narradores de javé

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Novembro de 2009 Por: Micheline Guelry Silva Albuquerque Resenha do Filme “Narradores de Javé”

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Resenha Crítica do Filme Narradores de Javé por Micheline Guelry Silva Albuquerque

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Resenha do Filme

“Narradores de Javé”

Narradores de Javé – a escrita pela sobrevivência

O filme brasileiro “Narradores de Javé, datado do ano de 2003, do gênero Comédia/Drama, dirigido por Eliane Caffé, conta a luta de um povo, os moradores do Vale do Javé, localizado no sertão baiano, que busca garantir a existência do vilarejo, que se encontra ameaçada pela vinda da modernidade: a criação de uma represa às margens do povoado, inundando-o, assim, com suas águas.

Os moradores descobrem, inconformados, que a saída apontada pelo Estado para a possível preservação do povoado seria a existência de um patrimônio histórico de valor comprovado em “documento científico”.

Diante dessa determinação, o povo decide preparar um documento com valor científico contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história que, até então, fora feita apenas no plano da oralidade. Mas como a maioria dos moradores de Javé é analfabeta, convocam, para a escritura do “Livro da Salvação”, o único letrado da comunidade, o irreverente e malquisto Antônio Biá, antigo responsável pela Agência de Correios do povoado, um homem banido por todos, que para salvar seu emprego, tendo em vista a falta de movimento na agência dos Correios, escrevera cartas para pessoas conhecidas de cidades vizinhas, contendo mentiras e calúnias dos moradores de Javé.

Assim, Antônio Biá passa a “entrevistar” os cidadãos mais antigos, a fim de escrever as histórias contadas de boca pelos moradores de pai para filho, para vizinhos e para quem quisesse ouvir sobre a origem da cidade, bem como sobre os grandiosos e virtuosos heróis que marcam as lembranças de seus descendentes.

Nesse momento do filme, percebemos a força que tem a escrita como fator de inclusão e prestígio social, pois aquele que fora desprezado e banido do convívio em sociedade torna-se um líder por ser alfabetizado, ou seja, passa a ter certo poder e regalias sobre os outros.

É através do pluriculturalismo presente nas narrações de cada morador do povoado e dos diferentes pontos de vista que Biá conhece a fundo as fantasias e as memórias do povo de javé.

Contudo, a escrita dessas histórias torna-se quase impossível para Biá, que não consegue, por mais criativo e talentoso, transformar no papel o “fato acontecido” em “fato escrito”, principalmente em virtude da pluralidade com que são narrados os fatos que deram origem ao povoado, pois cada um dos narradores de Javé, em seu discurso, traz para si a história, isto é, os heróis são trocados de acordo com o narrador, que defende, com toda garra, a veracidade de sua versão.

No primeiro relato, o personagem Vicentino afirma que o fundador de Javé é Indalécio, um guerreiro em retirada que, juntamente com seus companheiros de guerra, encontrou ali um lugar seguro. Já na versão de Deodora, a heroína é Maria Dina, uma figura feminina bastante batalhadora que trouxe para a fundação da cidade a importância e a grandeza da mulher. Mas para um antigo morador de uma comunidade negra o fundador de Javé é Indalêo, um africano.

Para Firmino – o personagem mais questionador e zombeteiro do enredo – a versão contada pelos moradores, na qual Indalécio é posto como o grande fundador e líder que levou o povo em retirada é transformada na imagem de um Indalécio “cagador”, assim como transforma a figura da Maria Dina em uma louca incumbida de guiar o povo rumo à terra prometida.

Outro discurso apresentado e que destoa de todos é o dos Gêmeos, no qual o tema da fundação do povoado é relegado pela história de seus pais e a origem duvidosa de um dos irmãos, “o outro”.

Essa variedade de versões reinventadas a cada discurso revela a interferência do narrador na história, ou seja, ao escrever ou narrar um fato, a pessoa insere nele suas próprias emoções e interpretações, seus sentimentos e experiências de vida, inventa dados e “floreia” fatos, pois, de acordo com o famoso ditado popular, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Daí a grande dificuldade que Antônio Biá encontra em organizar as idéias ditas em um suporte escrito, conforme revela em sua fala: “quanto às histórias, melhor que as fique na boca porque na mão não há quem lhe dê razão”.

Assim, é no grande embate travado entre o discurso oral e o escrito que se pode observar claramente que somente o fato escrito é considerado capaz de preservar a memória do povo de Javé. Já o fato ocorrido e comentado não tem valia para fins de prova, uma vez que o mesmo pode ser alterado de acordo com as crenças, com as necessidades, com a verdade de cada um. É nesse modo de interferir no fato acontecido que se percebe a grande chave do filme: o paralelismo entre verdade – invenção, memória – história.

É interessante observar que todo o episódio acontecido em Javé é narrado por Zaqueu, personagem que esteve ausente durante a maioria dos acontecimentos. Portanto podemos concluir que a versão dos fatos é a dele próprio, ou seja, o fato narrado por ele pode estar repleto de exageros, desvios, intenções próprias.

Ao final do filme, o “Livro da Salvação” com a grande história do Vale do Javé não é escrito, pois ao tentar resgatar a memória dos moradores do vilarejo, o que prevalece é um relato individual. Assim, a luta para salvar o povoado vai, literalmente, por água abaixo. A represa é construída, Vale do Javé é inundado.

Entretanto, mesmo o objetivo não tendo sido alcançado a tempo, Antônio Biá resolve escrever com seriedade a história do povoado, não mais para tentar salvá-lo, mas sim para eternizar esse povo e mostrar como a inundação do Vale do Javé interferiu no movimento de suas vidas.

O filme “Narradores de Javé” é repleto de aspectos que merecem destaque, como a predominância da memória mítica dos moradores do povoado, registrada apenas pela oralidade, de maneira dinâmica e não distante, confrontando a memória coletiva com a memória individual, jogando com a mudança temporal, para que se perceba a importância entre os dois.

Outro aspecto relevante é o fato da comunidade de Javé ser essencialmente oral, a apropriação das terras é feita de forma cantada, isto é, não se faz necessária a escritura das terras, o canto é suficiente para assegurar a posse delas. Contudo, em dado momento, os moradores precisam documentar tudo aquilo que até então só havia sido contado, gerando uma grande confusão, pois a oralidade permite um refazer constante dos fatos, enquanto que a escrita concretiza o fato de uma vez por todas, evitando, assim, pluralidade de versões a cerca do fato acontecido.

A variedade linguística também é retratada no filme através dos falares dos personagens, impregnados por expressões que demarcam diferenças dialetais (diferenças de região e classe social) e diferenças de registro (língua falada, coloquialismo), como é o caso dos apelidos que Biá aplica aos moradores: “manicure de lacraia”, “abelha menstruada”, “queixo de galinha”. São essas variações que nos aproximam bastante da vida dos personagens.

Diante do exposto, podemos concluir que o filme Narradores de Javé trata de assuntos polêmicos, atuais e dignos de serem discutidos. Mas vale ressaltar que a problemática que norteia o enredo do filme, apesar de trazer questões dramáticas, o faz de uma maneira leve, inteligente, bem humorada, evitando, assim, cair na mesmice do cinema brasileiro que, normalmente, ao filmar o Nordeste, conta a história de uma pequena cidade cheia de misérias e desigualdades sociais. Narradores de Javé é um filme impressionante e bastante agradável de assistir, quer por sua trilha sonora alegre e inovadora, quer pela capacidade dos atores, quer pelo cenário suave e divertido gerado pelo desenrolar dos fatos.