mulheres - eduardo galeano

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Mulheres - Eduardo Galeano

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  • O AMOR

    Na selva amaznica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharamcom curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

    Te cortaram? perguntou o homem. No disse ela. Sempre fui assim.Ele examinou-a de perto. Coou a cabea. Ali havia uma chaga aberta.Disse: No comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao

    amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.Ela obedeceu. Com pacincia bebeu os mingaus de ervas e se deixou

    aplicar as pomadas e os ungentos. Tinha de apertar os dentes para no rir,quando ele dizia:

    No te preocupes.Ela gostava da brincadeira, embora comeasse a se cansar de viver em

    jejum, estendida em uma rede. A memria das frutas enchia sua boca de gua.Uma tarde, o homem chegou correndo atravs da floresta. Dava saltos de

    euforia e gritava: Encontrei! Encontrei!Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma rvore. assim disse o homem, aproximando-se da mulher.Quando acabou o longo abrao, um aroma espesso, de flores e frutas,

    invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgoresjamais vistos, e era tanta formosura que os sis e os deuses morriam devergonha.

  • O RISO

    O morcego, pendurado em um galho pelos ps, viu que um guerreirokayap se inclinava sobre o manancial.

    Quis ser seu amigo.Deixou-se cair sobre o guerreiro e o abraou. Como no conhecia o idioma

    dos kay ap, falou ao guerreiro com as mos. As carcias do morcegoarrancaram do homem a primeira gargalhada. Quanto mais ria, mais fraco sesentia. Tanto riu, que no fim perdeu todas as suas foras e caiu desmaiado.

    Quando se soube na aldeia, houve fria. Os guerreiros queimaram ummonto de folhas secas na gruta dos morcegos e fecharam a entrada.

    Depois, discutiram. Os guerreiros resolveram que o riso fosse usadosomente pelas mulheres e crianas.

  • O MEDO

    Esses corpos nunca vistos chamaram, mas os homens nivakle no seatreviam a entrar. Tinham visto as mulheres comer: elas engoliam a carne dospeixes com a boca de cima, mas antes a mascavam com a boca de baixo. Entreas pernas, tinham dentes.

    Ento os homens acenderam fogueiras, chamaram a msica e cantaram edanaram para as mulheres.

    Elas se sentaram ao redor, com as pernas cruzadas.Os homens danaram durante toda a noite. Ondularam, giraram e voaram

    como a fumaa e os pssaros.Quando chegou o amanhecer, caram desvanecidos. As mulheres os

    ergueram suavemente e lhes deram de beber.Onde elas tinham estado sentadas, ficou a terra toda regada de dentes.

  • A AUTORIDADE

    Em pocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e oshomens na popa. As mulheres caavam e pescavam. Elas saam das aldeias evoltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choas,preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavamdos filhos e curtiam as peles de abrigo.

    Assim era a vida entre os ndios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, atque um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as mscaras queas mulheres tinham inventado para aterroriz-los.

    Somente as meninas recm-nascidas se salvaram do extermnio. Enquantoelas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens eraseu destino. Elas acreditaram. Tambm acreditaram suas filhas e as filhas desuas filhas.

  • HISTRIA DO LAGARTO QUE TINHA O COSTUME DE JANTAR SUASMULHERES

    Na margem do rio, oculta pelos juncos, uma mulher est lendo.Era uma vez, conta o livro, um senhor de vasto senhorio. Tudo pertencia a

    ele: a aldeia de Lucanamarca e o de mais para c e o de mais para l, os animaismarcados e os no marcados, as pessoas mansas e as zangadas, tudo: o cercado eo baldio, o seco e o molhado, o que tinha memria e o que tinha esquecimento.

    Mas aquele dono de tudo no tinha herdeiro. Sua mulher rezava todos os diasmil oraes, suplicando a graa de um filho, e todas as noites acendia mil velas.

    Deus estava cansado dos rogos daquela chata, que pedia o que Ele no tinhaquerido dar. E finalmente, para no ter de continuar escutando, ou por divinamisericrdia, fez o milagre. E chegou a alegria do lar.

    O menino tinha cara de gente e corpo de lagarto.Com o tempo o menino falou, mas caminhava se arrastando sobre a

    barriga. Os melhores professores de Ayacucho ensinaram o menino a ler, masseus dedos feito garras no conseguiam escrever.

    Aos dezoito anos, pediu mulher.Seu opulento pai conseguiu uma para ele; e com grande pompa foi

    celebrado o casamento, na casa do padre.Na primeira noite, o lagarto lanou-se sobre sua esposa e devorou-a.

    Quando o sol despontou, no leito nupcial havia apenas um vivo dormindo,rodeado de ossinhos.

    E depois o lagarto exigiu outra mulher. E houve novo casamento, e novadevorao. E o gluto precisou de mais uma. E mais.

    Noivas, era o que no faltava. Nas casas pobres, sempre havia alguma filhasobrando.

    Com a barriga acariciada pela gua do rio, Dulcdio dorme a sesta. Quandoabre um olho, v a mulher. Ela est lendo. Ele nunca havia visto, na vida, umamulher de culos.

    Dulcdio aproxima o nariz: O que voc est lendo?Ela afasta o livro e olha para ele, sem susto, e diz: Lendas. Lendas? Velhas vozes. E para que servem?Ela sacode os ombros: Fazem companhia.Essa mulher no parece da serra, nem da selva, nem do litoral. Eu tambm sei ler diz Dulcdio.Ela fecha o livro e vira a cara.Quando Dulcdio pergunta quem e de onde veio, a mulher desaparece.No domingo seguinte, quando Dulcdio desperta da sesta, ela est l. Sem

  • livro, mas de culos.Sentada na areia fininha, os ps guardados debaixo de sete saias de balo,

    est estando, estando desde sempre; e assim olha para aquele intruso quelagarteia ao sol.

    Dulcdio pe as coisas em seu devido lugar. Ergue uma pata unhada epasseia essa pata sobre o horizonte de montanhas azuis:

    At onde chegam os olhos, at onde chegam os ps. Sou eu o dono. Detudo.

    Ela nem olha para o vasto reino, e permanece calada. Silncio, muito.O herdeiro insiste. As ovelhinhas e os ndios esto ao seu mandar. Ele amo

    de todas estas lguas de terra e de gua e de ar, e tambm do pedao de areiaonde ela est sentada.

    Voc pode: eu deixo concede.Ela comea a fazer sua longa trana de cabelo negro danar, como quem

    ouve chover, e o rptil esclarece que rico mas humilde, estudioso e trabalhador,e sobretudo um cavalheiro com intenes de formar um lar, mas o destino cruelquer que ele termine sempre vivo.

    Inclinando a cabea ela medita sobre esse mistrio. Dulcdio vacila.Sussurra:

    Posso pedir um favor?E chega perto, oferecendo o lombo.Coa as minhas costas suplica , porque eu no alcano.Ela estende a mo, acaricia a couraa ferruginosa e elogia: Macio feito de seda.Dulcdio estremece e fecha os olhos e abre a boca e ergue a cauda e sente o

    que nunca havia sentido.Mas quando vira a cabea, ela no est mais ali.Arrastando-se a toda atravs dos juncos, procura por tudo que canto.

    Nada.No domingo seguinte, ela no vai margem do rio. E nem no outro, nem no

    outro.Desde que a viu, a v. E no v mais nada.O dormilo no dorme, o comilo no come. A alcova de Dulcdio j no

    o feliz santurio onde repousava amparado por suas finadas esposas. As fotosdelas continuam ali, cobrindo as paredes de alto a baixo, com suas molduras emforma de corao e suas grinaldas de jasmins; mas Dulcdio, condenado solido, jaz afundado nas cobertas e na melancolia. Mdicos e curandeirosacodem vindos de longe; e nenhum consegue nada diante do vo da febre e daqueda de todo o resto.

    Grudado no rdio de pilhas que comprou de um turco que passou por ali,Dulcdio pena suas noites e seus dias suspirando e escutando canes fora demoda. Os pais, desesperados, olham s para v-lo murchar. Ele j no exigemais mulher como antes:

    Estou com fome.Agora, suplica:

  • Sou um mendigo do amor, e com voz quebrada e alarmante tendncia rima, sussurra homenagens de agonia dama que lhe roubou a calma e a alma.

    Todos os serviais se lanam na captura. Os perseguidores removem cus eterras; mas no sabem nem mesmo o nome da evaporada, e ningum jamais viumulher de culos naqueles vales, nem fora deles.

    Na tarde de um domingo, Dulcdio tem um palpite. Levanta-se a duraspenas e, do jeito que consegue, se arrasta at a margem do rio.

    E l est ela.Banhado em lgrimas, Dulcdio declara seu amor menina desdenhosa e

    esquiva, confessa que de sede estou morrendo pelo teu mel, sozinho no caminhodesse mundo cruel, te esperando, te lembrando, gua da minha mgoa: Teofereo meu anel.

    E chega o casamento. Todo mundo agradecido, porque fazia tempo que aaldeia no tinha festa, e ali Dulcdio o nico que se casa. O padre faz preo deocasio, por se tratar de cliente to especial.

    Gira a viola ao redor dos noivos e tocam glria a harpa e os violinos. Brinda-se pelo amor eterno dos felizes pombinhos, e rios de ponche correm debaixo dosramos de flores.

    Dulcdio estria pele nova, avermelhada no lombo e verde-azulada nacauda prodigiosa.

    E quando os dois ficam enfim a ss, e chega a hora da verdade, ele oferece: Te dou meu corao. Pisa-o sem compaixo.Com um sopro ela apaga a vela, deixa cair seu vestido de noiva, rendas

    borbulhantes, tira lentamente os culos e diz: Larga a mo de ser babaca. Deixa de besteira.Num puxo o desembainha e joga a pele dele no cho. E abraa seu corpo

    nu, e faz arder.Depois, Dulcdio dorme profundamente, encolhido contra aquela mulher, e

    sonha pela primeira vez na vida.

    Ela o come adormecido. Vai engolindo-o aos poucos, da cauda at acabea, sem rudo nem mastigar forte, cuidadosa de no despert-lo, para queele no leve uma impresso ruim.

  • A ARTE PARA AS CRIANAS

    Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa quechegava altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e osbraos cruzados. A me pediu ajuda:

    Conta uma histria para ela, Onlio pediu. Conta, voc que escritor...E Onlio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto: Era uma vez um passarinho que no queria comer a comidinha. O

    passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamezinha dizia: Vocvai ficar anozinho, passarinho, se no comer a comidinha. Mas o passarinho noouvia a mamezinha e no abria o biquinho...

    E ento a menina interrompeu: Que passarinho de merdinha opinou.

  • O UNIVERSO VISTO PELO BURACO DA FECHADURA

    Na sala de aula, Elsa e Ale sentavam juntas. Nos recreios caminhavam demos dadas pelo ptio. Dividiam os deveres e os segredos, as travessuras.

    Um dia, de manh, Elsa disse que tinha falado com a av morta.Desde ento a av comeou a mandar mensagens para as duas. Cada vez

    que Elsa afundava a cabea na gua escutava a voz da av.Um dia Elsa anunciou: Vov diz que vamos voar.Tentaram no ptio da escola e na rua. Corriam em crculos e em linha reta

    at carem exaustas. Se arrebentaram umas quantas vezes saltando dos muros.Elsa afundou a cabea e a av disse: No vero vocs voam.Chegaram as frias. As famlias viajaram para praias diferentes.No fim de fevereiro Elsa voltava com seus pais a Buenos Aires. Pediu que

    parassem o carro na frente de uma casa que nunca tinham visto.Ale abriu a porta. Voou? perguntou Elsa. No disse Ale. Nem eu disse Elsa.Abraaram-se chorando.

  • OS NEGRORES E OS SIS

    Uma mulher e um homem celebram, em Buenos Aires, trinta anos decasados. Convidam outros casais daqueles tempos, gente que no se via h anos,e sobre a toalha amarelenta, bordada para o casamento, todos comem, riem,brindam, bebem. Esvaziam umas quantas garrafas, contam piadas picantes,engasgam de tanto comer e rir e trocar tapinhas nas costas. Em algum momento,passada a meia-noite, chega o silncio. O silncio entra, se instala; vence. No hfrase que chegue at a metade, nem gargalhada que no soe como se estivessefora do lugar. Ningum se atreve a ir embora. Ento, no se sabe como, comeao jogo. Os convidados brincam de quem leva mais anos morto. Perguntam-seentre si quantos anos faz que voc est morto: no, no, se dizem, vinte anos no:voc est diminuindo. Voc leva vinte e cinco anos morto. E isso.

    Algum me contou, na revista, esta estria de velhices e vinganasocorridas em sua casa na noite anterior. Eu terminava de escut-la quando tocouo telefone. Era uma companheira uruguaia que me conhecia pouco. De vez emquando vinha me ver para passar informao poltica, ou para ver o que se podiafazer por outros exilados sem teto nem trabalho. Mas agora no me telefonavapara isso. Esta vez telefonava para me contar que estava apaixonada. Disse-meque finalmente tinha encontrado o que havia estado buscando sem saber quebuscava e que precisava contar para algum e que desculpasse o incmodo e queela tinha descoberto que era possvel dividir as coisas mais profundas e queriacontar porque uma boa notcia, no? e no tenho a quem cont-la e pensei.

    Contou-me que tinham ido juntos ao hipdromo pela primeira vez na vida eficaram deslumbrados pelo brilho dos cavalos e dos bluses de seda. Tinham unspoucos pesos e apostavam tudo, certos de que ganhariam, porque era a primeiravez, e tinham apostado nos cavalos mais simpticos ou nos nomes maisengraados. Perderam tudo e voltaram a p e absolutamente felizes pela belezados animais e a emoo das corridas e porque eles tambm eram jovens e belose capazes de tudo. Agora mesmo, me disse ela, morro de vontade de ir na rua,tocar corneta, abraar as pessoas, gritar que eu amo e que nascer uma sorte.

  • AS FORMIGAS

    Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia comdiverses prprias de sua idade, como qualquer outro doce anj inho de Deus noestado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.

    Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se ps a atirarfsforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadioentretenimento infantil; Tracey , porm, ficou impressionada com uma coisa queos outros no viram, ou fizeram como se no vissem, mas que a deixouparalisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memria: frente ao fogo,frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas,bem juntinhas, esperavam a morte.

  • A FEIRA

    A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doura, deve ser comida,como voc me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpaapertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada.

    Voc gosta de acariciar o pssego e despi-lo a faca, e prefere que as masvenham opacas para que cada um possa faz-las brilhar com as mos.

    O limo inspira a voc respeito, e as laranjas, riso. No h nada maissimptico que as montanhas de rabanete e nada mais ridculo que o abacaxi, comsua couraa de guerreiro medieval.

    Os tomates e os pimentes parecem nascidos para se exibirem de panapara o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguias, mas na realidade os tomatescomeam a viver sua vida quando se misturam ao organo, ao sal e ao azeite, eos pimentes no encontram seu destino at que o calor do forno os deixa emcarne viva e nossas bocas os mordem com desejo.

    As especiarias formam, na feira, um mundo parte. So minsculas epoderosas. No h carne que no se excite e jorre caldos, carne de vaca ou depeixe, de porco ou de cordeiro, quando penetrada pelas especiarias. Ns temossempre presente que se no fosse pelos temperos no teramos nascido naAmrica, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo,foram os temperos que empurraram Cristvo Colombo e Simbad, o Marujo.

    As folhinhas de louro tm uma linda maneira de se quebrarem em sua moantes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Voc gosta muitodo romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nuncasaber se por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, temperodos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: o nico que chega aospratos verde e vivo e mido de gotinhas frescas.

  • PARA INVENTAR O MUNDO CADA DIA

    Conversamos, comemos, fumamos, caminhamos, trabalhamos juntos,maneiras de fazer o amor sem entrar-se, e os corpos vo se chamando enquantoviaja o dia rumo noite.

    Escutamos a passagem do ltimo trem. Badaladas no sino da igreja. meia-noite.

    Nosso trenzinho prprio desliza e voa, anda que te anda pelos ares e pelosmundos, e depois vem a manh e o aroma anuncia o caf saboroso, fumegante,recm-feito. De sua cara sai uma luz limpa e seu corpo cheira a molhadezas.

    Comea o dia.Contamos as horas que nos separam da noite que vem. Ento, faremos o

    amor, o tristecdio.

  • AMARES

    Nos amvamos rodando pelo espao e ramos uma bolinha de carnesaborosa e suculenta, uma nica bolinha quente que resplandecia e jorravaaromas e vapores enquanto dava voltas e voltas pelo sonho de Helena e peloespao infinito e rodando caa, suavemente caa, at parar no fundo de umagrande salada. E l ficava, aquela bolinha que ramos ela e eu; e l no fundo dasalada vamos o cu. Surgamos a duras penas atravs da folhagem cerrada dasalfaces, dos ramos do aipo e do bosque de salsa, e conseguamos ver algumasestrelas que andavam navegando no mais distante da noite.

  • A NOITE/1

    No consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhasplpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulheratravessada em minha garganta.

  • A NOITE/2

    Eu adormeo s margens de uma mulher: eu adormeo s margens de umabismo.

  • A NOITE/3

    Eles so dois por engano. A noite corrige.

  • A NOITE/4

    Solto-me do abrao, saio s ruas.No cu, j clareando, desenha-se, finita, a lua.A lua tem duas noites de idade.Eu, uma.

  • LONGA VIAGEM SEM NOS MOVERMOS

    Ritmo de pulmes da cidade que dorme. Fora, faz frio.De repente, um barulho atravessa a janela fechada. Voc aperta as unhas

    em meu brao. No respiro. Escutamos um barulho de golpes e palavres e olongo uivo de uma voz humana. Depois, silncio.

    No peso muito?N marinheiro.Formosuras e dormidezas, mais poderosas que o medo.Quando entra o sol, pestanejo e espreguio com quatro braos. Ningum

    sabe quem o dono deste joelho, nem de quem este cotovelo ou este p, estavoz que murmura bom-dia.

    Ento o animal de duas cabeas pensa ou diz ou queria: Para gente que acorda assim, no pode acontecer nada ruim.

  • A PEQUENA MORTE

    No nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de suaviagem, ao mais alto de seu vo: no mais profundo, no mais alto, nos arrancagemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem noh nada de estranho nisso, porque nascer uma alegria que di. Pequena morte,chamam na Frana a culminao do abrao, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia.Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haver de ser, se ao nos matarnos nasce.

  • CAUSOS

    Nos antigamentes, dom Verdico semeou casas e gentes em volta dobotequim El Resorte, para que o botequim no se sentisse sozinho. Este causoaconteceu, dizem por a, no povoado por ele nascido.

    E dizem por a que ali havia um tesouro, escondido na casa de um velhinhotodo mequetrefe.

    Uma vez por ms, o velhinho, que estava nas ltimas, se levantava da camae ia receber a penso.

    Aproveitando a ausncia, alguns ladres, vindos de Montevidu, invadiram acasa.

    Os ladres buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A nica coisaque encontraram foi um ba de madeira, coberto de trapos, num canto do poro.O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.

    E assim, levaram o ba. Quando finalmente conseguiram abri-lo, j longedali, descobriram que o ba estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor queo velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.

    Os ladres iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiramdevolv-las. Uma por uma. Uma por semana.

    Desde ento, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava noalto da colina. E l esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via ocavalo, gordo de alforjes, entre as rvores, o velhinho desandava a correr. Ocarteiro, que j sabia, trazia sua carta nas mos.

    E at So Pedro escutava as batidas daquele corao enlouquecido dealegria por receber palavras de mulher.

  • A ESTAO

    Achval vivia longe, a mais de uma hora de Buenos Aires. No gostava deesticar a noite na cidade, porque era triste a madrugada solitria no trem.

    Todas as manhs Acha subia no trem das nove para ir trabalhar. Subiasempre no mesmo vago e se sentava no mesmo lugar.

    Na sua frente viajava uma mulher. Todos os dias, s nove e vinte e cinco,essa mulher descia por um minuto numa estao, sempre a mesma, onde umhomem a esperava parado sempre no mesmo lugar. A mulher e o homem seabraavam e se beijavam at que soava o sinal. Ento ela se soltava e voltava aotrem.

    Essa mulher se sentava em frente, mas Acha nunca ouviu sua voz.Uma manh ela no veio e s nove e vinte e cinco Acha viu, pela janela, o

    homem esperando na plataforma. Ela no veio nunca mais. Depois de umasemana, tambm o homem desapareceu.

  • MULHER QUE DIZ TCHAU

    Levo comigo um mao vazio e amassado de Republicana e uma revistavelha que ficou por aqui. Levo comigo as duas ltimas passagens de trem. Levocomigo um guardanapo de papel com minha cara que voc desenhou, da minhaboca sai um balozinho com palavras, as palavras dizem coisas engraadas.Tambm levo comigo uma folha de accia recolhida na rua, uma outra noite,quando caminhvamos separados pela multido. E outra folha, petrificada,branca, com um furinho como uma janela, e a janela estava fechada pela guae eu soprei e vi voc e esse foi o dia em que a sorte comeou.

    Levo comigo o gosto do vinho na boca. (Por todas as coisas boas, dizamos,todas as coisas cada vez melhores que nos vo acontecer.)

    No levo nem uma nica gota de veneno. Levo os beijos de quando vocpartia (eu nunca estava dormindo, nunca). um assombro por tudo isso quenenhuma carta, nenhuma explicao, podem dizer a ningum o que foi.

  • A MOA DA CICATRIZ NO QUEIXO

    1

    Veio trazida pelo temporal.Chegou do norte, cortando vento, na carroa do velho Matias. Eu a vi chegar

    e as minhas pernas bambearam. Usava uma fita vermelha nos cabelos revoltospelo forte vento arenoso.

    O tempo estava maltratando-nos. A tormenta havia chegado uma semanaantes, mostrando uma escurido pelos lados do sul. No cu, flocos de nuvenscorriam como brancos rabos de gua, e no mar, as toninhas saltavam comoloucas: a tormenta veio e ficou.

    Era novembro. As fmeas dos tubares aproximavam-se da costa paraparir. Esfregavam os ventres contra a areia do fundo do mar.

    Nesses dias, quando a tormenta permitia uma trgua, os cavalos percheresconduziam os barcos alm da arrebentao e os pescadores saam mar adentro.Mas o mar estava muito agitado. Os molinetes giravam e as redes subiam comuma confuso de algas e sujeiras e uns poucos tubares mortos ou moribundos.Perdia-se o tempo em desembaraar aquela confuso e consertar as redes. Derepente o vento mudava sua direo, vinha forte pelo leste ou pelo sul,carbonizava-se o cu, as ondas varriam as cobertas dos barcos: era necessriovirar a proa rapidamente rumo costa.

    Trs dias antes de ela chegar, um barco havia virado, trado pela ventania.A mar tinha levado um pescador. No o devolveu.

    Estvamos falando desse homem, o Calabrs, e eu estava de costas, inchadosobre o balco. Ento, como obedecendo a um chamado, virei-me e vi.

    2

    Nessa noite, pela janela aberta de minha casa, contemplamos juntos asfascas dos relmpagos iluminando os casebres do vilarejo. Juntos, esperamos ostroves e o desaguar da chuva.

    Voc sabe cozinhar? Sei alguma coisa. Batatas, peixes...Eu passava as noites debruado, sozinho, na janela, acariciando a garrafa de

    genebra e esperando pelo sono ou pelos doentes. Meu consultrio, de cho deterra e lampio a querosene, consistia numa cama turca e um estetoscpio,algumas seringas, vendas, agulhas, linhas para dar pontos em cortes e asamostras grtis de remdios que Carrizo, de vez em quando, me mandava de

  • Buenos Aires. Com isso, e com dois anos de faculdade, eu me arranjava paracosturar homens e lutar contra as febres. Nas minhas noites solitrias sem quererdesejava uma desgraa para no me sentir totalmente intil.

    Rdio, eu no escutava, pois no litoral corria o perigo ou a tentao desintonizar alguma emissora do meu pas.

    No vi nenhuma mulher neste vilarejo. Tambm isso voc deixou paratrs?

    Eu dormia sozinho na minha cama de faquir. Os elsticos do colcho jestavam vista e as pontas das molas em espiral apareciam perigosamente.Tinha que dormir todo encolhido para no ser espetado por elas.

    Sim respondi-lhe, com ar zombeteiro. Para mim acabou-se aclandestinidade. Nem com mulheres casadas tenho encontros clandestinos.

    Ficamos calados.Fumei um cigarro, dois.Por fim, perguntei-lhe para que tinha vindo. Respondeu-me que precisava

    de um passaporte. Voc ainda faz passaportes? Pensa voltar?Disse-lhe que, tal como estavam as coisas, voltar seria uma estupidez. Que

    no existia o herosmo intil. Que... Isso coisa minha disse ela. Perguntei se voc ainda faz passaportes. Se voc precisar. Quanto tempo leva? Para os outros disse-lhe , um dia. Para voc, uma semana.Riu.Nessa noite cozinhei com vontade pela primeira vez. Fiz para Flvia uma

    corvina na brasa. Ela preparou um molho com o pouco que havia.Fora, chovia a cntaros.

    3

    Conhecemo-nos por ocasio do estado de stio. Tnhamos que caminharabraados e nos beijar caso se aproximasse qualquer vulto de uniforme. Osprimeiros beijos foram por normas de segurana. Os seguintes, porque nosdesejvamos.

    Naquele tempo, as ruas da cidade estavam vazias.Os torturados e os moribundos, entre si mesmos, diziam seus nomes e se

    tocavam nas pontas dos dedos.Flvia e eu nos encontrvamos cada vez em um lugar diferente, e

    ficvamos desesperados, em pnico, quando ocorriam alguns minutos de atraso.Abraados, escutvamos as sirenes das rondas pa-trulheiras e os sons do

  • passo da noite, em direo quela claridade indecisa que precede a aurora. Nodormamos nunca. Do lado de fora, chegavam-nos o canto do ga-lo, a voz dogarrafeiro, o barulho das latas de lixo e, ento, tomar juntos o caf da manh eramuito importante.

    Nunca nos dissemos a palavra amor. Isso se deslizava, de contrabando,quando dizamos: Chove, ou dizamos: Sinto-me bem, mas eu teria sidocapaz de meter-lhe uma bala na memria para que no lembrasse nada denenhum outro homem.

    Alguma vez dizamos , quando as coisas mudarem. Vamos ter uma casa. Seria lindo.Por algumas noites pudemos pensar, atordoados, que era por isso que se

    lutava. Que para que isso fosse possvel que as pessoas se atiravam na luta.Mas era uma trgua. Logo soubemos, ela e eu, que antes disso iramos

    esquecer ou morrer.

    4

    O cu amanheceu limpo e azul.Ao entardecer, vimos ao longe os barcos dos pescadores como pontinhos

    que vinham crescendo. Voltavam com os pores repletos de tubares.Eu conhecia essa horrvel agonia. Os tubares, estrangulados, remexiam-se

    nas redes, tentando cegamente lanar mordidas antes de carem amontoados.

    5

    Aqui ningum encontrar voc. Fica, at que as coisas mudem. As coisas mudam sozinhas? O que voc vai fazer? A revoluo? Eu sou uma formiguinha. As formiguinhas no fazem coisas to grandes

    como a revoluo ou a guerra. Levamos pedacinhos de folhas ou mensagens.Ajudamos um pouco.

    Folhinhas, pode ser. Ficaram algumas plantas. E algumas pessoas. Sim: os velhos, os milicos, os presos e os loucos. No bem assim.

  • Voc no quer que seja bem assim. Estive muito tempo fora. Longe. E agora... agora estou quase de volta.

    Pertinho, em frente. Sabe o que sinto? O que os bebezinhos sentem quandoobservam o dedo do p e descobrem o mundo.

    A realidade no se importa nem um pouco com o que voc sente. E vamos ficar chorando pelos cantos? Seis vezes sete quarenta e dois e no noventa e quatro, e voc, furiosa

    grita: Quem o filho da puta que anda mudando os nmeros? Mas... voc pode me dizer como que se acaba com uma ditadura? Com

    flechinhas de papel? Com o qu, eu no sei. Daqui, se acaba uma ditadura? Por controle remoto? Ah, sim. A herona solitria busca a morte. No, no machismo

    pequeno-burgus. feminismo. E voc? Pior. egosmo. Ou covardia. Diga. No, no. Diga que sou enganador, desertor. Voc no entendeu. voc quem no entende. Por que reage assim? E voc? Eu j sei que voc no precisa provar nada a voc mesmo. No seja

    bobo. No entanto, voc me disse que... E voc tambm me disse. Vamos comear outra vez? Est bem. Eu me expressei mal. Desculpe-me. Seria uma estupidez discutirmos nestes poucos dias que... Sim. Nestes poucos dias. Escuta. O qu? Sabe de uma coisa? Estamos todos desamparados. Sim. Todos. Desamparados. Sim. Mas eu te amo.

    6

    amos visitar o Capito.O Capito, em terra firme, estava sempre de passagem.

  • Sua verdadeira residncia era o mar, o barco Foragido, que nos dias bons seperdia longe do horizonte.

    Ele tinha armado uma barraca entre os carvalhos, para os maus dias, e alificava a vaguear na sombra, cercado por seus magros cachorros, pelas galinhase porcos criados ao deus-dar.

    O Capito tinha msculos at nas sobrancelhas.Nunca tinha escutado uma previso do tempo, nem consultado uma carta de

    navegao, mas conhecia como ningum aquele mar.s vezes, ao entardecer, eu ia praia para v-lo chegar.Via-o em p na proa, com as pernas abertas e as mos na cintura,

    aproximando-se da costa, e adivinhava sua voz dando ordens ao timoneiro. OCapito subia na crista da onda brava, montava-a quando queria, cavalgava sobreela, a domava; deixava-se levar tranqilamente, deslizando suavemente at acosta.

    O Capito sabia executar o seu ofcio, fazia-o bem, amava o que fazia e oque j havia feito. Eu gostava de ouvi-lo.

    Se um norte voc perdeu, pelo sul ele se escondeu. O Capito ensinou-me apressentir as mudanas do vento. Ensinou-me tambm por que os tubares, queno sabem nadar para trs e s tm olfato para o sangue, se enrolam nas redes, ecomo as corvinas negras comem mexilhes no fundo do mar, boca abaixo,cuspindo as cascas, e como as baleias fazem amor nos gelados mares do Sul esobem superfcie com as caudas enroscadas.

    O Capito tinha andado pelo mundo. Escut-lo era como fazer uma longaviagem de trs para diante, do ponto de chegada ao ponto de partida, e pelocaminho apareciam o mistrio e a loucura e a alegria do mar e alguma vez, raravez, tambm a dor calada. As histrias mais antigas eram as mais divertidas e euficava imaginando que nos anos de sua juventude, antes das feridas das quaispouco falava, o Capito tinha sabido ser feliz at nos velrios.

    Enquanto falvamos, chegavam at a barraca do Capito o barulhoininterrupto de uma serra e os mugidos das vacas na mansido; chegavamtambm as marteladas do sapateiro que amaciava couros na forma de ferroapoiada em seus joelhos.

    Falava-me de minha cidade, que conhecia bem. Isto , conhecia o porto e abaa, mas principalmente as ruelas da parte baixa da cidade e os bares.Perguntava-me sobre certos botequins e mercadinhos e eu lhe dizia que haviamdesaparecido e ele se calava e cuspia tabaco.

    Eu no acredito nos tempos de hoje dizia o Capito.Uma vez ele me disse: Quando as paredes duram menos que os homens, as coisas no andam

    bem. No seu pas, as coisas no andam bem.Tambm falava do passado daquele povoado de pescadores, que tinha

    conhecido suas pocas de glria quando o fgado do tubaro valia seu peso emouro e os marinheiros passavam as noites de temporal com uma puta francesaem cada joelho e algum ano abanando e os violeiros cantando versos de amor.

    Do pique da proa, olhou Flvia com desconfiana.Franziu a testa e lhe falou baixinho, para que eu no ouvisse:

  • Quando este homem chegou aqui apontando-me e mentindo para Flvia, matou com as prprias mos o cavalo que o trouxe. Matou-o com um tiro.

    7

    Em plena noite fomos despertados por fortes batidas na porta e por gritos.Por pouco a porta no veio abaixo.

    Eu e Flvia samos correndo para a casa do maneta Justino. Peguei o quepude e voamos para l.

    Anos atrs, um tubaro-tigre havia arrancado o brao de Justino. O tubarotinha dado a volta quando Justino tentava tir-lo da rede. Eu conhecia Justinomuito pouco, mas disso eu sabia.

    No casebre, o lampio a querosene cambaleou.A mulher do sem-brao gritava com as pernas abertas. As coxas estavam

    inchadas e roxas. Na pele esticada via-se uma seiva de minsculas veias.Pedi a Flvia para ferver uma panela de gua. Mandei Justino, que estava

    muito nervoso e tropeando em tudo, esperar l fora. Um cachorro escondeu-sedebaixo da cama e expulsei-o a pontaps.

    Com alma e vida debrucei-me sobre o ventre da mu-lher. Ela uivava comoum animal, gemia e xingava no agento mais, est doendo, caralho, eu morro, fervendo de suor, e a cabecinha vinha aparecendo entre as pernas mas nosaa, no saa nunca, e eu fazia fora com o corpo todo e a a mulher deu umsoco num travesso de madeira e o teto quase veio abaixo, e deu um longo gritoesganiado.

    Flvia estava ao meu lado.Fiquei paralisado. A pequenina tinha nascido com o cordo dando-lhe duas

    voltas no pescoo. O rostinho estava roxo, inchado, sem traos, e estava todaoleosa e coberta de sangue e de uma merda verde e tinha a dor estampada norosto. No se viam as feies mas se via a dor, e creio que pensei: pobrezinha, jto cedo.

    Eu tremia da cabea aos ps. Quis segur-la. Faltavam-me mos.Escorregou.

    Foi Flvia quem desenroscou o cordo. Eu atinei, no sei como, dar dois nsbem fortes com um fio qualquer, e com uma gilete cortei o cordo de uma vez.

    E esperei.Flvia segurava pelos ps e a mantinha suspensa no ar.Dei-lhe uma palmadinha nas costas.Os segundos voavam.Nada.E esperamos.Creio que Justino estava na porta, de joelhos, rezando. A mulher gemia,

  • queixando-se com um fio de voz. Estava longe. E ns esperando, com amenininha de cabea para baixo, e nada.

    Tornei a dar-lhe uma palmada nas costas.Aquele cheiro imundo e adocicado revirava o meu estmago.Ento, rapidamente, Flvia agarrou-a pela cabea, levou-a boca e a

    beijou violentamente. Aspirou e cuspiu e tornou a aspirar e cuspir crostas eescarros e baba branca. E finalmente a pequenina chorou. Tinha nascido. Estavaviva.

    Ela me entregou a menina e eu a lavei. As pessoas foram entrando. Flvia eeu samos.

    Estvamos exaustos e atordoados. Fomos sentar na areia, junto ao mar, esem dizer nada, nos perguntvamos: Como foi? Como foi?.

    Eu confessei: Nunca havia presenciado. No sabia como era. Para mim, foi a primeira

    vez.E ela disse: Nem eu.Apoiou a cabea no meu peito. Senti a fora de seus dedos agarrando-se nas

    minhas costas. Adivinhei que tinha lgrimas presas nos olhos.Depois perguntou ou fez a pergunta para si mesma: Como ser ter um filho? Um filho prprio, da gente?E disse. Eu nunca vou ter.E depois, um marinheiro chegou perto, mandado por Justino, perguntando a

    Flvia qual era seu nome. Precisavam do nome para o batismo. Mariana respondeu Flvia.Fiquei surpreso. No disse nada.O marinheiro deixou-nos uma garrafa de grapa. Bebi no gargalo. Flvia

    tambm. Sempre quis me chamar assim disse-me.E eu me lembrei que esse era o nome que constava no passaporte que

    estava preparando lenta, lentamente para que ela fosse embora.

    8

    Coloquei as fotos no ch para envelhec-las. Apaguei letra por letra comuns cidos franceses que tinha guardado. Passei um solvente sobre a impressodigital e depois cola de farinha de trigo e borracha de tinta. Alisei as folhas comferro de passar roupa morno. O passaporte ficou nu. Fui vestindo-o pouco apouco. Deixei marcas de carimbos e fiz assinaturas. Depois friccionei as folhascom as unhas.

  • 9Aproximava-se o fim do ano. Fazia um ms que Flvia estava ali. A luanasceu com os cornos para cima.

    Longe, no to longe, algum se emputecia, algum se despedaava,algum ficava louco de solido ou de fome. Apertava-se um boto: a mquinazumbia, crepitava, abria as mandbulas de ao. Um homem conseguia depois demuito tempo ver seu filho preso atravs de uma grade, e o reconhecia somentepelos sapatos marrons que tinha dado de presente a ele.

    Faa com que esses cachorros se calem.Flvia sentia-se culpada por comer comida quente duas vezes ao dia, ter

    abrigo no inverno e liberdade. Ela me disse: Faa com que esses cachorros se calem. Se eles se calam, eu fico.

    10

    Fomos dormir tarde e quando despertei estava s.Tomei genebra. A minha mo tremia. Apertei o copo, forcei e o quebrei.

    Minha mo sangrou.

    11

    Naquele ms, Carrizo chegou.Para ele, foi difcil contar-me.No quis detalhes. No quis guardar dela a memria de uma morte

    repugnante. Neguei-me a saber se a haviam asfixiado com uma bolsa deplstico, num barril com gua e merda ou se lhe haviam arrebentado o fgado apontaps.

    Pensei no pouco que durou para ela a alegria de chamar-se Mariana.

  • 12

    Decidi ir embora com Carrizo ao amanhecer.O velho Matias, que era guia, aprontou os cavalos. Ele nos acompanharia.Foram esperar-me do outro lado do riacho. Fui despedir-me do Capito. No vai me deixar dar-lhe um abrao?O Capito estava de costas. Escutou minhas explicaes.Abriu a janela, observou o cu, farejou a brisa: era bom dia para navegar.Esquentou gua, parcimonioso, para o chimarro. No dizia nada e

    continuava virado de costas. Eu tossi. V disse-me asperamente, por fim. V de uma vez. Vamos queimar a sua casa prosseguiu e tudo o que seu.Montei e fiquei esperando, sem decidir-me.Ento ele saiu e deu uma chicotada na anca do cavalo.

    13

    amos a trote e pensei nesse corpo terno e violento. Vai me perseguir at ofim, pensei. Quando abrir a porta, vou querer encontrar alguma mensagem delae quando me deitar para dormir em algum cho ou cama vou escutar e contar ospassos na escada, um a um, ou o barulho do elevador, andar a andar, no pormedo dos milicos mas pelo louco desejo de que ela esteja viva e volte. Vouconfundi-la com outras. Procurarei seu nome e sua voz e seu rosto. Sentirei seucheiro na rua. Vou me embebedar e no me servir de nada, pensei, se no com saliva ou lgrimas dessa mulher.

  • CONFISSO DO ARTISTA

    Eu sei que ela uma cor e um som. Se pudesse mostr-la a voc!Dormia ali, nua, abraando as prprias pernas. Eu amava nela a alegria de

    animal jovem e ao mesmo tempo amava o pressentimento da decomposio,porque ela havia nascido para desfazer-se e eu sentia pena que fssemosparecidos nisso. Mostrava a pele do ventre, que parecia raspada por um pente demetal. Essa mulher! Algumas noites saa luz de seus olhos e ela no sabia.

    Passo as horas procurando-a, sentado na frente do cavalete, mordendo ospunhos, com os olhos cravados numa mancha de tinta vermelha que parece aoentusiasmo dos msculos e a tortura dos anos. Olho at sentir que meus olhosdoem e finalmente creio que comeo a sentir, no escuro, as pulsaes da pinturacrescendo e transbordando, viva, sobre a tela branca, e creio que escuto o rudodos ps descalos sobre a madeira do cho, sua cano triste. Mas no. Minhaprpria voz avisa: A cor outra. O som outro.

    Levanto, e cravo a esptula nessa vscera vermelha e rasgo a tela de cimapara baixo. Depois de mat-la, deito de boca para cima, arfando como um co.

    Mas no posso dormir. Lentamente vou sentindo que volta a nascer em mima necessidade de pari-la. Ponho o casaco e vou beber vinho nos botecos do porto.

  • ESSA VELHA UM PAS

    1

    A ltima vez que a Av viajou para Buenos Aires chegou sem nenhumdente, como um recm-nascido. Eu fiz que no percebi. Graciela tinha meadvertido, por telefone, de Montevidu: Est muito preocupada. Me perguntou:Eduardo no vai me achar feia?.

    A Av parecia um passarinho. Os anos iam passando e faziam com que elaencolhesse.

    Samos do porto abraados.Propus um txi. No, no disse a ela. No porque ache que voc v ficar cansada. Eu

    sei que voc agenta. que o hotel fica muito longe, entende?Mas ela queria caminhar. Escuta, v falei. Por aqui no vale a pena. A paisagem feia. Esta

    uma parte feia de Buenos Aires. Depois, quando voc tiver descansado, vamosjuntos caminhar pelos parques.

    Parou, me olhou de cima a baixo. Me insultou. E me perguntou, furiosa: E voc acha que eu olho a paisagem, quando caminho com voc?Se pendurou em mim. Eu me sinto crescida disse debaixo da tua asa.Perguntou-me: Voc lembra quando me levava no colo, no hospital, depois

    da operao?Falou-me do Uruguai, do silncio e do medo: Est tudo to sujo. Est to sujo tudo.Falou-me da morte: Vou me reencarnar num carrapicho. Ou em um neto ou bisneto seu vou

    aparecer. Mas, velha falei. Se a senhora vai viver duzentos anos. No me fale

    da morte, que a senhora ainda vai durar muito. No seja perverso respondeu.Disse que estava cansada de seu corpo. Volta e meia eu falo para ele, para meu corpo: No te suporto. E ele

    responde: Eu tampouco. Olha disse ela, e esticou a pele do brao.Falou da viagem: Lembra quando a febre estava te matando, na Venezuela, e eu passei a

    noite chorando, em Montevidu, sem saber por qu? Na semana passada, dissepara Emma: Eduardo no est tranqilo. E vim. E agora tambm acho quevoc no est tranqilo.

  • 2Vov ficou uns dias e voltou para Montevidu.Depois escrevi uma carta para ela. Escrevi que no cuidasse, que no se

    chateasse, que no se cansasse. Disse que eu sei direitinho de onde veio o barrocom que me fizeram.

    E depois me avisaram que tinha sofrido um acidente.Telefonei para ela. Foi minha culpa falou. Escapei e fui caminhando at a Universidade,

    pelo mesmo caminho que fazia antes para ver voc. Lembra? Eu j sei que noposso fazer isso. Cada vez que fao, caio. Cheguei ao p da escada e disse, emvoz alta: Aroma do Tempo, que era o nome do perfume que voc uma vez medeu de presente. E ca. Me levantaram e me trouxeram aqui. Acharam que eutinha quebrado algum osso. Mas hoje, nem bem me deixaram sozinha, melevantei da cama e fugi. Sa na rua e disse: Eu estou bem viva e louca, como elequer.

  • O MSCULO SECRETO

    Nos ltimos anos, a Av estava se dando muito mal com o prprio corpo.Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la.

    Ainda bem que a mente viaja sem passagem dizia.Eu estava longe, no exlio. Em Montevidu, a Av sentiu que tinha chegado

    a hora de morrer. Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo.Chegou de avio, acompanhada pela minha tia Emma. Viajou entre as

    nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avioatravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobrea estrada de pedras.

    Ficou em casa um ms. Comia mingaus de beb e roubava caramelos. Nomeio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu av, quetinha morrido h quarenta anos. s vezes tentava alguma fuga at a praia, massuas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada.

    No final, disse: Agora, j posso morrer.Disse que no ia morrer na Espanha. Queria evitar que eu tivesse a

    trabalheira burocrtica, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muitobem que eu odiava a burocracia.

    E regressou a Montevidu. Visitou a famlia toda, casa por casa, parente porparente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagemno tinha culpa. E ento, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu.

    Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da rvore que ela tinha escolhido.s vezes, a Av vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e

    ela um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas guas.

  • A OUTRA AV

    A av de Bertha Jensen morreu amaldioando.Ela tinha vivido a vida inteira na ponta dos ps, como se pedisse perdo por

    incomodar, consagrada ao servio do marido e sua prole de cinco filhos, esposaexemplar, me abnegada, silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixasara de seus lbios, e muito menos um palavro.

    Quando a doena derrubou-a, chamou o marido, sentou-o na frente dacama, e comeou. Ningum suspeitava que ela conhecesse aquele vocabulriode marinheiro bbado. A agonia foi longa. Durante mais de um ms, a av, dacama, vomitou um incessante jorro de insultos e blasfmias baixssimas. At asua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem bebido outra coisa alm degua ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim, xingando, morreu; e foi umalvio geral na famlia e na vizinhana.

    Morreu onde havia nascido, na aldeia de Dragor, na frente do mar, naDinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma linda cara de cigana. Gostava devestir-se de vermelho e de navegar ao sol.

  • A ACROBATA

    Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche.O circo Firuliche emergiu certa noite, mgico barco de luzes, das

    profundidades do Lago da Nicargua. Eram clarins guerreiros as cornetas depapelo dos palhaos e bandeiras altas os farrapos que ondeavam anunciando amaior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e tambm oslees, aposentados lees; mas a lona era um castelo e os lees, os reis da selva. Euma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos cus,balanando nos trapzios a um metro do cho.

    Ento, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, l doalto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas.

    E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura deSomoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.

    Porque quem entra no circo Firuliche no sai jamais.

  • CRNICA DA CIDADE DE BOGOT

    Quando as cortinas baixavam a cada fim de noite, Patricia Ariza, marcadapara morrer, fechava os olhos. Em silncio agradecia os aplausos do pblico etambm agradecia outro dia de vida roubado da morte.

    Patricia estava na lista dos condenados, por pensar esquerda e viver defrente; e as sentenas estavam sendo executadas, implacavelmente, uma aps aoutra.

    At sem casa ela ficou. Uma bomba podia acabar com o edifcio: osvizinhos, respeitadores da lei do silncio, exigiram que ela se mudasse.

    Patricia andava com um colete prova de balas pelas ruas de Bogot. Notinha outro jeito; mas era um colete triste e feio. Um dia, Patricia pregou nocolete algumas lantejoulas, e em outro dia bordou umas flores coloridas, floresque desciam feito chuva sobre seus peitos, e assim o colete foi por ela alegrado eenfeitado, e seja como for conseguiu acostumar-se a us-lo sempre, e j no otirava nem mesmo no palco.

    Quando Patricia viajou para fora da Colmbia, para atuar em teatroseuropeus, ofereceu o colete antibalas a um campons chamado Julio Can.

    Julio Can, prefeito do povoado de Vista-hermosa, tinha perdido bala afamlia inteira, s como advertncia, mas negou-se a usar o colete florido:

    Eu no uso coisas de mulheres disse.Com uma tesoura, Patricia arrancou os brilhos e as cores, e ento o colete

    foi aceito pelo homem.Naquela mesma noite ele foi crivado de balas. Com colete e tudo.

  • NOEL

    A chuva havia nos surpreendido na metade do caminho; tinha sedescarregado, raivosa, durante dois dias e duas noites.

    Fazia j algumas horas que o sol tinha voltado, e as crianas andavam ao pdo morro buscando o jacar cado do cu. O sol atacava as lamas das roas e amata prxima, arrancando nuvens de vapor e aromas vegetais, limpos eembriagadores.

    Ns estvamos esperando que um rudo de motores anunciasse acontinuao da viagem, e deixvamos passar o tempo, entre bocejos, sentados decostas contra a frente de madeira do armazm ou deitados sobre sacos de acarou de milho modo.

    Dos braos de uma mulher, ao meu lado, brotava, contnuo, um gemidodbil. Envolvido em trapos, Noel gemia. Tinha febre; um mal tinha entrado pelaorelha e tomado a cabea.

    Para l dos campos amarelos de soja, se estendia um vasto espao de cinzase tocos de rvores cortadas e carbonizadas. Logo tornariam a se erguer, por trsdesses desertos, as espessas colunas de fumaa das fogueiras que abriamcaminho em direo ao fundo da mata invicta, onde floresciam, porque erapoca, as campainhas averme-lhadas dos lapachos. Esperando, esperando,adormeci.

    Me despertou, muito depois, a agitao das pessoas que gritavam e erguiampacotes, sacos e panelas. O caminho, vermelho de barro seco, tinha chegado.Eu estava estendendo os braos quando escutei, ao meu lado, a voz da mulher:

    Me ajude a subir.Olhei para ela, olhei para o menino. Noel no se queixa mais disse.Ela inclinou a cabea suavemente e depois continuou com a vista sem

    expresso, cravada nos altos arvoredos onde se rompiam as ltimas luzes datarde.

    Noel tinha a pele transparente, cor de sebo de vela; a me j tinha fechadoseus olhos. De repente, senti que minhas tripas se retorciam e senti a necessidadecega de dar uma porrada na cara de Deus ou de algum.

    Culpa da chuva murmurou ela. A chuva, que fecha os caminhos.Mais que a tristeza, era o medo que apagava sua voz. Qualquer motorista

    sabe que d azar atravessar a selva com um morto.Subimos na carroceria. Os contrabandistas, os pees do mato, os

    camponeses celebravam com cachaa a apario do caminho. Algunscantavam. O caminho partiu e todos ficaram em silncio depois dos primeirostrancos.

    E agora, por que voc continua?Foi a primeira vez que olhou para mim. Parecia assombrada. Aonde? Isso leva a gente para Corpus Christi. Para l que eu vou. Vou at Corpus rezar para que chegue o padre. O

  • padre tem que fazer o batismo. Noel no est batizado e eu vou esperar at quechegue o padre com as guas sagradas.

    A viagem se fez longa. amos aos trancos pela picada aberta na selva. Jera noite fechada e por aquela comarca tambm vagavam, disfaradas embichos espantosos, as almas penadas.

  • A CULTURA DO TERROR/1

    Sobre uma menina exemplar:Uma menina brinca com duas bonecas e briga com elas para que fiquem

    quietas. Ela tambm parece uma boneca porque linda e boazinha e porque noincomoda ningum.

    (Do livro Adelante, de J. H. Figueira, que foi livro escolar no Uruguai atpoucos anos atrs.)

  • A CULTURA DO TERROR/2

    Ramona Caraballo foi dada de presente assim que aprendeu a caminhar.L por 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa

    de Montevidu. Fazia de tudo, a troco de nada.Um dia, a av chegou para visit-la. Ramona no a conhecia, ou no se

    lembrava dela. A av chegou vinda do interior, do campo, muito apressadaporque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta,e foi embora.

    Ramona ficou chorando e sangrando.A av tinha dito, enquanto erguia o rebenque: Voc no est apanhando por causa do que fez. Est apanhando por causa

    do que vai fazer.

  • A CULTURA DO TERROR/3

    Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato deduas mulheres. O crime duplo tinha sido faca, no final de 1982, num subrbiode Montevidu.

    A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais deum ano; e parecia condenada a apodrecer no crcere o resto da vida.

    Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher.Depois de um ms de contnuas surras, tinham arrancado de Alma vriasconfisses. As confisses no eram muito parecidas entre si, como se ela tivessecometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissohavia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domiclio,porque a mquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista;e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olmpica,os msculos de uma foruda de parque de diverses e a destreza de umamatadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: emcada confisso, a acusada descrevia com preciso milimtrica roupas, gestos,cenrios, situaes, objetos...

    Alma Di Agosto era cega.Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de

    que ela era culpada: Por qu? perguntou o advogado. Porque os jornais dizem. Mas os jornais mentem disse o advogado. Mas o rdio tambm diz explicaram os vizinhos. E a televiso!

  • A TELEVISO

    Rosa Maria Mateo, uma das figuras mais populares da televiso espanhola,me contou esta histria.

    Uma mulher tinha escrito uma carta para ela, de algum lugarzinho perdido,pedindo que por favor contasse a verdade:

    Quando eu olho para a senhora, a senhora est olhando para mim?Rosa Maria me contou, e disse que no sabia o que responder.

  • A CULTURA DO TERROR/4

    A extorso,o insulto,a ameaa,o cascudo,a bofetada,a surra,o aoite,o quarto escuro,a ducha gelada,o jejum obrigatrio,a comida obrigatria,a proibio de sair,a proibio de se dizer o que se pensa,a proibio de fazer o que se sente,e a humilhao pblicaso alguns dos mtodos de penitncia e tortura tradicionais na vida da

    famlia. Para castigo desobedincia e exemplo de liberdade, a tradio familiarperpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir econtagia tudo com a peste do medo.

    Os direitos humanos deveriam comear em casa comenta comigo, noChile, Andrs Domnguez.

  • O PRESENTE

    A sombra das velas se alonga sobre o mar. Sargaos e medusas derivam,empurrados pela ondas, at a costa da ilha de Santa Cruz.

    Do castelo de popa de uma das caravelas, Colombo contempla as brancaspraias onde plantou, uma vez mais, a cruz e a forca. Esta sua segunda viagem.Quanto durar, no sabe; mas seu corao diz que tudo sair bem, e como novai acreditar no corao o Almirante? Ser que ele no tem por costume medir avelocidade dos navios com a mo contra o peito, contando as batidas?

    Debaixo da coberta de outra caravela, no camarote do capito, uma moamostra os dentes. Miquele de Cuneo busca os peitos dela, e ela o arranha e chuta,e uiva. Miquele recebeu-a h uns instantes. um presente de Colombo.

    Aoita-a com uma corda. Bate firme na cabea e no ventre e nas pernas.Os uivos fazem-se gritos; os gritos, gemidos. Finalmente, escuta-se o ir e vir dasgaivotas e o ranger da madeira que balana. De vez em quando uma garoa deondas entra pela escotilha.

    Miquele deita sobre o corpo ensangentado e se remexe, arfa e fora. O archeira a breu, a salitre, a suor. E ento a moa, que parecia desmaiada ou morta,crava subitamente as unhas nas costas de Miquele, se enrosca em suas pernas e ofaz rodar em um abrao feroz.

    Muito depois, quando Miquele desperta, no sabe onde est nem o queaconteceu. Se desprende dela, lvido, e a afasta com um empurro.

    Zanzando, sobe coberta. Aspira fundo a brisa do mar, com a boca aberta.E diz em voz alta, como se comprovasse:

    Estas ndias so todas putas.

  • O ESPELHO

    O sol do meio-dia arranca fumaa das pedras e relmpagos dos metais.Alvoroo no porto: os galees trouxeram de Sevilha a artilharia pesada para afortaleza de So Domingos.

    O prefeito, Fernndez de Oviedo, dirige o transporte de colubrinas ecanhes. A golpe de chibata, os negros arrastam a carga a todo vapor. Rangemos carros, sufocados pelo peso dos ferros e bronzes, e atravs do torvelinho outrosescravos vo e vm jogando caldeires de gua contra o fogo que brota dos eixosaquecidos.

    Em meio da zoeira e da gritaria, uma moa ndia anda em busca de seuamo. Tem a pele coberta de bolhas. Cada passo um triunfo e a pouca roupa queusa atormenta sua pele queimada. Durante a noite e meio dia, esta moasuportou, de alarido em alarido, os ardores do cido. Ela mesma assou as razesde guao e esfregou-as entre as mos at convert-las em pasta. Untou-se inteirade guao, da raiz dos cabelos at os dedos dos ps, porque o guao abrasa a pele elimpa a cor, e assim transforma as ndias e negras em brancas damas deCastilha.

    Me reconhece, senhor?Oviedo afasta-a com um empurro; mas a moa insiste, com seu fio de voz,

    agarrada ao amo como sombra, enquanto Oviedo corre gritando ordens aoscapatazes.

    Sabe quem sou?A moa cai no cho e do cho continua perguntando: Senhor, senhor, no sabe quem sou?

  • INS

    H poucos meses, Pedro de Valdvia descobriu este monte e este vale. Osaraucanos, que tinham feito a mesma descoberta alguns milhares de anos antes,chamavam o monte de Hueln, que significa dor. Valdvia batizou-o de SantaLuzia.

    Da crista do morro, Valdvia viu a terra verde entre os braos do rio edecidiu que no existia no mundo melhor lugar para oferecer uma cidade aoapstolo Santiago, que acompanha os conquistadores e luta por eles.

    Cortou os ares sua espada, nos quatro rumos da rosa-dos-ventos, e assimnasceu Santiago do Novo Extremo. Assim cumpre, agora, seu primeiro vero:umas poucas casas de barro e madeira, com telhado de palha, a praa ao centro,a paliada ao redor.

    Apenas cinqenta homens ficaram em Santiago. Valdvia anda com osoutros pelas ribeiras do rio Cachapoal.

    Ao despontar do dia, a sentinela d o grito de alarma do alto da paliada.Pelos quatro cantos aparecem os esquadres indgenas.

    Os espanhis escutam os alaridos de guerra e em seguida cai em cima delesum vendaval de flechas.

    Ao meio-dia, algumas casas so pura cinza e a paliada caiu. Luta-se napraa, corpo a corpo.

    Ins corre ento at a choa onde funciona a priso. O guardio vigia, ali, ossete chefes araucanos que os espanhis tinham prendido tempos atrs. Elasugere, suplica, ordena que lhes cortem as cabeas.

    Como? As cabeas! Como? Assim!Ins agarra uma espada e as sete cabeas voam pelos ares.A batalha muda de direo. As cabeas convertem os sitiados em

    perseguidores. Na acometida, os espanhis no invocam o apstolo Santiago, masNossa Senhora do Socorro.

    Ins Surez, a malaguenha, tinha sido a primeira a acudir quando Valdviaalou a bandeira de alistamento em sua casa em Cuzco. Veio a estas terras do sul cabea das hostes invasoras, cavalgando ao lado de Valdvia, espada de aobom e cota de fina malha, e desde ento junto a Valdvia marcha, luta e dorme.Hoje, ocupou seu lugar.

    a nica mulher entre os homens. Eles dizem: um macho, e acomparam com Roldo e com El Cid, enquanto ela esfrega azeite sobre os dedosdo capito Francisco de Aguirre, que ficaram presos no punho da espada, e noexiste maneira de abri-los, embora a guerra, por enquanto, tenha terminado.

  • BEATRIZ

    Pedro de Alvarado tinha casado com Francisca, mas Francisca caiufulminada pela gua de flor de laranjeira que bebeu no caminho a Veracruz.Ento, casou com Beatriz, a irm de Francisca.

    Beatriz estava esperando por ele na Guatemala quando soube, h doismeses, que era viva. Cobriu sua casa de negro por dentro e por fora e pregouportas e janelas para fartar-se de chorar sem que ningum visse.

    Chorou olhando no espelho seu corpo nu, que tinha ficado seco de tantoesperar e j no tinha nada para esperar, corpo que no cantava, boca que s eracapaz de dizer:

    Ests a?Chorou por esta casa que odeia e por esta terra que no a sua e pelos anos

    gastos entre esta casa e a igreja, da missa mesa e do batismo ao enterro,rodeada de soldados bbados e de servas indgenas que lhe provocam asco.Chorou pela comida que lhe faz mal e por aquele que no vinha nunca, porquesempre havia alguma guerra para guerrear ou terra para conquistar. Chorou portudo que tinha chorado em sua cama sem ningum, quando dava um salto cadavez que latia um co ou cantava um galo e sozinha aprendia a ler a escurido eescutar o silncio e a desenhar no ar. Chorou e chorou, partida por dentro.

    Quando por fim saiu do claustro, anunciou: Eu sou a governadora da Guatemala.Pouco pde governar.O vulco est vomitando uma catarata de gua e pedras que afoga a cidade

    e mata tudo o que toca. O dilvio vai avanando at a casa de Beatriz, enquantoela corre ao oratrio, sobe no altar e se abraa Virgem. Suas onze criadas seabraam s suas pernas e se abraam entre si, e Beatriz grita:

    Ests a?A tromba arrasa a cidade que Alvarado fundou, e enquanto o rugido cresce

    Beatriz continua gritando: Ests a?

  • AS AMAZONAS

    No tinha jeito ruim a batalha, hoje, dia de So Joo. Dos bergantins, oshomens de Francisco de Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadasde arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa.

    Mas, a, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tobelas e ferozes que eram um escndalo, e ento as canoas cobriram o rio e osnavios saram correndo, rio acima, como porcos-espinhos assustados, eriados deflechas de proa a popa e at no mastro-mor.

    As capits lutaram rindo. Se puseram frente dos homens, fmeasgarbosas, e j no houve medo na aldeia de Conlapay ara. Lutaram rindo edanando e cantando, as tetas vibrantes ao ar, at que os espanhis se perderampara l da boca do rio Tapajs, exaustos de tanto esforo e assombro.

    Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul,em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem vares. Quando ocorpo pede, do guerra s tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvemna manh seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressavelho.

    Orellana e seus soldados continuaro percorrendo o rio mais caudaloso domundo e sairo ao mar sem piloto, nem bssola, nem carta de navegao.Viajam nos bergantins que eles construram ou inventaram a golpes de machado,em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortose soprando o carvo com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumopelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vomurmurando oraes: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos quepossam ser, os prximos inimigos.

  • MUNDO POUCO

    O amo de Fabiana Crioula morreu em 1618, em Lima. Em seu testamento,rebaixou-lhe o preo da liberdade, de duzentos a cento e cinqenta pesos.

    Fabiana passou toda a noite sem dormir, perguntando-se quanto valeria asua caixa de madeira cheia de canela em p. Ela no sabe somar, de modo queno pode calcular as liberdades que comprou, com seu trabalho, ao longo domeio sculo que leva no mundo, nem o preo dos filhos que fizeram nela edepois arrancaram dela.

    Nem bem desponta a alvorada, acode o pssaro a bater na janela com obico. Cada dia, o mesmo pssaro avisa que hora de despertar e andar.

    Fabiana boceja, senta na esteira e olha os ps gastos.

  • MARIA

    Cada dia tenho mais problemas e menos marido! suspira Maria delCastillo. Aos seus ps, o tramosta, o apontador e a primeira atriz oferecemconsolos e brisas de seu leque.

    No turvo crepsculo, os guardas da Inquisio arrancaram Juan dos braosde Maria e atiraram-no ao crcere porque lnguas envenenadas dizem que eledisse, enquanto escutava o evangelho:

    Eia! Que no tem outra coisa que viver e morrer!Poucas horas antes, na praa da matriz e pelas quatro ruas que do esquina

    aos mercadores, o negro Lzaro tinha apregoado as novas ordens do vice-rei deLima sobre os teatros de comdias.

    Manda o vice-rei, conde de Chinchn, que uma parede de pau-a-piquesepare as mulheres dos homens no teatro, sob pena de crcere e multa a queminvada o territrio do outro sexo. Tambm dispe que acabem as comdias maiscedo, ao repicarem os sinos de orao, e que entrem e saiam homens e mulherespor portas diferentes, para que no continuem as graves ofensas contra DeusNosso Senhor na escurido dos becos. E se isso fosse pouco, o vice-rei decidiuque baixem os preos das entradas.

    Nunca me ter! clama Maria. Por muita guerra que me declare,nunca me terl

    Maria del Castillo, grande chefe dos cmicos de Lima, leva intactos o ar e abeleza que a fizeram clebre, e aos sessenta longos anos ainda ri das tapadas, quecom um xale cobrem um olho: como ela tem belos os dois, a cara descobertaolha, seduz e assusta. Era quase menina quando escolheu este ofcio de maga; efaz meio sculo que enfeitia multides nos palcos de Lima. Mesmo que queira,explica, j no poderia mudar o teatro pelo convento, pois no gostaria Deus det-la como esposa, depois de trs matrimnios to desfrutados.

    Por muito que agora os inquisidores a deixem sem marido e que os decretosdo governo pretendam espantar seu pblico, Maria jura que no entrar na camado vice-rei:

    Nunca, nunca!Contra o vento e as mars, sozinha e solitria, ela continuar oferecendo

    obras de capa e espada em seu teatro de comdias, atrs do mosteiro de SantoAgostinho. Daqui a pouco repor A Monja Alferez, do notvel engenho peninsularJuan Prez de Montalbn, e estrear um par de obras bem apimentadas, para quetodos dancem e cantem e tremam de emoo nesta cidade onde nunca acontecenada, to chata que morrem todos bocejando.

  • MARIANA

    1645, ano de catstrofes para a cidade. Uma fita negra balana em cadaporta. Os invisveis exrcitos do sarampo e da difteria invadiram e estoarrasando. A noite caiu em seguida do amanhecer e o vulco Pichincha, o rei daneve, explodiu: um grande vmito de lava e fogo caiu sobre os campos e umfuraco de cinzas varreu a cidade.

    Pecadores, pecadores!Como o vulco, o padre Alonso de Roias jorra chamas pela boca. Do plpito

    brilhante da igreja dos jesutas, igreja de ouro, o padre Alonso golpeia o prpriopeito, que soa enquanto chora, grita, clama:

    Aceita, Senhor, o sacrifcio do mais humilde de teus servos! Que meusangue e minha carne expiem os pecados de Quito!

    Ento uma moa se levanta aos ps do plpito e serenamente diz: Eu.Frente multido que lota a igreja, Mariana anuncia que ela a escolhida.

    Ela acalmar a clera de Deus. Ela ser castigada por todos os castigos que acidade merece.

    Mariana jamais fez de conta que era feliz nem sonhou que era feliz, nemdormiu nunca mais do que quatro horas. A nica vez que um homem roou suamo, ele ficou doente, com febre, durante uma semana. Desde que era meninadecidiu ser a esposa de Deus e no lhe d seu amor em um convento, e sim nasruas e nos campos: no bordando nem fazendo doces e gelias na paz dosclaustros, mas rezando de joelhos sobre os espinhos e as pedras e buscando popara os pobres, remdio para os doentes e luz para os anoitecidos que ignoram alei divina.

    s vezes, Mariana sente-se chamada pelo rumor da chuva ou o crepitar dofogo, mas sempre soa mais forte o trovo de Deus: esse Deus da ira, barba deserpentes, olhos de raio, que em sonhos aparece nu para coloc-la prova.

    Mariana regressa sua casa, estende-se na cama e se dispe a morrer nolugar de todos. Ela paga o perdo. Oferece a Deus sua carne para que coma eseu sangue e suas lgrimas para que beba at ficar tonto e esquecer.

    Assim cessaro as pragas, se acalmar o vulco e a terra deixar detremer.

  • JUANA AOS QUATRO ANOS

    Anda Juana e d-lhe conversa com a alma, que tua companheira dedentro, enquanto caminha pela beira da calada, na pequena cidade de SanMiguel de Nepantla. Ela sente-se muito feliz porque tem soluo, e Juana crescequando tem soluo. Pra e olha a sombra, que cresce com ela, e com um galhovai medindo depois de cada pulinho de sua barriga. Tambm os vulcescresciam com o soluo, antes, quando estavam vivos, antes de que os queimasseo seu prprio fogo. Dois dos vulces ainda fumegam, mas j no tm soluo. Jno crescem. Juana tem soluo e cresce. Cresce.

    Chorar, em compensao, encolhe. Por isso tm tamanho de barata asvelhinhas e as carpideiras dos enterros. Isto no dizem os livros do av, que Juanal, mas ela sabe. So coisas que sabe, de tanto conversar com a alma. Tambmcom as nuvens conversa Juana. Para conversar com as nuvens preciso subirnas montanhas ou nos galhos mais altos das rvores.

    Eu sou nuvem. Ns, nuvens, temos caras e mos. Ps, no.

  • JUANA AOS SETE ANOS

    Pelo espelho v entrar a me e solta a espada, que cai com o rumor de umcanho, e d Juana tamanho pulo que toda a sua cara fica metida debaixo dochapu de abas imensas.

    No estou brincando zanga ante o riso de sua me. Livra-se do chapu eaparecem os bigodes de carvo. Mal navegam as perninhas de Juana nasenormes botas de couro; tropea e cai no cho e chuta, humilhada, furiosa; ame no pra de rir.

    No estou brincando! protesta Juana, com gua nos olhos. Eu souhomem! Eu irei universidade, porque sou homem!

    A me acaricia sua cabea: Minha filha louca, minha bela Juana. Deveria aoitar-te por estas

    indecncias.Senta-se ao seu lado e docemente diz: "Mais te valia ter nascido tonta, minha

    pobre filha sabichona", e a acaricia enquanto Juana empapa de lgrimas aenorme capa do av.

  • UM SONHO DE JUANA

    Ela perambula pelo mercado de sonhos. As vendedoras estenderam sonhossobre grandes panos no cho.

    Chega ao mercado o av de Juana, muito triste porque faz muito tempo queno sonha. Juana o leva pela mo e ajuda-o a escolher sonhos, sonhos de marzipou algodo, asas para voar dormindo, e vo-se embora os dois to carregados desonhos que no haver bastante noite.

  • JUANA AOS DEZESSEIS

    Nos navios, o sino marca os quartos de hora da viglia marinheira. Nasgrutas e nos canaviais, empurra para o trabalho os ndios e os escravos negros.Nas igrejas d a hora e anuncia missas, mortes e festas.

    Mas na torre do relgio, sobre o palcio do vice-rei do Mxico, h um sinomudo. Segundo contam, os inquisidores o tiraram do campanrio de uma velhaaldeia espanhola, arrancaram seu badalo e o desterraram para as ndias, j nose sabe h quantos anos. Desde que mestre Rodrigo o criou em 1530, este sinotinha sido sempre claro e obediente. Tinha, dizem, trezentas vozes, segundo otoque ditado pelo sineiro, e todo mundo estava orgulhoso dele. At que uma noiteseu longo e violento repicar fez todo mundo saltar da cama. Tocava solto o sino,desatado pelo alarma ou a alegria ou sabe-se l por qu, e pela primeira vezningum entendeu o sino. Juntou-se uma multido no trio enquanto o sino tocavasem parar, enlouquecido, e o alcaide e o padre subiram na torre e comprovaram,gelados de espanto, que ali no havia ningum. Nenhuma mo humana o movia.As autoridades acudiram Inquisio. O tribunal do Santo Ofcio declarou nulo esem nenhum valor o repicar deste sino, que foi calado para sempre e expulsopara o exlio no Mxico.

    Juana Ins de Asbaje abandona o palcio de seu protetor, o vice-reiMancera, e atravessa a praa principal seguida por dois ndios que carregam seusbas. Ao chegar esquina, pra e olha a torre, como se tivesse sido chamadapelo sino sem voz. Ela conhece sua histria. Sabe que foi castigado por cantar porconta prpria.

    Juana caminha rumo ao convento de Santa Teresa a Antiga. J no serdama de corte. Na serena luz do claustro e na solido de sua cela, buscar o queno pde encontrar l fora. Quisera estudar na universidade os mistrios domundo, mas as mulheres nascem condenadas ao quarto de bordar e ao maridoque as escolhe. Juana Ins de Asbaje ser carmelita descala, e se chamar SorJuana Ins de la Cruz.

  • JUANA AOS TRINTA

    Depois de rezar as matinas e as laudes, pe um pio danando em cima defarinha e estuda os crculos que ele desenha. Investiga a gua e a luz, o ar e ascoisas. Por que o ovo se une no leo fervente e se despedaa em calda deacar? Em tringulos de alfinetes, busca o anel de Salomo. Com um olhogrudado no telescpio, caa estrelas.

    Ameaaram-na com a Inquisio e lhe proibiram de abrir os livros, masSor Juana Ins de la Cruz estuda nas coisas que Deus criou, servindo-me elas deletras e de livro, toda esta mquina universal.

    Entre o amor divino e o amor humano, entre os quinze mistrios do rosriopendurado em seu pescoo e os enigmas do mundo se debate Sor Juana; e muitasnoites passa em branco, orando, escrevendo, quando recomea em seu interior aguerra infinita entre a paixo e a razo. No final de cada batalha, a primeira luzdo dia entra em sua cela no convento das jernimas e ajuda Sor Juana a recordaro que disse Lupercio Leonardo, aquela frase que diz que bem se pode filosofar etemperar a ceia. Ela cria poemas na mesa e no forno, massas folhadas; letras edelcias para dar de presente, msicas da harpa de David curando Saul e curandotambm David, alegrias da alma e da boca condenadas pelos advogados da dor.

    S o sofrimento te far digna de Deus diz-lhe o confessor, que ordenaque ela queime o que escreve, ignore o que sabe e no veja o que olhe.

  • JUANA AOS QUARENTA E DOIS

    Lgrimas da vida inteira, brotadas do tempo e da pena, empapam a suacara. No fundo, no triste, v nublado o mundo. Derrotada, diz adeus.

    Vrios dias durou a confisso dos pecados de toda a sua existncia frente aoimpassvel, implacvel padre Antonio Nfiez de Miranda, e todo o resto serpenitncia. Com tinta de seu sangue escreve uma carta ao Tribunal Divino,pedindo perdo.

    J no navegaro suas velas leves e suas quilhas graves pelo mar da poesia.Sor Juana Ins de la Cruz abandona os estudos humanos e renuncia s letras.Pede a Deus que lhe d como presente o esquecimento e escolhe o silncio,aceita-o, e assim perde a Amrica a sua melhor poetisa.

    Pouco sobreviver o corpo a este suicdio da alma. Que se envergonha avida de durar-me tanto...

  • CLUDIA

    Com a mo movia as nuvens e desatava ou afastava tormentas. Em umpiscar de olhos trazia gente de terras longnquas e tambm da morte. A umcorregedor das minas de Porco mostrou Madrid, sua ptria, em um espelho; e adom Pedro de Ayamonte, que era de Utrera, serviu na mesa tortas recm-feitasem um forno de l. Fazia brotar jardins nos desertos e convertia em virgens asamantes mais sabidas. Salvava os perseguidos que buscavam refgio em suacasa transformando-os em ces ou gatos. Ao mau tempo, boa cara, dizia, econtra a fome, violeiros: tangia a viola e agitava a pandeireta e assimressuscitava os tristes e os mortos. Podia dar a palavra aos mudos e tom-la doscharlates. Fazia o amor intemprie, com um demnio muito negro, em plenocampo. A partir da meia-noite, voava.

    Tinha nascido em Tucumn e morreu, esta manh de 1674, em Potos. Emagonia chamou um padre jesuta e lhe disse que tirasse de uma gavetinha certasfiguras de cera e tirasse os alfinetes que tinha pregado, pois assim se curariamcinco padres que ela tinha adoecido.

    O sacerdote ofereceu-lhe confisso e misericrdia divina, mas ela deurisada e rindo morreu.

  • AS BRUXAS DE SALEM

    Cristo sabe quantos demnios h aqui! ruge o reverendo Samuel Parris,pastor da vila de Salem, e fala de Judas, o demnio sentado mesa do Senhor,que se vendeu por trinta dinheiros, 3,15 em libras inglesas, irrisrio preo de umaescrava.

    Na guerra dos cordeiros contra os drages, clama o pastor, no hneutralidade possvel nem refgio seguro. Os demnios meteram-se em suaprpria casa: uma filha e uma sobrinha do reverendo Parris foram as primeirasatormentadas pelo exrcito de diabos que tomou de assalto esta puritana vila. Asmeninas acariciaram uma bola de cristal, querendo ver a sorte, e viram a morte.Desde que isso aconteceu, so muitas as jovenzinhas de Salem que sentem oinferno no corpo: a maligna febre as queima por dentro e se revolvem e seretorcem, rodam pelo cho espumando e uivando blasfmias e obscenidades queo Diabo lhes dita.

    O mdico, William Griggs, diagnostica o malefcio. Oferecem a um coum bolo de farinha de centeio misturada com urina das possudas, mas o cocome, mexe o rabo, agradecido, e vai embora para dormir em paz. O Diaboprefere a moradia humana.

    Entre convulso e convulso, as vtimas acusam.So mulheres, e mulheres pobres, as primeiras condenadas forca. Duas

    brancas e uma negra: Sarah Osborne, uma velha prostrada que h anos chamouaos gritos seu servente irlands, que dormia no estbulo, e abriu-lhe umlugarzinho na cama; Sarah Good, uma mendiga turbulenta, que fuma cachimbo eresponde resmungando s esmolas; e Tituba, escrava negra das Antilhas,apaixonada por um demnio todo peludo e de nariz comprido. A filha de SarahGood, jovem bruxa de quatro anos de idade, est presa no crcere de Boston,com grilhes nos ps.

    Mas no cessam os gemidos de agonia das jovenzinhas de Salem e semultiplicam as acusaes e condenaes. A caada de bruxas sobe da suburbanaSalem Village ao centro de Salem Town, da vila ao porto, dos malditos aospoderosos: nem a esposa do governador se salva do dedo que aponta culpados.Balanam na forca prsperos granjeiros e mercadores, donos de barcos quecomerciam com Londres, privilegiados membros da Igreja que desfrutavam dodireito comunho.

    Anuncia-se uma chuva de enxofre sobre Salem Town, o segundo porto deMassachusetts, onde o Diabo, trabalhador como nunca, anda prometendo aospuritanos cidades de ouro e sapatos franceses.

  • VIRGEM NEGRA, DEUSA NEGRA

    Ao cais de Regla, parente pobre de La Habana, chega a Virgem, e chegapara ficar. A talha de cedro veio de Madrid, envolta em um saco, nos braos deseu devoto Pedro Aranda. Hoje, 8 de setembro de 1696, est de festa esta aldeolade artesos e marinheiros, sempre cheirando a mariscos e breu; come o povomanjares de carne e feijo e mandioca, pratos cubanos, pratos africanos, ec,olel, ecru, quimbomb, fuf, enquanto rios de rum e terremotos de tamboresdo as boas-vindas Virgem negra, negrita, padroeira protetora da baa de LaHabana.

    Cobre-se o mar de cascas de coco e galhos de alfavaca e um vento de vozescanta, enquanto a noite cai:

    Opa ul, opa ul,opa, , opa ,opa, opa, Yemanj.

    A Virgem negra de Regla tambm a africana Yemanj, prateada deusados mares, me dos peixes e me e amante de Xang, o deus guerreiromulherengo e brigo.

  • ELAS SE CALARAM

    Os holandeses cortam o tendo de Aquiles do escravo que foge pelaprimeira vez, e quem insiste fica sem a perna direita; mas no h jeito de evitarque se difunda a peste da liberdade no Suriname.

    O capito Molinay desce pelo rio at Paramaribo. Sua expedio volta comduas cabeas. Foi preciso decapitar as prisioneiras, porque j no podiam semover inteiras atravs da selva. Uma se chama Flora, a outra Sery . Elas aindatm os olhos pregados no cu. No abriram a boca apesar dos aoites, do fogo edas tenazes incandescentes, teimosamente mudas como se no tivessempronunciado palavra alguma desde o remoto dia em que foram engordadas euntadas de leo e lhes rasparam os cabelos desenhando-lhes nas cabeas estrelase meias-luas, para vend-las no mercado de Paramaribo. Todo o tempo mudas,Flora e Sery , enquanto os soldados lhes perguntavam onde se escondiam osnegros fugidos: elas olhavam o cu sem piscar, perseguindo nuvens maciascomo montanhas que andavam l no alto, deriva.

  • ELAS LEVAM A VIDA NOS CABELOS

    Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro queatravessam suas costelas, so incessantes as fugas nas quatrocentas plantaes dacosta do Suriname. Selva adentro, um leo negro flameja na bandeira amarelados cimarres. Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botes de osso;mas a floresta impenetrvel o melhor aliado contra os colonos holandeses.

    Antes de escapar, as escravas roubam gros de arroz e de milho, pepitas detrigo, feijo e sementes de abbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros.Quando chegam nos refgios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabease fecundam, assim, a terra livre.

  • JACINTA

    Ela consagra a terra que pisa. Jacinta de Siqueira, africana do Brasil, afundadora dessa Vila do Prncipe e das minas de ouro dos barrancos de QuatroVintns. Mulher negra, mulher verde, Jacinta se abre e se fecha como plantacarnvora engolindo homens e parindo filhos de todas as cores, nesse mundo queainda no tem mapa. Jacinta avana, rompendo a selva, cabea dos facnorasque vm em lombo de mula, descalos, armados de velhos fuzis, e que, ao entrarna mina, deixam a conscincia pendurada em um galho ou enterrada no pntano:Jacinta, nascida em Angola, escrava na Bahia, me do ouro de Minas Gerais.

  • NANNY

    Depois de firmar um pacto com Cudjoe, o chefe dos cimarres deSotavento, o coronel Guthrie marcha rumo ao oriente da ilha de Jamaica.Alguma misteriosa mo desliza no rum um veneno fulminante e Guthrie caicomo chumbo do cavalo.

    Uns meses mais tarde, ao p de uma montanha muito alta, o capito Adairconsegue a paz no oriente de Jamaica. Quao, o chefe dos cimarres deBarlavento, aceita as condies exibindo espadim e rico chapu.

    Mas nos precipcios do oriente, mais poder que Quao tem Nanny . Os bandosdispersos de Barlavento obedecem a Nanny , assim como a obedecem osesquadres de mosquitos. Nanny , grande fmea de barro aceso, amante dosdeuses, veste apenas um colar de dentes de soldados ingleses.

    Ningum a v, todos a vem. Dizem que morreu, mas ela se atira nua,negra rajada, no meio do tiroteio. Agacha-se de costas para o inimigo, e suabunda magnfica atrai as balas. s vezes as devolve, multiplicadas, e s vezes astransforma em flocos de algodo.

  • XICA

    Entre as altas rochas vermelhas que mais parecem drages, ondula a terrarasgada pela mo do homem: a regio dos diamantes exala um p de fogo queavermelha as paredes da cidade do Tijuco. Perto corre um arroio e longe seestendem as montanhas cor de mar ou de cinza. Do leito e dos rinces do arroiosaem os diamantes que atravessam as montanhas, navegam do Rio de Janeiro aLisboa e de Lisboa a Londres, onde so lapidados e multiplicam seu preo vriasvezes para depois dar brilho ao mundo inteiro.

    Muito diamante escapa de contrabando. Jazem sem sepultura, carnia paraurubu, os mineiros clandestinos que foram apanhados, mesmo que o corpo dedelito tenha o tamanho do olho de uma pulga; e ao escravo suspeito de engolir oque no deve aplicam violento purgante de pimenta brava.

    Todo diamante pertence ao rei de Portugal e a Joo Fernandes de Oliveira,que aqui reina contratado pelo rei. Ao seu lado, Xica da Silva tambm se chamaXica que Manda. Ela mulata, mas usa roupas europias proibidas para quemtem pele escura e faz alarde indo missa de liteira, acompanhada por umcortejo de negras enfeitadas como princesas; e, no templo, ocupa o lugarprincipal. No h nobre dessas bandas que no baixe o cangao frente sua mocheia de anis de ouro, e no h quem recuse seus convites para a manso daserra. L, Xica da Silva oferece banquetes e funes de teatro, a estria de Osencantos de Media ou qualquer pea da moda, e depois leva os convidados paranavegar pelo lago que Oliveira mandou cavar para ela porque ela queria mar emar no havia. Chega-se ao cais por escadarias douradas, e passeia-se numgrande navio tripulado por dez marinheiros.

    Xica da Silva usa peruca de cachos brancos. Os cachos cobrem a testa eocultam a marca feita a ferro, quando ela era escrava.

  • O PRIMEIRO ROMANCE ESCRITO NA AMRICA

    H dez anos, os sinos de Londres foram gastos celebrando as vitrias doImprio britnico no mundo. A cidade de Qubec tinha cado, depois de intensobombardeio, e a Frana tinha perdido seus domnios no Canad. O jovem generalJames Wolfe, que comandava o exrcito ingls, tinha anunciado que esmagaria apraga canadense; mas morreu sem ver realizada sua promessa. Dizem as mslnguas que Wolfe se media ao despertar e cada dia se achava mais alto, at queuma bala interrompeu seu crescimento.

    Em 1769, Frances Brooke publica em Londres um romance, A histria deEmily Montagne, que mostra os oficiais de Wolfe conquistando coraes na terraconquistada a tiros de canho. A autora, uma inglesa gorducha e simptica, vivee escreve no Canad. Atravs de duzentas e vinte e oito cartas, conta suasimpresses e suas experincias na nova colnia britnica e tece alguns romancesentre gals de uniforme e suspirosas jovenzinhas da alta sociedade de Quebec.As bem-educadas paixes conduzem ao matrimnio, depois de uma passagempela casa da modista, os sales de baile e os piqueniques nas ilhas. As grandiosascataratas e os sublimes lagos proporcionam o cenrio adequado.

  • A PERRICHOLI

    Como toda limenha, Micaela Villegas abre seu decote mas esconde os ps,protegidos por minsculos sapatos de cetim branco. Como todas elas, adora exibirrubis e safiras at no ventre, embora fossem, e eram, de fantasia.

    Filha de mestio provinciano e pobre, Micaela percorria as lojas dessacidade pelo simples prazer de olhar ou apalpar sedas de Ly on e veludos deFlandres, e mordia os lbios quando descobria um colar de ouro e brilhantes nopescoo de um gatinho pertencente a uma dama de alta classe.

    Micaela abriu caminho no palco e conseguiu ser, enquanto durasse cadafuno, rainha, ninfa ou deusa. Agora , alm disso, Primeira Cortes ao longodo dia e da noite. Est rodeada por uma nuvem de escravos negros, suas jiasno admitem dvida e os condes beijam sua mo.

    As damas de Lima se vingam chamando-a de Perricholi. Foi como abatizou o vice-rei ao cham-la Perra Chola (Cadela ndia) com sua boca semdentes. Contam que a amaldioou assim, como esconjuro, enquanto a fazia subirpela escadinha para o leito alto, porque ela despertou nele perigosos pnicos eardores e molhaduras e securas que o devolveram, trmulo, aos seus anosremotos.

  • SE ELE TIVESSE NASCIDO MULHER

    Dos dezesseis irmos de Benjamin Franklin, Jane a que mais se parececom ele em talento e fora de vontade.

    Mas na idade em que Benjamin saiu de casa para abrir seu prpriocaminho, Jane casou-se com um seleiro pobre, que a aceitou sem dote, e dezmeses depois deu luz seu primeiro filho. Desde ento, durante um quarto desculo, Jane teve um filho a cada dois anos. Algumas crianas morreram, e cadamorte abriu-lhe um talho no peito. As que viveram exigiram comida, abrigo,instruo e consolo. Jane passou noites a fio ninando os que choravam, lavoumontanhas de roupa, banhou montes de crianas, correu do mercado cozinha,esfregou torres de pratos, ensinou abecedrios e ofcios, trabalhou ombro aombro com o marido na oficina e atendeu os hspedes cujo aluguel ajudava aencher a panela. Jane foi esposa devota e viva exemplar; e quando os filhos jestavam crescidos, encarregou-se dos prprios pais, doentes, de suas filhassolteironas e de seus netos desamparados.

    Jane jamais conheceu o prazer de se deixar flutuar em um lago, levada deriva pelo fio de um papagaio, como costuma fazer Benjamin, apesar da idade.Jane nunca teve tempo de pensar, nem se permitiu duvidar. Benjamin continuasendo um amante fervoroso, mas Jane ignora que o sexo possa produzir outracoisa alm de filhos.

    Benjamin, fundador de uma nao de inventores, um grande homem detodos os tempos. Jane uma mulher do seu tempo, igual a quase todas asmulheres de todos os tempos, que cumpriu com seu dever nesta terra e expiousua parte de culpa na maldio bblica. Ela fez o possvel para no ficar louca ebuscou, em vo, um pouco de silncio.

    Seu caso no despertar o interesse dos historiadores.

  • MICAELA

    Na guerra dos ndios, que fez ranger as montanhas dos Andes com dores departo, Micaela Bastidas no teve descanso nem consolo. Essa mulher de pescoode pssaro percorria as terras arranjando mais gente e enviava frente novashostes e escassos fuzis, a luneta que algum tinha perdido, folhas de coca e milhoverde. Galopavam os cavalos, incessantemente, levando e trazendo atravs dasserras suas ordens, salvo-condutos, relatrios e cartas. Numerosas mensagensenviou a Tpac Amaru, apressando-o a lanar suas tropas sobre Cusco de umavez por todas, antes que os espanhis fortalecessem as defesas e se dispersassem,desanimados, os rebeldes. Chepe, escrevia, Chepe, meu muito querido: Bastantesadvertncias te dei...

    Puxada pelo rabo de um cavalo, entra Micaela na Praa Maior de Cusco,que os ndios chamam Praa dos Prantos. Ela vem dentro de um saco de couro,desses que carregam mate do Paraguai. Os cavalos arrastam tambm, rumo aocadafalso, Tpac Amaru e Hiplito, o filho dos dois. Outro filho, Fernando, olha.

  • SAGRADA CHUVA

    O menino quer virar a cabea, mas os soldados o obrigam a olhar. Fernandov como o verdugo arranca a lngua de seu irmo Hiplito e o empurra naescada da forca. O verdugo pendura tambm dois tios de Fernando e depois oescravo Antnio Oblitas, que tinha pintado o retrato de Tpac Amaru, e o corta agolpes de machado; e Fernando v. Com correntes nas mos e grilhes nos ps,entre dois soldados que o obrigam a olhar, Fernando v o verdugo aplicando ogarrote vil em Tomasa Condemaita, mulher do cacique de Acos, cujo batalhode mulheres tinha dado tremenda tunda no exrcito espanhol. Ento sobe aotablado Micaela Bastidas e Fernando v menos. Seus olhos ficam enevoadosenquanto o verdugo busca a lngua de Micaela, e uma cortina de lgrimas tapa osolhos do menino quando sentam a me dele para culminar o suplcio: a argolaque se aperta no consegue sufocar o pescoo fino e preciso que enrolandolaos no pescoo, puxando de um e outro lado e dando-lhe chutes no estmago enos peitos, acabem de mat-la.

    Fernando j no v nada, j no houve nada, Fernando que h nove anosnasceu de Micaela. No v que agora trazem o seu pai, Tpac Amaru, e oamarram s cinchas de quatro cavalos, pelos ps e pelas mos, a cara para ocu. Os ginetes cravam as esporas rumo aos quatros pontos cardeais, mas TpacAmaru no se quebra. Levam-no pelo ar, parece uma aranha; as esporas rasgamos ventres dos cavalos, que se erguem em duas patas e se arremetem com todasas foras, mas Tpac Amaru no se quebra.

    tempo de longa seca no vale de Cusco. Ao meio-dia em ponto, enquantolutam os cavalos e Tpac Amaru no se arrebenta, uma violenta catarata cai derepente do cu: tomba a chuva para valer, como se Deus ou o Sol ou algumtivesse decidido que esse momento bem merece uma chuva dessas que deixam omundo cego.

  • AS LIBERTADORAS

    As cidades espanholas do Novo Mundo, nascidas co