a aprender a ler e a escrever.
Ele gosta também de alguns colegas, não de todos, com quem brinca de pega-pega.
Breno tem problemas na aprendizagem por sua falta de atenção, concentração e
interesse, nas atividades de estudo. Durante as observações percebemos que participa
pouco das atividades, não se concentra nas tarefas, levanta-se e circula entre as carteiras
dos colegas, sai da sala e, se volta, não consegue mais prestar atenção à aula. Parece
também não gostar de estar na escola, não ter interesse pelo estudo, pois nem os livros
traz. E ainda está no 2º ano de escolaridade! Parece ser um menino triste, solitário e senta-
se longe dos colegas e, sua professora incentiva isso e argumenta que se ele sentar
próximo aos outros, não há como dar aulas.
Breno parece agressivo e, se alguém faz algo que não gosta, imediatamente agride
o outro, verbal ou fisicamente. Um fato que presenciamos na sala assustou-nos, pois ao
tentar sair da sala e, encontrar a porta fechada, teve um rompante de ira e violência, chutou
o cesto do lixo, jogou a mesinha no chão, rasgou as revistas que havia na sala, jogou-as
sobre os colegas com raiva e ainda chutou o monitor, que tentou impedi-lo de sair da sala.
Dan, tem 9 anos de idade e faz o 1º ano, afirma que vai para a escola para aprender
a ler e estudar, mas gosta mesmo é de se divertir e aprender sobre os animais, porque quer
ser “doutor de bichos”. Durante a conversa refere-se sempre ao personagem Chico, que
lhe foi apresentado no inicio da entrevista:
Eu gosto mesmo é de brincar, de ‘se divertir’, viu Chico! Eu gosto muito é de
aprender sobre as coisas, sobre transito, sobre bicho, sobre pato, sobre
cobra... Eu quero ser doutor... mas um doutor de bichos...
Ele gosta da professora e dos colegas embora não goste da escola. Explica que
gostaria que a sua escola fosse “só de gente pequena porque, escola grande deveria ser
para gente grande e escola pequena para gente pequena” e acredita que “na escola de
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criança se brinca e na de adulto se estuda”. Dan confessa divertido que só tem zero nas
notas e que na escola gosta mesmo é de jogar no computador. Fica feliz quando a mãe lhe
dá moedas para comprar lanche na escola e quer muito que o pai vá a sua sala e fale com
a sua professora. Os pais parecem ser duros com ele e por isso acha a que sua família
poderia ser melhor:
[...] meu pai briga muito comigo, mas com a minha mãe, a gente brinca
muito... de cabra-cega... Mas é boa a minha família...
Durante as atividades em sala de aula Dan não se interessa em fazê-las e prefere
ficar brincando. Se a professora chama a atenção e exige as tarefas, muitas vezes, não
quer e não faz nada. Entretanto, nas observações, percebemos que se a professora
conversa e lhe pede com jeitinho para fazer as tarefas e, se ele vê os colegas fazendo,
também faz as suas. Em alguns momentos ele realmente nada faz, nem se interessa pelas
atividades e brinca, pois não consegue ficar parado. Como tem apenas 9 anos de idade,
precisa do carinho da professora e disputa sua atenção com os outros. Percebemos que
ele era muito afetivo e cativava as pessoas e, vez ou outra, conversava conosco e nos
tratava amorosamente.
As crianças e as famílias
Pedimos que as crianças contassem ao Chico como eram suas famílias. Todas
responderam que eram legais e boas, porque compravam presentes, coisas e porque
passeavam juntos. Disseram que levavam bronca dos pais quando faziam algo errado e
duas afirmaram que apanhavam e eram chamadas à atenção. Um menino revelou que
apanhara de seu padrasto, que brigava e lhe dava tratamento diferenciado dos filhos
legítimos, frutos de outra relação.
Perguntamos como eram as relações familiares e, no geral, as crianças afirmam
que se relacionam bem, à exceção de Dito, que demonstra claramente não gostar de seu
padrasto e não ser bem tratado por ele. Ele explica
Com a minha mãe é bom... mas com meu padrasto não dá certo não... a gente
quer comprar uma coisa e ele só compra para o filho dele. Ele comprou um
laser para o filho dele e não comprou um para mim também. Não gosto do
meu padrasto. Uma vez ele bateu em mim, porque a tinta da casa estava
assim, caindo... e eu tirei um pedaço... aí pegou e caiu a outra metade....
Ana também tem um padrasto, mas afirma que se dá bem com ele e gosta muito
de sua família, especialmente da mãe, embora ela lhe dê boas palmadas quando a
desrespeita. Seu padrasto trata-a bem, como um pai de quem parece gostar. Não admite,
porém, que a mãe brigue com seu pai e explica que o seu pai “verdadeiro” foi embora
porque “sua mãe não gostava mais dele”, mas o seu “outro pai e que mora em sua casa,
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trata-a muito bem e à sua mãe também”. Ana ajuda a mãe nas tarefas caseiras e faz tudo,
enxuga pratos, organiza suas coisas e ajuda a sua mãe na cozinha. Considera sua família
“super legal” e lembra de suas duas irmãs:
[...] tenho duas irmãs... que moram em outra cidade. Não brigo com elas... a
gente se ama. Gosto delas, elas são bonitas...
Dito, em contrapartida, demonstra claramente não estar satisfeito com o
tratamento que recebe do padrasto, que parece ser grosseiro e não ter paciência com o
menino.
Não tem nada pra fazer o cabra... fica em casa só assistindo televisão. Não
gosto de ajudar o meu padrasto, porque ele é todo besta, fica dando carão na
gente direto. Ele chama a minha mãe de doida... Ele briga comigo e eu não
sei por que. A gente tá indo tudo bem, faz tudo direitinho e ele pega e fica
brigando...
Dan afirma que as coisas pioram quando ele dá trabalho na escola, pois aí é que
os pais brigam com ele e afirma
Brigam muito comigo... porque às vezes eu dou trabalho na escola... porque
eu fico sendo ruim... e os meninos ficam tirando brincadeira comigo e eu parto
pra porrada... fico brabo.. Mas eles são é bom... Não dá carão na gente, mas
em vez em quando minha mãe me dá palmada, porque às vezes eu não faço
as coisas que ela manda... O meu comportamento é bom... ruim às vezes. Mas
eu gosto mesmo é de ir lá para o cercado do meu avô... ajudar ele na
plantação de feijão...
Dito, afirma gostar de estar na casa de seu avô, porque lá sente-se livre e pode
ajudá-lo na plantação de feijão, além de fazer o que mais gosta, que é andar na moto do
avô, dentro do cercado. Mas não quer dormir lá, pois sua avó, um dia, bateu-lhe com o
chinelo.
Sobre os irmãos, Dito e Dan responderam que não tinham irmãos. Ana tinha duas
irmãs, gostava delas, mas moravam em outra cidade. Breno afirma que brinca com o
irmão mais velho, pois ele é bom irmão, que o ensina a brincar de pega-pega e deixa que
desenhe em seu caderno carros, motos e bicicletas, mas não gosta quando brigam e ele
lhe bate. Todas as crianças afirmam gostar de suas famílias e adoram as viagens para
Fortaleza ou cidades circunvizinhas e os passeios que fazem juntos, como ir à pracinha
tomar sorvete e brincar no parquinho.
As praças, como espaços sociais, são citadas por todas elas porque são o “coração”
das cidades do interior e os passeios são muito comuns em qualquer uma delas.
Geralmente, é na praça da Matriz, que se realizam a maior parte das festividades
religiosas, atividades políticas ou campanhas sociais. No entorno das praças há sempre
pequenos comércios relacionados ao entretenimento, como lanchonetes, restaurantes,
sorveterias, locadoras de vídeo, etc. Nelas, se instalam parques de diversões, pula-pula,
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piscina de bolas e outros brinquedos nos quais, aos finais de semana, essas crianças iam
se divertir.
Uma de nossas questões esquadrinhava o que gostam e o que menos gostam de
fazer quando estão em casa. Ana gosta muito de assistir filminho e ver novela infantil e
de ajudar a mãe nos trabalhos domésticos. Dito gosta de ver televisão e assistir filmes, só
não gosta de ajudar o padrasto, pois briga com ele. Breno gosta de brincar, subir em
árvores e em cima da casa, mas não gosta de estudar e fazer os deveres de casa. Dan gosta
de ver televisão, jogar no vídeogame e andar de bicicleta no meio da rua. Todos gostam
de ganhar brinquedos e de ganhar dinheiro para comprar o que querem e afirmam não
gostar de presenciar brigas na família.
Observamos que a participação das crianças nas tarefas familiares é bastante
comum, como é o caso de Ana, 9 anos de idade que ajuda a mãe na casa e a enxugar os
pratos. Ela tem, além do TDAH, deficiência auditiva e deficiência intelectual. Breno, 11
anos, ajuda os pais nas tarefas e tem responsabilidades, como ir ao Banco pagar a conta
de energia e desligar o ventilador ao sairem. Dito, 10 anos, não ajuda o padrasto nas
tarefas de casa, mas adora ajudar o avô na lavoura, plantando feijão no roçado.
Considerações finais
O convívio com as crianças, em suas escolas e nas cidades aonde viviam, deram-
nos a visão dos sentimentos e do universo de significados e vivências das quatro crianças,
através de suas narrativas. Permitiu também que elas passassem a ressignificar suas
experiências no momento em que as narravam. Essa percepção tem sérias consequências
na compreensão e (re)posicionamentos da criança que (re)configura em suas narrativas
ela mesma, a escola, a família, seus costumes, sua cultura e permitem que ela (re)construa
sua identidade, porque a noção de quem somos se constrói narrativamente, através da
reflexão e do (re)torno sobre si mesmo (RICOEUR, 1997).
Ao narrarem-se as crianças percebem claramente quando estão certas e também
quando estão erradas e sabem exatamente onde e porque erraram. Essa compreensão
permite que elas se (re)posicionem frente ao que sabem de si mesmas e aos modos como
os outros as veem. Ana, diz ao final da narrativa, que é uma criança feliz! Apesar de todas
as dificuldades que enfrenta.
As professoras pouco sabem sobre as crianças e sobre o TDAH e admitem ter uma
formação que não permite trabalahar adequadamente com suas dificuldades. As escolas,
por sua vez, não tem boa estrutura para oferecerem uma educação de qualidade para todos
os alunos. As crianças não recebem da escola cuidados especiais nem atenção às suas
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características e as professoras parecem não saber o que fazer com elas e assim, deixam
que fiquem à vontade.
Dar voz a crianças ainda pequenas e usar como instrumento de pesquisa as
narrativas, admite a capacidade de reflexão da criança e do pesquisador, pois ambos, ao
seu modo, podem distanciar-se de si mesmos para dar sentido ao percebido e o vivido e,
assim, podem mudar. Ao narrar suas experiências, também (re) conhecem suas
habilidades, fragilidades e humanidades e refletem sobre suas posturas, as de suas
professoras, de seus pais, seus hábitos familiares, suas (des)motivações, vontades,
preferências e formas de lazer, que para nós, transformaram-se em conhecimento e fonte
de prazer.
A partir dos elementos de sua cultura, a criança narra para si mesmo e para o outro
o que vivencia. Ao construir essas narrativas, situam ou contrastam seus relatos
individuais num amplo espectro cultural, ao organizar suas experiências, narrando
histórias que são reais e tem sentido para elas. Ao outro, o pesquisador, cabe
essencialmente cuidar, com rigor, da interpretação da voz das crianças para dar sentido
ao que sabem sobre si mesmas, suas famílias e o que experimentam na escola.
Dar voz às crianças e permitir que se tornem sujeitos, contando suas historias, suas
vidas e experiências, facilita a compreensão de que são pessoas únicas, com
individualidades, idiossincrasias e modos de ver a si mesmas, ao (re)conhecer as formas
específicas de ver e representar o mundo, simplesmente narrando-se. Através do olhar da
criança, pode-se ainda (re)conhecer a educação básica que temos no Brasil, que parece
distante de atender às exigências da sociedade contemporânea.
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