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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem Geovana Luzia Limpo dos Santos O trabalho de estilização da linguagem em filmes brasileiros: o caso de “O Invasor” e “Narradores de Javé” Campinas 2011

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem

Geovana Luzia Limpo dos Santos

O trabalho de estilização da linguagem em filmes brasileiros: o caso de “O Invasor” e “Narradores de Javé”

Campinas 2011

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Geovana Luzia Limpo dos Santos

O trabalho de estilização da linguagem em filmes brasileiros: o caso de “O Invasor” e “Narradores de Javé”

Monografia apresentada ao Instituto de Estudos

da

Linguagem, da Universidade Estadual de

Campinas como requisito parcial para a obtenção

do título de Licenciado em Letras – Português.

Orientador: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da

Silva

Campinas 2011

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Para meu pai, minha mãe, minha Tata.

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Agradecimentos

Sobretudo agradeço a Deus, que me abençoou durante os meus cinco anos de

graduação, provendo-me saúde do corpo e paz de espírito, fundamentais para que eu

conseguisse concluir meu sonho: estudar na Unicamp.

A minha família: José Aparecido dos Santos, meu pai, quem me ensinou a ter

amor pelo conhecimento. Carmen Maria Limpo dos Santos, que me acalentou nos

momentos de tristeza, cumprindo, em minha vida, o seu melhor papel: o de mãe

paciente, carinhosa e de infinita bondade. Jéssica Limpo dos Santos, minha irmã, minha

amiga, meu amor.

Agradeço aos meus queridos amigos. A Mariana Pini Fernandes com quem eu

dividi o início de tudo. A Isabella de Cássia Netto Moutinho, que me deu os sorrisos e a

força que eu precisei. A Marina Miranda Carpani, por ter sido minha companheira em

vários momentos. A Ana Carolina Nery Albino, Danielle Chagas de Lima, Marcella

Abboud, Pollyana Rodrigues, Valquíria Maria Mendes Boff, por serem minhas mães

irmãs desde 2010. A Raudiner Santos, por ter aparecido e permanecido em minha vida,

mesmo que (agora) esteja longe. Aos meus amigos de Santa Bárbara, em especial a

Amanda, Cíntia, Flávia, Giovana, Maria Carolina e Suzana, por sempre terem

acreditado nos meus sonhos e por tê-los apoiado.

Aos meus companheiros de trabalho do Meu Colégio Cosmópolis e do CNA

Barão Geraldo, pelo apoio e compreensão. Aos meus estimados alunos, pelo carinho e

respeito que cultivamos uns pelos outros.

Por fim, agradeço imensamente a minha querida orientadora, a Professora

Doutora Anna Christina Bentes da Silva, por ter me apresentado a Sociolinguística e por

quem eu dedico eterna admiração por sua competência. Obrigada por ter sido tão

paciente, dedicada e compreensiva.

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“Não entende minha vida, mas sabe que pros manos é importante minha rima

Nas favelas, crianças cantando confirma, Meus inimigos, não acredita, sabe por quê?

Eu sinto pra você, na periferia eu sempre triei nunca precisei entrar no trilho de ninguém, amém”

(Sabotage, “O Livro”)

“Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram

terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.”

(João Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”)

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Resumo

Nosso trabalho tem por objetivo analisar o trabalho de estilização, por parte de

atores, em contextos cinematográficos, das variedades linguísticas dos meios urbano e

rural, resultante das representações destes atores das variedades em questão. Sendo

assim, nosso objeto de análise será a linguagem verbal de um conjunto de atores de dois

filmes nacionais: “O Invasor” e “Narradores de Javé”. Enfocaremos em nossas análises

os recursos linguísticos manipulados pelos atores de forma a caracterizar as personagens

dos filmes em questão: do filme “O Invasor”, a personagem vivida por Alexandre

Borges, Giba, um engenheiro paulistano e um dos sócios majoritários de uma empresa

de engenharia, e a personagem vivida por Paulo Miklos, Anísio, um criminoso/matador

da periferia de São Paulo. Do filme “Narradores de Javé”, a personagem Antônio Biá, o

único alfabetizado na comunidade do Vale do Javé, vivida pelo ator José Dumont e a

personagem Zaqueu, não escolarizado, mas que é o líder da comunidade, vivida pelo

ator Nelson Xavier.

Palavras-chave: Sociolinguística – Estilização – Cinema brasileiro

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Abstract

The present work has the main goal of analyzing the work stylization, made by

the actors in cinematographic contexts of the linguistics varieties in the city and the

country, as a result of these actors’ representations of the varieties at issue. Therefore,

the object of our analyzes object will be the verbal language of a group of actors in two

Brazilian movies: “O Invasor” and “Narradores de Javé”. We will concentrate our

attention in the linguistics resources used by the actors as a way to characterize the

characters of these movies: from “O Invasor”, Alexandre Borges’ character named

Giba, an engineer from São Paulo city and one of the major owner of a company that

builds houses;; and Paulo Miklos’ character, Anísio, a criminal and also a murderer from

a poor neighbor of São Paulo city (Brazilian favela). From the movie “Narradores de

Javé”, Antônio Biá, the only one who can read and write in a poor town in the Northeast

of Brazil, Vale do Javé, José Dumont’s character, and Zaqueu, Nelson Xavier’s

character, a poor man who is not able to read and write, but is some kind of leader in

that town.

Keywords: Sociolinguistics – Stylization – Brazilian movies

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Sumário

Capítulo 1: Delineando a pesquisa sobre a estilização em filmes brasileiros............ 1

1.1. Justificativa e objetivos ............................................................................................ 1

1.2. Narrativa do filme “O Invasor” ................................................................................ 3

1.3. Narrativa do filme “Narradores de Javé” ............................................................... 14

1.4. Sobre a escolha do sistema de transcrição dos dados ............................................. 25

Capítulo 2: Alguns estudos sobre estilo e estilização ................................................ 30

2.1. O estilo sob a ótica de Mikhail Bakhtin ................................................................. 32

2.2. O estilo sob a ótica de sociolinguistas .................................................................... 33

Capítulo 3: As atividades de estilização da fala das personagens pesquisa ........... 36

3.1. Personagens do filme “O Invasor” ......................................................................... 36

3.1.1. Giba ..................................................................................................................... 36

3.1.2. Anísio ................................................................................................................... 38

3.2. Personagens do filme “Narradores de Javé ............................................................ 42

3.2.1. Antônio Biá .......................................................................................................... 42

3.2.2. Zaqueu ................................................................................................................. 44

Capítulo 4: Considerações Finais ............................................................................... 46

Referências Bibliográficas .......................................................................................... 48

Anexo 01 ....................................................................................................................... 50

Anexo 02 ....................................................................................................................... 64

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Capítulo 1: Delineando a pesquisa sobre a estilização em filmes brasileiros

1.1. Justificativa e objetivos O presente trabalho de conclusão de curso deriva do projeto de iniciação científica

homônimo desenvolvido de 01 de agosto de 2008 31 de julho de 2009 com financiamento da

CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), sob a orientação

da Professora Doutora Anna Christina Bentes da Silva no Instituto de Estudos da Linguagem

da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Aqui, apresentamos um estudo mais

aprofundado daquele que, à priori, foi feito durante o ano de pesquisa.

O interesse pela Sociolinguística surgiu ainda em 2007, primeiro ano de graduação, no

segundo semestre. A disciplina foi dada em módulo, com duração de apenas cinco semanas,

mas que foram suficientes para despertar a curiosidade e a avidez por conhecer melhor o que

ela poderia ensinar. A professora responsável foi justamente a Anna, com quem, logo no

primeiro dia de aula, conversei sobre como o aquela parte da Linguística havia me fascinado.

Algumas semanas depois, já conversávamos a respeito de um possível projeto de iniciação

científica. A Sociolinguística me acompanhou durante os meus cinco anos de graduação.

Desta maneira, ao fim deste tempo de estudo, temos esta monografia, que tem por

objetivo analisar o trabalho de estilização, por parte de atores, em contextos cinematográficos,

das variedades linguísticas dos meios urbano e rural, resultante das representações destes

atores das variedades em questão. Sendo assim, nosso objeto de análise será a linguagem

verbal de um conjunto de atores de dois filmes nacionais: “O Invasor” e “Narradores de

Javé”.

A escolha de tais personagens foi feita a partir da observação, em ambos os filmes, de

quais personagens possuíam maior notoriedade dentro de cada uma das produções, os

chamados personagens principais, que são o centro da maior parte dos acontecimentos que

envolvem a narrativa fílmica.

Nas análises apresentadas, enfocamos a manipulação de recursos estilísticos por parte

dos atores na construção da linguagem das personagens de forma a conferir verossimilhança

tanto às próprias personagens quanto aos universos sociais os quais representam. Neste

sentido, nossa atenção se voltou para quatro personagens específicas: no filme “O Invasor”,

procuramos analisar as falas de Anísio (interpretado por Paulo Miklos), um

criminoso/matador, usuário de drogas e morador da periferia de São Paulo, e de Giba

(interpretado por Alexandre Borges), um rico engenheiro, morador de um bairro nobre de São

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Paulo e sócio em um negócio ilícito: uma casa de prostituição de mulheres. No filme

“Narradores de Javé”, buscamos analisar as falas de Antônio Biá, escriba do Vale do Javé, e

de Zaqueu, vendedor residente na mesma comunidade.

Como aparato teórico, utilizaremos as reflexões sobre representação social de

Marková (2003), em sua releitura de Moscovici, que propõe que este tipo de representação é

baseada no pensamento de senso comum, no conhecimento e na comunicação. Além disso, as

discussões terão respaldo nos conceitos de variação linguística e estilística elaborados por

vários autores do campo da Sociolinguística.

Tomou-se como fundamental, para este trabalho, também apresentar as diversas

concepções de estilo encontradas na agenda da Sociolinguística de modo que elas dessem

base às análises desenvolvidas sobre as personagens dos filmes “O Invasor” e “Narradores de

Javé”.

Nossas principais perguntas de pesquisa são as que se seguem:

Quais os recursos que os atores mais manipularam, em termos de estilo, para construir

suas personagens?

Quais são “as representações invocadas pelos falantes no curso das interações”, ou

seja, em que os atores se baseiam para construir as suas personas na interação com os

outros?

Os atores precisam construir uma identidade que seja verossímil, a fim de que

convençam os espectadores de sua performance. Mas como eles fazem isso?

Nosso trabalho tem como objetivo geral analisar a manipulação operada pelos atores

dos recursos linguísticos de forma a construir suas personagens. Obtivemos essa resposta a

partir da análise do léxico. Nossos objetivos específicos são os que seguem:

a) Descrição dos traços linguístico-discursivos das personagens Anísio e Giba de “O

Invasor”;;

b) Elaboração das análises comparativas entre os processos de construção dos estilos das

personagens em “O Invasor”;;

c) Descrição dos traços linguístico-discursivos das personagens do filme “Narradores de

Javé”;;

d) Elaboração de análises comparativas entre os processos de construção dos estilos das

personagens nos dois filmes.

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Para tentar dar conta de nossas perguntas de pesquisa e dos objetivos definidos acima,

no capítulo 1 – além da justificativa e dos objetivos já apresentados – tentaremos apresentar

uma panorâmica das narrativas de cada um dos filmes, de modo a contextualizar as situações,

as personagens e o espaço dos mesmos. Ademais, também apresentaremos o sistema de

transcrição adotado para a formação dos corpus pertencente ao presente trabalho.

No capítulo 2, haverá uma breve explicação sobre os pressupostos teóricos que

respaldaram as análises sobre estilo e estilização. Para isso, usamos, fundamentalmente, os

estudos de três pensadores desta área, Mikhail Bakhtin, Nickolas Coupland e Judith Irvine a

partir do trabalho de Nogueira (2010). O capítulo 3 é onde se dá a apresentação das análises

dos recursos de estilização presentes na fala das personagens. Por fim, no capítulo 4,

apresentamos nossas conclusões.

1.2. A narrativa do filme “O Invasor” Dirigido por Beto Brant, “O Invasor” (2001) é uma adaptação da novela homônima de

Marçal de Aquino. A trama conta a história de dois sócios, Giba e Ivan, que contratam um

criminoso, Anísio, para matarem o outro sócio (Estevão), que é o sócio majoritário da

construtora na qual Giba e Ivan também são sócios.

A cena inicial do filme: um carro elegante saem dois homens bem vestidos, são Giba

(GI40) e Ivan (IV42). Eles vão ao encontro de Anísio (AN38), que está sentado em uma mesa

de bar situado em alguma periferia da cidade de São Paulo. Entretanto, até o presente

momento, a imagem de Anísio não aparece; apenas sua voz guia a cena.

Foto 1: Ivan e Giba no primeiro encontro com Anísio.

Exemplo 1: GI40 você é o Anísio?

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AN38 por que meu? que que se trata? GI40 tô procurando o Anísio... o Norberto me indicou ele para um serviço (entregando para ele um pequeno pacote) AN38 então... tá aí? GI40 tá tá aqui AN38 tá tudo aqui? GI40 tá... tá sim... GI40 e aí... quanto tempo demora? AN38 ah... uma semana desosso essa fita aí... e o cara aí... (dirigindo o olhar para Ivan) não fala nada? que que é... é cana é ganso... qual que é? GI40 é meu parceiro... meu sócio... também tá pagando... AN38 é porque se não for é o seguinte... ninguém sai daqui GI40 pode ficar tranquilo tudo bem

A cena seguinte acontece no carro, quando os dois homens conversam. Giba tenta

convencer Ivan de sair para comemorar. Entretanto, este reluta, quer ir para casa, mas acaba

cedendo. Eles vão a uma casa de prostituição de mulheres, cujo proprietário é o próprio Giba.

No caminho de volta para casa, Ivan se mostra surpreso posto que, até então, não lhe ocorrera

que seu amigo e sócio tinha ligação com este tipo de negócio. Segue abaixo um trecho da

transcrição da cena em que conversam:

Exemplo 2: IV42 freguês de carteirinha... GI40 ah... vai dizê(r) que não gostou... a Alessandra hein?... conta aí... novinha bonitinha che(i)rosinha... é UNIVERSITÁRIA hein? IV42 ( ) cê não sai de lá né Giba? GI40 ai Ivan Ivan... como cê demora pra sacá(r) as coisas cara... é impressionante... claro que eu tô sempre lá... a gente não pode descuidar dos negócios... IV42 ã... cê é sócio daquela merda? GI40 [que que tem de errado?... eu e o Norberto tamo tocando aquela boate ( ) uns três meses já... aliás eu preciso te apresentar o Norberto cara... o homem é gente fina... FINÍSSIMA... gosto(u) né? gosto ( ) IV42 meu sócio é dono de um putero e eu nunca desconfiei de nada... é de fudê(r)... GI40 diversificação dos negócios... é a onda do momento... IV42 e se alguém descobre Giba? e o escândalo? isso dá cadeia cara... GI40 que escândalo... que cadeia ô Ivan... pára de secá(r) cara... como cê é encanado meu... ô... ó... não pensa que você não tá sujando as mãos só porque é outro cara que tá fazendo o serviço... dá no mesmo... bem vindo ao lado podre da vida... IV42 que falta eu descobri(r) de você hein Giba?

Neste momento, começa-se a observar na personagem Ivan um incômodo em relação

ao mundo em que Giba vive e no qual ele acabou de entrar, mundo este que o próprio Giba

denomina como “o lado podre da vida”. Ao chegar em casa casa, Ivan mostra-se preocupado,

cobre sua esposa com o lençol e fica pensativo. Tudo sem dizer uma única palavra.

Muda-se de cena e o conflito que envolve Ivan e Giba começa a ser revelado: os dois e

mais outro homem, Estevão (ES45), são sócios em uma grande construtora, “Araújo &

Associados”. Giba julga rentável fazer determinada obra para o governo, mas não conta com

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o apoio do sócio majoritário, Estevão, por se tratar de algo ilegal, em que haverá desvio de

dinheiro público. Ivan, por sua vez, está indeciso: embora seja amigo de Estevão e converse

com ele abertamente sobre o assunto, também quer o dinheiro que este negócio lhe renderá. Exemplo 3: ES45 eu não quero negócio com o governo... Ivan tem sempre alguma falcatrua no meio... eu não sei se você sabe que eu já recebi proposta do governo de lobistas pra entrá(r) nessa e eu não quis... é só uma questão de TEMPO para esto(u) rá(r) um escândalo... depois... eu não quero vê(r) o nome da construtora...

Na conversa, Ivan mostra-se calado, apenas concordando com aquilo que Estevão fala,

sem demonstrar o mínimo de reação. Todavia, seus pensamentos estão confusos, ele se

arrepende do negócio que fora tratar com Anísio, no início do filme. Por isso, vai até à obra

onde Giba se encontra para tentar convencê-lo a desistir do crime, que já começa a ser

delineado: o assassinato de Estevão em prol dos interesses particulares dos dois.

Exemplo 4: GI40 bons tempos hein Ivan? quando a gente brigava para decidir o nome que ia entrá(r) primê(i)ro na placa... lembra? IV42 isso tudo é bobagem do Estevão... GI40 bobagem uma ova... você também não queria que o seu nome viesse por último... bom... o que importa é que já já é que a gente vai podê(r) tirá(r) o nome do Estevão das placas... IV42 o nome dele vai continuá(r) nas placas Giba GI40 tudo bem... a gente pode fazer uma homenagem... escrevê(r) o nome dele e na frente põe “in memoriam” em itálico... tá... gostei disso IV42 ô Giba... eu vim aqui para te dizer que eu desisti do plano GI40 vem cá... ((os dois homens atravessam a rua)) como é que é? IV42 é isso que você escutou... eu quero cancelá(r) o seu plano GI40 o MEU plano? o plano é NOSSO Ivan... e num vamo(s) cancelá(r) merda nenhuma IV42 eu tava loco quando topei essa parada... agora tô vendo que não dá pra segurá(r)... GI40 você é engraçado né? até ontem tava tudo certo IV42 não dá Giba... o que cê tá querendo fazê(r) é uma lo(u)cura GI40 ah... nem pense em tirá(r) o corpo hein? você tá nessa comigo e vamo(s) até o fim... entendeu? IV42 tô fora... eu não quero mais saber dessa merda GI40 ah... você pensa que as coisas funcionam desse jeito? mudô(u) de ideia cai fora numa boa e pronto? não é assim não meu chapa pô... quando eu vi chegando achei que você tava me trazendo notícia boa IV42 nós vamo(s) acabá(r) na cadeia Giba GI40 que nada... se é isso que você tem medo... pô Ivan::... larga a mão de sê(r) cagão... vai dá(r) tudo certo... você vai vê(r)... IV42 num posso fazê(r) isso GI40 agora é tarde... cê já fez... num dá mais pra pulá(r) fora... já imagino(u)? cê procurá(r) o Anísio e dizê(r) pra ele que você é um bunda mole cuzão... que tá arrependido?

Ivan está extremamente arrependido, mas vê-se diante da impossibilidade de “voltar

atrás” no negócio. Giba tenta convencer Ivan de que a morte de Estevão é fundamental para

que eles tenham a oportunidade de ter ainda mais poder. Exemplo 5:

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GI40 no fundo esse povo (apontando para os trabalhadores da obra) qué(r) o seu carro querem o seu cargo o seu dinheiro as suas roupas... querem comê(r) a sua mulher Ivan... é só tê(r) uma chance... é isso o que a gente vai fazê(r) com o Estevão... vamos aproveitar a nossa oportunidade antes que ele faça isso primeiro 45 IV42 bela filosofia de vida hein Giba? dá licença... dá licença vai...

Dá-se início a uma alternância de cena: Ivan, embriagado, em uma boate; Giba em sua

residência, com sua mulher e sua filha; Estevão finalizando uma partida de futebol e indo para

casa, a fim de jantar com a esposa.. É o dia do crime. Ivan foi beber para tentar não se lembrar

do fato. Giba estava tranquilo, aproveitando o momento com sua família. E Estevão era a

vítima.

Na manhã seguinte, Ivan pergunta por Estevão a sua secretária. Ela o avisa de que ele

está atrasado. Ele finge que está tudo bem, mas é possível observar seu nervosismo. Ivan liga

para Giba e comunica-lhe o fato: Estevão está atrasado. Presume-se que já esteja morto.

Eles estão em uma reunião. O telefone toca. É a notícia sobre o desaparecimento de

Estevão. Ivan é encarregado de ir à delegacia de polícia encontrar-se com o pai de Estevão, a

fim de tentar entender o que havia ocorrido. Eles estão preocupados, porque a esposa de

Estevão, Silvana, também desaparecera.

Ivan vai se encontrar com Giba em um restaurante e lhe esclarece os fatos:

Exemplo 6: IV42 Giba GI40 e aí Ivan... como é que foi? IV42 será que o cara mato(u) a Silvana também Giba? GI40 olha Ivan... vai vê(r) ela tava junto e acabou sobrando pra ela também IV42 mai num foi esse o combinado... pra quê matá(r) a Silvana? ((IV42 conversa com o garçom)) IV42 me traz a mesma coisa que ele por favor GI40 o negócio agora é esperá(r) IV42 como é que cê consegue sê(r) tão frio hein Giba? GI40 a gente precisa acertá(r) logo as coisas com o Rangel IV42 não... esquece o Rangel... vamo(s) cancelá(r) essa merdaí GI40 quê? nem fodendo... a gente entrou nessa por causa desse projeto... para de falá(r) besteira hein?

À noite, Ivan está apreensivo, até mesmo com sua mulher, Cecília (CE39). Ele tenta

evitar falar do assunto e, se fala, mostra-se extremamente nervoso e impaciente. Giba está

com a esposa em um momento íntimo, até que a filha entra no quarto e os interrompe. A

esposa de Ivan chega embriagada da festa em que fora sozinha, e ele está acordado, quieto na

cama.

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Durante a madrugada, Ivan liga para Giba a fim de avisá-lo da morte de Estevão. Eles

seguem juntos para a cena do crime. Acompanhando as imagens, inicia-se uma música1 que

diz: “bem-vindo ao pesadelo da realidade”. No local, Giba finge estar inconformado com a

situação, chora e abraça os familiares da vítima, Ivan não consegue esconder seu incômodo,

embora também demonstre os pêsames aos presentes. Na sucessão de imagens em diferentes

lugares e situações, há o funeral de Estevão e Silvana – todos os parentes, amigos e sócios.

Ainda com a mesma música ao fundo, a câmera passa a filmar os passos de alguém chegando

à construtora no dia seguinte: essa câmera representa o olhar da personagem em questão,

Anísio, o matador contratado por Ivan e Giba para assassinar Estevão.

No dia seguinte, Anísio (AN38) entra no escritório de Ivan (IV42). Após alguns

instantes, chega Giba (GI40). A secretária de Ivan, Lúcia (LU27), também participa

pontualmente da cena:

Exemplo 7: AN38 irmão LU27 doutor Ivan IV42 não tudo bem... podechá... não tem problema não.. (despedindo a secretária) que que cê tá fazendo aqui? AN38 dominei a fita mano... já era ( ) IV42 cê numa acha que tem lugar melhor pra gente conversá(r) não? hein? ((IV42 liga para GI40)) IV42 alô Giba? dá um pulo aqui na minha sala... não... tem que sê(r) agora... é urgente PORRA... tá tô te esperando ((IV42 desliga o telefone)) AN38 tem um café? IV42 café? Lúcia... traz um café... (pedindo café para a secretária pelo telefone) por que que cê matô(u) a mulher hein? AN38 não tive opção mano... a mina olhô(u) ( ) com aqueles olho esbugalhado pra mim... eu enquadrei os dois... cheguei que quando que eu cheguei lá... mano... ela olhou na minha cara com aquele olho... toda descabelada ( ) deu maió(r) guéla... fez pá todo mundo ouvi ô:: aí eu cheguei... chamei os ( ) artigo morto ((LU27 entra com uma bandeja de café)) IV42 ( ) brigado Lúcia AN38 ó... mó carnão ( ) IV42 a mulhé(r) não tava no nosso trato AN38 trampo extra... não vô(u) cobrá(r) nada por isso... também ele num vai dá mais trabalho pra ninguém ((GI40 entra na sala)) GI40 e aí... que cê tá fazendo aqui?... que é isso? IV42 [caralho giba [ guarda essa porra aí GI40 [que que cê tá fazendo com essa merda? IV42 [Giba porra GI40 [péra Ivan péra

1 A música denomina-se “Ninguém presta”, da banda do interior paulista Tolerância Zero. Sobre a relação entre o filme e a música: “Em 2002 é lançado o longa metragem ‘O invasor’ do diretor Beto Brant. O filme é um marco do cinema nacional e conta com um elenco estelar que inclui o titã Paulo Miklos, os atores Marco Ricca, Alexandre Borges, Malu Mader e Mariana Ximenes. Sucesso de critica e público, o Tzero tem duas músicas (‘Ninguém presta’ e ‘Azar’) incluídas na trilha sonora do filme, trilha essa que também inclui nomes como Sabotage, Pavilhão 9, Instituto e o próprio Paulo Miklos.” (http://www.myspace.com/bandatzero Acesso em 29 de Novembro de 2011).

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GI40 Anísio... péra aí... olha... já que você veio até aqui vamo(s) direto ao assunto tá bom? IV42 taí taí... guarda essa porra vai AN38 calma pô GI40 brincadê(i)ra... tudo certo? IV42 Giba... esse cara vai fudê(r) com a gente... ele tá... ele tá andando com a prova do crime caralho GI40 relaxa Ivan... RELAXA... tá pago... acabo(u)

É interessante observar que, a partir deste momento, o título do filme começa a ser

justificado: Anísio, que fora contratado para assassinar o sócio majoritário da construtora,

inicia um processo de invasão do espaço social dos contratantes, embora seja de um universo

completamente distinto do seu; agora, ele quer fazer parte dele.

Foto 2: Anísio.

Em conversa com o sócio da casa de prostituição, Norberto (NO53), Giba fala sobre o

receio que tem sentido em relação a Ivan, pois o considera temeroso para lidar com a situação

em que entraram. Giba diz que não sabe se “ele aguenta o tranco” e também diz que tem

“medo que ele fale demais”. De fato, Ivan não está bem.

Enquanto Giba está em seu negócio paralelo, a casa de mulheres, Ivan se encontra em

uma boate, onde conhece Cláudia, personagem que será fundamental na trama.

Na manhã seguinte, Giba chega à construtora e, novamente, se depara com Anísio, que

diz que agora quer começar a se envolver nos negócios: “tô pensando em me envolvê(r)...

vô(u) dá um trampo aqui”:

Exemplo 8: IV42 ah é? qui que cê vai fazê(r) hein? AN38 vô(u) dá(r) um trato na segurança... quero dá(r) sossego pra vocês... final de semana cês vão pra praia... vai comê(r) umas beati... nem tempo mais pra isso vocês têm GI40 vamo pará(r) de brincadeira aí Anísio AN38 cê num viu o que aconteceu com o seu sócio? então... deixa tudo comigo... eu vô(u) tá pelos quatro canto... eu vô tá cercando cara... GI40 num vai dá Anísio... que que a gente vai dizer pros outros funcionários? que cê faz o que aqui?

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AN38 e desde quando patrão dá trela mano? tá ligado que dono pode tudo? dono manda prendê(r)... dono manda matá(r) IV42 mas vem cá... cê tá maluco Anísio? AN38 qui que é mano?

Giba e Ivan estão desesperados com a situação: como lidar com o assassino que,

depois de ter cumprido com o combinado, resolve adentrar em suas vidas?

Eles são interrompidos pela chegada de Marina, filha de Estevão e Silvana, que vai à

construtora com seu avô a fim de resolver as burocracias decorrentes da morte dos pais. A

câmera segue os passos de Anísio e revela o interesse do mesmo em conhecer melhor a

estrutura do lugar: as salas, os funcionários etc. Em determinado momento, ele até conversa

com um trabalhador, como se estivesse fiscalizando o que sucede na construtora.

Marina (MA18) sai da reunião com Giba, Ivan, seu avô e o advogado para fumar um

cigarro e acaba encontrando Anísio, que acaricia um cachorro na parte de fora do lugar.

Eles conversam um pouco e a cena é cortada: agora é Ivan que está em uma obra. Ele

foi se encontrar com Giba para conversar sobre as negociações com Rangel, membro do

governo, sobre as obras que estão a encargo da construtora dos dois. Ivan mostra-se

desconfiado, pois acha que Giba está fazendo os negócios sem seu consentimento.

Em seguida, vê-se Ivan em um momento íntimo com Cláudia, a mulher que conhecera

no bar.

Neste ínterim, Anísio vai visitar Marina em sua casa e a presenteia com um cachorro.

A relação entre os dois vai se estreitando à medida em que conversam e se conhecem. Eles

saem juntos e Anísio a leva para conhecer sua comunidade. Um rap começa a tocar como

música de fundo “na zona sul cotidiano é difícil/ mantenha o procede quem não conte tá

fudido.”2 As imagens revelam a estrutura do lugar: ruas de terra, carros velhos estacionados,

crianças pobres andando, pichações, casas mal construídas e/ou não terminadas. Marina olha

para tudo muito curiosa, principalmente por se tratar de um universo completamente distinto

daquele ao qual pertence.

Anoitece e os dois permanecem juntos na favela onde Anísio mora: vão ao bar, bebem,

consomem drogas e têm relações sexuais. Está consumado: Anísio invadiu completamente o

espaço: estando junto de Marina, filha do sócio morto, ele consegue adentrar onde quiser.

2 Rap de Sabotage, “Na zona sul”.

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Foto 3: Marina e Anísio no bar.

No dia seguinte, Anísio chega à construtora acompanhado de Marina e Ivan os vê

juntos. Ele fica perturbado e nervoso, pois não quer mais saber da presença de Anísio em sua

vida, relembrando a todo o momento o crime que cometera.

No hall de entrada, um amigo de Anísio, Sabotage (SA35)3, conversa com ele.

Aparentemente, Anísio o chamou para pedir que os sócios Giba e Ivan financiassem a carreira

do rapper.

Exemplo 9: GI40 Anísio... quem é esse cara? AN38 Sabotage ( ) SA35 ( ) AN38 tem três gravadora nas bota do cara... mais um negócio que nóis vamo(s) investi... é cinco conto pra fazê(r) a gravação... manda um som aí Sabotage ((SA35 começa a cantar um rap)) GI40 tá tudo bem tudo bem... parô(u) parô(u) SA35 tá o cara tá desgostoso da vida e num curte o rap Anísio IV42 que que cês acha? cês tão achando que isso aqui é um banco? AN38 não... tô achando que o cara vai sai(r) da quebrada lá... mó humilhação pegá(r) dois busum e sai(r) daqui sem nenhum qualquié mano IV42 mas vem cá isso aqui é uma empresa ( ) da contabilidade cê num pode chegá(r) e pegá(r) dinheiro sem mais nem menos sem dizê(r) pra quê AN38 é toda empresa não tem esquema por fora... e o caixa dois? IV42 mas vem cá esse cara é folgado pra caralho... GIBA ((vozes se confundem)) GI40 peraí... calma calma... vamo resolvê(r) isso aqui de outro jeito... calma calma IV42 o que que cê vai fazê(r)? cê vai pagá(r) Giba? GI40 fica na sua Ivan IV42 mas GI40 cinco? AN38 cinto conto... taí SA35 cê falô: AN38 Sabotage num é pipoca não... ele vai adiantá(r) lá o lado dele e devolvê(r) esse merreca pro cêis IV42 isso aí é esmola pro chapéu dos ô(u)tro SA35 ô Anísio... devolve o dinhero presses cara qualé que é GI40 seguraí seguraí SA35 [que frescura mano ô

3 Personagem interpretada pelo próprio rapper.

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AN38 escuta... nós vamo(s) desenvolvê(r) um esquema lado a lado... numa sociedade só nóis... escreve o que eu to falando... clareô Jão? ((vozes se confundem. AN38 e SA35 saem)) IV42 vai pagando vai Giba... vai vendo onde a gente vai chegá(r)

Ivan começa a desconfiar de Giba. É noticiado no jornal o assalto seguido de morte de

alguém para quem os dois sócios deviam muito dinheiro. Ivan acha que foi a morte foi

encomendada por Giba. Em frente à academia em que este malha, os dois têm uma discussão

na qual Ivan pergunta ao sócio se ele “está usando o Anísio para resolver nossos problemas”.

Ao final da briga, dá-se o seguinte diálogo: Exemplo 10: IV42 quem vai sê(r) o próximo? EU? GI40 eu não sou assassino cara... cê tá precisando se tratá(r) ((Começam a se bater)) IV42 fica ligado que eu tô de olho em você... fica ligado

Ivan resolve, então, adquirir uma arma, pois está muito receoso diante da conjuntura

atual da sua vida, do seu casamento e de suas relações no trabalho. Todavia, ele não consegue

esconder sua apreensão diante do porte de arma. Na tela, as imagens revelam um Ivan

temeroso, aflito e nervoso. Ele chora com a arma nas mãos. Sem nenhuma palavra, apenas

com ações, é possível observar esse seu estado emocional atual. Ele está em um quarto de

motel. Enquanto toma banho, Cláudia chega e se assusta com o jeito de Ivan e,

principalmente, com a presença da arma, que encontra no meio de suas coisas. Ele afirma que

a arma é para se defender. Ademais, avisa Cláudia que vai embora de São Paulo: “tenho mais

nada... meu casamento já acabo(u)... a construtora já não me dá nenhum prazer... que que eu

vou ficá(r) fazendo aqui?”. Ela não quer ir com ele e sua arma, está receosa, com medo do que

possa acontecer. Ela pede um tempo para acertar suas coisas. E ele afirma: “mas saiba que eu

não tenho muito tempo”.

Anísio, por sua vez, vai visitar uma obra. Encontra-se com Cícero (PO65) e, logo

depois, com Giba (GI40):

Exemplo 11: AN38 aí mano... aí mano... faz favor.. fala aí PO65 que foi? AN38 chegô(u) pra mim que tá sumindo uma pá de barato aqui... cadê as peça(s)... as ferramenta(s)... e o caminhão amarelo PO65 que cê qué(r) comigo? AN38 é o seguinte... a ordem veio lá de cima mano... chego(u) reclamação pra mim... tem uma pá de mano ratiando levando os barato pra fazê(r) trampo lá fora PO65 cê tá é se intrometendo demais... se você é malandro cê tem mais é que ficá(r) na sua... eu só devo satisfação pro doutor Gilberto

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AN38 que mané doutô(r) Gilberto mano? seguinte... eu vim aqui pra acabá(r) com a bozolândia... ACABÔ A BOZOLÂNDIA... o crime não é uva mano... PO65 vai se fodê(r)... se você qué resolvê(r) a gente resolve aqui agora AN38 é sem massagem mano... aqui é peso ((GI40 chega)) GI40 porra o que tá acontecendo aqui? AN38 ah... tem funcionário aí metido a mister eme PO65 ô doutô(r)... esse sujeito é um lo(u)co... tá atrapalhando todo o serviço GI40 vai... todo mundo de volta pro trabalho vai... vem cá Anísio... quanto você qué(r) pra sumi da minha vida? AN38 tô gostando... não tem conta bancária que me tira daqui... todo mundo esperto hein? tô registrando tudo

A invasão está completa. Anísio está em um relacionamento sério com Marina, está

trabalhando na construtora e quer se inteirar, cada vez mais, de todos os trâmites que lá

ocorrem.

Ivan vai até a casa de Cláudia para buscá-la e, em seguida, fugirem juntos. Entretanto,

quando a chama no interfone, descobre, através de uma vizinha, que ali não reside nenhuma

mulher que atende pelo nome de Cláudia. Ele consegue invadir o apartamento dela e também

descobre, através de um recado na secretária eletrônica que, na verdade, seu nome é Fernanda

e que ela entrou na vida de Ivan por intermédio de Giba. Com a respiração ofegante e o

desespero eminente, ele sai correndo, mas antes deixa um recado no apartamento de Cláudia –

agora, Fernanda – no qual se lê: “EU TE MATO”. Ele segue para a casa de Giba, mas não o

encontra.

Há uma sucessão de imagens: Anísio com Marina em uma boate, drogados, ao som de

música eletrônica. Em outro ponto da cidade, Ivan está à procura de Giba: ele vai até à casa de

mulheres, briga com uma delas e sai nervoso, expulso pelos seguranças. Fernanda está na

frente da casa de Giba, e, quando ele chega, conta a ele que Ivan invadiu o seu apartamento e

descobriu tudo.

Giba vai à casa de Marina, onde já está Anísio, e comunica que Ivan está armado, pois

Fernanda o contou.

Exemplo 12: AN38 cola aí mano... senta aí... tomá(r) qualqué(r) coisa mano GI40 não... não quero não... Anísio pelo amor de deus... eu tô falando sério... o Ivan tá fora de controle AN38 calma... num vem apavorando pra cima de mim... ó... pega aqui... senta aí... senta aí... quem é que boto o rango lá? o belisco pá ele comê(r)? foi você mano... num fui eu GI40 eu achei que ele num ia aguenta... ele ia acabá(r) estragando tudo AN38 corre atrás da tua melhora meu irmão... vai fazê(r) tua vida GI40 [o Ivan tá armado... ele é capaz de qualqué(r) coisa... você tem que dá um jeito nele AN38 escuta Jão... eu não faço mais... eu mando fazê(r)... tô vivendo a vida... faz que nem eu mano... metê(r) a cara no bagulho... num dá pá ficá(r) na sombra não... cê tem apetite corre atrás mano... ó... vou te emprestar o parabelo cê vai lá e tranca ele tá... num dá guéla pra ninguém... morto num fala... quem nasce com boca fala... morto num fala

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GI40 você também tá no rolo Anísio... vai sobrá(r) pra todo mundo... cê já penso(u) se o Ivan conta pra Marina quem você é? ã? AN38 olha pra mim filho... se tisorá(r) meu barato com a mina eu vô buscá(r) seja lá quem fô(r)... aquele que tivé(r) dedo de gesso di mi apontá(r) eu estóro o crânio... que nem eu fiz com os dois putos... da cadela eu trouxe o outro e as jóias... do pilantra eu trouxe a grana... agora do cagueta eu vô(u) trazê(r) a alma... meu troféu vai sê(r) a alma dele Ivan está se dirigindo para a delegacia de polícia, a fim de delatar todo o crime em que

ele e seu sócio se envolveram. Entretanto, durante o percurso, ele bate o carro. Ao invés de

resolver, ele ameaça as vítimas do acidente com uma arma.

Foto 4: Ivan se encaminhando para a delegacia.

Ele está desesperado e segue a pé para a delegacia. Chegando lá, ele conta tudo o que

aconteceu: Exemplo 13: IV42: eu tenho um sócio que... que mi envolveu numa história e... que acabo contratando um cara pra matá(r) o meu ô(u)tro sócio... escroto... ele é bandido mesmo... bandido assassino... tô um po(u)co desesperado... um po(u)co não... eu tô.. bas/tan/te de/ses/perado... eu sô engenhe(i)ro... eu sô(u) engenheiro Ivan Soares... o meu nome é... tenho uma conduta perfeita ((tosse)) eu sô(u) casado... eu... eu... eu amo muito a minha mulher... ah... a gente faz umas porra(s) de umas cagada(s) na vida mas eu... eles tão querendo me matá(r) eu num sei pra onde í(r)... eu... eu tô em pânico... parece que a qualqué(r) momento alguém vai chegá atrás de mim e... ( ) por perto... tipo assim por perto... tão querendo me matá(r)

A próxima cena enfoca Ivan, algemado, dentro do carro da polícia, aguardando o

policial na frente da casa de Marina. De lá sai Anísio acompanhado de Giba. Eles conversam

com o delegado, Norberto (NO53), de quem Giba é sócio na casa de mulheres. Exemplo 14: NO53 e aí Giba? tu viu o tamanho da merda que cê me arrumô(u)? se num é ter gente minha no plantão... essa hora tu tava era fudido... o cara taí ó... deu todo o serviço... agora é com vocês... dá um jeito nele... o que eu podia fazê(r) eu já fiz... te vira

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Ivan descobre tudo: ele é um homem morto.

1.3. Narrativa do filme “Narradores de Javé”

Com a direção de Eliane Caffé, o filme “Narradores de Javé”, de 2003, conta a história

de um vilarejo no interior da Bahia que está prestes a ser alagado por conta da construção de

uma barragem. Diante deste trágico fato, os moradores se mobilizam a fim de encontrarem

um meio profícuo de impedir as águas de alagarem o Vale do Javé.

Foto 5: Pôster do filme “Narradores de Javé”.

O sol a pino. Um homem com uma mochila pesada nas costas corre em uma estrada

aparentemente deserta. Ao entardecer, ele consegue chegar a um lugar parcamente habitado às

margens de um rio, de onde parte um barco. Ele se atrasara, por isso corria. Mas não

conseguiu alcançá-lo. Deveria, então, esperar pela próxima embarcação que o levaria ao seu

destino final.

O homem precisou permanecer naquele vilarejo para esperar o próximo barco e,

durante uma conversa de bar, ouve a história do Vale do Javé, narrada pela personagem

Zaqueu (ZA48) para os clientes daquele lugar. Essa personagem do homem que perdeu o

barco é uma personagem que funciona como um forasteiro que testemunha as narrações sobre

o Vale do Javé.

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As narrativas começam a ser contadas em função do fato de Souza (SO39) começar a

armar uma cena com sua mãe que, distraída com a leitura de um texto, não atende ao pedido

do forasteiro de lhe vender um coco no bar onde se encontra. Diante das reclamações de

Souza a respeito da teimosia da mãe em ler e deixar de atender aos clientes, Zaqueu (ZA48),

uma das principais personagens do filme, que nasceu e cresceu no Vale do Javé, diz que a

escrita pode causar “o maior rebuliço”, tal como aconteceu em sua terra natal: Exemplo 1: SO39: ôu... ô mãe... o coco do moço mãe... fecha esse livro mãe... Ô:... depois de véia resolveu aprendê(r) a lê ((risos)) ZA48 às vezes é bom:: SO39 bom pra que Zaqueu? ZA48 a gente nunca sabe né... eu me(s)mo... que não sou das letra(s)... posso contar... o rebuliço: que uma escritura foi capaz de fazer... ó... é um causo... é o causo mais mais... CÊS nem vão querê ouvi

Dá-se então início, então, à narração das histórias sobre Javé. Na tela, observa-se a

mudança de cenário e personagens.

Dentro de uma igreja, um grupo de pessoas – homens e mulheres adultos – gritam

protestando por algo ainda ininteligível. Neste momento, entra Zaqueu junto de mais outros

dois homens e explica a situação:

Exemplo 2: ZA48: vão construí(r) a barragem... Javé tá no caminho das água(s)... logo isso aqui tudo vira represa... ((confusão de vozes)) nós vamos ter que sai (r)..

Diante do nervosismo e indignação do povo, ali, no altar da igreja, Zaqueu conta que a

única forma de salvar Javé das águas da barragem é mostrar aos engenheiros responsáveis

pela obra o fato de que ali há história, há algo que pode ser tombado como patrimônio

nacional e que, portanto, possui grande importância. Um homem chamado Firmino, neste

momento, afirma que não há nada naquele lugar de valor, pois o lugar “não vale o que o gato

enterra”. Depois de algumas risadas, Zaqueu apresenta sua ideia: o que Javé possui de mais

significante são as histórias contadas e recontadas por seus próprios habitantes sobre as

origens do lugar e de seus antepassados, sobre sua fundação e sobre os processos de

distribuição das terras daquele povoado, as “divisas cantadas”4.

4 No filme, a delimitação das fronteiras das propriedades era feita oralmente por meio de indicações geográficas. Por exemplo: SO39 péra aí Zaqueu... que negócio é esse? Divisa cantada? ZA48 ah o sujeito ia assim num elevado via o vale diante de si e cantava... daqui da curva da terra até o corguinho onde todo mundo se banha... dali até encontrá(r) as terra do João Fubuia... tudo que tive dentro desse trecho são terras minhas... fulano de tal... era assim... e as terras passavam de pai pra filho ((risos))

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Embora a ideia pareça muito boa, o problema surge quando Zaqueu percebe, ao falar

com os engenheiros, que contar oralmente a história de Javé não adiantaria. A solução

encontrada foi a de escrever essa história, tê-la como documento, a fim de registrar o

patrimônio histórico de Javé. Porém, na comunidade, segundo Zaqueu, não havia

alfabetizados. Era uma comunidade pobre, formada por gente que veio de longe para

conseguir um pedaço de terra por meio das divisas cantadas. Havia apenas uma pessoa que

sabia ler e escrever bem naquele lugar: Antônio Biá (AB54), “intelectuário e alcoólatra”,

como era possível ler nas paredes de sua casa.

O problema é que Biá tinha sido exilado pela própria comunidade, posto que, no

passado, havia enganado toda a população. Ele trabalhava no Posto dos Correios, mas, como

no lugar não havia muito movimento (ninguém sabia ler e escrever, portanto, não havia

necessidade de cartas), o governo queria fechá-lo. Para evitar que isso acontecesse e, por

conseguinte, que perdesse o emprego, Biá resolveu que escreveria cartas endereçadas aos seus

conhecidos das mais diversas cidades. Para atiçar a curiosidade de seus leitores, ele inventou

histórias maledicentes sobre os moradores de Javé. “Tudo feito com muita graça, sapiência do

ofício”. Ele conseguiu salvar seu emprego! Todavia, como disse Zaqueu, “história dos outros

em boca de gente corre mais rápido que o vento”. O povo de Javé descobriu. E não houve

perdão. Os habitantes, ofendidos, expulsaram o escritor.

Entretanto, sem Biá não poderia haver nenhum documento que registrasse a

importância daquele povoado de forma a impedir a sua inundação. Ele escrevera mentiras,

mas sabia escrever bem. Somente ele poderia salvar Javé das águas. Então, membros da

comunidade decidem ir atrás de Biá para convencê-lo a escrever sobre a cidade. Depois de

relutar um pouco e de duvidar das “coisas importantes que aconteceram no Vale de Javé”, ele

aceita o cargo oferecido e passa a visitar cada morador, “ouvindo e escrevendo, ouvindo e

escrevendo”, para transcrever as histórias que permaneciam em suas memórias.

E Biá sai pelas ruas de Javé em busca de pessoas que se disponham a narrar os

primórdios daquele lugar. Ele é bem humorado, faz piada com tudo e com todos, embora

ofenda alguns. As expressões que usa são deveras divertidas para o espectador, mas deixam

os alcunhados, no filme, bastante bravos, principalmente porque a maioria do povo não confia

em Biá.

SO39 então eu vou chegar aqui também... e vou dizer daqui da beira do rio até o armazém do Zé... dali da ponte até a antena parabólica é tudo meu... Souza... ((risos)) EU TÔ RICO MÃE ((risos)) ZA48 ( ) não... cada um só cantava a porção que conseguia cultivar.

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O primeiro entrevistado por Biá é seu Vicentino (VI79), pai da mulher que Biá diz que

ama. Seu Vicentino mostra-se bastante desconfiado, como ressalta a própria câmera ao

focalizar o seu olhar, porque Biá começa a apontar um lápis antes de dar início ao registro. O

escritor explica que não gosta de escrever à caneta, porque, segundo ele, se erramos e

tentamos consertar, fica aquela “disenteria de tinta”.

Foto 6: Antônio Biá explica porque prefere usar lápis.

Neste momento, seu Vicentino (VI79) começa sua narrativa dizendo que o fundador

de Javé havia sido o senhor Indalécio, um líder vindo de Portugal, ganancioso, que queria

conquistar a maior quantidade de terras possível. Durante todas as narrativas sobre Javé

produzidas por seus moradores, incluindo essa primeira, há alternância entre o que se narra e

o que é mostrado por meio de imagens fílmicas, que complementam a narrativa verbal.

Exemplo 3 VI79 foi ele quem guiou os nossos antepassados... um punhado de gente valente que era sobra de uma guerra perdida tinham sido expulsos de sua terra de origem pelo rei de Portugal que queria tomar o ouro que era deles pois Indalécio mesmo ferido foi trazendo o seu povo pra longe em busca de um lugar seguro mas Indalécio não atinava com um lugar certo ele queria ir mais longe distante de braço de governo e de rei... andaram dias meses trazendo nas costas o sino que era a coisa mais sagrada que possuíam... Indalécio mergulhou naquele mar de bois, escolheu o boi mais bonito e mais gordo... matou... e levou pra matar a fome de nossa gente... não disse uma palavra e... EI por que que você não tá escrevendo? AB54 porque meu Deus eu tô escrevendo VI79 e eu sô cego? eu num to vendo que você não tá mexendo essa mão em cima desse papel

À medida que seu Vicentino avança na narrativa, Biá apenas ouve, não escreve. Seu

Vicentino observa que ele não o faz, “que não tá mexendo a mão em cima daquele papel”. Biá

não gosta da observação e diz que “não dá pra escrever tudo”, porque o jeito que ele está

contanto não está muito adequado, deveria “florear um bocadinho”. Sendo assim, Biá começa

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a narrar a mesma história de seu Vicentino, mas um tanto quanto diferente. Biá deixa de ouvir

seu Vicentino e se concentra em sua própria narrativa, tentando convencer seu interlocutor

que sua versão era melhor. É claro que seu Vicentino não gosta e pede que Biá escreva tal

qual ele lhe contou. Biá afirma que: “uma coisa é o fato acontecido outra coisa é o fato

escrito... o acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor para que o povo

creia no acontecido”.

Exemplo 4 AB54 não inventar não é florear um bocadinho... vamo vê? deixa eu vê... “os dias pareciam não ter fim e aquela gente guerreira de tanta fome quase não () aí passa por eles aquela boiada imensa gorda um dilúvio bovino ê boi ê boi aquele mundo aquele mar aquele mar de boi capaz de fazer verter lágrima só de ver aquelas coxas... as costela... as alcatras chiando na brasa tu tu tu tu tu pingando gordura no fogo... mas tinha muita gente armada aguardando aquele bovil... bovil é um canil de boi... então Indalécio pensou numa outra estratégia de guerra... ele raciocinou-se todo e esperou ( ) e quando os bois tavam mais quietos mais calmos e os vaqueiros mais espreguiçados aí no meio daquele breu ele chamou dois homens do seu bando os mais valentes mas ele não chamou pelo nome ele usou onomatropias a língua dos bicho ((AB54 imita bichos)) um se chamava Rolinha e outro era Zé da Onça e mandou os dois homens rastejarem assim lagarteando pra dentro daquele boiaréu e... e... e... VI79 e o quê: AB54 calma calma e... e... e... aí eles arrancaram as alpercatas dos pés e calçaram nas quatro patas do boi mais gordo e foram trazendo o bicho calçado bem devagarinho sem fazer barulho nenhum sem dar um tiro... mas com tamanha bravura e esperteza VI79 o senhor me faça um favor o senhor volte atrás... e escreve exatamente como eu lhe ditei AB54 mas não fica melhor assim homem de Deus... eles pegam o boi é na unha mesmo seu Vicentino VI79 e alguém vai acreditar em botar sapato em boi pra não fazer barulho seu Biá

O espectador começa a perceber a forma como Biá pensa e como lida com aquela

situação. Na verdade, é possível que ele não queira desempenhar a função para qual fora

chamado, a de escriba dos moradores, mas sim ele mesmo reconstruir a história do Vale do

Javé.

Os moradores, embora desconfiados, veem em Biá a única esperança de salvar o Vale

do Javé. Cada morador tenta fazer com que ele o escute oferecendo-lhe, para isso, favores;

por exemplo, o barbeiro, que oferece seus serviços gratuitamente caso Biá insira sua história

no livro.

A segunda entrevistada é Deodora (DE41), que ainda está cheia de raiva de Biá e do

que ele havia feito no passado e o xinga quando ele bate à sua porta na tentativa de entrevistá-

la. Por fim, ele consegue convencê-la. O interessante é que a história que Deodora conta sobre

a fundação do Vale do Javé é diferente daquela inicial, contada por seu Vicentino.

Exemplo 5: DE41: caminhavam há dias... o de comer era pouco... e muitos ficavam mortos pelo caminho... Indalécio mesmo ferido guiava o bando... mas nenhum lugar parecia presta pra assentá(r) sua gente... ((música começa a tocar

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mais alta)) Maria Dina desapareceu por um dia e uma noite... mas no dia seguinte Maria Dina voltou para levá(r) a sua gente ao lugar que os pássaros da noite haviam lhe mostrado... e ali no grande vale ela cantou as divisas de Javé...

A partir daí o espectador começa a observar o problema crucial das metodologias da

história oral. Cada um narra oralmente a história de alguém ou de algum lugar a partir de sua

própria perspectiva. Logo no começo de narrativa de Deodora, ela, em meio a muitas pessoas,

todas reunidas na sala de sua casa, inicia a descrição de algum detalhe e algum presente

imediatamente a corrige. No exemplo a seguir, podemos observar a intervenção das

personagens Vado (VA56) e Firmino (FI29):

Exemplo 6: AB54 pronto Diodora... abra o seu coração... quero emoções DE41 hum... eu sei qual é as emoções... começa a escrever seu Biá... você sabe... como todo mundo... que Javé surgiu foi de uma cidade que saiu fugida de guerra... eu só não lembro que guerra era essa FI29 era guerra contra a coroa ô coroa... o rei queria as terra(s) porque tinha ouro DE41 pois bem... era guerra contra a coroa... mas o fato é que a nossa gente saiu foi fugida sem ter pra onde ir VA56 [Fugida não senhora... eles saíram em retirada DE41 ô mas não é a mesma coisa homê? VA56 não é não não é não... fugida é quando os home dão as costa pro inimigo e sai correndo acovardado... retirada é diferente... aí os home vão saindo de marcha ré devarinho mas com a cara voltada de frente pro inimigo FI29 e se o inimigo não tive nem na frente nem atrás? VA56 ô seu Firmino FI29 [[Uai pode ser que esteja de lado seu Vado é uma questão geográfica necessariamente o inimigo tem que tá na frente DE41 [[Ô Firmino fica calado Firmino que coisa fica atrapalhando a conversa ((confusão de vozes)) AB54 pera aê pera aê péra aê se ( ) falasse cada um de uma vez não precisava de tanta gritaria vai começar essa esculhambação cedo assim?

Deodora conta que o fundador de Javé era, na verdade, uma fundadora: uma mulher

guerreira, sua antepassada, Maria Dina. Os presentes observam o parentesco. Novamente, à

medida que Deodora conta sua história, as imagens referentes são exibidas na tela. Biá dorme

durante a narrativa de Deodora e, portanto, não a escreve.

Firmino (FI29), na tentativa de desmascarar Deodora, inicia sua narrativa, também

diferente das duas outras que vieram antes. Nesta, é claro, também ele conta “puxando para o

seu lado”, colocando sua perspectiva nela, de modo a ter como personagem principal um

antepassado. Segundo Firmino, Maria Dina era, na verdade, uma mulher louca, como o

espectador pode observar na tela: seus gestos, sua voz, suas roupas e a posição em que se

encontra, deitada no chão de pedra, dentro de um triângulo desenhado com uma tinta

aparentemente vermelha.

Cria-se, então, um impasse: qual das duas histórias deveria ser registrada no livro?

Faz-se uma votação, cria-se um rebuliço e Biá (AB54) decide:

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Exemplo 7: AB54: assunto esse num carece mais de sê(r) discutido esse é um trabalho de ciência vocês num tão acostumado e eu até entendo... então mais tarde eu volto pra ver mais detalhes marcas e provas... porque assim procede a ciência porque desse jeito não dá né?... é o carrapatão e o carrapatinho... a Deodora mostra a verruga mas não mostra a emoção que eu quero a senhora nem se fala né a senhora é uma tamburé de forró uma piaba de silicone fala que ( ) é o cão chupando manga então... isso aqui isso aqui... isso aqui tá parecendo sabe o quê? um reveillon de muriçoca

No dia seguinte, as pessoas vão buscar Biá em sua casa a fim de que ele volte ao seu

ofício. É interessante observar que, na porta de sua casa há uma placa na qual se lê “Proibida

a entrada de analfabetos”. Esse detalhe revela o fato de que Biá se põe em uma posição

privilegiada em relação aos outros habitantes do Vale de Javé devido ao fato de ter o

conhecimento da leitura e da escrita. Não é à toa que o convidaram para ser o escriba.

Entretanto, a personagem é construída de forma a deixar transparecer de que ele vai,

novamente, tentar enganar o povo, pois, até o presente momento no filme, não começou a

escrever uma linha sequer.

Biá (AB54) segue em sua empreitada com a visita aos dois irmãos: o Gêmeo (GE88) e

o Outro (OU87). Novamente, há várias pessoas reunidas na sala da casa deles, ouvindo

atentamente ao que os homens tentam contar. Todavia, ao invés de narrarem a história do

Vale do Javé, eles introduzem sua narrativa a partir de um assunto doméstico, isto é, do

porquê de serem conhecidos pelas alcunhas de Gêmeo e de Outro.

Exemplo 8: OU87 HUM... Cosme e Damião eram irmão gêmeos mas muito unidos... mas foi Cosme que conseguiu juntá(r) muitas terras GE88 então... Cosme conseguiu juntar muitas terras... Damião não teve a mesma sorte... um dia conheceram Margarida a minha mãe OU87 minha também GE88 sim... apaixoram-se ( ) os dois irmãos pela mesma mulher... mas Margarida escolheu Cosme e casaram OU87 casaram o Cosme e a Margarida GE88 aqui o convite ó... o convite... e a certidão... OU87 óia a data do casamento aqui ó... ó... ó os noivo(s)... tá tudo aí ó ((imagens)) GE88 e foi assim... todo mundo bebeu fora da conta... e nenhum dos gêmeos se lembrava de nada... mas Margarida tinha certeza que no escuro tinha sido mulher de um deles não sabia de qual... aí Cosme expulsou Damião que desapareceu no mundo... e renegou esse aí ó... o filho da dúvida OU87 um ano depois nasci eu... filho legítimo e provado de Cosme AB54 e então? GE88 e então... o senhor me diga... se eu posso dividir metade da herança com um sujeito que tanto pode ser meu irmão... filho de meu pai e da minha mãe... ou meio irmão... filho só da minha mãe... ou meu primo... por ser filho do meu tio Damião então não tá certo o outro herdá(r) as terras que meu pai deixou OU87 nosso pai GE88 cadê seu registro? DE41 peraí gente peraí isso não é história pra entrá(r) no livro OU87 compare seu Biá se eu não tenho a mesma cara que o meu pai Cosme... a boca o nariz o olho GE88 mas compará(r) o quê? se os dois eram gêmeos iguaizinhos OU87 mas você não vê a diferença então é você que não é o filho dele

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AB54 pois muito bem muito bem quem é filho de pai tio ou vizinho vocês decidem... pra mim vocês podem ser até clonado de miolo de pão que pra mim tá bom né... agora de científico só mostraram esse forte apache e eu fico aqui com a cara pra cima que nem jumento sem mãe... que que eu tô fazendo aqui? GE88 o senhor não é o escrivão das histórias? justamente... então bote aí no livro que... nas terras de Armando Beneré que sou eu conhecido como Gêmeo... filho único e herdeiro legítimo de Cosme Beneré... quero que isso bote em letras grandes... é onde está enterrada a ossada de Indalécio o fundador.... e resto das armas que ele escondeu

Mostra-se, neste momento, que o motivo inicial que gerou o trabalho de Biá começa a

se perder, tanto porque ele não registra, através da escrita, aquilo que ouve; quanto porque os

próprios habitantes deixam de lado a verdade – que, de fato, não existe – em prol das

perspectivas particulares.

Biá começa a se sentir perseguido e cobrado demais pelos habitantes. Em certo

momento, quando estão seguindo-o por toda parte, logo depois de deixar a residência do

Gêmeo e do Outro, ele diz:

Exemplo 9: AB54: óia vocês pode ficar aqui mesmo tá ouvindo... porque que eu tô ficando doido de morde mastigá(r) e engoli... eu não sou o divino... eu sou o divino espírito santo também? eu sou pokémon de Jesus? então pronto... ôh... manicure de lacraia

Em vários trechos até o presente momento, é notória a maneira cômica que a

personagem Antônio Biá se refere a pessoas e a situações. O riso gerado no espectador é

justificado pelo uso linguístico e que cujo humor reside na construção de expressões

inusitadas, as quais analisaremos adiante.

O escriba segue então atrás de Daniel (DA25), em quem ele acredita que encontrará a

verdade. Mais uma vez, outra pessoa conta algo que não diz respeito à fundação de Javé, e

sim um assunto privado.

Exemplo 10: AB54 tô fugindo de que sabugo liso? só se for da tua inteligência patagônica... eu vim aqui... porque eu quero falar com Daniel... e é sobre livro Daniel DA25 o livro sobre a história do Vale seu Biá? AB54 é isso memo... é um assunto do interesse de todos... se você tivé(r) tempo eu quero lhe dá(r) umas palavrinhas DA25 olha seu Biá eu memo não tenho muito o que contá(r) não... mas se o senhor quiser botar aí umas palavrinhas a respeito do meu falecido pai Isaías eu muito lhe agradeço DA25 aqui seu Biá... essa era a cama que ele dormia seu Biá... morreu aqui também... quando eu era criança Biá eu ficava ( ) eu via ele deitado aqui nessa cama com os pés ( ) às vezes ficava muito tempo nessa janela olhando tudo... tá lá a cadeira dele... todas as coisinhas dele... foto três meses antes dele morrê(r)

No caso de Daniel, ele conta sobre a morte de seu pai, Isaías. Nas palavras de Zaqueu:

“Quando a gente mais precisa do tempo ele voa. Antônio Biá já nem era mais dono de si, dia e

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noite vinha gente de todo o canto oferecendo as história” (sic). Mais uma história inutilizada

para compor a grande história da fundação do Vale do Javé.

O próximo narrador é um homem de meia idade (PC70), cujo nome não é revelado,

falante da língua africana Iorubá, e que, portanto, necessita de um intérprete, Samuel (SA52) a

fim de poder ser compreendido por Biá.

Exemplo 11: SA52 ele tá dizendo que a nossa gente foi trazida há muito tempo pra cá pra essa parte da África AB54 essa parte da África? SA52 é uai... o Brasil... ele acha que o Brasil é uma parte da África... uma grande aldeia dentro da África AB54 dessas geografia a gente fala depois... eu quero saber se vocês faziam parte do povo que chegou aqui guiado por Indalécio... pergunta pra ele ((SA52 e PC70 conversam)) SA52 tá dizendo qui Indaleo era chefe de guerra e queria guiá(r) nossa gente pra nossa terra de volta de origem mas só que Indaleo o próprio Indaleo num sabia o caminho de volta AB54 Indaleo? era o memo que Indalécio? deixa pra lá se num é parece que é tem tudo pra cê perguntá(r) uma outra coisa da narrativa assim... ((PC70 fala e imagens surgem)) AB54 Samuel... com jeitinho não dá pra pedir pro pai cariá... purá dessa cantoria vudu assim e ir direto pros fatos? ( ) SA52 não... ele tá contando do jeito dele... ele conta desse jeito uai AB54 então você tá traduzindo mal pra mim... apruveita... apruveita a pausa aí... pergunta pra ele se nessa história não tinha memo assim nenhuma mulheé assim parecida com Mariadina Mariabel Mariaguma Marixum pergunta ao pai ( ) pergunta ((SA52 conversa com PC70)) SA52 ele disse que tem O-xum AB54 oxum? era mulhé(r)? SA52 era mulhé(r) e linda... mas ó era orixá das águas... dos rios... dos córrego(s)... AB54 aí fica meio complicado né mas depois eu dou um jeito... até aqui a história vai batendo mais ou menos... mas pergunta pro pai ( ) se tem um jeito ((PC70 começa a falar)) SA52 durante muito tempo nossa gente andou guiada por Indaleo e pelos olhos de ( ) que já enxergavam os caminhos ((PC70 fala e SA52 traduz)) até que um dia encontraram o lugar onde morava Oxum

A narrativa consiste na descrição do povo de Javé como vindo da África; Indaleo (não

mais Indalécio, como seu Vicentino, o primeiro entrevistado, havia dito) era chefe de guerra e

tinha como objetivo guiar seus seguidores para sua terra de origem. Biá acha a narração

inusitada, mas não se importa: “Deixa pra lá se num é parece que é tem tudo pra sê(r)”.

Entretanto, depois que o homem (PC70) conta sua história, Biá começa a perceber que não há

pontos coincidentes com as narrativas contadas à priori. Mas sua preocupação é passageira. O

importante é registrar o “nome sobrenome e pronome” daqueles que se dispuseram a

contribuir com a escritura do livro sobre Javé.

À medida que o tempo passa, a pressão sobre Biá aumenta, posto que se aproxima o

dia em que eles deverão entregar o documento em que comprove o patrimônio existente no

lugar. Em uma manhã, os moradores do Vale se deparam com uma placa em que se lê os

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seguintes dizeres: “Programa de Geração de Energia do Estado da Bahia: CONSTRUÇÃO

DA BARRAGEM DO VALE DO JAVÉ.” Os que ali se encontram entram em desespero.

Firmino (FI29) anuncia a Biá (AB54):

Exemplo 12: FI29 ô Biá... olha isso home... vê se é possível... os engenheiro já tomaram conta foi de tudo tão... tão dono da praça já

Os moradores ficam desesperados, porque, se de fato a barragem for construída,

perderão suas casas, suas raízes, suas histórias.

Há moradores, entretanto, que apóiam a empreitada dos engenheiros de construir a

barragem. É o exemplo de Gaudério (GA66), que foi o responsável por levar os engenheiros

até o Vale do Javé. Quando encontra Antônio Biá, há a seguinte conversa.

Exemplo 13: GA66: e quem é que é... o tar de Biá que esse povo tanto fala? AB54: sô eu mesmo com carne e osso GA66: sei... e o cê é o quê faz o quê? AB54: eu sou escrivão de prosa seu Gaudério e tô na labuta de escrevê(r) os nobres e grandes feitos do Vale do Javé... história como bem sabe o senhor muito contada e ouvida mas até hoje nunca escrita e lida GA66: prezo essa labuta... respeito... (a)inda mais se é pra contar a história de um lugar que não vai existir mais

A situação está a cada diz mais insustentável. Os engenheiros responsáveis pelas obras

já se encontram no local em missão de reconhecimento. Os habitantes do povoado dão início

a procissões, rezas e vigílias, mobilizando forças a fim de que consigam, de alguma maneira,

impedir a construção da barragem. Um dos engenheiros (EF30) registra com uma pequena

câmera de vídeo as palavras dos moradores (Deodora, DE41; SC90; SG77; SE50; Firmino,

FI29) protestando, contando suas histórias a fim de sensibilizá-los a deixarem seus planos

para trás.

Exemplo 14: EF30 oi posso gravar vocês um pouquinho? ME13 xô vê(r)? EF30 não não faz o seguinte... fica ali que eu vou te gravar um pouco... pode ficar mocinhas... fica DE41 eu posso falá(r) um poquitinho? eu queria dizê(r) a vocês e o chefe de vocês que minha casa não tá a venda... tá gravando moço? eu já disse o que eu tinha pra dizê(r) e vão s’imbora sai daqui SC90 eu tenho meus pais meu... meu marido tudo enterrado ali naquele... ( ) ali... eu... tenho uma fia... então eu... queremos ficar aqui pra sempre lá colocá(r) a vela na sepultura deles... nóis não qué(r)... num qué(r)... os engenheiro(s) não tem que tirá(s) nóis daqui não... eles num vai tira nóis daqui não... de jeito nenhum SG77 cheguei aqui só... eu e a minha mãe... teve meus filho tudo aqui... então... eu me sinto muito bem aqui em Javé mais eu agora tem meus filho(s) a minha mãe... já perdi meu filho... já perdi não posso sair daqui desse lugar 12 SE50 e eu também quero dizê(r) aos engenheiro(s) que nóis tamo preparando... um dossiê científico que é pra gente defendê(r) o que é nosso

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SC90 num dá... num dá pra gente viver debaixo d’água... cê acha que vamo(s) viver debaixo d’água? nossos mortos vai viver debaixo d’água? não pode... não FI29 nóis tamo(s) aqui há muito tempo onde já se viu? SG77 e não vou sair daqui pra morá(r) aonde? rá ir fazê casa aonde?

No dia seguinte, um homem considerado louco, Cirilo (CI55), começa a tocar o sino

da Igreja repentinamente, a fim de convocar o povo de Javé a ouvir o que ele tinha para dizer.

Biá intervém e diz que o que o homem tem a falar é importante:

Exemplo 15: AB54 peraí Vado não atropela que ele vem vindo... fala solte o verbo CI55 a sua vaca... a sua vaca vai se afogá(r) vai enxarcá(r) os chifre(s) até o coro dela estorá(r) ( ) a sua casa vai enchê(r) de água até o topo

Logo após o pronunciamento de Cirilo, Zaqueu (ZA48) – que havia ido à capital

resolver os problemas condizentes ao alagamento de Javé – chega à Igreja e marca um

encontro no qual todos ouvirão o que Biá escreveu no livro. Deodora (DE41) e Firmino

(FI29) também participam da conversa:

Exemplo 16: ZA48 que babilônia é essa aqui Biá... explica home... que que tá havendo DE41 mas eles já estão aqui Zaqueu eles já botaram o pé no povoado FI29 pra eles as rua é deles as casas é deles a cidade é deles ((Confusão de vozes)) ZA48 calma... calma que o tempo é pouco mais é tempo... calma... então... cadê o livro? AB54 tá aqui ZA48 me dê AB54 não... ainda não Zaqueu... olha só falta acertar umas duas ou três não mais do que quatro cinco páginas ZA48 então vamo vê até onde você escrivinhô AB54 como quisé... então... você descansa suas tralhas e logo mais me espera me espera no armazém que eu lhe entrega tudo que eu tenho feito... e olha gente... se for da vontade de todos vamos começar a leitura do livro para que a maioria seja conforme e satisfeita 29 ZA48 a noite lhe esperamos no armazém AB54 perfeito

À noite, conforme o combinado, todos estão no armazém à espera de Antônio Biá.

Entretanto, ele envia um menino (MA15) portando uma carta na qual se lê:

Exemplo 17: MA15 “Tenho a declarar que eu Antônio Biá sou ( ) de cara dente e nariz pra frente e mais bunda cacunda e

calcanhá(r) pra trás me exonero como escrivão estou ausente para manter a mente e o corpo são quanto às

histórias acho melhor ficar na boca do povo porque no papel não há mão que lhe dê razão”

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Zaqueu está extremamente nervoso, ele folheia as páginas do livro e todas estão em

branco. As pessoas ao redor ficam espantadas e sem esperança de salvação. Para se vingarem,

embora fadigados e já desacreditados, vão à procura de Biá. Quando o encontram, ele é

questionado do porquê de não ter registrado as narrativas orais sobre a fundação do Vale do

Javé. Ele explica:

Exemplo 18: AB54: vocês acham que escrever essas histórias vai parar a represa? num vai não... e sabe por quê? porque Javé é só buraco perdido no oco do mundo ... e daí? e daí que Javé nasceu de uma gente guerreira ( ) se hoje isso aqui não vale um miserável... de rua de terra ó... de gente apocada e ignorante como eu como vocês tudinho... o que nós somos é só um povinho ignorante que quase não escreve o próprio nome mas inventa histórias de grandeza pra esquecer a vidinha rala sem futuro nenhum... e vocês acham... acham mesmo que os homi vão parar a represa e o progresso por um bando de semi-analfabeto? num vão não! isso é fato... é científico

Javé é alagada. Biá chora. Zaqueu chora. Aqueles que contaram as histórias sobre a

fundação de Javé choram. Eles tinham que partir, não havia mais nada para fazer em Javé, já

tomada pelas águas da represa.

Foto 7: Os moradores veem Javé ser alagada.

Ao final do filme, Biá resolve reutilizar o livro para dar início à escritura da nova

história de Javé, a história da reconstrução do lugar. Mais uma vez, todos querem participar,

contar a sua própria versão de uma verdade perdida.

1.4. Sobre a escolha do sistema de transcrição de dados Para o desenvolvimento das análises sobre os processos de estilização operados pelos

atores para a construção das suas personagens, tivemos a necessidade de fazer a transcrição5

dos dois filmes, “O Invasor” e “Narradores de Javé”, que compõe o corpus deste trabalho.

5 Em anexo.

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A fim de que houvesse uma padronização dos dados transcritos, buscou-se um método

de transcrição que pudesse representar bem as principais características da fala dessas

personagens. Assim, optamos, em um primeiro momento, pela transcrição com base no

trabalho desenvolvido pelo Projeto NURC (Projeto Norma Urbana Oral Culta), cuja tabela

reproduzida a seguir, encontra-se disponível no capítulo sobre Análise da Conversação, de

Dionísio (2001: 76)

Tabela 1

Ocorrências Sinais Exemplificação 1. Indicação dos falantes os falantes devem ser indicados em

linha, com letras ou alguma sigla convencional

H28 M33 Doc. Inf.

2. Pausas ... não... isso é besteira 3. Ênfase MAIÚSCULAS ela comprou um OSSO 4. Alongamento de vogal : (pequeno)

:: (médio) ::: (grande)

eu não to querendo é dizer que... é: o eu fico até:: o: tempo todo

5. Silabação - do-minadora 6. Interrogação ? ela é contra a mulher machista...

sabia? 7. Segmentos incompreensíveis ou ininteligíveis

( ) (ininteligível)

bora gente... tenho aula... ( ) daqui

8. Truncamento de palavras ou desvio sintático

/ eu... pre/ pretendo comprar

9. Comentário do transcritor (( )) M.H.... é ((rindo)) 10. Citações “ ” “mai Jandira eu vô dizê a Anja

agora que ela vai apanhá a profissão de madrinha agora mermo”

11. Superposição de vozes [ H28. é... existe.... [você ( ) do homem... M33. [pera aí... você acha... pera aí... pera aí

12. Simultaneidade de vozes [[ M33. [[mas eu garanto que muita coisa H28. [[eu acho eu acho é a autoridade

13. Ortografia tô, tá, vô, ahã, mhm

Foi de essencial importância identificar as personagens dos filmes, principalmente

por serem muitas e porque aparecem em diversas circunstâncias. Para tanto, elaboramos as

siglas presentes nas tabelas abaixo que seguem os seguintes critérios: as letras sinalizam os

nomes das personagens e, quando não há a explicitação do nome, sinalizam a função exercida

pela personagem; o número depois das letras corresponde à idade calculada pela pesquisadora

para as personagens dos filmes.

No filme “O Invasor”, temos, por ordem de aparição:

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Tabela 2

Sigla Personagem GI40 Gilberto AN38 Anísio IV42 Ivan AL19 Alessandra ES45 Estevão RA50 Rangel FG04 Filha de Gilberto LU27 Lúcia DA75 Doutor Araújo DE32 Delegado procurar MA18 Marina CE39 Cecília EG20 Esposa de Gilberto SB31 Segurança do boate NO53 Norberto PR23 Prostituta 1 CL33 Cláudia JO22 João PE34 Pessoa do escritório AD77 Advogado PA89 Participante da reunião AM28 Atendente do motel EM55 Empregada de M18 RO17 Rogério PB20 Pessoa do bar 1 PB23 Pessoa do bar 2 SA35 Sabotage BA26 Balconista da academia LE44 Léo PO65 Peão de obras AL26 Alê MI43 Mulher do interfone PI21 Pietro PO10 Porteiro HB30 Homem da boate HC20 Homem do carro batido 1 HC21 Homem do carro batido 2

No filme “Narradores de Javé”, temos, por ordem de aparição:

Tabela 3

Sigla Personagem JF22 Jovem forasteiro

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SO39 Souza ZA48 Zaqueu SF50 Senhor frequentador do bar DE41 Deodora VA56 Vado FI29 Firmino VD01 Voz desconhecida 01 SI66 Senhor dentro da Igreja SG77 Senhora grisalha HL45 Homem leitor VD02 Voz desconhecida 02 AB54 Antônio Biá SD80 Senhor da dentadura TE33 Tereza VI79 Vicentino IN66 Indalécio BA27 Barbeiro AD43 Amiga de Deodora MD30 Maria Dina FM29 Firmino da história de FI29 ML55 Maria Dina louca da história de F29 BL47 Balconista do bar GE88 Gêmeo OU87 Outro HB40 Homem que conversa com Biá DA25 Daniel SA52 Samuel LU44 Luzia PC70 Pai Cariá GA66 Gaudério EF30 Engenheiro com filmadora ME13 Menina SC90 Senhora diante da câmera SE50 Senhor diante da câmera CI55 Cirilo ME12 Menino entregador MA15 Marquinho

Em um segundo momento, após a vigência da bolsa de iniciação científica (01 de

Agosto de 2008 a 31 de Julho de 2009), houve a oportunidade de conhecer e trabalhar com o

sistema de transcrição de dados criado pelo Projeto ALIP (Amostra Linguística do Interior

Paulista).6

6 Disponível em: http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/interna.php?Link=corpo.php&corpo=25 (Acesso em 03 de Dezembro de 2011)

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É de fundamental importância ressaltar que os trechos presentes neste trabalho

(excluído o anexo) encontram-se de acordo com as normas do Projeto ALIP. À posteriori,

pretende-se adequar as transcrições dos filmes “Narradores de Javé” e “O Invasor” a essas

normas, a fim de comporem o corpus do grupo de pesquisa “É nóis na fita: a formação de um

regi e a elaboração de estilos no campo da cultura popular urbana paulista” (2009),

desenvolvido pela pesquisadora Professora Doutora Anna Christina Bentes financiado pela

FAPESP e relacionado à obtenção, descrição e análise de dados de linguagem dentro do

movimento hip hop, com o modelo desenvolvido pelo grupo ALIP.

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Capítulo 2: Alguns estudos sobre estilo e estilização

A fim de que se possa analisar os dados do corpus com mais clareza, faz-se necessário

apresentar, mesmo que brevemente, as teorias sobre estilo e estilização.

De uma maneira genérica, pode-se definir estilo como as diversas maneiras de falar e

de escrever. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:

Rubrica: sociolinguística. cada um dos graus de formalidade de um discurso escrito ou falado; registro conjunto de tendências, gostos, modos de comportamento característicos de um indivíduo ou grupo.

O pensamento de senso comum infere que o estilo é o método através do qual os

indivíduos se diferenciam uns dos outros dentro de seus universos sociais por meio de

diversas maneiras: roupas, acessórios, sapatos, cortes de cabelo, jeitos de falar e de escrever.

De modo geral, na linguagem do cotidiano, fica claro quando algum falante se utiliza

de uma gíria específica, referente a um grupo social ao qual deseja pertencer. Geralmente são

os adolescentes que lançam mão deste recurso, posto que estão em uma fase em que precisam

construir suas identidades e, em alguns casos, eles buscam em grupos sociais aos quais não

pertencem as marcas identitárias de que precisam. Um exemplo são jovens de 10 a 14 anos

que utilizam gírias dos chamados “manos”. Dentro da sala de aula é possível notar que os

alunos (especialmente os meninos) dessa faixa etária e pertencentes à classe média usando

gírias tais quais “tá ligado”, “jão”, “manja”, “bagulho” e o próprio vocativo “mano”.7

Entre o universo diário e o cinema, há uma tênue divisão no que diz respeito aos usos

da linguagem e aos processos de estilização. Na tela, os atores necessitam representar. Tal

significante assume dois significados:

a) sinônimo de atuar.

b) literalmente, como uma forma de ser uma parte de um todo, uma representação de

um grupo maior.

Para que o ator represente de acordo com a definição “b”, é fundamental que ele tenha

consciência de que universo social sua personagem faz parte e que, portanto, ele terá que

representar. Para tanto, há os chamados “laboratórios”, nos quais os atores imergem no

contexto que representarão à posteriori. Por exemplo: se por ventura um ator fará o papel de

um presidiário, ele terá que ir a um presídio conhecer a realidade de perto, aprender os

7 Observação feita a partir das aulas ministradas por mim na rede particular de ensino para alunos de 6º a 9º ano do Ensino Fundamental II.

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trejeitos e a linguagem lá utilizada, a fim de que, na tela, sua atuação mostre-se verossímil, ou

seja, semelhança entre a arte e a vida real.

Considera-se um bom ator aquele que consegue representar de maneira consistente e

verossímil determinada identidade social. Aliás, para que se dê a representação de

determinadas identidades sociais, é imprescindível a verossimilhança no que diz respeito à

elaboração dos traços linguísticos (fonético-fonológicos, prosódicos, morfossintáticos e

lexicais) caracterizadores das personas que irá representar.

Eis que surge uma pergunta: como o ator faz isso? Em que ele se baseia para adquirir

os traços linguísticos que precisam para que represente com verossimilhança determinada

persona? Como se dá sua performance?

São os conceitos derivados dos estudos de estilo – presentes na agenda da

Sociolinguística – são de fundamentais para que se compreenda o processo de estilização da

linguagem por parte de atores em contextos cinematográficos.

Há vários pensadores que descreveram o que, para eles, o conceito de estilo significa

aplicado aos seus objetos de estudo. Bakhtin, por exemplo, estudou o estilo nos romances e

nas novelas, a fim de complementar o que havia sido dito até então sobre o assunto. Todavia,

Coupland e Irvine, analisaram o estilo nas interações orais.

Os estudos de Nogueira (2010) acerca da manipulação de estilo são deveras

pertinentes para a presente monografia principalmente porque ela apresenta os pressupostos

teóricos também aqui utilizados. Em sua dissertação de mestrado, Nogueira analisa as

esquetes do programa de rádio “Os manos” produzidas pelo grupo de humor “Os Dedés”.

Seus estudos partem da definição de estilização paródica defendida por Mikhail Bakhtin.

O que diferencia os estudos de Nogueira (2010) dos apresentados na presente

monografia é o fenômeno em si: a autora estuda a estilização paródica presente nos esquetes

de rádio que funciona como um modo de ridicularizar o mano, seu universo e suas práticas; o

presente estudo enfoca a estilização, ou seja, o modo como os atores tentam “encarnar” ao

máximo do universo, da linguagem e das práticas de suas personagens a fim de tornar a

narrativa verossímil.

Todavia, o que une o estudo de Nogueira e o presente, para além do interesse comum

na investigação sobre a construção do estilo, é o fato de que a língua, em todos os casos, é

pensada como prática social. A autora, citando Hanks (2008), afirma que “os usos que os

falantes fazem da linguagem não são explicados por regras, códigos ou apenas seguidos ou

obedecidos, mas atualizados no discurso.” (Nogueira, 2010, p. 3). Desta maneira, “as

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atividades de fala e discurso (e por conseguinte o trabalho de construção do estilo de fala se

constituem por meio de um conjunto de possibilidades estratégicas que permitem aos sujeitos

relacionarem-se nos vários campos sociais.” (Nogueira, 2010, p. 3).

2.1. O estilo sob a ótica de Mikhail Bakhtin Embora os estudos de Mikhail Bakhtin sejam aplicados ao romance, é recorrente, na

Sociolinguística, acessar suas interpretações sobre o estilo em relação dos estudos das

interações na fala. Nogueira (2010) afirma que “muito do que se produz hoje sobre a noção do

estilo (ainda que o foco esteja em textos não literários ou em textos orais) está ancorado nos

pressupostos desses estudos.” (p. 30). Os estudos aos quais a pesquisadora se referem são

justamente os bakhtinianos.

Sobre estilização, o pensador russo sinaliza que

para representar adequadamente o mundo ideológico de outrem, é preciso descobrir as palavras desta personagem representada, é preciso compreender que só estas palavras podem se prestar à representação original do mundo dessa personagem, ainda que tais palavras apareçam confundidas às do autor (BAKHTIN, [1975] 1988 apud Nogueira, 2010 p. 31).

Em nossa pesquisa, aquele que “representa o mundo ideológico de outrem” é o ator: é

ele quem deverá mobilizar recursos para conferir verossimilhança à sua representação. Deste

modo, em termos de linguagem e partindo do pressuposto de Bakhtin, as palavras do ator

palavras deverão ser tão naturais como se fossem suas próprias.

É de fundamental importância salientar que, de acordo com Bakhtin, o conceito de

estilo diverge do de estilização, posto que a estilização “configura um fenômeno em que o

enunciado se constitui por meio da presença de uma única linguagem, ‘atualizada e

enunciada, mas apresentada à luz de outra, a qual permaneceria fora do enunciado e não se

atualizaria’” (BAKHTIN, [1975] 1988, p. 159 apud Nogueira, 2010 p. 33). Trata-se

justamente da ideia de processo e de “apropriação de outras vozes sociais” (Nogueira, 2010,

p. 31), ausente no conceito de estilo, porque a estilização apresenta “a consciência linguística

à luz da qual o estilo é recriado, adquirindo importância e significação novas”. (Nogueira,

2010 p. 33).

O ator, no papel de estilista, se refere, ao representar sua personagem, à linguagem de

outrem, ou seja, ao mundo ideológico determinado. Desta maneia, o que o ator cria é algo

novo, posto que apenas se baseia no outro, mas que é diferente, adquirindo significações e

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importâncias novas. O ator, neste sentido, recria a linguagem, sem, no entanto, deixar de

conferir verossimilhança ao que deve representar.

Sobre esse processo de recriação, Bakhtin afirma que:

esta mesma língua estilizada é mostrada à luz da consciência linguística contemporânea do estilista. A linguagem contemporânea dá um aclaramento especial da língua a ser estilizada: ela separa certos elementos, deixando outros na sombra, cria acentos particulares de seus momentos, como momentos da língua, cria ressonâncias especiais da linguagem a ser estilizada com uma consciência linguística contemporânea, em uma palavra, cria uma linguagem livre da linguagem do outro, que traduz não só a vontade do que é estilizado, mas também a vontade linguística e literária estilizante (BAKHTIN, [1975] 1988 apud Nogueira, 2010 p. 33)

Inserido na estilização, de acordo com Bakhtin, encontra-se o conceito de variação,

que seria uma “‘indisciplina proposital e organizada’ no interior do fenômeno da estilização”

(Nogueira, 2010, p. 34). Desta maneira, “na estilização o estilista trabalha exclusivamente

com o material da linguagem a ser estilizada, optando, às vezes por introduzir em seu trabalho

o seu próprio matéria linguístico, de modo a inserir seus interesses enquanto ‘língua de

outrem’” (BAKHTIN, [1975] 1988 apud Nogueira, 2010 p. 34). Assim, de acordo com o

pensador, “a variação é uma forma de se introduzir o material linguístico de outrem em temas

contemporâneos, colocando esse material à prova ao inseri-lo em situações novas e

impossíveis para ele” (BAKHTIN, [1975] 1988 apud Nogueira, 2010 p. 34).

Em relação a obras fílmicas, as “situações novas e impossíveis” são dadas de acordo

com o roteiro do filme, para o qual o ator deve adequar sua linguagem ao que o roteiro indica.

O ator se refere a um grupo quando estiliza sua linguagem, recriando-a e adequando-a ao que

é necessário.

Todavia, é imprescindível acrescentar que os estudos de Bakhtin acerca da estilização

utilizados por Nogueira (2010) se referem a um tipo especial: a estilização paródica8, mas que

ainda assim servem de arcabouço teórico plausível para esta pesquisa.

2.2. O estilo sob a ótica de sociolinguistas O linguista Nickolas Coupland apresenta os nortes para o problema do estilo, em uma

espécie de introdução à questão dentro da agenda da Sociolinguística. Sobre sua linha de

pesquisa, diz-se que ele “compreende que o estilo diz respeito às maneiras como os falantes

empregam os recursos de variação linguística para produzir significados nos encontros

8 Sobre a diferenciação entre estilização e estilização paródica, Nogueira (2010) nos diz que “na estilização paródica” haveria um uso não produtivo, mas destruidor, do discurso representado, o que configuraria uma forma de resistência do discurso estilizante ao discurso estilizado”.

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sociais. O linguista defende que essa forma de ver o estilo nos ajuda a compreender como os

falantes criam diferentes relações sociais por meio de suas escolhas estilísticas”.

É neste contexto que podemos afirmar que o trabalho do ator tem por objetivo usar a

linguagem como um dos principais recursos de construção da personagem, visando a

verossimilhança. Isto porque ele tem como pressuposto o seu conhecimento de senso comum

e o de seus possíveis espectadores sobre as diferentes variedades linguísticas.

Coupland, nas palavras de Nogueira, ainda reflete que “o estilo se refere à gama de

ações estratégicas e de performances nas quais os falantes se engajam para construir a si

mesmos e suas vidas sociais.” (Nogueira, 2010, p. 25)

O pensador norte-americano ainda analisou a relação entre a teoria de Bakhtin e a

interação real entre os falantes, ou seja, sobre estilos de fala quando no dialogismo. É

importante relacionar o que ele teoriza com os afirmações apresentadas neste estudo em

relação à performance do ator: “natureza criativa e performática da estilização” (Nogueira,

2010, p. 37). O conceito fundamental a ser discutido por esse pensador é o de performance.

Tal conceito implica na noção de contexto, mas que, no caso é indiferente para estes estudos,

posto que ele é dado por toda a situação do filme.

Bentes (2009a) anunciou os principais pressupostos de Coupland (2003, p. 426):

a) os pertencimentos dos sujeitos a “comunidades” são cada vez mais complexos, mais contextualizados, e menos previstos por fatores sócio-culturais; por exemplo, circunstâncias econômicas e ocupacionais não predizem de forma confiável as identidades sociais de classe;

b) o fato de as variáveis dialetais indiciarem sentido(s) social(is) significa que elas se constituem em apenas uma parte do conjunto de recursos semióticos disponíveis (como por exemplo o estilo retórico, a prosódia, os símbolos visuais etc.) também responsáveis pela construção dessas relações de indicialidade, o que significa que os sentidos sociais são multimodalmente construídos pelos sujeitos;

c) sentidos tradicionalmente associados às dimensões diatópicas da variação encontram-se mais ativos nas dimensões diastráticas: os estilos dialetais tendem a ser usados mais produtiva e criativamente e não apenas constituem-se em índices sociais a respeito de “quem somos nós”;;

d) a performance como um locus de construção da identidade e da comunidade tem sido subestimada: ela implica o controle e a mobilização de recursos comunicativos, mais do que um “comportamento” no contexto;;

e) as identidades pessoais e sociais devem ser vistas como projetos em articulação com opções de vida, mais do que determinados por demografias sociais: as identidades não são inteiramente dadas, completamente formadas ou alcançadas, mas desejadas, criticamente monitoradas e construídas nos termos de narrativas pessoais;

f) a intensa reflexividade associada aos arranjos sociais pós-modernos impedem um comportamento sociolingüístico “inocente”: em um mundo no qual somos bombardeados com opções e modelos identitários e com informação sobre suas conseqüências e implicações, as escolhas sociolingüísticas são necessariamente mais conscientes e estratégicas.

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Sobre o conceito de estilo de Coupland, Nogueira (2010, p. 25) afirma que o autor

“compreende que o estilo diz respeito às maneiras como os falantes empregam os recursos de

variação linguística para produzir significados nos encontros sociais”. A questão proposta por

Coupland à Sociolinguística é justamente “entender como a realidade social é discursiva e

criativamente estilizada”. Neste ponto, ele infere sobre os processos de estilização, ou seja,

quais recursos são mobilizados a fim de se estilizar determinada linguagem. Em relação ao

contexto em que há esse processo, “os falantes não responderiam simplesmente ao contexto

quando realizam suas escolhas estilísticas, mas sim criam o próprio contexto, definindo as

situações e relações sociais.” (Nogueira, 2010, p. 26)

Judith Irvine (2001), por sua vez, propõe que o estilo deve ser encarado enquanto

forma de diferenciação dos falantes. Nogueira (2010) nos elucida sobre a concepção de estilo

da linguista, dizendo que ela “compreende que os estilos ‘dizem respeito aos modos pelos

quais os falantes, como agentes no espaço social (e sociolinguístico), negociam suas posições

dentro de um sistema de distinções e possibilidades’” (IRVINE, 2001, p. 23-24 apud

Nogueira, 2010, p. 28).

A linguista ainda pontuou que:

(1) o fenômeno linguístico que constitui registros e estilos, como formas de diferenciação linguística, tem uma consistência que deriva, em certo grau, de ideologias locais de língua – princípios de diferenciação que ligam diferenças linguísticas a significados sociais. (2) Ideologias de diferenciação linguística interpretam o fenômeno sociolinguístico dentro de sua visão, por meio de três processos semióticos, a iconização, a recursividade e o apagamento. (IRVINE, 2001, p. 33 apud Nogueira, 2010, p. 29)

Para o presente trabalho, é imprescindível compreender o conceito de iconização

proposto por Irvine. Em linha gerais, iconizar seria marcar o que é chamado de “unidade

discreta” – ou seja, um fonema, um morfema, ou uma palavra – como representante do

universo social em questão. Assim, iconização seria “o processo semiótico que transforma a

relação de signo entre traços linguísticos e as imagens sociais às quais estão ligadas”.

(IRVINE, 2001, p. 33 apud Nogueira, 2010, p. 29).

O ator, por exemplo, iconiza quando toma um traço mínimo para se transformar em

algo máximo, que marca sua linguagem e a identidade que irá representar.

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Capítulo 3: As atividades de estilização da fala das personagens pesquisa

3. 1. Personagens do filme “O Invasor” As análises a seguir apresentadas têm foco no léxico das personagens,

fundamentalmente na personagem Anísio, em seu notório uso irrestrito de gírias; na

personagem Giba, o uso de palavrões.

3.1. 1. Giba O pensamento de senso comum pode nos levar a crer que um traço característico dos

falantes da variante de Anísio (um criminoso, morador de periferia com pouco/nenhum acesso

à escola) seria o uso mais frequente de palavrões, normalmente associado à falta de polidez

(no que diz respeito ao comportamento linguístico e social mais geral do indivíduo) e a pouca

ou nenhuma escolaridade dos sujeitos que os enunciam. No entanto, o uso de palavrões ocorre

justamente na fala da personagem Giba, sujeito representante da elite econômica paulistana e

que, por ser engenheiro, pressupõe-se que possua uma escolaridade alta. A nosso ver, o uso de

palavrões parece ser o traço estilístico mais marcante na produção de fala dessa personagem.

Para ilustrar este fato, fizemos um levantamento dos palavrões utilizados por Giba,

acompanhado (i) do seu co-texto, (ii) de (quando possível) uma tradução aproximada dos

palavrões para itens lexicais socialmente menos marcados e (iii) da frequência de ocorrência

dos itens em questão dentro do texto:

Tabela 4

Palavrão Co-texto Sentido aproximado Frequência

Merda “e num vamo cancelá(r) merda nenhuma” Coisa 4

Cagão “larga a mão de sê(r) cagão” Medroso 2

Porra “sei lá porra” Expressão de raiva 4

Cuzão “que você é um bunda mole cuzão” Chato 1

Nem fodendo “quê? nem fodendo” Não enfático 1

Puta que pariu “puta que pariu... vamo conversá lá fora vai...” ************** 2

Vai se fudê “vai se fudê Ivan” Vai se danar 1

Na interação entre Giba e as personagens masculinas do filme, principalmente Ivan e

Anísio, observamos um uso maior dos palavrões, em especial, nas cenas em que Giba está

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nervoso. Com as personagens femininas, como sua filha e uma das prostitutas da casa noturna

da qual é sócio, não encontramos registro deste tipo de termo. Podemos dizer, nesse sentido,

que é na medida em que Giba se inicia no universo do crime (já que planeja com seu sócio e

com Anísio o assassinato de terceiro sócio na construtora) que seu vocabulário se modifica e o

uso de palavrões passa a ocorrer com maior frequência. Tal fato parece evidenciar o trabalho

estilístico sobre a linguagem que faz com que esta personagem e sua linguagem sejam

diferenciadas das outras.

É importante também observar os usos gramaticais da personagem Giba. A fim de

facilitar as análises gramaticais propostas, escolhemos alguns traços linguísticos presentes nas

suas falas.

As marcas analisadas são:

a) redução do verbo “estar” para “tá”;;

b) pronome “você” reduzido à forma “cê”;;

c) ocorrência do pronome “a gente”;;

d) presença de marcação de plural reduntante;

e) uso da forma ir + infinitivo.

As duas primeiras ocorrências são traços comuns da modalidade oral dos falantes das

mais diversas variedades linguísticas.

Observa-se o uso do verbo “estar”, conjugado como “tá” (3ª pessoa do singular), “tô”

(1ª pessoa do singular) e “tamo” (1ª pessoa do plural). Foram localizadas 37 ocorrências da

primeira forma, 7 da segunda e 1 da terceira. Há redução também no pronome “você”, sendo

muito corrente o uso de “cê” (22 ocorrências), apesar de existir, em várias ocasiões, o uso de

“você” (15 ocorrências). Trata-se, todavia, de oscilações correntes nos usos orais da língua.

Segundo as normas do projeto NURC, considera-se a personagem Giba, vivida pelo

ator Alexandre Borges, como um falante da norma culta do português, uma vez que possui

curso superior (na trama, ele é um engenheiro). Segundo Castilho (1992), há diversas marcas

fonéticas, fonológicas e sintáticas que caracterizam os falantes dessa variedade. Uma

característica sintática é “a tendência a substituir nós por a gente” (Omena, 1986 apud

Castilho, 1992, p. 254). Apesar de haver registros do uso de “nós” na fala de Giba, é muito

mais frequente o uso de “a gente”, como se observa em uma de suas conversas com Ivan:

“Quando a gente brigava para decidir o nome que ia entrá(r) primeiro na placa... lembra?”;; “é

isso o que a gente vai fazê(r) com o Estevão”.

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O plural não-redundante, que consiste na marcação do plural apenas na primeira

palavra da sentença, como, por exemplo, em “as menina”, considerado como um traço

característico do português não-padrão, não ocorre na fala de Giba. Na maioria das vezes, a

personagem estrutura as sentenças por meio do uso do plural redundante: “você pensa que as

coisas funcionam desse jeito?”. Entretanto, algumas vezes, a fala da personagem exibe a

queda do morfema de número, como no uso do verbo “vamo(s)” (1ª pessoa do plural).

Bezerra (1980) e Baleeiro (1988) (apud Castilho, 1992, p. 253) indicam, como sendo

uma característica dos verbos utilizados pelos falantes cultos, a progressiva substituição da

forma verbal do futuro do presente pela perífrase ir + infinitivo, traço que ocorre comumente

na fala de Giba:: “vou te levá(r)”;; “vai dizê(r) que não gostou”;; “eu não vou podê(r)”. É

importante reiterar que a maioria dos verbos não trazem o “r” final (marcador do infinitivo)

nos verbos, mas, como já dissemos, trata-se de um uso comum na modalidade oral.

3.1.2. Anísio A gíria tem um papel fundamental na construção da personagem Anísio. Foi Sabotage,

rapper que faz uma pequena participação na trama, quem trouxe a linguagem da periferia para

dentro do filme através das gírias. Para o rapper, “... é a gíria nossa do dia-a-dia, e aí, aquela

mina, coisa e tal, aquela gíria, o dia-a-dia de conversar e isso entrou no cinema, e explico pra

galera: sabe aquilo que a gente fala, sabe aquelas palavras que a gente fala, na porta da escola,

no campinho, na rua, é isso que passou para o cinema...” (Brum, 2003, p. 56).

Marçal de Aquino, autor da novela que deu origem ao filme, diz que “no processo de

escrita do roteiro, as falas do Anísio já eram motivo de preocupação, pois os autores do

roteiro não conheciam suficientemente o universo da periferia para criar um grau de

verossimilhança ao personagem.” (Brum, 2003, p. 56). Esse fato justifica todas as nossas

afirmações de que o trabalho de estilização por parte dos atores relaciona-se com o universo

social do qual a personagem emerge. Assim, a manipulação de determinados recursos

linguísticos revela que a linguagem é fundamental para criar a verossimilhança do enredo e

das ações (sociais e linguísticas) da personagem como oriunda de determinado universo

social.

Ao analisar as falas de Anísio, é possível reconhecer diversas gírias que se tornaram

de uso popular, como veremos apresentados nas tabelas apresentadas posteriormente. Essas e

muitas outras gírias vêm sendo incorporadas ao vocabulário de pessoas de um grupo social

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diferente daquele ao qual Anísio pertence: o de criminosos residentes das favelas, onde se

desenvolve uma linguagem criptográfica utilizada apenas pelos membros desse grupo.

A este vocabulário restrito a um grupo dá-se o nome de “gíria de grupo”, que, segundo

Preti (2002, p. 86), é um signo “cujo domínio pertence apenas a um grupo restrito de falantes,

dificultando intencionalmente o processo interacional e deixando o falante que não pertence

ao grupo completamente à margem da conversação, mas, por outro lado, favorecendo sua

identificação social”. Neste sentido, a gíria passa a ser um “signo de adesão no momento em

que o falante concorda em aprender seu significado, condição indispensável para que venha a

pertencer oficialmente ao grupo” (Giraud, 1966 apud Preti, 2002, p. 89).

A chamada “gíria comum”, por outro lado, é aquela que conseguimos reconhecer

facilmente na fala de Anísio (como veremos mais adiante nas tabelas), e que perdeu, com o

passar do tempo, “sua condição de signo de grupo” deixando “de ser identificador do falante e

do grupo social, passando a fazer parte da linguagem comum, como um de seus elementos

expressivos (...)” (Preti, 2002, p. 87). As gírias de uso comum seriam resultado de um

processo de vulgarização do uso das gírias de grupo, as quais perdem seu valor original de

identificação de sujeitos pertencentes a determinados grupos, de forma que se transformam

em um vocabulário de uso popular, ausente de sentido criptológico.

O uso das “gírias comuns”, que são mais correntes em conversas informais do dia-a-

dia, é um recurso estilístico do qual que o ator se apodera para caracterizar a sua personagem.

Neste sentido, Paulo Miklos recorreu, como já vimos, ao rapper Sabotage a fim de dar mais

realidade aos seus usos lexicais, utilizando-se do vocabulário do rapper para a construção do

vocabulário de sua personagem. Estaríamos, então, de acordo com Marková (2002), que

propõe que o tipo de representação feita pelo ator é baseada no pensamento de senso comum,

no conhecimento e na comunicação, embora, como já ressaltamos, há também o laboratório,

processo através do qual o ator imerge no universo social que representará à prosteriori.

A nosso ver, o ator Paulo Miklos utiliza uma experiência social concreta (a sua relação

com o Sabotage antes e durante da filmagem), mais especificamente, utiliza a comunicação

com outro sujeito e do senso comum para construir sua personagem. Paulo Miklos faz uso do

estilo dialetal, conceito proposto por Coupland (2001) que consiste nos modos de fala do

indivíduo compostos a partir de “índices culturais” específicos. Para Coupland, “a língua nos

compele a assumir um estilo que revela nossa afiliação a um certo grupo comunicativo

(dimensão sociolinguística do discurso).”

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Nesse sentido, a fala da personagem Anísio resulta da convivência do ator com um

determinado “ícone sociolinguístico” (Eckert, 2001), a saber, o rapper Sabotage. É do

processo híbrido de conviver com o rapper e de observar e procurar reproduzir as práticas

linguísticas deste que resulta a linguagem estilizada elaborada pelo ator para a sua

personagem, que combina gírias comuns e de grupo em sua performance ao longo do filme.

Para comprovar a abundância de gírias no repertório linguístico de Anísio, têm-se

abaixo quatro tabelas com as gírias presentes em sua fala: (i) tabela 5, com as gírias comuns

de nomes e verbos, (ii) tabela 6, com as gírias comuns em forma de expressões, (iii) tabela 7,

com as gírias de grupo de nomes e verbos e (iv) tabela 8, com as gírias de grupo em forma de

expressões. Nas tabelas 5 e 7 (de nomes e verbos), tem-se o co-texto de aparição, os

significados aproximados correspondentes e a frequência de uso de cada uma delas. As

tabelas 6 e 8 (de expressões) apresentam as mesmas características da primeira. As gírias

foram observadas ao longo do corpus fundamental do presente trabalho, constituído da

transcrição integral do filme9.

Gírias comuns Nomes e verbos

Tabela 5

Gíria Co-texto Classe de palavra Significado Frequência Mano “cê veio mano” Nome Irmão 16 Trampo “trampo extra...” Nome Trabalho 4

Barato “levando os barato” Nome Coisa, negócio 4

Cara “eu vô tá cercando cara” Nome Pessoa 4

Rapaziada “marquei uma reunião com a rapaziada”

Nome Pessoal 2

Beleza “beleza... e aí...” Marcador conversacional Tudo bem 2

Conto “é cinco conto pra fazê(r) a gravação” Nome Reais 2

Mina “a mina olho” Nome Mulher, menina 2

Mané “que mané doutô(r) Gilberto” Nome Besta, bobo 1

Pilantra “do pilantra eu trouxe a grana” Nome Malandro 1

Merreca “devolvê(r) essa merreca pro cêis” Nome Coisa (pouca

quantidade de) 1

“Tisorar” “se tisorá(r) meu Verbo Atrapalhar, cortar 1

9 Em anexo.

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barato com a mina”

“Morô” “é meu primeiro dia de trampo aqui hoje morô”

Verbo Entendeu 2

Gírias comuns Expressões

Tabela 6

Expressão Co-texto Significado Frequência

Se liga “se liga... então leva a chuteira e o calção...” Prestar atenção 1

Tá ligado “tá ligado que dono pode tudo?” Entender 1 Colar aí “cola aí mano... senta aí...” Aproximar-se 1 Fazer uma média “faz uma média aí” Causar boa

impressão 1

Pô “calma pô” Redução de “poxa” 1 Sair fora “vamo saí fora” Ir embora 1 Firmeza “firmeza... num vai dá(r) mesmo né?” “Ok” 2 Falo “tudo rabiscado falô” “Ok” 1 Dar trela “e desde quando patrão dá trela mano?” Dar atenção 1 Gírias de Grupo Nomes e verbos

Tabela 7

Gíria Co-texto Classe de palavra Significado Frequência Jão “e aí Jão...” Nome Você 4

Fita “eu vou resolvê umas fita” Nome Problema/coisa 3

Rango “quem é que boto o rango lá” Nome Comida 1

Bagulho “mete a cara no bagulho” Nome Coisa 1

Parabelo “vou te emprestar o parabelo” Nome Arma 1

Cagueta “agora do cagueta eu vô trazê(r) a alma”

Nome Aquele que denuncia 1

Quebrada “o cara vai saí(r) da quebrada lá” Nome Favela 1

Busum “pegá dois busum” Nome Ônibus 1 Cana “é cana” Nome Problema 1 Ganso “é ganso” Nome Preocupação 1

“Ratiar” “tem uma pá de mano ratiando” Verbo Cercar 1

Clarear “clareô Jão?” Verbo Esclarecer 1

Trancar “cê vai lá e tranca ele tá” Verbo Matar 1

Desossar “uma semana Verbo Resolver 1

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desosso essa fita” Gírias de grupo Expressões

Tabela 8

Expressão Co-texto Significado Frequência Dar a maió guéla

“deu maió(r) guéla... fez pá todo mundo ouvi(r)” Gritar 1

Dar guéla “num dá guéla pra ninguém” Contar 1 Dominar a fita “dominei a fita mano... já era” Estar presente 1

Estar na pampa “tô na pampa meu” Estar bem 1

Firmão “aí Ivan... firmão?” Cumprimento 1 3.2. Personagens do filme “Narradores de Javé” O filme “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Caffé, é narrado por Zaqueu,

personagem de Nelson Xavier, um homem de meia idade, não escolarizado, morador do

sertão nordestino. Ele conta para os colegas de bar a história do vilarejo onde viveu por toda a

sua vida, o Vale do Javé, que foi tomado pelas águas de uma represa, depois da árdua

tentativa de torná-lo um patrimônio histórico através de um documento científico: as

escrituras que contavam a história do lugar. O responsável pelas escrituras é Antônio Biá

(interpretado por José Dumont), ex-funcionário dos Correios da cidade fictícia de Javé. Biá

fora expurgado de viver em comunidade por no passado ter espalhado mentiras sobre a vida

das pessoas do Vale do Javé. Ele é um grande “tirador de sarro”, inclusive da moral dos

habitantes do vilarejo, e está sempre pronto para se aproveitar da inocência de um povo não-

escolarizado.

Diferentemente das análises desenvolvidas sobre o filme “O Invasor”, nas quais

analisamos o léxico das duas personagens escolhidas, no que diz respeito ao filme

“Narradores de Javé”, optamos por focar nossa atenção nos usos gramaticais de Zaqueu e nos

usos lexicais de Antônio Biá.

3.2.1. Antônio Biá A fala de Antônio Biá é a mais rica. O ator utiliza expressões linguísticas inusitadas

para compor sua personagem: um homem do sertão nordestino, com conhecimento das letras,

que se utiliza de sua sabedoria para enganar o povo do Vale do Javé, prestes a submergir.

As expressões cômicas são, em sua maioria, invenções do ator, o que revela um

trabalho de estilização da linguagem por parte do ator, que faz uso de um número grande de

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expressões que conferem um caráter inusitado e ao mesmo tempo criativo ao seu discurso.

Vejamos a lista abaixo:

Tabela 9: Lista de expressões que mostram a combinação inusitada de termos por parte da personagem

Antônio Biá

Expressão Co-texto

jacaré apaixonado

“não tá grande não é os seus beiço que são pequeno e depois o senhor fica com um ar mais alegre risonho assim... que nem um jacaré apaixonado”

boi de camelô “ninguém vai entregar um boi assim de graça só se for boi de camelô ó essa parte aí tem que melhorar”

dilúvio bovino “aí passa por eles aquela boiada imensa gorda um dilúvio bovino”

exu de galinheiro “cala a boca exu de galinheiro” tapioca de exu “tapioca de exu serve?”

tamburé de forró “a senhora nem se fala né a senhora é uma tamburé de forró”

uma piaba de silicone “a senhora é (...) uma piaba de silicone fala que ( ) é o cão chupando manga então”

réveillon de muriçoca “isso aqui tá parecendo sabe o quê? um reveillon de muriçoca”

espermatozóide de ninja “eu sou escravo? eu sou cavalo de cela? eu sou espermatozóide de ninja?”

bocó de microondas “bocó de microondas... deixa eu dormi(r)”

pokémon de Jesus “eu sou o divino espírito santo também? eu sou pokémon de Jesus?”

manicure de lacraia “então pronto... ôh... manicure de lacraia”

clonado de miolo de pão “pra mim vocês podem ser até clonado de miolo de pão que pra mim tá bom né”

bando de abelha menstruada “vocês ficam aí nesse revolteio sem direção que nem um bando de abelha menstruada”

sabugo liso “tô fugindo de que sabugo liso?”

inteligência patagônica “tô fugindo de que (...) só se for da tua inteligência patagônica”

nome sobrenome e pronome “por enquanto o senhor me diz o seu nome sobrenome e pronome pra gente botar no livro”

voz de cd pirata “a senhora com a sua voz de cd pirata falo mais do que todo mundo”

povo anfíbio... povo pitu

“a única coisa boa que Javé tem pra mostra é o caminho de ir embora... lugar bom pra criar lobizomem... anfíbios... povo anfíbio... povo pitu”

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Ademais, Biá, portador de uma capacidade criativa e narrativa incríveis, cria alguns

neologismos10, trazendo ainda mais comicidade ao seu discurso:

Tabela 10: Neologismos

Neologismo Significado “bovil” Nas palavras do próprio Biá significa “um canil de boi” “lagarteando” Rastejar-se feito um lagarto “boiaréu” Uma grande quantidade de bois “festo” Determinada quantidade “inventador” Quem inventa “descontou” Deixar de narrar “burrística” Uso do prefixo –ístico que transforma substantivo em advérbio “apocada” Que tem pouco conhecimento

Tabela 11: Lista de palavras de estilos populares de fala

Palavra Significado “zarôio” Pessoa vesga ou estrábica “cachola” Referente a cabeça “rebuceteio” Bagunça “desembucha” Sinônimo de “falar logo”

Biá inventa novas expressões e palavras, além de novos significados para palavras já

existentes, como um artifício criativo e cômico, remetendo à imagem que se tem do homem

do sertão, imortalizada pelas personagens criadas por João Guimarães Rosa: o sertão, o meio

rural, é o lugar da invenção, inclusive na escrita.

Deste modo, é possível observar, na fala da personagem Antônio Biá, o trabalho

estilístico operado pelo ator José Dumont por meio do processo de iconização (Irvine, 2001),

já que Biá é reconhecido justamente por uma marca: o seu léxico “inovador”, suas expressões

metafóricas, seus neologismos. É neste sentido que se pode observar as diferenças entre a fala

de Biá e a de outras personagens do filme, já que na fala de Biá o que chama a atenção é a

manipulação dos recursos lexicais a fim de criar uma identidade para a personagem calcada

na imagem, como já dissemos acima, de um sujeito que reflete sobre e cria a sua própria

linguagem.

3.2.2. Zaqueu

10 De acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “n substantivo masculino. Rubrica: linguística. (1) emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, na mesma língua ou não (2) atribuição de novos sentidos a palavras já existentes na língua (3) unidade léxica criada por esses processos”

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A fala de Zaqueu é marcada, fundamentalmente, pela eliminação do plural redundante.

Conforme assinala Bagno (2006), na língua portuguesa padrão, usa-se mais de uma marcação

de plural nas palavras da sentença para comprovar que se trata de uma sentença no plural,

como, por exemplo: na sentença “os policiais chegaram cedo”, marca-se o plural no artigo, no

substantivo e no verbo.

As variantes do português não-padrão, variante esta da personagem Zaqueu, homem

não escolarizado, habitante do sertão nordestino, ao contrário, marcam apenas uma palavra

para identificar que se trata de algo a mais que um. Assim, marca-se o plural na primeira

palavra que aparece na sentença. Vejamos essas ocorrências (ao todo, 20) na fala de Zaqueu:

Tabela 11: Lista de ocorrências do plural não-redundante

“às cinco hora” “pras autoridade” “das letra” “dos outro” “pros home” “nas redondeza” “os home” (2 ocorrências) “as carta” “as história” (2 ocorrências) “nas minha andança” “das origem” “as tais história” “os guerreiro” “pras autoridade” “as terra” “os 24 documento” “os enredo” “das água”

Entretanto, observa-se também a ocorrência do plural redundante, como é o caso nos

seguintes exemplos: “nós vamos”, “cês vivem”, “nas divisas cantadas”, “cês gostam”, “eles

falaram”.

Há também o aparecimento frequente da desnasalização das vogais postônicas, como

em “home” (11 ocorrências), sendo, entretanto, uma ocorrência comum da língua, conforme

aponta Bagno (2004).

É interessante ressaltar que Zaqueu, além de ser uma personagem do filme, é o

narrador da história do Vale do Javé. Isso pode ser observado no início do filme, quando ele

começa a contar aos seus colegas de bar o poder que uma escritura pode ter, citando o

ocorrido em sua terra natal. Mesmo na função de narrador, Zaqueu continua utilizando a sua

linguagem habitual de homem não escolarizado do sertão para dar vida à história que conta.

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Capítulo 4: Considerações finais As pesquisas e leituras feitas comprovaram nossas hipóteses de que os atores em cena

manipulam os recursos linguísticos a fim de caracterizar suas personagens. No entanto,

reconhecemos que a caracterização e o estilo das personagens não se dá apenas por meio da

manipulação dos recursos da linguagem, mas também pela manipulação de uma série de

outros recursos semióticos, tais como a construção de uma prosódia própria, a elaboração de

gestualidade e de expressividade singulares, o uso de um vestuário específico etc.

Apesar dessa constatação, é necessário reconhecer que a representação artística do ator

e o seu trabalho sobre a linguagem são consequências de um processo de observação e de

estudo das variedades linguísticas diatópicas. Na introdução do livro com o roteiro comentado

do filme “Narradores de Javé”, Luís Alberto de Abreu, roteirista, confirma este caráter

explorativo e observativo da linguagem representada no filme: “Muitas falas e expressões e

elementos e características incorporados aos personagens foram colhidas no próprio território

de pesquisa.”

Todavia, estes processos (de observação e de estudo) podem ser feitos de forma mais

simples, através do conhecimento de senso comum, que “constitui um recurso fundamental

para a teoria das representações sociais como uma teoria do conhecimento social” (Marková,

2003).

Um dos maiores divulgadores do senso comum sobre as variedades para a sociedade é

a mídia. O escritor João Ubaldo Ribeiro, na crônica intitulada “Grilos gramaticais”, publicada

em 14 de Julho de 1987 no Jornal O Globo, escreveu:

Antigamente, nordestino não falava “só-brinho” e “té-lhado”, como hoje a gente ouve, em contraposição aos “centro-sulistas” “sô-brinho” e “tê-lhado”. Falava “su-brinho” e “tê-lhado” mesmo. Mas aí chegou o nortês da Rede Globo... e até os nordestinos se convenceram de que o certo é dizer “só-brinho”, que é como se escreve. A única diferença entre o escrito e o falado é a de que todo nordestino tem de abrir a vogal e todo centro-sulista tem de fechar, em absolutamente todos os casos. Outra doidice completa, mas que já levou atores de novelas a pronunciar “vó-cê” em vez de “você”, a fim de mostrar como faziam bem o sotaque nordestino.” (Leite & Callou, 2004, p. 21-22).

A fala dos indivíduos pertencentes ao dialeto nordestino, como bem disse João Ubaldo

Ribeiro no exemplo acima, possui marcações que fazem parte do conhecimento de senso

comum dos indivíduos não pertencentes a este dialeto, que são denominados por Coupland

(2001) como “sujeitos do dia-a-dia”, ou seja, indivíduos que não estudam os fenômenos

sociolinguísticos, mas que (re)conhecem estas variações. Os atores compartilham do mesmo

conhecimento de senso comum, sendo este um dos recursos dos quais se utilizam para

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compor linguistica e discursivamente cada uma das personagens. Entretanto, pode-se

observar, através da leitura da dissertação de mestrado “O processo de criação artística no

filme O Invasor” de Alessandra Souza Melett Brum, que o trabalho de Paulo Miklos teve o

respaldo de um laboratório que fez com o rapper Sabotage, utilizando-se, assim, de dados

reais para a composição da sua personagem: a fala e o comportamento de um morador de uma

favela de São Paulo.

Ademais, os atores fazem um trabalho de representação pautado no estabelecimento de

saliências, ou seja, pautado em certos “pontos de estigma” (Brito, 1997) das variedades

linguísticas dos falantes. Desta forma, o dialeto do meio rural nordestino e os dialetos do meio

urbano paulistano são representados de acordo com as características linguísticas e discursivas

mais evidentes.

No caso de Giba, temos a manutenção de sua identidade social (membro da elite

econômica paulistana) por meio da presença de traços gramaticais próprios de sujeitos com

alto grau de escolaridade e de renda. Por outro lado, essa mesma personagem, quando em

contato com o universo do crime, usa de maneira bastante consistente palavrões,

principalmente nas interações com seus comparsas de crime.

No caso de Anísio, tivemos a comprovação, por meio do trabalho de Brum (2003), de

que o trabalho de construção da personagem por parte do ator envolveu uma observação da e

uma vivência com a linguagem de um rapper, morador de uma das periferias paulistanas.

Esse trabalho resultou, em termos lexicais, na exibição de um uso bastante recorrente de uma

grande diversidade de gírias, comuns e de grupo que, segundo o próprio rapper, seria a

característica mais marcante tanto do universo social como da própria personagem.

No caso de Zaqueu, as características mais marcantes em relação à linguagem estão

relacionadas ao nível gramatical, sendo que esse personagem, por meio de sua linguagem,

reitera suas origens: homem do povo, de idade acima dos 50 e com pouca ou nenhuma

escolaridade. Por isso, sua fala se marca pela ocorrência significativa de plural não-

redundante e pela desnasalização das vogais pós-tônicas consoantes finais.

No caso de Biá, sua característica estilística mais marcante é a da invenção de

expressões inusitadas e, ao mesmo tempo, irônicas e/ou engraçadas, o que resulta em uma

personagem que causa um efeito inevitável de comicidade e de exotismo. Isto não deixa de

ser um aspecto a ser explorado, já que a imagem do homem do sertão que fica é a de um

sujeito que mostra uma linguagem prolixa e rebuscada, pouco compreendida pela maioria dos

membros de outras comunidades linguísticas.

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Por fim, nossa pesquisa revela uma espécie de contínuo, no qual Biá e Anísio ocupam

os extremos da linha imaginária que estabelece a distância entre o rural e o urbano,

caracterizados de maneiras bem distintas, onde se vê uma exploração extrema do nível lexical

(expressões inventadas e gírias), enquanto que Zaqueu e Giba, ocupam os pontos

intermediários dessa linha porque justamente representam fielmente, em termos gramaticais,

os seus grupos sociais de origem: homem do campo não escolarizado e homem urbano culto.

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Referências Bibliográficas

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ANEXO 01 Transcrição do filme “O Invasor” Contexto: Estão presentes três homens, mas apenas dois conversam (AN38, GI40) 01 GI40 você é o Anísio? 02 AN38 por que, meu? que que se trata? 03 GI40 tô procurando o Anísio... o Norberto me indicou ele para um serviço 04 AN38 então... tá aí? 05 GI40 tá tá aqui 06 AN38 tá tudo aqui? 07 GI40 tá... tá sim... 08 GI40 e aí... quanto tempo demora? 09 AN38 ah... uma semana desosso essa fita aí... e o cara aí... não fala nada? que que é... é cana é ganso... qual 10 que é? 11 GI40 é meu parceiro... meu sócio... também tá pagando... 12 AN38 é porque se não for é o seguinte... ninguém sai daqui 13 GI40 pode ficar tranquilo tudo bem Contexto: Conversa no carro entre dois homens (GI40 e IV42) 01 IV42 Giba, cê qué que eu te deixe em casa ou você vai buscá sua moto? 02 GI40 vamo comemorá, Ivan... vou te levá num lugar do cacete... 03 IV42 não... eu vô pra casa mesmo 04 GI40 pára com isso... cê acha que cê vai consegui dormi fácil hoje? ((passa um momento de silêncio)) vai... 05 larga a mão de ser bundão vai... pega a vinte e três Contexto: Os dois homens chegam a uma boate (GI40 e IV42) 01 GI40 e aí Moisés... guarda o carro pra mim aí, falô? 02 IV42 boa noite 03 M03 [tudo bom? 04 GI40 bora bora bora bora bora bora 05 IV42 que que é isso aqui Giba? 06 GI40 calma cara... relaxa ... vem comigo aqui... vamo comemorá, cara... vamo comemorá 07 GI40 ((Cumprimentando várias pessoas ao mesmo tempo)) e aí... tudo bem tudo legal?... salve... tudo bem?... 08 e aí... ta bom? ( ) chavinha... 09 IV42 que que é isso aqui? 10 GI40 ( ) é o seguinte... isso aqui você coloca aqui... essa aqui é a chavinha da alegria... ô... gatinha... senta aí 11 IV42 Giba... ô Giba... eu to cansado... eu acho que vô pra casa... vô tomá um banho... 12 GI40 ( ) aí cara... larga a mão de sê chato... Alessandra... vem cá... 13 AL19 tudo bem? 14 GI40 esse aqui é meu amigo Ivan... essa aqui é a Alessandra... 15 AL19 oi tudo bem? 16 GI40 ( ) é o seguinte... meu amigo aqui ta muito cansado trabalhou muito... mostra pra ele seu tratamento 17 contra estresse... ((confusão de vozes)) 18 AL19 por que ce qué irembora? 19 IV42 sai... porra GIBA Contexto: Conversa dentro do carro entre os dois homens (GI40 e IV42) 01 IV42 freguês de carteirinha... 02 GI40 ah... vai dizê que não gostou... a Alessandra hein?... conta aí... novinha bonitinha cherosinha... é 03 UNIVERSITÁRIA hein? 04 IV42 ( ) cê não sai de lá né Giba? 05 GI40 ai Ivan Ivan... como cê demora pra sacá as coisas cara... é impressionante... claro que eu tô sempre lá... a 06 gente não pode descuidar dos negócios... 07 IV42 ã... ce é sócio daquela merda?

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08 GI40 [que que tem de errado?... eu e o Norberto tamo tocando aquela boate ( ) uns três meses já... aliás eu 09 preciso te apresentar o Norberto cara... o homem é gente fina... FINÍSSIMA... gostô né? gosto ( ) 10 IV42 meu sócio é dono de um putero e eu nunca desconfiei de nada... é de fudê... 11 GI40 diversificação dos negócios... é a onda do momento... 12 IV42 e se alguém descobre Giba? e o escândalo? isso dá cadeia cara... 13 GI40 que escândalo... que cadeia ô ivan... pára de secá cara... como cê é encanado meu... ô... ó... não pensa 14 que você não tá sujando as mãos só porque é outro cara que ta fazendo o serviço... dá no mesmo... bem vindo 15 ao lado podre da vida... 16 IV42 que falta eu descobri de você hein Giba? 17 GI40 que eu tenho pau pequeno ((ri)) Contexto: Dois homens conversam em uma sala (IV42 e ES45) 01 ES45 eu não quero negócio com o governo... Ivan tem sempre alguma falcatrua no meio... eu não sei se você 02 sabe que eu já recebi proposta do governo de lobistas pra entrá nessa e eu não quis... é só uma questão de 03 TEMPO para estorá um escândalo... dipois... eu não quero vê o nome da construtora... ((muda de cena)) se 04 acontece uma porra dessas... ((muda de cena de novo)) 05 IV42 caralho... 06 ES45 que foi? 07 IV42 nada... 08 ES45 eu tenho certeza que o Gilberto foi lá e contatou o Rangel... foi ou não foi? 09 IV42 foi... ((Memória de IV42 – diálogo com um homem RA50 em uma cafeteria)) 10 RA50 Ivan... num ta lembrado de mim? Rangel... fizemos faculdade juntos... 11 IV42 e aí... como cê tá? ((De volta ao contexto anterior. O homem IV42 conversa ao telefone com RA50)) 12 IV42 alô?... oi tudo bom? 13 RA50 mais ou menos né Ivan... não tava tudo combinado?... olha os prazos meu amigo... 14 IV42 não... eu sei... é que... 15 RA50 cê não ta a fim de ganhar grana não é? 16 IV42 não é isso... 17 RA50 pára de me enrolá e me manda isso até segunda-feira porra 18 IV42 tá entendi 19 RA50 que que é Ivan? não ta podendo falá?... tá tudo armado cara... não vão pisá na bola senão cês me fodem 20 meu esquema porra 21 IV42 tá... tudo bem... pode fazê... ((silêncio)) ôtro pra você... ((Homem IV42 desliga o telefone e conversa com homem ES45)) 22 ES45 que que foi? aconteceu alguma coisa? 23 IV42 não nada 24 ES45 mas ce sabe que até que toda essa confusão veio em boa hora... eu vô aproveitá prá resolvê o meu 25 problema com o Gilberto... faz tempo que esse cara tá me enchendo o saco... eu compro a parte dele e 26 pronto... mas VOCÊ fica na construtora... eu aumento a sua participação e a gente esquece essa:: toda essa 27 confusão com o Rangel... bom... minha proposta tá feita... cê dá uma pensada depois cê me fala... Contexto: Dois homens conversam em um canteiro de obras (GI40 e IV42) 01 IV42 Giba... Giba 02 GI40 ô Ivan... tudo bem? 03 IV42 eu piciso falá com você... 04 GI40 só um minutinho que eu tô terminando isso aqui com o Cícero e a gente já conversa ((Os dois homens se encontram em uma calçada. GI40 aponta para uma placa)) 05 GI40 bons tempos hein Ivan? Quando a gente brigava para decidir o nome que ia entrá primêro na placa... 06 lembra? 07 IV42 isso tudo é bobagem do Estevão... 08 GI40 bobagem uma ova... você também não queria que o seu nome viesse por último... bom... o que importa é 09 que já já é que a gente vai podê tirá o nome do Estevão das placas... 10 IV42 o nome dele vai continuá nas placas Giba 11 GI40 tudo bem... a gente pode fazer uma homenagem... escreve o nome dele e na frente põe “in memoriam” 12 em itálico... tá... gostei disso 13 IV42 ô Giba... eu vim aqui para te dizer que eu desisti do plano

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14 GI40 vem cá... ((os dois homens atravessam a rua)) como é que é? 15 IV42 é isso que você escutou... eu quero cancelá o seu plano 16 GI40 o MEU plano? o plano é NOSSO Ivan... e num vamo cancelá merda nenhuma 17 IV42 eu tava loco quando topei essa parada... agora to vendo que não dá pra segurá... 18 GI40 você é engraçado né? Até ontem tava tudo certo 19 IV42 não dá Giba... o que cê tá querendo fazê é uma locura 20 GI40 ah... nem pense em tirá o corpo hein? você tá nessa comigo e vamo até o fim... entendeu? 21 IV42 tô fora... eu não quero mais saber dessa merda 22 GI40 ah... você pensa que as coisas funcionam desse jeito? mudô de idéia cai fora numa boa e pronto? não é 23 assim não meu chapa. Pô... quando eu vi chegando achei que você tava me trazendo notícia boa 24 IV42 nós vamo acabá na cadeia Giba 25 GI40 que nada... se é isso que você tem medo... pô Ivan::... larga a mão de sê cagão... vai dá tudo certo... você 26 vai vê... 27 IV42 num posso fazê isso 28 GI40 agora é tarde... cê já fez... num dá mais pra pulá fora... já imaginô? Cê procurá o Anísio e dizê pra ele 29 que você é um bunda mole cuzão... que tá arrependido? 30 IV42 falei com o Estevão hoje de manhã... ele sabe do seu negócio com ( ) putero 31 GI40 eu sei que ele sabe... mas ele te contou como descobriu isso? 32 IV42 não... não contô 33 GI40 eu sabia... tá vendo como você é inocente? O Estevão e os amiguinhos dele vão lá toda terça depois do 34 futiból... ele é cliente preferencial... foi assim que ele descobriu... e da Alessandra hum?... ele te contô? a 35 menina preferida dele? Pra ce tê uma idéia eu até sei o que ele gosta de fazê com ela... ((silêncio)) Ivan... põe 36 uma coisa na cabeça... o Estevão não é santo... se a gente bobiá ele come o nosso RABO PORRA... 37 ((silêncio)) vem cá... dá uma olhada no Cícero... parece um sujeito inofensivo né? É o encarregado da obra... 38 manda na peãozada... tem poder... mas é claro que ele não tá contente com isso... ele qué mais... como todo 39 mundo... e se tive uma oportunidade ele vai aproveitá... ce tem alguma dúvida? O mundo é assim meu velho... 40 o Cícero pode tê até aquela cara de tonto... mas se precisá ele vira bicho. Ele só te respeita porque sabe que 41 VOCÊ tem mais poder do que ele... mas é bom não facilitar com essa gente... no fundo esse povo qué o seu 42 carro querem o seu cargo o seu dinheiro as suas roupas... querem comê a sua mulher Ivan... é só tê uma 43 chance... é isso o que a gente vai fazê com o Estevão... vamos apreveitar a nossa oportunidade antes que ele 44 faça isso primeiro 45 IV42 bela filosofia de vida hein Giba? dá licença... dá licença vai... Contexto: Homem (GI40), sua filha (FG04) e esposa em casa 01 GI40 uaarh. Lobo mau queria comê os porquinhos... aar aar aar... olha o lobo mau... é o lobo mau esse aqui? 02 FG04 não pai... ele é bonzinho 03 GI40 esse aqui é bonzinho? Então protege ele... protege ele enquanto o papai conta a história... o porquinho... 04 tinha três porquinhos então... o mais novo era muito preguiçoso e resolveram construir uma casa de palha... 05 muito mal feita porque ele queria é brincá ((Mudança rápida de cena: homens jogando futebol)) ((Volta para a cena anterior)) 06 GI40 socorro socorro... daí foi pra casa do outro irmão que era o irmão do meio ((Mudança rápida de cena: um homem entrando em uma boate)) ((Volta para a cena anterior)) 07 GI40 só que o porquinho mais velho era MUITO esperto muito inteligente e acendei a lareira tacou fogo na 08 lareira... aí o lobo entro na lareira e caiu e queimou a bunda... ai ai ai e saiu correndo... ai ai ((Mudança de cena: homens em um bar)) 09 ES45 ( ) vô jantá com a minha mulher hoje... ((vozes se confundem)) vocês perderam... meu querido... vocês 10 pagam... até semana que vem... um abraço... tchau pro cês ((Mudança de cena: homem ES45 em um estacionamento)) ((Mudança de cena: homem IV42 em uma boate)) Contexto: Homem IV42 chega em um escritório e conversa com a secretária LU27 01 IV42 oi Lúcia tudo bem? 02 LU27 bom dia doutor Ivan... tem correspondência pro senhor 03 IV42 brigado ((Homem IV42 vai para a sua sala e conversa ao telefone com a mulher LU27)) 04 IV42 ô Lúcia... LÚCIA

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05 LU27 oi doutor Ivan 06 IV42 o Estevão não tinha uma reunião hoje às nove horas?... com os arquitetos? 07 LU27 pois é... eles já ligaram avisando que tão a caminho mas o doutor estevão até agora não deu notícia 08 IV42 bom... tudo bem... me avisa assim que ele chegá... preciso passá uns detalhes do projeto antes da 09 reunião... tudo bem? 10 LU27 tudo bem ((Homem IV42 telefona para homem GI40, que está em um canteiro de obras)) 11 GI40 alô? quem é? alô Ivan? fala... num chego?... oh... fica aí na sua que tá muito cedo pra acontecê qualqué 12 coisa hein?... eu sei eu sei... não... faz a reunião sozinho... FAZ A REUNIÃO SOZINHO... isso... tá isso... 13 qualqué coisa você me liga... tá tchau Contexto: Homem IV42 conversa com dois outros homens ((Confusão de vozes)) 01 IV42 trinta e oito... que vai me dá uma economia de mais ou menos o quê... um e seiscentos? é isso? mas e o 02 ( ) é muito ruim? ((Confusão de vozes)) ((Telefone toca)) 03 IV42 alô? oi Lúcia... não... pode falá... tá... tá anota o endereço que eu tô acabando a reunião e vô direto pra lá 04 tá bom... tá brigado Contexto: Homem IV42 chega a uma delegacia de polícia e encontra os homens DA75 e DE32 e a mulher MA18 (que não participa do diálogo) 01 IV42 doutor Araújo... Marina 02 DA75 alguma notícia? 03 IV42 por enquanto nada doutor Araújo 04 DA75 ((Vira-se para outra pessoa)) este aqui é Ivan... sócio do meu filho... 05 DE32 bom dia... como vai? ( ) alguns dados pessoais ( ) para mim por favor ((IV42, DA75 e MA18 saem da delegacia)) 06 DA75 Marina... vai buscar o carro... por favor... ((MA18 sai de cena)) o que você acha que aconteceu Ivan... 07 será que é um sequestro? 08 IV42 vamo esperá mais um pouco... pode ser que não tenha acontecido nada 09 DA75 queira deus... ( ) consultório... vou tentar contato com os hospitais... se você tive alguma notícia... por 10 favor... me avisa tá? 11 IV42 pode deixá Contexto: Homem IV42 e homem GI40 em um restaurante 01 IV42 Giba 02 GI40 e aí Ivan... como é que foi? 03 IV42 será que o cara mato a Silvana também Giba? 04 GI40 olha Ivan... vai vê ela tava junto e acabou sobrando pra ela também 05 IV42 mai num foi esse o combinado... pra quê matá a Silvana? ((IV42 conversa com o garçom)) 06 IV42 me traz a mesma coisa que ele por favor 07 GI40 o negócio agora é esperá 08 IV42 como é que cê consegue sê tão frio hein Giba? 09 GI40 a gente precisa acertá logo as coisas com o Rangel 10 IV42 não... esquece o Rangel... vamo cancelá essa merdaí 11 GI40 quê? nem fodendo... a gente entrou nessa por causa desse projeto... pára de falá besteira hein? Contexto: Apartamento. Mulher CE39 e homem IV42 conversam 01 CE39 Ivan? Cê não esqueceu que a gente tem um jantar hoje não, né? 02 IV42 eu num vô Cecília 03 CE39 ah Ivan... cê sabe como essa festa é importante pra mim... vem cá por que você nunca me acompanha 04 nas minhas coisas hein? 05 IV42 ah eu sei que é importante pra você... é importante pro seu trabalho... mas eu num tô afim tá bom? 06 CE39 oh... azar o seu... vai sê bem legal e ce vai perdê maió festão

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07 IV42 tô muito preocupado com:: o Estevão e a Silvana... num to com cabeça pra isso... pronto 08 CE39 cê num acha que se fosse um sequestro eles não teriam feito algum contato? 09 IV42 AH NUM SEI Cecília... num sei... ninguém sabe de nada 10 CE39 tá difícil hein? vô dizê... tá MUITO difícil... vivê nessa cidade é cada dia pior... outro dia tava parada ( ) ((sai da sala)) Contexto: Casal GI40 e EG20 no quarto. Entra a filha 01 EG20 que foi filha? vem... vem aqui... tudo bem filha? 02 FG04 eu tive um sonho ruim 03 EG20 o que aconteceu? 04 FG04 sonhei com um monstro muito feio 05 EG20 mas agora o monstro foi embora 06 GI40 papai vai mate esse monstro... cê vai vê Contexto: Ligação telefônica 01 GI40 alô? ô Ivan que horas são? Tá... passa aqui então que nós vamo junto... tá Contexto: Matagal. Várias pessoas se encontram. 01 GI40 ai que merda ( ) ... como que podem fazer uma coisa dessas? ( ) Contexto: Velório. ((Música muito alta)) Contexto: AN38 e IV42 conversam no escritório 01 AN38 irmão 02 LU27 doutor Ivan 03 IV42 não tudo bem... podexá... não tem problema não.. que que ce tá fazendo aqui? 04 AN38 dominei a fita mano... já era ( ) 05 IV42 cê numa cha que tem lugar melhor pra gente conversá não? hein? ((IV42 liga para GI40)) 06 IV42 alô Giba? dá um pulo aqui na minha sala... não... tem que sê agora... é urgente PORRA... tá tô te 07 esperando ((IV42 desliga o telefone)) 08 AN38 tem um café? 09 IV42 café? Lúcia... traz um café... por que que ce mato a mulher hein? 10 AN38 não tive opção mano... a mina olho ( ) com aqueles olho esbugalhado pra mim... eu enquadrei os dois... 11 cheguei que quando que eu cheguei lá... mano... ela olhou na minha cara com aquele olho... toda descabelada 12 ( ) deu maió guéla... fez pá todo mundo ouvi ô:: aí eu cheguei... chamei os ( ) artigo morto ((LU27 entra com uma bandeja de café)) 13 IV42 ( ) brigado Lúcia 14 AN38 ó... mó carnão ( ) 15 IV42 a mulhé não tava no nosso trato 16 AN38 trampo extra... não vô cobrá nada por isso... também ele num vai dá mais trabalho pra ninguém ((GI40 entra na sala)) 17 GI40 e aí... que cê tá fazendo aqui?... que é isso? 18 IV42 [caralho giba 19 [ guarda essa porra aí 20 GI40 [que que ce tá fazendo com essa merda? 21 IV42 [Giba porra 22 GI40 [péra Ivan péra 23 GI40 Anísio... pêra aí... olha... já que você veio até aqui vamo direto ao assunto tá bom? 24 IV42 taí taí... guarda essa porra vai 25 AN38 calma pô 26 GI40 brincadêra... tudo certo? 27 IV42 Giba... esse cara vai fudê com a gente... ele tá... ele tá andando com a prova do crime caralho

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28 GI40 relaxa Ivan... RELAXA... tá pago... acabo Contexto: Três homens conversam em um bar (GI40, NO53 e SB31) 01 SB31 seguinte a gente tá com um probleminha... tem um cara aí falando que: não vai pagá consumação de 02 jeito nenhum... tá nervoso... falo que é amigo de vocês... ( ) é um tal de João Margonis 03 GI40 João Margonis? 04 SB31 conhece? 05 GI40 cê conhece algum João Margonis? faz o seguinte... tira dez por cento 06 NO53 pela cara de pau... Giba... você já resolveu a situação do Anísio? 07 GI40 já... tudo certo... 08 NO53 eu te falei... o cara é seguro ( ) com ele num tem erro 09 GI40 olha Norberto pra te falá a verdade tô preocupado memo é com o Ivan 10 NO53 Ivan? que que tem o Ivan? 11 GI40 Ivan é um cagão... fraco... às vezes eu tenho medo dele 12 NO53 Giba... você e o Ivan... se juntaram pá toda a vida... é assim ó... uma coisa tipo casamento... ce tem que 13 confiá nele... é 14 GI40 é... mas eu não sei se ele aguenta o tranco... tenho medo que ele fale demais entendeu? 15 NO53 ( ) coisa... ele fala dormindo? 16 GI40 sei lá porra... nunca dormi com ele 17 NO53 ué... mas é casado ((Chega uma mulher PR23)) 18 GI40 oi gata 19 PR23 tudo bem? 20 GI40 tá bonita 21 PR23 brigada 22 GI40 como é que tá as coisas? 23 PR23 tudo bem 24 GI40 é? ( ) não... na boca 25 PR23 ah... safado 26 GI40 vai gostosa Contexto: Boate. IV42 e CL33 se encontram no balcão 01 CL33 me dá uma vodka por favor? 02 IV42 você tem fósforo? 03 CL33 me dá um pouquinho de curaçau blue? 04 IV42 assim fica bom? 05 CL33 uhum... qué prová? 06 IV42 a cor é maravilhosa... já tomô martine com campari? 07 CL33 martini com campari? Que mistura... num dá dor de cabeça? 08 IV42 dá... mas a cor é maravilhosa Contexto: IV42 e GI40 conversam no escritório 01 GI40 qui que esse cara tá fazendo aqui? 02 IV42 eu sei lá... quando eu cheguei ele já tava aí... esse cara é um demente 03 GI40 puta que pariu... Anísio... vem cá 04 AN38 ((para a secretária)) depois nóis troca mais umas idéia aí 05 GI40 entra... qual é a tua Anísio? nós já te pagamo... que que cê tá fazendo aqui? 06 AN38 tô pensando em mi involvê... vô dá um trampo aqui 07 IV42 ah é? qui que ce vai fazê hein? 08 AN38 vô dá umt rato na segurança... quero dá sossego pra vocês... final de semana cês vão pra praia... vai 09 comê umas beati... nem tempo mais pra isso vocês têm 10 GI40 vamo pará de brincadeira aí Anísio 11 AN38 cê num viu o que aconteceu com o seu sócio? então... deixa tudo comigo... eu vô tá pelos quatro 12 canto... eu vô tá cercando cara... 13 GI40 num vai dá Anísio... qui que a gente vai dizer pros outros funcionários? que cê faz o que aqui? 14 AN38 e desde quando patrão dá trela mano? tá ligado que dono pode tudo? dono manda prendê... dono 15 manda matá

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16 IV42 mas vem cá... cê tá maluco Anísio? 17 AN38 qui que é mano? 18 GI40 peraí... peraí ((LU27 entra em cena)) 19 LU27 doutor Ivan... a marina o doutor Araújo e os advogados já chegaram 20 GI40 olha Anísio... a gente tem um assunto muito importante pra resolvê agora tá?... dá um tempo depois a 21 gente conversa 22 AN38 ó... se demorá... é eu Contexto: Advogado (AD77) conversando com MA18 01 GI40 olá marina... olá como vai? 02 MA18 oi 03 GI40 [como vai o senhor? 04 AD77 [tudo bem Contexto: AN38 passeando pelo escritório (JO22) 01 AN38 e aí João... que tá fazendo? 02 JO22 compras 03 AN38 compras é? 04 JO22 compras de materiais ( ) cotação... regularizações... contratos 05 AN38 ( ) só no tecladinho né?... certo segue ai ((AN38 muda de sala)) 06 AN38 aí rapaziada... beleza? ((AN38 muda de sala de novo)) 07 AN38 beleza... e aí... dotôr Ivan viu isso aí já? 08 PE34 já... já viu 09 AN38 andô rabiscando aí é... como é que o patrão vai olhá isso aí... tudo rabiscado falô... certo? segue aí... 10 apaga aí... tá tudo borrado aí... Contexto: Sala de reunião. A AD77 fala na presença de MA18, GI40 e IV42 01 A AD77 o contador da construtora todo mês fecha as contas... pega as receitas... reduz as despesas... se 02 houver lucro ele é dividido entre os sócios 03 MA18 prá mim tá ótimo... tá tudo certo... eu só quero um dinheiro pra mim... todas essas outras coisas vocês 04 podem resolver com o meu avô... o que ele decidi:: tá bom pra mim ((Um dos participantes da mesa se manifesta)) 05 PR89 espera aí Marina... você agora é dona da construtora... é importante que você saiba tudo o que está 06 acontecendo 07 MA18 não... não entendo nada... e também não me interesso por isso... eu vô saí pra fumá um cigarro lá fora 08 tá? 09 GI40 pode fumá aqui Marina 10 MA18 não Gilberto... os senhores resolvem tudo pra mim Contexto: MA18 e AN38 conversam 01 AN38 ((para o cachorro)) que que tá acontecendo com você? cachorrão bonito... pele bonita bem vivida... aí ó 02 ((se dirigindo para MA18)) ah... ó ó aqui ó... chega mais chega aí... não vai fazê nada pra você não 03 MA18 não fais nada pra você porque ele te conhece 04 AN38 nada... conhece nada... é meu primeiro dia de trampo aqui hoje morô... como é que cê chama? 05 MA18 Marina 06 AN38 Anísio... dá tua mão Marina... vem cá... sem medo vem... vem... assim ó... faz de conta que ce tá 07 pegando num monte de algodão ó ((risos)) Contexto: Canteiro de obras. IV42 e GI40 conversam 01 IV42 Giba... Giba 02 GI40 e aí? 03 IV42 cê pode me explicá o que que é isso aqui? cê tá negociando com o Rangel?

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04 GI40 Ivan... a vida voltou ao normal... aquilo foi um assalto... a polícia até encerrou as investigações 05 IV42 mas por que que cê num me disse nada? 06 GI40 porque cê tem ficado muito fora da construtora 07 IV42 mas um negócio tão importante como esse cê tinha que ter discutido comigo 08 GI40 peraí... cê tá disconfiando de mim? 09 IV42 eu também sou dono dessa construtora Giba 10 GI40 claro que é... agora mais do que nunca 11 IV42 ah... mais uma coisa... na próxima reunião com o Rangel eu quero tá junto... tá bom? 12 GI40 sem problemas... é só você tá na construtora quando ele vié Contexto: Casal dentro do carro saindo do motel. 01 CL33 cê me leva no metrô? 02 IV42 ( ) trabalho? eu te levo lá 03 CL33 não eu vô pra casa... é longe... vai perdê tempo 04 IV42 não eu te levo... não tem problema... é só você me explicar pra mim ((vira-se para a mulher da guarita)) 05 é dezoito 06 AM28 a chave ficou lá? 07 IV42 ficou Contexto: Casa de MA18 01 AN38 ((Interfone)) é o Anísio... a Marina tá aí? 02 EM55 pode subi 03 MA18 e aí... e esse cachorro? 04 AN38 pra você ó 05 MA18 ((ri)) ah... que lindinho... que graça... brigada... óun... tá com sede bichinho? tá com sede? Eu vô pegá 06 um poco dágua pra ele 07 AN38 vai lá 08 MA18 dorêi ((AN38 observa as coisas da casa)) 09 MA18 chegaí 10 AN38 ó... pô 11 MA18 qué? 12 AN38 e isso aqui ó... tem problema? 13 MA18 numa boa... só tem a empregada aí mas ela nem sabe o que que é 14 AN38 eu sempre sonhei com um palácio... mas achei que era tudo conversinha moro? agora essa casa ai... dá 15 pra eu vivê numa boa ( ) vive a vida 16 MA18 tô afim de pintá as paredes de azul 17 AN38 cê é uma menina que tem escolha cara... azul... um azul royal... já reparou as nuvens? elas são azuis... 18 elas se movem... de canto pra canto... de espaço pra espaço... vão levando as forças negativas de dentro da 19 casa... levando tudo pras ondas do mar sagrado... azul... azul dá força... de odin 20 MA18 odin? 21 AN38 é:: azul de odin... príncipe do tempo... ( ) um rosa também... um rosa... um rosa meio ( ) assim nas 22 porta... já é um reforço cara... ó... tanto as força do bem quanto as força do mal... tranca... é o seguinte cara... 23 sabe aqueles dias que ce tá ( ) mal olhada 24 MA18 nóia... é tipo assim... noiado 25 AN38 ( ) ce tá me entendendo? Daí cê... orra... abre sua mente... olha pra cima 26 MA18 vô botá um som... ((Passa um tempo)) 27 MA18 num vô ligá o som não... vamo saí 28 AN38 bora Contexto: Casal no carro. Toca um rap. Casal entra em um salão de beleza. 01 AN38 opa... e aí... e aí... e aí... 02 MA18 oi 03 AN38 e aí... oi... oi... e aí ( ) trouxe a princesa pu cê dá um trato no cabelo dela 04 MA18 e aí? 05 G88 aí Anísio não dá jeito não esse cabelo aí... num tem jeito não

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06 AN38 como não tem jeito ( ) é o seguinte... tô apaixonado pela gata 07 G88 olha anísio... to sem tempo pra fazê... tô cheia de cliente... amiga ce me desculpa tá mas você não tem 08 horário marcado aqui tá lotado eu não tenho condições 09 AN38 ( ) é minha pretendente... cê vai dexá ela falando? 10 G88 olha Anísio... cê mi disculpa eu tô sem tempo pra você tá... você some aparece de repente você chega aí 11 eu não tenho nada a ver com as suas presepadas tá... dá licença... dá licença que eu tenho que trabalhá 12 AN38 firmeza... num vai dá mesmo né? tá legal ( ) ó seguinte... última vez que eu venho aqui tá? cê vai me vê 13 fazendo cabelo no Jassa... vambora 14 MA18 tchau ((Casal passeia pela favela)) 15 AN38 aí... vamo colá aí no ( ) do ( ) tomá qualqué coisa aqui 16 MA18 e aí ( ) firmão? tudo certo ((cumprimenta algumas pessoas)) 17 AN38 seguinte... pra ela uma maria mole e pra mim o de sempre 18 MA18 qué isso? maria mole? 19 AN38 é o seguinte ó... o dele com gelo... pra não virá o olhinho que a noite é nossa... certo 20 MA18 que pico hein 21 AN38 tô em casa 22 MA18 que loco 23 AN38 tudo nosso ((sai e vai falar com outras pessoas)) aí Rogerinho? 24 RO17 e aí mano... beleza? como ce tá? tudo bem muleque? 25 AN38 como é que tá? 26 RO17 aparecendo no morro? cê tá bem velho... tchutchuquinha aí 27 AN38 minha pretendente ( ) Rogério 28 RO17 í... foi mal... aí nego Anísio... contá um negócio pro cê Anísio... chegô uma da boa aquela da pesada 29 AN38 quem é que tá lá em cima? 30 RO17 Binão tá lá no ( ) 31 AN38 [chega lá 32 RO17 [qué dá uma passadinha lá... conversá com ele meu velho? vai lá então ((MA18 conversa com as pessoas do bar)) 33 MA18 muito muito muito show... essa parada é boa... num tem problema misturá assim? 34 PB20 pouquinho 35 PB23 cê é loca... vai misturá o barato? 36 MA18 qual o problema? 37 PB23 esse baguio é forte pra você truta heim 38 MA18 certo... tudo certo ((MA18 observa a cidade escura)) 39 AN38 vamo saí fora ((O casal entra no carro)) 40 MA18 aqui num é perigoso? 41 AN38 não... aqui é o paraíso do morro... ó lá... e agora nós somos integrantes desse paraíso... eu e você 42 MA18 Adão e Eva ((ri)) 43 AN38 Romeu e Julieta ((cheira o pó)) ( ) pega essa cara meu... que mistura... num vai assoprá 44 MA18 ã::: eu sei ô... ((cheira o pó e ri)) 45 AN38 e agora... que que ce qué fazê? ((O casal começa a se abraçar)) 46 MA18 cê tem camisinha? 47 AN38 não 48 MA18 a: tudo bem vai... é só um pouquinho Contexto: Praia. CL33 e IV42 conversam 01 CL33 que lugar hein? dá vontade de largá tudo e ficá por aqui 02 IV42 eu venho aqui desde muleque... meu pai tinha uma puta casa aí... passava as férias aí 03 CL33 e o que que aconteceu com a casa? 04 IV42 ah... eu tinha uns dezenove anos tinha acabado de entrá na faculdade... vivia bem pá cacete... vivia nessa 05 praia aí... largado... aqui do lado tem camburi... pegava onda... meu pai quebro... faliu... teve que vendê tudo... 06 tá vendo aquela casa? 07 CL33 qual 08 IV42 ali... aquela de telhado branquinho 09 CL33 sim

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10 IV42 prá chegá ali a gente tinha que pegá uma estrada de terra... tinha poça casa por aqui... a gente fazia umas 11 puta festa... essa praia era deserta... a gente fazia lual... sabe o que é lual? 12 CL33 não... me conta 13 IV42 fumava um baseado 14 CL33 cê fazia isso? 15 IV42 fazia muito mais que isso... tinha porra nenhuma na cabeça... ((CL33 entrega um pacote para IV42)) que 16 é isso? presente? ah... que maravilha... adorei 17 CL33 eu que te adoro Contexto: Na construtora AN38 se encontra com o SA35 01 AN38 aí Jão... cê veio mano? 02 SA35 e aí irmão... pô Anísio cê mandô eu colá eu colei 03 AN38 firmeza... tu gostô? Andréia... 04 SA35 Sabotage com licença 05 AN38 vamo lá cos patrão Contexto: Escritório. Conversam AN38, SA35, GI40 e IV42 01 IV42 tô falando... acabei de vê os dois lá na frente dentro do carro dela 02 GI40 que é isso ô Ivan... cê num deve tê visto direito 03 IV42 porra Giba... eu to dizendo eram eles eu pareio o carro quando eu ((vozes se confundem. AN38 e SA35 04 entram na sala)) 05 GI40 Anísio... quem é esse cara? 06 AN38 Sabotage ( ) 07 SA35 ( ) 08 AN38 tem três gravadora nas bota do cara... mais um negócio que nóis vamo investi... é cinco conto pra fazê 09 a gravação... manda um som aí Sabotage ((SA35 começa a cantar um rap)) 10 GI40 tá tudo bem tudo bem... parô parô 11 SA35 tá o cara tá desgostoso da vida e num curte o rap Anísio 12 IV42 que que cês acha? cês tão achando que isso aqui é um banco? 13 AN38 não... tô achando que o cara vai sai da quebrada lá... mó humilhação pegá dois busum e sai daqui sem 14 nenhum qualqué mano 15 IV42 mas vem cá isso aqui é uma empresa ( ) da contabilidade cê num pode chegá e pegá dinheiro sem mais 16 nem menos sem dizê pra quê 17 AN38 é toda empresa não tem esquema por fora... e o caixa dois? 18 IV42 mas vem cá esse cara é folgado pra caralho... GIBA ((vozes se confundem)) 19 GI40 peraí... calma calma... vamo resolvê isso aqui de outro jeito... calma calma 20 IV42 o que que cê vai fazê? cê vai pagá Giba? 21 GI40 fica na sua Ivan 22 IV42 mas 23 GI40 cinco? 24 AN38 cinto conto... taí 25 SA35 cê falô: 26 AN38 Sabotage num é pipoca não... ele vai adiantá lá o lado dele e devolvê esse merreca pro cêis 27 IV42 isso aí é esmola pro chapéu dos ôtro 28 SA35 ô Anísio... devolve o dinhero presses cara qualé que é 29 GI40 seguraí seguraí 30 SA35 [que frecura mano ô 31 AN38 escuta... nós vamo desenvolvê um esquema lado a lado... numa sociedade só nóis... escreve o que eu tô 32 falando... clareô Jão? ((vozes se confundem. AN38 e SA35 saem)) 33 IV42 vai pagando vai giba... vai vendo onde a gente vai chegá Contexto: IV42 vai à academia procurar por GI40 01 IV42 oi... eu tô procurando um amigo... Giba... Gilberto 02 BA26 tá sim... pode entrá 03 GI40 ô Ivan nem aqui cê mi dá sossego? 04 IV42 eu preciso falá com você... 05 GI40 que que cê qué?

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06 IV42 já viu isso aquí? 07 GI40 vi e daí? 08 IV42 cê tem alguma coisa a vê com isso? 09 GI40 puta que pariu... vamo conversá lá fora vai... ((IV42 e GI40 saem)) que merda que cê tá falando hein? 10 IV42 porra... a gente divia maior grana presse cara... ele morre num assalto isso num é esquisito? 11 GI40 olha aí... cê tá mi acusando do quê? 12 IV42 você tá usando o anísio pra resolvê os nossos problemas Giba? 13 GI40 vai se fudê Ivan ((Confusão)) 14 IV42 quem vai sê o próximo? EU? 15 GI40 eu não sou assassino cara... cê tá precisando se tratá ((Começam a se bater)) 16 IV42 fica ligado que eu tô de olho em você... fica ligado Contexto: IV42 conversa rapidamente com um homem. 01 IV42 não não hoje num vô entrá não... só preciso de um favor Contexto: IV42 e LE44 entram num bar, ficam lá por um tempo e saem. 01 LE44 e aí gosto do bar? 02 IV42 cadê Léo? 03 LE44 debaxo do banco... ( ) mina pagando o maió pau pra mim... pode crê... acho que võ ficá por aí mano... 04 vô me ajeitá por aí memo ((IV42 sai do lugar, vai para um quarto e chora segurando uma arma)) Contexto: CL33 e IV42 em um quarto. 01 CL33 qué isso Ivan? 02 IV42 é pra mi defendê 03 CL33 se defendê do quê? 04 IV42 eu tô com uns problema aí 05 CL33 que tipo de problema? cê vai matá alguém? ficô loco? 06 IV42 já disse que isso aqui é pra mi defendê ( ) 07 CL33 tem alguém te ameaçando? 08 IV42 num posso explicá tudo agora 09 CL33 num vai fazê nenhuma besteira hein... num vai estragá tua vida 10 IV42 eu vô largá tudo... eu vô embora de São Paulo 11 CL33 como largá tudo? 12 IV42 tenho mai nada pra fazê aqui... tenho mai nada... meu casamento já acabo... a construtora já não mi dá 13 nenhum prazer... que que eu vou ficá fazendo aqui? 14 CL33 não tem mais nada? pensa melhor no que cê tá fazendo 15 IV42 pensei demais... pensei demais... a única coisa que me interessa nesse momento é você... cê vem comigo 16 CL33 num posso largar tudo assim de repente... não é tão fácil 17 IV42 você pode claro é só você fazê a mala e a gente vai embora 18 CL33 embora pra onde? 19 IV42 aí... num sei... se fô dinhero o seu problema... eu garanto 20 CL33 eu num vô com você pra lugar nenhum com isso aí 21 IV42 não... a gente só precisa disso até... até ficar aqui... depois que a gente for embora eu jogo fora... eu te 22 prometo 23 CL33 tem certeza que não qué me contá o que tá acontecendo? 24 IV42 tenho... vamo embora comigo... vamo embora comigo 25 CL33 eu preciso de um tempo pra acertar as minhas coisas 26 IV42 eu te dô... mas saiba que eu não tenho muito tempo Contexto: Canteiro de obras. Chega AN38. 01 AN38 aí mano... aí mano... faz favor.. fala aí 02 PO65 que foi?

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03 AN38 chegô pra mim que tá sumindo uma pá de barato aqui... cadê as peça... as ferramenta... e o caminhão 04 amarelo 05 PO65 que cê qué comigo? 06 AN38 é o seguinte... a ordem veio lá de cima mano... chego reclamação pra mim... tem uma pá de mano 07 ratiando levando os barato pra fazê trampo lá fora 08 PO65 cê tá é se intrometendo demais... se você é malandro cê tem mais é que ficá na sua... eu só devo 09 satisfação pro doutor Gilberto 10 AN38 que mané doutô Gilberto mano? seguinte... eu vim aqui pra acabá com a bozolândia... ACABÔ A 11 BOZOLÂNDIA... o crime não é uva mano... 12 PO65 vai se fodê... se você qué resolvê a gente resolve aqui agora 13 AN38 é sem massagem mano... aqui é peso ((GI40 chega)) 14 GI40 porra o que tá acontecendo aqui? 15 AN38 ah... tem funcionário aí metido a mister eme 16 PO65 ô doutô... esse sujeito é um loco... tá atrapalhando todo o serviço 17 GI40 vai... todo mundo de volta pro trabalho vai... vem cá Anísio... quanto você qué pra sumi da minha vida? 18 AN38 tô gostando... não tem conta bancária que mi tira daqui... todo mundo esperto hein? tô registrando tudo Contexto: IV42 e AN38 no escritório 01 AN38 aí Ivan... firmão? seguinte... marquei uma reunião com a rapaziada... não quero passá de otário na 02 frente dos cara... peãozada botá a marmita debaxo do braço... tirá sarro de mim? a lá a bolinha do meu olho... 03 tá escrito otário? se liga... então leva a chuteira e o calção... não esquece... chuteira e calção ((IV42 permanece em silêncio)) Contexto: MA18 e AL26 estão em uma sala. Chega AN38 01 AN38 e aí? 02 MA18 Anísio... num era pro cê vê 03 AL26 oi tudo bem? 04 MA18 [esse é o alê... alê anísio... anísio alê 05 AL26 e aí vamo aproveitá... fazê um: cabelo novo aí? 06 AN38 tô na pampa meu 07 MA18 Anísio:: vai tomá um banhiinho vai... que hoje a gente vai pra balada ((AN38 sai)) 08 MA18 gostô dele? 09 AL26 meio esquisito Contexto: AN38 conversa sozinho 01 AN38 atitude mano... pau no seu cu filho da puta... claque claque bum... respeito é pra quem tem Contexto: IV42 no interfone com MI43 01 IV42 alô... por favor a Cláudia 02 MI43 Cláudia? num tem Cláudia aqui não 03 IV42 é:: a Cláudia ela mora aqui no prédio... ela é morena tem o cabelo comprido... uns trinta anos mais ou 04 menos 05 MI43 uma morena bonita assim cabelo:: comprido? 06 IV42 isso isso isso 07 MI43 ó... num sei se é cláudia mas tem uma assim no E2 08 IV42 E2 brigado Contexto: CL33 em um bar. 01 CL33 uma vodka por favor ((tenta ligar para alguém, sem sucesso)) Contexto: IV42 na frente do prédio. Chegam várias pessoas conversando alto. IV42 consegue entrar no apartamento de CL33 e observa tudo. IV42 liga a secretária eletrônica. GI40 deixou duas mensagens.

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01 GI40 ( ) só vô podê te dá essa grana amanhã viu... bom amanhã de manhã tô na construtora tá? liga pra mim 02 tá? um beijo 03 GI40 alô Fernanda... eu recebi o seu recado eu vi que você tá com pressa de falá comigo... mas pintô um 04 imprevisto... eu não vô podê te encontrá ( ) amanhã eu tô na construtora ((IV42 sai nervoso do apartamento)) Contexto: Boate. MA18 e AN38 estão juntos e se aproxima PI21 01 PI21 e aí Marina? 02 MA18 Pietro... e aí beleza? 03 PI21 tudo bom 04 MA18 jóia... Anísio Pietro 05 PI21 e aí cara tudo bom? Adorei seu cabelo 06 MA18 ah gostô? mudei... novo visual 07 PI21 ( ) me liga ((Aproxima-se a garçonete)) 08 MA18 boa noite... eu já sei o que eu vô pedi... eu vô querê um uísque com energético por favor... e você? 09 AN38 ( ) pra mim... faz uma média aí que eu vou resolvê umas fita ali... dois ( ) ((AN38 sai e vai falar com PI21)) 10 PI21 qué isso bixo tá maluco? 11 AN38 ( ) mulher de vagabundo 12 PI21 tá loco... me larga cara 13 AN38 bostinha cor de rosa lá no morro serve pra fazê moldura na parede ((AN38 volta para perto de MA18)) 14 AN38 e aí gata... fui cumprimentá o cara direito 15 MA18 e agora... ele foi mais: legal com você? ((ri)) 16 AN38 o barato é o seguinte... nem cristo... foi apresentado convenientemente moro? 17 MA18 ((risos)) Contexto: IV42 no interfone do apartamento de GI40 01 IV42 eu quero falá com o Gilberto do décimo segundo 02 PO10 o seu Gilberto não tá não 03 IV42 como cê sabe? Cê tocô lá em cima pra sabê? 04 PO10 seu Gilberto disse que vai chegá bem mais tarde 05 IV42 tá então dá um toquinho lá... eu tô querendo sabê de verdade... vai rapidinho hein? 06 PO10 tá espera um pouquinho ((IV42 liga para alguém)) 07 IV42 Luísa? Luísa sou eu o ivan... cadê o Gilberto? onde ele foi? jantá? jantá com quem porra? tá... ele saiu 08 sem celular? tô tentando ligá pra ele direto... tá... cê diz que tô atrás dele... quando ele chegá cê diz que o ivan 09 tá atrás dele... cê entendeu? tá... tchau Contexto: MA18 e AN38 saem da boate. 01 MA18 toma isso aqui ó... pra gente se diverti ((eles saem e vão para outra boate)) Contexto: IV42 entra em uma boate e conversa com HB30 01 IV42 quero falá com o Giba... o Gilberto 02 HB30 o Gilberto num tá 03 IV42 mas ele vem pra cá? 04 HB30 num sei... essa hora é difícil ((Confusão de vozes. IV42 é expulso da boate)) 05 IV42 se o Giba aparecê por aí cê fiz que eu tô atrás dele... Ivan... Ivan Contexto: GI40 chega em seu prédio e CL33 aparece 01 CL33 porra Giba... onde é que cê tava? 02 GI40 que que cê tá fazendo aqui? 03 CL33 fudeu tudo... o cara descobriu

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04 GI40 como descobriu? 05 CL33 o babaca arrombou a porta do meu apartamento... deve tê ouvido o seu recado na minha secretária... 06 que trabalhinho robáda hein? como é que cê num me fala que o cara era loco? 07 GI40 onde ele tá agora? 08 CL33 como é que eu vô sabê? se liga hein Gilberto que hoje cedo quando a gente se encontro no motel ele 09 tava armado hein 10 GI40 o Ivan armado? 11 CL33 é armado... tomei um puta susto... falei pronto... esse cara veio fudê comigo aqui pra me fudê depois de 12 verdade... vai me matá... ó vô tê que saí fora... vô precisa de mais grana cara... num posso volta pra minha 13 casa 14 GI40 [vamo resolvê essa porra agora hein entrai 15 CL33[esse cara é muito esquisito hein... cuidado 16 GI40 entraí Contexto: GI40 e AN38 conversam em uma sala. 01 AN38 cola aí mano... senta aí... tomá qualqué coisa mano 02 GI40 não... não quero não... Anísio pelo amor de deus... eu tô falando sério... o Ivan tá fora de controle 03 AN38 calma... num vem apavorando pra cima de mim... ó... pega aqui... senta aí... senta aí... quem é que boto 04 o rango lá? o belisco pá ele comê? foi você mano... num fui eu 05 GI40 eu achei que ele num ia aguenta... ele ia acabá estragando tudo 06 AN38 corre atrás da tua melhora meu irmão... vai fazê tua vida 07 GI40 [o Ivan tá armado... ele é capaz de qualqué coisa... você tem que dá um jeito nele 08 AN38 escuta Jão... eu não faço mais... eu mando fazê... tô vivendo a vida... faz que nem eu mano... mete a 09 cara no bagulho... num dá pá ficá na sombra não... cê tem apetite corre atrás mano... ó... vou te emprestar o 10 parabelo cê vai lá e tranca ele tá... num dá guéla pra ninguém... morto num fala... quem nasce com boca fala... 11 morto num fala 12 GI40 você também tá no rolo Anísio... vai sobrá pra todo mundo... cê já penso se o Ivan conta pra Marina 13 quem você é? ã? 14 AN38 olha pra mim filho... se tisorá meu barato com a mina eu vô buscá seja lá quem fô... aquele que tive 15 dedo de gesso di mi apontá eu estóro o crânio... que nem eu fiz com os dois putos... da cadela eu trouxe o 16 outro e as jóias... do pilantra eu trouxe a grana... agora do cagueta eu vô trazê a alma... meu troféu vai sê a 17 alma dele Contexto: IV42 se envolve em uma batida de carro. Saem dois homens (HC20 e HC21) 01 HC20 puta que pariu mano... ô mano... estragou tudo o meu carro maluco 02 IV42 [tudo bem... eu pago aí 03 HC20 ô mano.. cê é cego... cê num viu o sinal não mano? 04 IV42 [porra eu num to falando que eu pago essa merda? 05 HC20 ô meu num vem falá que meu baguio é merda não hein mano? 06 IV42 qui qui é? qui qui é ? ã :: ((aponta a arma para os dois homens)) 07 HC20 cê num é homi não mano... cê num tá vendo que nóis tamo tudo disarmado? 08 HC21 ô:: presta atenção mano... ô: num é assim não ((Vozes se confundem. IV42 sai andando pelas ruas da cidade)) Contexto: IV42 confessando. 01 IV42 eu tenho um sócio que... que mi involveu numa história e... qui acabo contratando um cara pra mate o 02 meu ôtro sócio... escroto... ele é bandido mesmo... bandido assassino... tô um poco desesperado... um poco 03 não... eu tô.. bas/tan/te de/ses/perado... eu sô ingenhero... eu sô ingenhero Ivan Soares... o meu nome é... 04 tenho uma conduta perfeita ((tosse)) eu sô casado... eu... eu... eu amo muito a minha mulher... ah... a gente faz 05 umas porra de umas cagada na vida mas eu... eles tão querendo me mata eu num sei pra onde í... eu... eu tô 06 em pânico... parece que a qualqué momento alguém vai chegá atrás de mim e... ( ) por perto... tipo assim 07 por perto... tão querendo me matá Contexto: Fachada da casa de MA18. Saem AN38 e GI40. Está a sua espera NO53

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01 NO53 e aí Giba? tu viu o tamanho da merda que cê me arrumo? se num é tê gente minha no plantão... essa 02 hora tu tava era fudido... o cara taí ó... deu todo o serviço... agora é com vocês... dá um jeito nele... o que eu 03 podia fazê eu já fiz... ti vira ANEXO 02 Transcrição do filme “Narradores de Javé” Contexto: JF22 corre com uma mochila nas costas. Ele chega perto de um rio e vê um barco (que provavelmente esperava) partindo. A paisagem é de vegetação seca. 01 JF22 ÊI... ÊÊI... Contexto: Botequim. Várias pessoas conversam. 01 JF22 a senhora me vê uma água de coco por favor? 02 SO39 que que cê qué moço? 03 JF22 uma água de coco 04 SO39 ô mãe dá uma água de coco pro moço... tsc... fecha esse livro mãe 05 ZA48 não se abesquinhe não moço... às cinco hora tem outro barco 06 JF22 tô sabendo... só às cinco tem o próximo né 07 ZA48 em ponto no relógio 08 SO39 em ponto em ponto também não né Zaqueu... que às vezes chega às seis... sete... às vezes num chega... 09 ((risadas)) chega não... não se aveche não que o pessoal dorme num quartinho que eu tenho ali no fundo 10 quando a barca some 11 SF50 bota uma pinga aqui pra mim Souza por favor 12 SO39 não... primeiro tu toma essa depois eu lhe dou outra 13 SF50 aqui num tem pinga ainda 14 SO39 e você acha que tá com dor de corno aí... não se preocupe não... chifre é coisa de hôme, boi usa de 15 ousado que é ((rindo)) 16 SF50 e por que você não usa Souza? ((risos)) 17 SO39 ôu... ô mãe... o coco do moço mãe... fecha esse livro mãe... Ô:... depois de véia resolveu aprendê a lê 18 ((risos)) 19 ZA48 às vezes é bom:: 20 SO39 bom pra que Zaqueu? 21 ZA48 a gente nunca sabe né... eu memo... que não sou das letra... posso contar... o rebuliço: que uma escritura 22 foi capaz de fazer... ó... é um causo... é o causo mais mais... CÊS nem vão querê ouvi 23 SF50 conta logo homem desembucha 24 SO39 conte hoje... o rapaz vai ter que ficar aí esperando... horas... dias... ((risos)) 25 JF22 pode conta 26 ZA48 vão escutando... Aconteceu no Vale do Javé 27 SO39 vale de quê? 28 ZA48 Javé... povoado onde eu nasci e cresci... foi quando caiu em cima de nóis a maior desgraça: que um 29 povo pode vivê: pra vê: Contexto: Igreja lotada. Pessoas conversam alto. Confusão de vozes. 01 ZA48 é isso mesmo gente...Vão construi a barragem... Javé tá no caminho das água... logo isso aqui tudo vira 02 represa... ((confusão de vozes)) Nós vamos ter que sai... nós vamos ter que sai 03 DE41 ah num pode... a gente num pode sai da nossa casa ((confusão de vozes)) 04 ZA48 pode... pode... AQUI... ô:: gente... o Vado... seu Vado teve lá comigo... conta pra eles Vado 05 VA56 os engenheiro abriram os mapa na nossa frente e explicaram tudinho nos pormenor... TUDO com os 06 número, as foto, um tantão delas... e explicando pra gente os ganho e os progresso que a usina vai trazê... 07 vamo tê que sacrificar os tantos para beneficiar a maioria... a maioria eu não sei que são mas nóis é que somo 08 os tanto do sacrifícios não é não Zaqueu? ((confusão de vozes)) 09 ZA48 vamo conversa gente... eu perguntei pros home se não tinha nada no mundo que a gente pudesse fazê 10 pra salvá Javé das água e que se tivesse a gente ia fazê 11 FI29 e aí Zaqueu tem jeito?

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12 ZA48 os hômi disse que só num inunda quando a cidade tem alguma coisa importante... história grande... 13 quando é coisa de tombamento e aí vira patrimônio... ai eles não mexe nela 14 FI29 ih... porra aí então danou-se... esse lugar velho não vale o que o gato enterra 15 VA56 o que o gato enterra tem na sua cabeça ((confusão de vozes)) 14 ZA48 foi aí memo seu Firmino ao contrário do que cê o senhô pensando foi me acendeu assim uma 15 esperançazinha... porque se Javé tem algum valor... são as história das origem... os guerreiro lá do começo 16 que cês vivem contando e recontando... e isso minha gente... isso é patrimônio... isso é história grande 17 DE41 e você disse isso pros engenheiro Zaqueu desse jeitinho caprichado que você tá dizendo agora? 18 ZA48 e eu num disse? Eu disse... 19 DE41 muito bem... 20 ZA48 ((Confusão de vozes)) e não adiantou nada ((confusão de vozes)) não adiantou... não adiantou nem eu 21 contar que aqui tem muita terra muita propriedade adquirida só nas divisas cantadas 22 FI29 num seja por isso... entonce nói vamos todo mundo lá e cantamo as divisa ((confusão de vozes)) Contexto: Bar. Vários homens conversam. 01 SO39 péra aí Zaqueu... que negócio é esse? Divisa cantada? 02 ZA48 ah o sujeito ia assim num elevado via o vale diante de si e cantava... daqui da curva da terra até o 03 corguinho onde todo mundo se banha... dali até encontra as terra do João Fubuia... tudo que tive dentro desse 04 trecho são terras minhas... fulano de tal... era assim... e as terras passavam de pai pra filho ((risos)) 05 SO39 então eu vou chegar aqui também... e vou dizer daqui da beira do rio até o armazém do Zé... dali da 06 ponte até a antena parabólica é tudo meu... Souza... ((risos)) EU TÔ RICO MÃE ((risos)) 07 ZA48 ( ) não... Cada um só cantava a porção que conseguia cultivar 08 SO39 mas como é que aquele povo lá de Javé... ia conseguir defender uma terra que tava só assim: 09 apalavrada? 10 ZA48 Num tava fácil... mas... quando tudo parecia perdido... uma idéia me socorreu e começou a alumia essa 11 cabeça que é minha Contexto: Igreja lotada. Pessoas conversam alto. Confusão de vozes. 01 ZA48 escuta gente... Ô Ô... escuta aí... os home disseram que... só não inunda se for patrimônio não é assim? 02 Então eu já sei o que a gente pode fazer 03 VD74 o que que nós vamo fazê? 04 ZA48 até hoje ninguém escreveu também porque não precisou... mas então vamos nóis mesmo hoje escrever 05 a grande história do Vale do Javé ((burburinho)) vamo colocar no papel os enredo gente desencava da cabeça 06 os acontecimento de valor botar na escrita tudo os acontecimento importante pra prova pras autoridade 07 porque Javé tem que ter tombamento 09 DE41 tá certo... história grande de valor é que não falta aqui né? ((confusão de vozes)) 10 ZA48 só que tem uma coisa... eles falaram lá que só tem validade esse trabalho se for assim... científico 11 SI66 que coisa científico Zaqueu? 12 ZA48 uai científico é... é... é... bom assim... que não pode ser... essas... pataquada mentirosa que cês inventam 13 essas patranha duvidosa que cês gostam de dizê e contar? 14 FI29 peraí Zaqueu tudo que eu conto é caso acontecido 15 DE41 e como é que vamo juntá as história se tá tudo aí espalhado na cabeça do povo 16 VA56 e de quem é a mão santa que vai escrivinha... botá as letra no papel ((burburinho)) 17 FI29 chama Antônio Biá ((confusão de vozes)) Contexto: Casa de AB54 01 FI29 Ô Biá... ((murmúrios se confundem)) Contexto: AB54 é carregado por VA56 e FI29. 01 SG77 salafráio... você não presta Biá... você é um sem vergonha Contexto: Bar. Vários homens conversam. 01 SO39 tá Zaqueu... mas que babilônia aprontou esse tal de Biá? 02 ZA48 o povo queria pegar Antonio Biá na unha... pois ele não trabalhava no posto de correio... e pra que um 03 posto de correio num lugar que ninguém sabia escreve? Então o posto ia fechar... ((mudança de contexto:

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04 ZA48 narra uma história)) daí... pra salvar o emprego... Biá inventô de escrever carta pra tudo quanto é cidade 05 onde ele tinha um conhecido... e pra atiçá essa gente ele começou a inventar história usando da vida do 06 vilarejo... aumentô os caso aconticido... mintiu... e com malícia ia difamando um e outro infiliz do povoado... 07 tudo feito com muita graça sapiência ( ) o que aconteceu... o movimento do correio cresceu... e ele ficou com 08 o emprego... só que história dos outro em boca de gente corre mai rápido que vento... ((confusão de vozes)) 09 quando o povo de Javé descobriu... não houve perdão... queriam desancá descabela muê o pobre do Antônio 10 Biá ((confusão de vozes)) o resultado é que ele foi expulso de Javé pra nunca mais voltá... Antônio Biá ficou 11 morando só... retirado nas redondeza... mas agora o povoado precisava dele Contexto: À noite, várias pessoas conversam em torno de AB54 01 FI29 trouxemo o salafrário... olha aí seu Vado olha aí seu Zaqueu... trouxemo a incomenda ( ) ((confusão de vozes)) 02 ZA48 deixa o home... deixa o home... pode deixá o home... deixa o home gente deixa o home... pronto 03 calma... não tinha combinado? Vamo fazê as coisa direito... aí seu Antônio Biá... aqui... o povo não esquece 04 seu Biá... taí a prova da sua ladinage... as carta futriquenta que cê espalhou pela região... nas minha andança... 05 eu consegui recuperá um bocado delas... lê aí Antero 06 HL45 pois não Zaqueu... “prezado amigo pois o caso é que aqui também tem um velho que pousa de galo 07 majestoso e bate as asas pra cima de tudo que é rabo de saia mas o coitado já não deve de ter uso e 08 competência naquela parte que todo o homem preza” ((risos)) 09 VD02 [[Aí seu Vado 10 DE41 [[Você é um safado 11 ZA48 calma gente... calma gente... vamo concordá... vamo concordá que se Antônio Biá só escreve mentira... 12 ele escreve muito bem... então... então Antônio Biá o povoado lhe oferece a ocasião de você cumpri o seu 13 ofício de escrivão e ainda pratica o maior feito de sua vida... a gente quer que você escreva a história grande 14 do Vale de Javé 15 AB54 cê qué que eu escreva... como é que é? 16 ZA48 tem que fazê um dossiê... uma juntada na escrita das coisas importantes acontecidas por aqui... é ou não 17 é ((confusão de vozes)) 18 AB54 mas Zaqueu... o gente... que diabo de coisa importante aconteceu em Javé? ((confusão de vozes)) 19 ZA48 pois a maneira de saber é ouvindo... a nossa gente contando as tais história... e escrevendo ouvindo e 20 escrevendo... e assim vai nos ajudando... mas tem uma coisa... não pode ser historia inventada chistosa sem 21 regra tem que ser história verdadeira científica 22 AB54 e quanto tempo eu tenho pra parir esse dossiê? 23 ZA48 eu tenho que ir embora amanhã pra dizê pras autoridade que o povo de Javé tá se unindo preparando os 24 documento quando eu voltá é milhó que o seu serviço esteja bem adiantado 25 AB54 ah num sei não... isso tá parecendo coisa de gente doida ((confusão de vozes)) 26 ZA48 antônio Biá um dia você salvou o seu emprego à custa do povoado agora cê vai ajudá a salvá o 27 povoado... às custas do seu trabalho tá entendendo? Ou aceita... ou vai embora de vez... ensinando o caminho 28 antes das água entrá Contexto: ZA48 conversa com SG77 01 SG77 então me traz um tacho grande de fazer sabão... quando o sinhor vié eu pago 02 ZA48 tá tudo aqui 03 AB54 oi Zaqueu 04 ZA48 eita que o home tá tudo escovado e lustrado? 05 AB54 gostou? O senhor pode viajar sussegado que eu dei a minha palavra o que eu prometi vai ser cumprido 06 ZA48 ô seu Dito bom dia... eu não esqueci a sua encomenda não 07 AB54 o seu dito dê bom dia pros probre 08 SD80 bom dia seu Biá... este é o livro da salvação 09 AB54 perfeitamente 10 ZA48 ó nem tocou ( ) remelexe a perereca dentro da boca sô 11 SD80 tá achando que tá um pouquinho grande não? 12 ZA48 seu Dito tá ótimo... tá parecendo uma espiga de milho 13 AB54 deixa eu vê seu Dito deixa eu vê deixa eu vê deixa eu vê... sorria... ((risos)) não não tá grande não é os 14 seus beiço que são pequeno e depois o senhor fica com um ar mais alegre risonho assim... que nem um jacaré 15 apaixonado ((risos))... agora o senhor pode namorar até com serrote viu porque o senhor tá um pão... de 16 quantos dias não se sabe

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17 ZA48 foi difícil convencer o povo... a aceitar você de volta... não traia a minha confiança... eu volto o mai 18 rápido que pude Contexto: AB54 na casa de TE33 01 AB54 Tereza... ô Terê... ô teretetêi... Terezinha... seu pai tá aí? 02 TE33 não 03 AB54 sua mãe tá aí? 04 TE33 tá não 05 AB54 então dá licença 06 TE33 biá cê num divia tê entrado 07 AB54 eu sô todo errado... entro sem esperá licença só saio se for mandado... tava com uma saudade louca a 08 minha muito e a sua pouca... isso quer dizer eu te amo muito 09 TE33 meu pai... meu pai... 10 AB54 eu bati o povoado todo te procurando seu Vicentino porque eu queria que o sinhô fosse o primeiro 11 VI79 o senhor me faça o favor de sentar... 12 AB54 pois muito bem seu Vicentino eu vim aqui lhe ouvir... e anotar assim tudo que for importante... das 13 suas lembranças javéicas... as históricas e as pré-históricas... pra gente pôr no livro... a odisséia do vale do 14 Javé... primeira parte... eu num uso caneta... eu não me acostumei... eu não sei se o senhor já viu... que a 15 caneta ela corre no papel assim sem freio então se a gente erra e quer arrumar aí emporcalha tudo fica aquela 16 disinteria de tinta... agora o lápis não o lápis é maravilhoso porque... ele agarra o papel ele aceita a borracha 17 ele obedecea mão e ao pensamento da gente aliás eu sou um homem que só consegue pensar a lápis seu 18 Vicentino... mas voltando ao tema javélico é... olha seu Vicentino se eu por acaso escrevi naquelas cartas 19 alguma coisa que lhe aborreceu o senhor... o senhor fala... 20 VI79 já me ofereceram muito dinheiro por essa garrucha... mas eu não troco por dinheiro nenhum e nem por 21 nenhum favor... essa correia que o senhor tá vendo aqui... já esteve no punho de Indalécio 22 AB54 indalécio o fundador de Javé? 23 VI79 esse mesmo... como senhor já deve de ter sabido é quase certo de que eu seja um descendente indireto 24 daquele nobre chefe de guerra... Indalécio... era um homem seco duro sistemático era um homem que nunca 25 dizia sim quando queria dizer não... cada coisa pra ele só tinha uma medida... consta que nunca descia do 26 cavalo dormia montado na cela que era para tá pronto pra guerra a qualquer momento... e o senhor não vai 27 escrevê? 28 AB54 claro... In-da-lé-cio 29 VI79 a história de Javé começa junto de Indalécio Contexto: VI79 narra uma história sobre IN66 01 VI79 foi ele quem guiou os nossos antepassados... um punhado de gente valente que era sobra de uma guerra 02 perdida tinham sido expulsos de sua terra de origem pelo rei de Portugal que queria tomar o ouro que era 03 deles pois Indalécio mesmo ferido foi trazendo o seu povo pra longe em busca de um lugar seguro mas 04 Indalécio não atinava com um lugar certo ele queria ir mais longe distante de braço de governo e de rei... 05 andaram dias meses trazendo nas costas o sino que era a coisa mais sagrada que possuíam... Indalécio 06 mergulhou naquele mar de bois, escolheu o boi mais bonito e mais gordo... matou... e levou pra matar a fome 07 de nossa gente... não disse uma palavra e... EI por que que você não tá escrevendo? 08 AB54 porque meu Deus eu tô escrevendo 09 VI79 e eu sô cego? Eu num to vendo que você não tá mexendo essa mão em cima desse papel 10 AB54 sente-se sente-se sente-se também não dá pra escrever tudo numa carreira só né seu Vicentino... aliás o 11 senhor vai me desculpar mas esse negócio de Indalécio ir lá e pegar um boi assim sem mais nem menos não 12 tá bom não 13 VI79 por que que não tá bom 14 AB54 ninguém vai entregar um boi assim de graça só se for boi de camelô ó essa parte aí tem que melhorar 15 VI79 melhorar? Você já tá querendo inventar é? 16 AB54 não inventar não é florear um bocadinho... vamo vê? Deixa eu vê... “os dias pareciam não ter fim e 17 aquela gente guerreira de tanta fome quase não () aí passa por eles aquela boiada imensa gorda um dilúvio 18 bovino ê boi ê boi aquele mundo aquele mar aquele mar de boi capaz de fazer verter lágrima só de ver 19 aquelas coxas... as costela... as alcatras chiando na brasa tu tu tu tu tu pingando gordura no fogo... mas tinha 20 muita gente armada aguardando aquele bovil... bovil é um canil de boi... então Indalécio pensou numa outra 21 estratégia de guerra... ele raciocinou-se todo e esperou ( ) e quando os bois tavam mais quietos mais calmos e 22 os vaqueiros mais espreguiçados aí no meio daquele breu ele chamou dois homens do seu bando os mais 23 valentes mas ele não chamou pelo nome ele usou onomatropias a língua dos bicho ((AB54 imita bichos)) um

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24 se chamava Rolinha e outro era Zé da Onça e mandou os dois homens rastejarem assim lagarteando pra 25 dentro daquele boiaréu e... e... e... 26 VI79 e o quê: 27 AB54 calma calma e... e... e... aí eles arrancaram as alpercatas dos pés e calçaram nas quatro patas do boi 28 mais gordo e foram trazendo o bicho calçado bem devagarinho sem fazer barulho nenhum sem dar um tiro... 29 mas com tamanha bravura e esperteza 30 VI79 o senhor me faça um favor o senhor volte atrás... e escreve exatamente como eu lhe ditei 31 AB54 mas não fica melhor assim homem de Deus... eles pegam o boi é na unha mesmo seu Vicentino 32 VI79 e alguém vai acreditar em botar sapato em boi pra não fazer barulho seu Biá 33 AB54 olha... uma coisa é o fato acontecido outra coisa é o fato escrito... o acontecido tem que ser melhorado 34 no escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido 35 VI79 eu num tô gostando disso não 36 AB54 tá bom mas também não vou brigar com você eu já tenho a sua história gravada na memória e depois 37 eu escrevo com calma... floreio bonito... assim com estilo gróticos... assim com ponto e víngula e depois eu 38 mostro pro senhor tá bom assim? 39 VI79 mas eu ainda não acabei 40 AB54 não mas o senhor termina depois... por enquanto o senhor me diz o seu nome sobrenome e pronome pra 41 gente botar no livro 42 VI79 Vicentino Indalécio da Rocha Contexto: AB54 conversa com BA27 na rua, embaixo de uma árvore. 01 BA27 seu Biá chega aqui... chega aqui Biá...vem cá... por favor... faz favor... sente aqui desfrute que hoje é de 02 graça 03 AB54 é de graça é? 04 BA27 é de graça hoje 05 AB54 ih... isso é ( ) depois de mão de mulher só mão de barbeiro que alisa cara de macho e põe chêro 06 BA27 e aí Biá como é que tá o nosso livro aí o esse povo tá colaborando? 07 AB54 é o tem colaborado sim... devagar eles vão colaborando 08 BA27 ó eu... eu também de minha parte eu... bem que eu gostaria de ajudar... ocê sabe né... ter uma 09 historiazinha pra... pra você colocar aí nesse livro... olha eu tenho uma... mas num é história assim de grande 10 valia não 11 AB54 eu imagino 12 BA27 mas o senhor é um homem de idéia né... escreve de formosura... fecha a boca aqui... eu pensei que o 13 senhor podia 14 AB54 pensô o que seu Dirceu? 15 BA27 óia eu pensei que barba num faz só num dia não... cresce todo dia... então o senhor podia... botar meu 16 nome com uma boa história desse livro aí mesmo que fosse assim um pouquinho arranjada 17 AB54 péra aí seu Dirceu... a coisa não é bem assim não o senhor tá confundindo Habeas Corpus com Corpus 18 Christi... hum... o meu trabalho de responsabilidade é verdadeiro 19 BA27 não me entenda mal não pelo amor de Deus não quero que o senhor 20 AB54 e o mundo de hoje também não é mais como antigamente... no tempo do rascunho da Bíblia quando só 21 bastava ter um homem um festo de capim e um jumento pronto se tinha uma boa história... hoje não contar 22 uma história é difícil eu quero pelo menos um ano de barba grátis 23 BA27 um ano Biá... eu pensei no máximo seis meses... ou então eu faço a sua barba de dois em dois dias 24 pronto 25 AB54 de jeito nenhum... o senhor pensa melhor... raciocine-se... e traga uma proposta na altura do meu 26 esforço 27 VA56 bom dia seu Biá... viemo lhe acompanhá 28 AB54 a troco de quê? 29 FI29 ajudá no que o sinhô precisá 30 VA56 mas também lhe apressá se o senhô folgá dimais Contexto: VA56 e FI29 com AB54 na casa de DE41 01 VA56 cadê o homem? Como é que foi que ele conseguiu? 02 AB54 FI: FI: 03 AB54 ô de casa... ô Diodora... 04 FI29 ixe: 05 DE41 é preciso muita coragem ou muito pouco vergonha na cara... rua seu Biá

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06 AB54 na rua eu já to Diodora to querendo é entrá 07 DE41 mas nem com pedido de santo nem com ( ) do diabo você merecia era surra de pau sujeito inventador 08 traste mentiroso 09 AB54 inventador não... eu só mostrei que tinha fogo onde todo mundo só via fumaça... gente escritura é 10 assim... um homem curvo vira cacunda... gente do olho torto eu digo que é zarôio... pur exemplo... se o 11 sujeito é manco na vila hã hã então... na história eu digo que ele não tem perna é assim é das regra da 12 escritura 13 DE41 pois a minha regra é outra seu Biá o senhor vai ver uma coisa o senhor sai da minha porta viu senão eu 14 vou te meter o pau na cabeça senhor sai daqui hein seu biá o senhor desapareça viu eu tô que não aguento do 15 senhor 16 AB54 a senhora não se agigante não Deodora porque galinha que muito cisca acha cobra... se a senhora não 17 quisé... eu não dô grafias nas suas odisséia ou escrevo o que me vié na cachola sem ponto e vírgula 18 SG77 [ô Biá... 19 AB54 [e a senhora cala a boca que a senhora não sabe ( ) sente aqui dona Biju... sente... sente aqui... 20 AD43 [calma seu Biá 21 AB54 [[e a senhora monte na sua vassoura e pode voltar pra Salvador 22 DE41 [[vá simbora seu Biá... vá simbora 23 AB54 [a senhora preste atenção... preste bem atenção... eu tava quieto no meu canto... vocês mandaram me 24 chamar... eu estou fazendo o meu trabalho o meus ofícios agora se a senhora não tem nada a dizer que lhe 25 ponha nas páginas da grande história do Vale do Javé eu lhe digo adeus e saionará Contexto: Casa de DE41. Várias pessoas juntas. 01 AB54 pronto Diodora... abra o seu coração... quero emoções 02 DE41 hum... eu sei qual é as emoções... começa a escrever seu Biá... você sabe... como todo mundo... que 03 Javé surgiu foi de uma cidade que saiu fugida de guerra... eu só não lembro que guerra era essa 04 FI29 era guerra contra a coroa ô coroa... o rei queria as terra porque tinha ouro 05 DE41 pois bem... era guerra contra a coroa... mas o fato é que a nossa gente saiu foi fugida sem ter pra onde ir 06 VA56 [Fugida não senhora... eles saíram em retirada 07 DE41 ô mas não é a mesma coisa homê? 08 VA56 não é não não é não... fugida é quando os home dão as costa pro inimigo e sai correndo acovardado... 09 retirada é diferente... aí os home vão saindo de marcha ré devarinho mas com a cara voltada de frente pro 10 inimigo 11 FI29 e se o inimigo não tive nem na frente nem atrás? 12 VA56 ô seu Firmino 13 FI29 [[Uai pode ser que esteja de lado seu Vado é uma questão geográfica necessariamente o inimigo tem 14 que tá na frente 15 DE41 [[Ô Firmino fica calado Firmino que coisa fica atrapalhando a conversa ((confusão de vozes)) 16 AB54 péra aê péra aê péra aê se ( ) falasse cada um de uma vez não precisava de tanta gritaria vai começar 17 essa esculhambação cedo assim? 18 AD43 ô seu Biá deixa a Deodora falar? 19 AB54 cala a boca exu de galinheiro 20 AD43 o senhor me respeite viu seu Biá o senhor me trate mais sério viu 21 AB54 [Tá bom tá bom... tapioca de exu serve? 22 DE41 senta aí senta aí 23 AD43 ôxe... não respeita ninguém rapaiz 24 DE41 fazia muitos dias que caminhavam cansados... Indalécio pelo meio 25 AB54 pode pular essa parte Deodoro porque esse comecinho seu Vicentino contou recontou e descontou 26 DE41 é mas já deve ter contado puxando pro lado dele... aposto que nem toco no nome de Mariadina 27 FI29 é... tudo mundo sabe que tu também se crê parente de Mariadina 28 DE41 me creio não sinhô... eu sô memo e posso provar todo descendente minha gente tem essa marca de 29 nascença óia aqui seu Biá óia aqui tá vendo 30 AB54 é pois é... é uma bonita marca... ((risos)) assim... robusta... ((rindo)) é uma pena que eu não possa 31pregar a senhora no livro como prova... então... vamos aos fatos de uma vez 32 DE41 vamos aos fatos né... vamos aos fatos... pode escrever aqui... é que tem muita gente aqui que não dá 33 crédito a Mariadina... sabe por que minha gente... porque era muié... Contexto: DE41 narra a história de MD30.

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01 DE41 caminhavam há dias... o de comer era pouco... e muitos ficavam mortos pelo caminho... Indalécio 02 mesmo ferido guiava o bando... mas nenhum lugar parecia presta pra assentá sua gente... ((música começa a 03 tocar mais alta)) Mariadina desapareceu por um dia e uma noite... mas no dia seguinte Mariadina voltou para 04 levar a sua gente ao lugar que os pássaros da noite haviam lhe mostrado... e ali no grande vale ela cantou as 05 divisas de Javé... 06 DE41 MD30 [No rumo do cruzeiro do céu até onde a vista alcança... há de ser terra nossa... 07 AD43 Nesse contrário de rumo até onde o homem possa andar um dia inteiro de marcha... há de ser terra 08 nossa... nesse rumo onde acaba o vale... isso é Javé 09 DE41 MD30 [Aqui criaremos nossos filhos com a dureza da pedra... Contexto: Sala da casa de DE41. Todos reunidos. 01 DE41 é minha gente... mulher que de fato teve importância foi Mariadina... escreve aí seu Biá... ô home tá 02 dormindo... deixa pra dormir em casa... escreve isso aí... bóra... é... mulher que de fato teve importância foi 03 Mariadina 04 FI29 eita que tá virando verdade coisa que nunca se deu 05 DE41 e o que você sabe disso Firmino? 06 FI29: sei que num ando com inventação pra engrandecê os parentescos 07 DE41 ôxi não to inventando não onde já se viu 08 FI29 e sei que Indalécio não morreu em cima do cavalo... morreu foi agaxado..... por causa de uma disinteria 09 que lhe deu nó nas tripa... e sabe quais foram de verdade... as última palavra que Indalécio pronunciou antes 10 de morrê? “Vivê tanto e tanto pra morrê cagando de canto em canto” ((risos)) Pois olhe... olhe seu Biá eu vou 11 lhe dizer é mais... Mariadina... Mariadina nunca foi do bando de Indalécio... porque muito antes de ele chegar 12 aqui trazendo os retirado... os retirado viu Vado 13 VA56 retirado 14 FI29 entonce... ela já corria pelo vale feito cachorra doida 15 DE41 tu não fala de Mariadina não viu 16 FI29 pois olha... hein seu Biá eu posso lhe dá prova de tudo que eu to lhe dizendo e daquelas hein científica... 17 mas o caso de verdade verdadeira memo aconteceu foi assim ói com dedo ou sem dedo Contexto: FI29 narra a história de FM29 01 FM29 ê::: minha mãe quando eu morrê me enterre numa esquina debaixo de um Juazeiro pra passar gado por 02 cima deixa minha mão de fora pra dá adeus às menina IRRA ê::: arrêa ô aqui é ponto pra se fazê pará... 03 segura o brinquedo pra mim... 04 DE41 ih: de novo 05 FI29 disinteria da mulésta... 06 DE41 todo cagado 07 FI29 sigura ((gritos)) 08 ML55 ( ) 09 FI29 bendito... e o que que é isso que ainda fala 10 ML55 não é isso... é essa... Mariadina... quem são ocês? Hã... quem é ocê? 11 FI29 nós somos gente guerrera gloriosa que saimo fugido... quer dizer... fugido não... nós saímo foi em 12 retirada... expulsaram a gente das nossa terra porque tinha oro e pra longe óh nóis caminhamo ( ) 13 ML55 é um sinal ((risos))... é ocê memo hôme... que eu devo de guia e alumiá ((risos)) 14 FI29 ((risos)) mas pra mi guiá e alumiá... ói já me basta o memo sol de cada dia vice? 15 ML55 mas de noite ocê num qué qui eu ti alumie... fica aqui fica aqui... ocês fica tudo aqui... porque quando 16 clariá o dia... num vai tê nenhum pássaro piando 17 ML55 FI29 [Mas quando vié a outra noite os pássaro vão piá e avuá invertido 18 ML55 invertido ao contrário tocando a noite pelo dia 19 FI29 tomando a noite pelo dia... [levando cêis tudo 20 ML55 [E vão levá vocês pras terra que serão suas pro cês viverem graça... e interrarem seus mortos 21 FI29 levando cêis tudo... Pro quinto dos inferno 22 DE41 levanta daí escracho... ôxe... essa é a barganha mais descabeçada que eu já ouvi ôxe... fazê de 23 Mariadina uma louca farradiga... o senhor escreva a história que eu lhe ditei que é a história certa viu? 24 FI29 a história certa é a que foi e não a que tu inventou menina 25 DE41 eu já te disse que eu num tô inventando nada... tu deixa de besteira 26 FI29 eu te conheço 27 AD43 eu também ouvi dizê isso... que seu Indalécio morreu cagando... era um homem valente mas morreu 28 memo foi se esmerdiando

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29 DE41 eu num tô nem aí minha filha que o cu era dele ( ) ((risos)) 30 AB54 tome Iemanjá de ( ) ((risos)) 31 DE41 peraí peraí... Indalécio eu até aceito... mas Mariadina não... era mulhé de guerra durona... não era essas 32 véia destemperada das idéia minha gente 33 VA56 mas então como é que fica seu Biá? 34 AB54 sei lá... só se eu pô as duas 35 VA56 ah assim não seu Biá... assim não 36 FI29 se eu fosse o senhor botava a minha que é a história de fato seu Biá 37 DE41 a sua não a minha história que eu tenho até as prova ((confusão de vozes)) 38 AB54 calma... calma... vamo fazê uma votação... 39 DE41 pronto vamo fazê uma votação 40 AB54 quem acha que é a Mariadina Deodora levanta a mão... e quem acha que é a de Firmino? 41 VA56 a senhora levantou a mão duas vezes dona Maria 42 AD43 mas acontece que a duas histórias tem sentido... não se pode contar uma história sem o prejuízo da 43 outra 44 VA56 mas num pode contar as duas história no mesmo livro 45 DE41 pode sim rapaz pode ((confusão de vozes)) 46 AB54 peraí peraí peraí peraí peraí... peraí... óia 47 DE41 tá ficando doido 48 AB54 assunto esse num carece mais de sê discutido esse é um trabalho de ciência vocês num tão acostumado 49 e eu até entento... então mais tarde eu volto pra ver mais detalhes marcas e provas... porque assim procede a 50 ciência porque desse jeito não dá né?... É o carrapatão e o carrapatinho... a Deodora mostra a verruga mas não 51 mostra a emoção que eu quero a senhora nem se fala né a senhora é uma tamburé de forró uma piaba de 52 silicone fala que ( ) é o cão chupando manga então... isso aqui isso aqui... isso aqui tá parecendo sabe o quê? 53 Um reveillon de muriçoca ((confusão de vozes)) Contexto: AB54, FI29 e VA56 conversam na frente da casa de DE41. 01 FI29 ô seu Biá... sinhô vai botá no livro é a minha história não vai vado vai... eu já lhe disse que eu conheço 02 gente que pode lhe prová tudinho palavra por palavra 03 VA56 ô praga que é o que cê tem pra prová bosta seca de Indalécio? Cê já teve sua chance... dêxa o hôme 04 descançá... Olha seu Antônio... esse povo fala demais... se quisé vamo ali na sombrinha com calma nós dois... 05 e eu lhe faço um resumo de toda a história de Indalécio Mariadina e outras tantas que o sinhô 06 AB54 eita quem muito fala dá bom dia a cavalo... vocês sabem de tudo nesse mundo... são dois gênios... 07 Einstein e Santo Agostinho... capaz até de por onde formiga mija... peraí... peraí Firmino 08 FI29 que que é? 09 AB54 viado 10 FI29 ele falou fiado ou viado? 11 VA56 viado 12 FI29 ah baitola filho duma égua eu te pego sua bartiga Contexto: AB54 em um bar conversando com várias pessoas. 01 BL47 ô Biá 02 AB54 me dá aquela cachacinha diet... quem tá cherando aí 03 FI29 ai Dexa de sê besta... essas história são nossa 04 AB54 as histórias são de vocês mas a escrita é minha 05 FI29 me vê uma caixa de fósforo por favor 06 BL47 pois não Firmino 07 AB54 você gosta de livro? Você é intelectual? Você é uma traça? Então aqui não tem nada da sua conta 08 BL47 ê::... num tenho troco não 09 FI29 então depoi eu pago você 10 BL47 ocê sabe que eu não tô vendendo ficado 11 FI29 pois fique com o dinheiro mas olha depois eu quero meu troco 12 BL47 também não fico com o que é dos outro 13 FI29 então tome sua caixa de fósforo e muito obrigado viu? 14 BL47 é... também num aceito cê já riscou o palito 15 FI29 então cê qué que eu faço? 16 BL47 eu é que sei? Quem mando ocê sê tão folgado? Por que cê riscô o palito antes de pagá?

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17 AB54 tá justo Antero... muito justo... é por toda a sua sapiência que eu lhe tenho respeito... oia ainda volto 18 aqui pra lhe escrever essa sua biografia porque você é um gênio da economia javélica 19 VA56 quero ser um homem morto... morto... se um dia eu saí pra bebê com um homem da qualidade desse 20 Biá Contexto: AB54 e VA56 conversam na rua. ((Risadas altas)) 01 AB54 vivê tanto e tanto pra morrê ((risos)) Ô seu Vado... já que tamo no assunto... o sinhô conhece peido de 02 moça né... que é bem apertadinho é... é sutil educado assim... agora tem o de véia que é obra de um 03 instrumento mais largo mais froxo é assim ó e tem o que nasce assustado... e tem o... e tem o mal caráter que 04 parece fraco mais ( ) ((risos)) seu... seu Vado 05 VA56 hein 06 AB54 cê já imaginou... se a gente peidasse a proporção assim ó ((faz sons com a boca)) ((risadas)) Contexto: Casa de AB54. 01 FI29 ô Biá... levanta ômi 02 AD43 acorda vagabundo ( ) 03 FI29 acorda Biá o dia nasceu... ô Biá 04 AB54 que que é isso gente? Isso é hora de acorda um cristão diacho? 05 AD43 nós que somo cristão já tamo di pé... você é mió do que os outro? 06 FI29 bóra home... bora vamo trabaiá 07 AB54 eu sou escravo? Eu sou cavalo de cela? Eu sou espermatozóide de ninja? Ah... e a senhora não é cristã 08 não.. a senhora é uma catimozira 09 AD43 oxente 10 AB54 bocó de microondas... deixa eu durmi ((AB54 sai de dentro de sua casa e vai para o quintal)) 11 AB54 que é isso gente? Vocês num tem o que fazer não é? 12 FI29 e aí Biá... preparado home? 13 DE41 bom dia o que... óia primeiro você vai terminá o que começou comigo viu Biá? 14 VA56 não não... você vai ouvi o Genésio 15 AD43 os gêmeo... os gêmeo são dois mora aqui perto Biá ((confusão de vozes)) Contexto: Casa de GE88 e OU87. Várias pessoas reunidas. 01 GE88 Ôtro? Ô ôtro... ô maleducado... você num sabe que o home tá aqui pra nos servi? 02 AB54 pode ir mais devagar sinhô... sem pressa não... Pronto... 03 GE88 shiu... 04 OU87 vô contá... 05 GE88 seu Biá... o sinhô deve di sabê que uma terra vale pelo que produz... mas ela pode vale mais ainda... 06 pelo que esconde 07 AB54 bonito começo... taí eu gostei... mas dá pro senhor ser mais objetivo assim direto nos fatos? No talo do 08 abacaxi? 09 GE88 sim... desenho... desenho que eu fiz da minha propriedade... herança que vem vindo lá dos meus 10 antigos... pois todo mundo sabe que é nessas terras aqui que estão os restos mortais do Indalicio 11 AB54 não era Indalécio não? 12 OU87 Indalécio! Burro... ((confusão de vozes)) 13 GE88 é Indalécio o fundador 14 OU87 óia seu Biá... nossa mãe margarida nos tempos de moça dela 15 GE88 peraí Outro... que o assunto não é por aí 16 AB54 nem parece que é mãe de vocês 17 GE88 esses aqui seu Biá eram nossos pais... Cosme e Damião 18 OU87 eles são a razão de tudo... até desse aqui meu irmão ser conhecido como Gêmeo e eu ser o Outro... o 19 Outro 20 GE88 mas você era mesmo o outro, Outro 21 OU87 pois é 22 GE88 era assim que meu pai lhe chamava 23 OU87 nosso pai... tratou o filho de Cosme como ocê 24 GE88 não... você era filho de Damião

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25 OU87 HUM... Cosme e Damião eram irmão gêmeos mas muito unidos... mas foi Cosme que conseguiu juntá 26 muitas terras 27 GE88 então... Cosme conseguiu juntar muitas terras... Damião não teve a mesma sorte... um dia conheceram 28 Margarida a minha mãe 29 OU87 minha também 30 GE88 sim... apaixoram-se ( ) os dois irmãos pela mesma mulher... mas Margarida escolheu Cosme e casaram 31 OU87 casaram o Cosme e a Margarida 32 GE88 aqui o convite ó... o convite... e a certidão... 33 OU87 óia a data do casamento aqui ó... ó... ó os noivo... tá tudo aí ó ((imagens)) 34 GE88 e foi assim... todo mundo bebeu fora da conta... e nenhum dos gêmeos se lembrava de nada... mas 35 Margarida tinha certeza que no escuro tinha sido mulher de um deles não sabia de qual... aí Cosme expulsou 36 Damião que desapareceu no mundo... e renegou esse aí ó... o filho da dúvida 37 OU87 um ano depois nasci eu... filho legítimo e provado de Cosme 38 AB54 e então? 39 GE88 e então... o senhor me diga... se eu posso dividir metade da herança com um sujeito que tanto pode ser 40 meu irmão... filho de meu pai e da minha mãe... ou meio irmão... filho só da minha mãe... ou meu primo... por 41 ser filho do meu tio Damião então não tá certo o outro herda as terras que meu pai deixou 42 OU87 nosso pai 43 GE88 cadê seu registro? 44 DE41 peraí gente peraí isso não é história pra entra no livro 45 OU87 compare seu Biá se eu não tenho a mesma cara que o meu pai Cosme... a boca o nariz o olho 46 GE88 mas compará o que? Se os dois eram gêmeos iguaizinhos 47 OU87 mas você não vê a diferença então é você que não é o filho dele 48 AB54 pois muito bem muito bem quem é filho de pai tio ou vizinho vocês decidem... pra mim vocês podem 49 ser até clonado de miolo de pão que pra mim tá bom né... agora de científico só mostraram esse forte apache e 50 eu fico aqui com a cara pra cima que nem jumento sem mãe. Que que eu to fazendo aqui? 51 GE88 o senhor não é o escrivão das histórias? Justamente... então bote aí no livro que... nas terras de 52 Armando Beneré que sou eu conhecido como Gêmeo... filho único e herdeiro legítimo de Cosme Beneré... 53 quero que isso bote em letras grandes... é onde está enterrada a ossada de Indalécio o fundador.... e resto das 54 armas que ele escondeu 55 OU87 o pai por direito é meu também então bote meu nome também aí pra dividir a herança 56 GE88 você é filho de adultério 57 OU87 não fale assim da nossa mãe 58 GE88 tô falando do seu pai que era um ( ) Margarida era uma santa ( ) mas você veio como filho da puta ((confusão de vozes)) 59 AB54 peraí peraí peraí peraí peraí... pode parar o rebuceteio... que eu tenho que procurar uma corda gêmea 60 pra me enforcar e vocês fica aí... pra varrê a casa do capeta e vocês dois são Caim e Abel sem o Abel então... 61 adeus saionará e salamalés 62 OU87 óh... o que você fez 63 GE88 você tá vendo você fez o homem ir embora... foi por sua causa Contexto: AB54 conversa com várias pessoas. 01 AB54 não não fale com calma respire transpira e fala 02 HB40 é com calma 03 VA56 Biá... Biá... Biá... pode voltar... a briga acabou 04 AB54 óia vocês pode ficar aqui mesmo tá ouvindo... porque que eu tô ficando doido de morde mastigá e 05 engoli... eu não sou o divino... eu sou o divino espírito santo também? Eu sou pokémon de Jesus? Então 06 pronto... ôh... manicure de lacraia 07 DE41 peraí ô Biá você vai ter que terminá ((vozes diminuem)) Contexto: Pessoas correm atrás de AB54. 01 ((Vozes se confundem)) ( ) Corre... ôxe Contexto: Casa de DA25. Várias pessoas reunidas. 01 VA56 dá licença Daniel... por que essa pressa Biá? 02 AB54 a pressa? 03 VA56 é

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04 AB54 mas que pergunta mais burrística seu Vado... é porque alguém aqui tem que trabalhar não é não 05 enquanto vocês ficam aí nesse revolteio sem direção que nem um bando de abelha menstruada... 06 AD43 que nada rapaiz... cê tá é fugindo 07 AB54 tô fugindo de que sabugo liso? Só se for da tua inteligência patagônica... eu vim aqui... porque eu quero 08 falar com Daniel... e é sobre livro Daniel 09 DA25 o livro sobre a história do Vale seu Biá? 10 AB54 é isso memo... é um assunto do interesse de todos... se você tive tempo eu quero lhe dar umas 11 palavrinhas 12 DA25 olha seu Biá eu memo não tenho muito o que contar não... mas se o senhor quiser botar aí umas 13 palavrinhas a respeito do meu falecido pai Isaías eu muito lhe agradeço 14 FI29 licencinha licencinha... não empurra 15 DE41 sai da frente 16 DA25 aqui seu Biá... essa era a cama que ele dormia seu Biá... morreu aqui também... quando eu era criança 17 Biá eu ficava ( ) eu via ele deitado aqui nessa cama com os pés ( ) às vezes ficava muito tempo nessa janela 18 olhando tudo... tá lá a cadeira dele... todas as coisinhas dele... foto três meses antes dele morrê 19 DE41 morreu desvariado pelo amor de Santinha 20 DA25 Santinha não merecia esse amor... ela nunca parava em casa nunca tinha sossego ficava viajando pelo 21 meio do mundo garimpando tudo que é rio grota às vezes ficava mês sem dá notícia... mulhé assim seu Biá 22 não conhece amor de filho de marido... num conhece não... Bonito né seu Biá? Senhor sabe que de menino eu 23 sempre tive medo? Medo de tudo... de escuro de assombração... de briga... até o dia em que eu perdi o medo... 24 foi de uma vez só seu Biá... o senhor já viu alguém perder o medo de uma vez só? ((imagens se alternam)) 25 deste dia em diante seu Biá eu perdi todo o medo... não tenho medo de nada seu Biá... de nada... dessa casa só 26 saio morto Contexto: AB54 em sua casa em silêncio. Chega alguém. 01 SA52 Biá... ô Biá... cê tá em casa? Apareça 02 ZA48 ((ZA48 narra a história de AB54)) Quando a gente mais precisa do tempo ele voa Antônio Biá já nem 03 era mais dono de si dia e noite vinha gente de todo o canto oferecendo as história Contexto: SA52 e AB54 cantam. Seguem para uma aldeia. 01 SA52 ô Luzia 02 LU44 oh... o home tá chegando aê? 03 SA52 tamo chegando 04 LU44 fala pra ele que o café tá coando 05 AB54 precisa não dona já deu pra ele ouvi Contexto: Aldeia. SA52 e AB54 conversam. SA52 traduz o que PC70 fala. ((PC70 fala em Iorubá)) 01 SA52 ele tá dizendo que a nossa gente foi trazida há muito tempo pra cá pra essa parte da África 02 AB54 essa parte da África? 03 SA52 é uai... o Brasil... ele acha que o Brasil é uma parte da África... uma grande aldeia dentro da África 04 AB54 dessas geografia a gente fala depois... eu quero saber se vocês faziam parte do povo que chegou aqui 05 guiado por Indalécio... pergunta pra ele ((SA52 e PC70 conversam)) 06 SA52 tá dizendo qui Indaleo era chefe de guerra e queria guia nossa gente pra nossa terra de volta de origem 07 mas só que Indaleo o próprio Indaleo num sabia o caminho de volta 08 AB54 indaleo? Era o memo que Indalécio? Deixa pra lá se num é parece que é tem tudo pra sê pergunta uma 09 outra coisa da narrativa assim... ((PC70 fala e imagens surgem)) 10 AB54 Samuel... com jeitinho não dá pra pedir pro pai cariá... purá dessa cantoria vudu assim e ir direto pros 11 fatos? ( ) 12 SA52 não... ele tá contando do jeito dele... ele conta desse jeito uai 13 AB54 então você tá traduzindo mal pra mim... apruveita... apruveita a pausa aí... pergunta pra ele se nessa 14 história não tinha memo assim nenhuma mulheé assim parecida com Mariadina Mariabel Mariaguma 15 Marixum pergunta ao pai ( ) pergunta ((SA52 conversa com PC70)) 16 SA52 ele disse que tem O-xum

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17 AB54 oxum? Era mulhé? 18 SA52 era mulhé e linda... mas ó era orixá das águas... dos rios... dos córrego... 19 AB54 aí fica meio complicado né mas depois eu dou um jeito... até aqui a história vai batendo mais ou 20 menos... mas pergunta pro pai ( ) se tem um jeito ((PC70 começa a falar)) 21 SA52 durante muito tempo nossa gente andou guiada por Indaleo e pelos olhos de ( ) que já enxergavam os 22 caminhos ((PC70 fala e SA52 traduz)) até que um dia encontraram o lugar onde morava Oxum ((imagens e 23 PC70 fala)) a África agora tava ali com eles ((imagens e PC70 fala)) ((volta para o contexto original. SA52 24 canta)) É... danou-se viu... agora ele não vai falar mais... 25 AB54 como não vai fala mais? 26 SA52 ele vai ficar três dias assim calado... num não vai falar mais 27 AB54 tá vendo o que você fez rapaz? Cê tá vendo?:... agora vamos ter que esperar esse tempão até passar 28 esse olodum dele cê vai me desculpa mas você não fez o serviço direito 29 SA52 eu? Eu não fiz o serviço... olha aqui ó... eu arrumei os dois cavalos... nós atravessamo aqui ( ) sol 30 quente até chegá aqui... todo mundo viu todo mundo tá vendo aí agora você tá falando que eu não fiz o 31 serviço direito? 32 AB54 calma calma calma... por enquanto basta soletrar o nome de todos vocês para por aqui no livro... a 33 começar por você 34 SA52 eu não vou querer saber 35 AB54 Samuelis 36 N42 não Samuelis não... Samuel 37 AB54 nome sobrenome e pronome Samuel 38 SA52 é:: Contexto: AB54 canta na chuva. Chega em sua casa. Contexto: Pessoas reunidas perto de uma placa. ((Confusão de vozes)) 01 FI29 ô Biá... olha isso home... vê se é possível... os engenheiro já tomaram conta foi de tudo tão... tão dono da 02 praça já 03 ((Voz não identificada)) E o livro Biá? 04 ((Voz não identificada)) E olhe... foi o Gaudério que trouxe eles viu? 05 AB54 o matador? 06 FI29 aquele coisa ruim mesmo... aquele traste do cão ((Confusão de vozes)) 07 FI29 aí... tão aí os home... 08 AB54 e aquele divino quem é? 09 FI29 Cirilo... faz anos que vive com as pedra lá na gruta da onça 10 AB54 eu pensei que ele tivesse morrido 11 FI29 tá velho e esquecido mas tá vivinho olha aí Contexto: Bar. 01 AB54 Antero me põe uma cachacinha 02 BL47 os engenheiro Biá tão tudo por aí anotando e fotografando tudo que é canto e chegaram sem nenhum 03 aviso 04 VA56 devia correr com eles 05 FI29 e quem corre com Gaudério? Aquilo ali é que é coisa ruim o homem parece que anda com uma nuvem 06 em cima da cabeça 07 VA56 shiu 08 GA66 pior que pode acontecer com o homem quando bebe é rodeado de gente é ouvir o barulho do próprio 09 trago ((risos)) Tá bom... mas num tá fácil... essa represa vem que vem engulindo com a cabeça de muita 10 gente... vai ser um aguaceiro danado de não subrar nada... esses engenheiro vem varrendo tudo vão anotando 11 tudo o que encontra pela frente e óia caça um tempo ( ) dentro dos vidrinho ((risos)) E quem é que é... o tar de 12 Biá que esse povo tanto fala? 13 AB54 sô eu mesmo com carne e osso 14 GA66 sei... e o cê é o quê faz o quê? 15 AB54 eu sou escrivão de prosa seu Gaudério e tô na labuta de escrevê os nobres e grandes feitos do Vale do 16 Javé... história como bem sabe o senhor muito contada e ouvida mas até hoje nunca escrita e lida

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17 GA66 prezo essa labuta... respeito... inda mais se é pra contar a história de uma lugar que não vai existir mais 18 ((risos)) 19 VA56 o senhor me desculpe falá mas Javé não vai afundá... a gente parece assim meio ( ) mas só parece... 20 nóis aqui também viemo de gente de coragem... o livro vai prová nos termo científico Contexto: Noite. Todos reunidos na rua. ((Vozes se confundem. Risadas)) Contexto: Mulheres cantam como numa procissão. GA66 conversa. 01 GA66 povo que muito reza é povo devedor... num presta sempre ajoeiado com a testa voltado para o chão... e 02 digo mais: não acredito em Deus não acredito não senhor como é que eu vo tê fé crê num camarada que de 03 tão covarde não veio o mundo mando o filho no lugar dele... enfrentá o mundo o homem não quis ((risos)) Contexto: EF30 filma as pessoas do vilarejo. 01 EF30 oi posso gravar vocês um pouquinho? 02 ME13 xô vê? 03 EF30 não não faz o seguinte... fica ali que eu vou te gravar um pouco... Pode ficar mocinhas... fica 04 DE41 eu posso falá um poquitinho? Eu queria dize a vocês e o chefe de vocês que minha casa não tá a venda. 05 Tá gravando moço? Eu já disse o que eu tinha pra dizê e vão simbora sai daqui 06 SC90 eu tenho meus pais meu... meu marido tudo enterrado ali naquele... ( ) ali... eu... tenho uma fia... então 07 eu... queremos ficar aqui pra sempre lá colocá a vela na sepultura deles... nóis não qué... num qué... os 08 engenheiro não tem que tirá nóis daqui não... eles num vai tira nóis daqui não... de jeito nenhum 09 SG77 cheguei aqui só... eu e a minha mãe... teve meus filho tudo aqui... então... eu me sinto muito bem aqui 10 em Javé mais eu agora tem meus filho a minha mãe... já perdi meu filho... já perdi não posso sair daqui desse 11 lugar 12 SE50 e eu também quero dizê aos engenheiro que nóis tamo preparando... um dossiê científico que é pra 13 gente defendê o que é nosso 14 SC90 num dá... num dá pra gente viver debaixo dágua... cê acha que vamo viver debaixo dágua? Nossos 15 mortos vai viver debaixo dágua? Não pode... não 16 FI29 nóis tamo aqui há muito tempo onde já se viu? 17 SG77 e não vou sair daqui pra morá aonde? Pá ir fazê casa aonde? 18 AD43 você num tem casa... você num tem terra pra dar pra tanta gente daqui de Javé como você pode tirar a 19 gente daqui? ((tiro e confusão)) 20 GA66 sai do ( ) desgraçado... seja home 21 DA25 se tive corage... atire... 22 GA66 vô fazê sua vontade 23 ((Várias pessoas falam ao mesmo tempo)) Calma seu Gaudério... tenha calma 24 GA66 esse assunto é entre eu e o disvairado ((confusão)) Mas deixa comigo 25 DA25 devia bota pra corrê essa gente a mando da represa... e quem mais vié... eu num vou deixá minha casa 26 DE41 calma Daniel por favor não precisa fazê isso... calma... não precisa... calma... não precisa Contexto: Pessoas da do vale conversam na rua. 01 SG77 num vai não ( ) dessa quem fica aqui? Ninguém... 02 ((Voz não identificada)) Olha aí.. o povo já tá tudo indo embora 03 AB54 onde ele tá indo 04 ((Voz não identificada)) Vai atrás de uns parente aí... diz que não vai ficá pra vê a desgraça 05 SG77 o que é gente? Por que que tá? 06 FI29 não é hora de missa Contexto: Dentro da igreja. Confusão de vozes. Gritaria. 01 AB54 peraí gente calmaí peraí gente calma aí peraí gente... São Cirilo... o santo de Javé esse povo só quer 02 ouvir as suas divinas palavras as suas divinas ( ) 03 FI29 tu endoidou de vez foi Biá? Num tá vendo que esse home não tem juízo? ((Confusão de vozes))

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04 AB54 peraí... peraí peraí... calma... peraí gente... pára de fazê barulho... pára de falar gente... pára de falar... 05 pára... você fala fala fala cala a boca ( ) pelo amor de deus a você teve a sua vez ele teve a vez dele... a 06 senhora com a sua voz de cd pirata falo mais do que todo mundo.... deixa ele falá... deixa ele falá... 07 desembucha fala ( ) que a gente tá chegando onde você tá indo 08 CI55 ãh 09 AB54 fale devagar... devagar que o sinhô já tá desacostumado de falar fala... 10 VA56 árvore árvore ele disse árvore 11 AB54 peraí Vado não atropela que ele vem vindo... fala solte o verbo 12 CI55 a sua vaca... a sua vaca vai se afogá vai enxarcá os chifre até o coro dela estorá ( ) a sua casa vai enchê 13 de água até o topo 14 Ah cê num sabe de nada 15 SG77 este home é loco... ele num sabe de nada 16 CI55 a sua cama vai alagá... a sua rua vai ser um rio só e depois... o mar 17 ((Todos)) Ê:: 18 ZA48 que babilônia é essa aqui Biá... explica home... que que tá havendo 19 DE41 mas eles já estão aqui Zaqueu eles já botaram o pé no povoado 20 FI29 pra eles as rua é deles a casas é deles a cidade é deles ((Confusão de vozes)) 21 ZA48 calma... calma que o tempo é pouco mais é tempo... calma... então... cadê o livro? 22 AB54 tá aqui 23 ZA48 me dê 24 AB54 não... ainda não Zaqueu... olha só falta acertar umas duas ou três não mais do que quatro cinco páginas 25 ZA48 então vamo vê até onde você escrivinhô 26 AB54 como quisé... então... você descansa suas tralhas e logo mais me espera me espera no armazém que eu 27 lhe entrega tudo que eu tenho feito... e olha gente... se for da vontade de todos vamos começar a leitura do 28 livro para que a maioria seja conforme e satisfeita 29 ZA48 a noite lhe esperamos no armazém 30 AB54 perfeito ((Confusão de vozes)) Contexto: Armazém à noite. 01 ZA48 tá demorando 02 FI29 encontrei esse sujeito vindo ali ( ) pedido pra ele... paraí ô... escute vocês 03 ME12 olha aqui o que Biá mandou 04 ZA48 Biá mandou? E ele cadê? 05 ME12 num sei não sinhô ele mandou eu entregá isso aqui só em suas mãos 06 FI29 pedi pra ele deixa eu vê num me deixou disse que só você podia vê... agora Biá nessas altura... fugiu 07 tenho certeza 08 ZA48 lê aqui... lê... 09 FI29 Marquinho... chegue 10 MA15 “Tenho a declarar que eu Antônio Biá sou ( ) de cara dente e nariz pra frente e mais bunda cacunda e 11 calcanhá pra trás me exonero como escrivão estou ausente para manter a mente e o corpo são quanto às 12 histórias acho melhor ficar na boca do povo porque no papel não há mão que lhe dê razão 13 VA56 eu sabia... eu sabia ((Confusão de vozes)) 14 ZA48 AQUELE TRALHA... O demônio não tá longe... eu pego o Biá arrasto o cachorro até aqui ou ele 15 explica essa afronta diante de nóis tudo ou o coro dele não vai ser o mesmo 16 FI29 traga gente viu... traga gente... vamo todo mundo Contexto: Pessoas procuram por AB54. ((Confusão de vozes)) 01 FI29 cadê o Zaqueu? 02 DE41 óia eu quero é ver aquele desgraçado que eu quero é quebrar a cara dele 03 FI29 pegamo ((Confusão de vozes)) 04 ((Voz não identificada)) vamo ajuntando minha gente 05 ((Voz não identificada)) óia tá aí o sujeito

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((Confusão de vozes)) 06 ((Voz não identificada)) o que a gente tem que fazer é acabar com esse sujeitinho ((Confusão de vozes)) 07 VA56 dessa vez você não escapa desgraçado 08 AB54 oi Zaqueu 09 ZA48 só isso que você tem pra me dizê... só isso que você tem pra dizê pra todo mundo seu cabra safado? 10 AB54 ó gente... com todo respeito 11 ZA48 e você lá tem respeito? Você é um salafrário... um sujeito ordinário... um home que não merece a 12 companhia de um cão... você vai ser o que sempre foi Antônio Biá... um sacanageiro 13 AB54 hôme... num me insulte não 14 VA56 eu lhe fecho a boca ordinário 15 DE41 e eu que depois de tudo ainda lhe abri a minha casa 16 AD43 mas ele tem a cara limpa ((Confusão de vozes)) 17 AB54 vocês acham que escrever essas histórias vai parar a represa? Num vai não... e sabe por quê? Porque 18 Javé só buraco perdido no oco do mundo. E daí? E daí que Javé nasceu de uma gente guerreira ( ) se hoje isso 19 aqui não vale um miserável... de rua de terra ó... de gente apocada e ignorante como eu como vocês tudinho... 20 o que nós somos é um povinho ignorante que quase não escreve o próprio nome mas inventa histórias de 21 grandeza pra esquecer a vidinha rala sem futuro nenhum... e vocês acham... acham mesmo que os homem vão 22 parar a represa e o progresso por um bando de semi-analfabeto? Isso é fato... é científico 23 ZA48 nas suas idéia... Javé pode num valê muito... o caso é que sem Javé Antônio Biá vale menos ainda... e 24 não vale a pena sujá a mão com um filho de mãe perdida desses... seu livro 25 AB54 AH É? Tão me dando as costas é? Eu vou saí de costas também... pra vê vocês sempre... Tá? Oh... a 26 única coisa boa que Javé tem pra mostra é o caminho de ir embora... Lugar bom pra criar lobizomem... 27 anfíbios... povo anfíbio... povo pitu Contexto: Bar. Homens conversam. 01 SO39 é só isso? Isso aqui éo... acabou-se assim? 02 ZA48 o tempo passô... e o povo de Javé não teve tempo de fazê mai nada... e um dia elas vieram 03 SO39 elas? Elas quem diacho? 04 ZA48 as água... ((ZA48 começa a narrar a história e imagens aparecem)) as água subiro ligeiro mas teve 05 gente que teimou até o fim... esprimidos no pé da represa... olhavam sem treno o que os olhos iam vendo... 06 era como tá se revirando vivo dentro da própria sepultura Contexto: A cidade está submergindo e as pessoas olham com tristeza. ((Confusão de vozes.)) 01 VA56 isso aí já não presta mais Biá 02 AB54 ah é você... 03 FI29 tô aqui também 04 AB54 sim também não esqueci vocês dois não... cês entram um poquitinho mas é na primeira parte 05 VA56 como assim poquitinho... que primeira parte? 06 AB54 que parte? A parte antiga de Javé que... agora eu num to vendo você fazendo muita coisa... parece que 07 tá mais sapeando do que trabalhando 08 VA56 peraí peraí o senhor não tava aqui quando o aguaceiro chegou... EU puxei sozinho o sino cá pra fora 09 FI29 sozinho... 10 VA56 sozinho... 11 FI29 sozinho tu tava dando era ordem os home que tavam carregando... agora quem mergulho foi eu e Antero 12 AD43 eu também mais Deodora também ajudamo viu seu Biá... bota aí no livro aí também 13 AB54 óia a senhora vai entrá no capítudo o dna da jararaca