eduardo galeano - vagamundo

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

Éexpressamenteproibidae totalmente repudíavelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.Netouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível.

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aJuanCarlosOnetti

CarlosMartinezMorenoMarioBenedetti

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GAROTOS

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SEGREDONOCAIRDATARDE

Elechegouagalope,numalazãoqueeunãoconhecia.Depoisoalazãoergueu-seemduaspatase desapareceu emeu irmão também desapareceu. Fazia tempo que eu o chamava e ele não vinha.Chamavaenãooencontrava.Eontemfuiparaomonteeeleveioemefaloucomoantes,sóquenoouvido.

Eucuido,paraele,dascoisasqueeledeixou.Escondiascoisasparaqueninguémmexanelas.Aatiradeira,avaradepescar,o tambor,orevólverdemadeira,ospreguinhosdefazeranzol.Tenhotudo isso escondido e, quando ele vem, sempreme pergunta pelas suas coisas. Eu tenhomedo dagentequepassaeprefironãosair.Voltodaroçaoudecarpirahortaeficoaquitrancado,noescuro,cuidandodascoisasparaele.Quandoacendema lâmpadadequerosene fechoosolhos,masdeixoeles um pouquinho abertos e a lâmpada vira uma linha brilhante e toda peluda de luz. E às vezesconverso com meu amigo que não sabe falar porque é o cachorro. Converso, para não dormir.Semprequedurmo,morro.

JávãoparacincolongosanosqueemcimadoMingoveioaquelecaminhãonaestrada.Estavacuidandodasduasvacasquenóstínhamos.Euteriadefendidomeuirmão,seestivesselácomminhaespada amarela.E foi nesse dia que fiquei semvontadede brincar, e para nuncamais. Fiquei semvontadedenada.PorqueeueoMingosempreandávamosaomeio-diacomolagartos,eíamospescarecaçarpassarinhos.Mas,depois,nãobrinqueimais.Perdeuagraça.

Paramim,oqueaconteceucomelefoimau-olhado.Alguémchegouepôsummau-olhadonele,justoquandoeleestavacomabarrigavaziaedepoisveioocaminhãoeoesmagou.Nosgringos,nuncapegaomau-olhado,mecontaram.Équeagentedaqui,dePuebloEscondido,agentegrande,temavistamuitofortedemais.Aqui,todaagentegrandeémá.Osgrandesbatem.Mebatemquandodigo que posso conversar com oMingo sempre que quero, até hoje.Não deixam nem eu falar onomedele.

Porisso,nuncafalodele.AquiemPuebloEscondido,eunãofalo.Quandoaconteceuaquilo,eupegueiemetinacaraamáscaraqueoMingo tinha feitoparamimnocarnaval,queeraumdiabocomchifresdetrapoeabarbadeverdade,emetiamáscaranacaraparaqueninguémsoubessequeeraeu,emeatireicomabicicletadoIvanturcoa todavelocidadecontraabarranqueira,meatireibarranqueiraabaixo,paramearrebentarláembaixocontraolixo.Masdeutudoerradoporqueeucaícertoenãoaconteceunada.Eaímebateram.Eeufiqueianoiteinteiratremendoedemanhãacordeitodomijadoemeenfiaramnumbarrildeáguagelada.Medeixaramnaáguageladaeeunãochoreinempediquemetirassem.E,naprimeiravezquemeuirmãoapareceu,eupegueieconteitudoparaele.

Eu contava tudo para ele. Contei que andávamos comendo laranjas verdes porque não haviaoutracoisa.Eentãomamãevendeuasvacaseumdiamedeudinheiroparaircompraraçúcarparaenchermosbemabarriga,porquequandosecomepoucoabarriga se fechae ficapequenininhaeentãoagentetemqueenchê-laparadepoispôrcomida.Eeumetiodinheironobolsodetrás,queestavafurado,eessaveztambémmebateram.

QuandovouparaomorroesperaroMingo,tenhomedoqueaspessoasmedescubram.Etenho

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medo dos urubus. Tenhomedo também dos buracos, porque hámuitas armadilhas nomorro e odiabotemsuacasanofundodaterra.Éprecisotomarcuidadoparanãocairnofundodomundo.Etambémtenhomedodatempestade.Começamacairemcimaasprimeirasgotasgordasdechuva,ejásaioemdisparada.Tenhomedodastempestadesporquesãomuitobrancas.

Estandomeuirmão,édiferente.Estandoele,nãotenhomedodenada.Ontemsubinumbraçodeárvoreefiqueifumandoeesperando.Euestavacertoqueelenãoia

falhar.EoMingoapareceuagalope,bemnomeioda imensanuvemdepó,quandosórestavaumpoucodesolnocéu.Elemepediuparachegarmaisperto,mefezsinaiscomobraço,eeudescieembaixo de um espinheiro ele me contou um segredo. O ar do morro tinha cheiro de laranjasmaduras.Nãodesceudoalazão.Abaixouocorpo, e só.Emedissequeeuvou terdinheiroevoupegarecomprarumcaminhãoparamimeencherocaminhãodepalhaebarbademilhoparateroquefumarparasempre.Evouembora.Evouparaomar.

OMingomedissequepassandoohorizonteficaomarequeeunasciparairembora.Parair,paraissonasci.Pegaocaminhãoevaiembora,elemedisse.Eaquelesquenãogostemdisso,vocêpassaporcimacomocaminhão.Querdizerqueeuvouembora.Paraomar.Elevotodasascoisasdomeuirmão.Montonocaminhãoeantesdomareunãoparo.Domarsim,eunãotenhomedo.Omarestavameesperandoeeunãosabia.Comoserá?Comoseráomar?–pergunteiaomeuirmão.Como serámuita água junta?Eomar respira?E respondequando lheperguntam?Tanta águanomar!Enãoescapa,essaáguadomar?

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OMONSTROMEUAMIGO

Nocomeçoeunãogostavadele,porqueachavaqueeleiamecomerumpé.Osmonstros são agarradoresdemulheres, levamumamulher emcadaombro, equando são

monstros velhinhos ficam cansados e jogam uma dasmulheres na beira do caminho.Mas este dequemeufalo,omeuamigo,éummonstroespecial.Masnósnosentendemosbem,apesardocoitadonãosaberfalaredetodossentiremmedodele.Estemonstromeuamigoétão,mastãogrande,queosgigantesnãochegamnemnoseutornozelo,eelejamaisagarramulheresnemnada.

ElevivenaÁfrica.Nocéunãovive,porque,seestivessenocéuigualqueDeus,cairia.Égrandedemaisparapoderviverporaípelocéu.Existemoutrosmonstrosmenoresqueele,eentãovivemnoinfinito,pertodeonde ficaPlutão,oumais longeainda, lánoonfinitoounopiranfinito.MasestemonstromeuamigonãotemnenhumoutroremédioanãoservivernaÁfrica.

Voltaemeiaelemevisita.Ninguémpodevê-lo,maselepodevertodomundo.Àsvezeséumcanguruzinhoquepulanaminhabarrigaquandodourisada,ouéoespelhoquemedevolveacaraquandoparecequeestavaperdida,ouéumaserpentedisfarçadaemminhocaequemontaguardanaminhaportaparaqueninguémvenhamelevar.

Agora, hoje ou amanhã, o monstro meu amigo vai aparecer caminhando pelo mar,transformadonumguerreiroquemaisimensonãopoderiaser,jorrandofogopelaboca.Vaidarumsoprãoe arrebentar a cadeiaondemeupapai estápreso, evai trazê-loparamimnaunhadodedominguinho,evaienfiá-lopelajanelaemmeuquarto.Euvoudizer“olá”,elevaivoltarparaaÁfrica,devagarinho,pelomar.

Entãopapai,meupapai,vaisairecomprarbalasecaramelosparamimeumagarotinhaevaiconseguirumcavalodeverdadeevamossairgalopandopelaterra,euagarradonacaudadocavalo,agalope,paralonge,edepois,quandopapaificarpequeno,euvoucontarashistóriasdessemonstromeuamigoqueveiodaÁfrica,paraquemeupapaidurmaquandoanoitechegar.

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OPEQUENOREIVIRA-LATA

Todasas tardes, láestavaele.Longedosoutros,ogarotosesentavanasombradoarvoredo,com as costas contra o tronco de uma árvore e a cabeça inclinada. Os dedos de suamão direitadançavamdebaixodeseuqueixo,dançavamsempararcomoseeleestivessecoçandoopeitocomumaincontidaalegria,eaomesmotemposuamãoesquerda,suspensanoar,seabriaefechavaempulsaçõesrápidas.Osoutrostinhamaceito,semperguntas,ohábito.

Ocãosesentava,sobreaspatasdetrás,aoseulado.Ealificavamatéachegadadanoite.Ocãoparalisava as orelhas e o garoto, com a testa franzida atrás da cortina de cabelos sem cor, davaliberdadeaosseusdedosparaquesemovessemnoar.Osdedosestavamlivresevivos,vibrandonaalturadeseupeito,edaspontasdosdedosnasciamorumordoventoentreosgalhosdoseucaliptoseo repicar da chuva nos telhados, nasciam as vozes das lavadeiras no rio e o bater das asas dospassarinhosquevoavam,aomeio-dia,comosbicosabertospelasede.Àsvezes,dosdedosbrotava,de puro entusiasmo, um galope de cavalos; os cavalos vinham galopando pela terra, o ruído doscascos sobre as colinas, e os dedos se enlouqueciam na celebração. O ar cheirava a miosótis eervilha-de-cheiro.

Um dia, os outros deram-lhe de presente um violão.O garoto acariciou amadeira da caixa,lustrosaeboadese tocar,easseiscordasao longododiapasão.Eelepensou:quesorte.Pensou:agora,tenhodois.

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ODESEJOEOMUNDO

Sãoosúltimosdiasdeagosto.Nãomuitolongedaqui,sabe-sequeoinvernocomeçouamorrer.Ofrioestáimpregnadopelocheirodefloresamarelasdasacáciaseseanunciaparabreveoestalardasglicínias,asfloresazuis,asfloresbrancas;logooarteráocheirodeglicínias,nãomuitolongedaqui,eterácheirodemaçãediabruras.Osdiasserãomaislongos.

SeGustavopudesse,contariaqueaquiosvidrosdasjanelasdascelasforampintadosdebranco,para que os presos não vejam o céu. Contaria que isso é duro de se deixar de lado, mas é durosomente enquanto dura o dia.Durante a noite, não.A noite, aqui, de qualquermaneira, é possívelimaginá-la, comoCruzeiro doSul ainda alto e asTrêsMarias sempre demorandopara aparecer.Alémdisso,contariaGustavo,émelhornãoolharanoitedaqui,nãovaleapena.Paraquê?Paraverosrefletoresgirandoegirandodascasamatasnascolinas?Não.SeGustavopudesse,maisquecontarperguntaria.

Edequalquermaneirapergunta.Perguntaoutrascoisas:–Comovaiindonaescola?–Machucouatesta?Comofoi?–Vocênãotrouxeagasalho?–Cansou?Sãotrintaquadras...

É difícil fazer-se ouvir nomeio dovozerio de todos os outros presos que, ávidos como ele,amassamseusrostoscontraosarames.Háduastelasdearameseparando-odeTavito.Comotelasdearamedegalinheiro.

–Eunãomecansonunca.Caminhoecaminhoenãomecanso.–Masfazfrio.–Eucaminhoenãosinto.Nãoéverdade,papai?Quandoagentecaminha,ofrioseassustaevai

paralonge.GustavopermanecenapontadospéseTavito,ameiometro,também:nãoháoutramaneirade

verascarasou,pelomenos,adivinhá-lasatravésdosarames:acaradeTavitoapareceporcimadabasedecimentodateladegalinheiro.Acara,apenas.

Hámuitascoisasparaescutaretodaagentefalaeasvozesseconfundem.Àsvezes,seabremunspoucossegundosdesilêncio,comosetodasasmulhereseoshomenseascriançassetivessempostomisteriosamentedeacordoparatomarfôlegoaomesmotempo,eentãoficaofiapodealgumafrasedesprendidanoar.

–Eosdesenhos?Vocênãotrouxenenhumdesenho?–Nãotenhodesenhos,nenhum.Tavitotentameterumdedoatravésdateladearame,odedoficaprisioneiro:nãosepode.–Comoquenão?Etodosaquelesdesenhosque...–Rasguei.–Quê?

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–Estavacomraivaerasgueitudo.Gustavo pensa que as mãos de Tavito devem estar frias. Gustavo acende um cigarro, sopra

fumaça nasmãos.Gostaria de ter um jeito demandar calor aTavito através da tela de arame.Osdesenhos.Umolhoquecaminhacomaspestanas.Odoutorrelógiousaosponteiroscomobigodes.Vemoleãoecometodos.Oleãoagarraaluacomumapata.Vouexplicar.Estestrêspalhaçosbatemnoleãoparaqueelesoltealuaealuacaie...Ocachorromordeabundadeumasenhoragorda.Estáescutando?Escuta.Agordaestágritandoguau,guau,eocachorroestádizendoai,ai.

AgoraTavitotemasmãosabertascontraateladearameeestásoprando-as.–AtiaBertaestámarcada.Marqueiela.Atrás, há uma porta pesada, barras de ferro. Os soldados apontam as metralhadoras e têm

cacetetesetambémrevólveresnoscoldres.Tavitodiz:–Elamebateu.Oarcheiraaumidadeeacoisafechada.–Devetersidoporalgumarazão.Tavitochutaamuretacomapontadosapato.Emseguidaergueosolhos.Estamaneiraperigosa

deolhar.Aquelamaneira.AcaradeCarmen,carademeninaávida,querotudo,queromais,osolhoscuriosos,famintos,devorandoomundo.

–Estáescutando?–Sim,sim.Gustavosenteummal-estarnagarganta.Carmen.Levantaoolhar,otetoaltoecinza.Tavitodiz:–Escuta.–Sim,sim.Quê?–Abarriga.Estáfalandocomigo.Tavitofazcaretasaossoldados,mostraalíngua.–Porquebateuemvocê?–Quem?–Berta.Vocêdissequeelatinhabatidoemvocê.Tavito permanece em silêncio com a cabeça baixa. Finalmente fala e Gustavomal consegue

escutá-lo:–Elaficazangadaporquefaçopipinacama.–EoÁguiadoDesertosabequevocêandasemijando?OsanguesobenorostodeTavito,fazcócegas.–Quandoeuforgrande,elavaimepagar.–OÁguiadoDesertonãovaiquererserseuamigo.–OÁguianãosabequeeufaçopipinacama.–Ah,eleficasabendodetudo.–Claro que não.Você percebe que ele não vive namesma vida que eu? Ele vive na vida da

guerra.Minhavidaédiferente.NaminhavidaexisteumavelhacomumacaradeBerta.GustavonãotinhaqueridoqueTavitoviesse.Vê-lo,pensara,serápior.Masnoúltimodomingo

pediraasuairmãqueotrouxesse,equeoesperassefora.–Eessecurativoquevocêtemnatesta?Queéisso...Nãopossoacreditarque...Mas...Eonariz?

Vocêestácomonarizinchado!–Vocêbrigoucomdez.Nojornaldiziaisso.Eutambémvouserforteebrigarcomtodoseles.–Comofoi?–Naescola,foilá,naescola.–Eunãobrigueicomdeznemcomnenhum.Vocêestáquerendoéparecercomalgumdesses

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veadosdatelevisão.–Elesestavamfalandomaldevocê.–Eles,quem?–Eles,naescola.–Falandooquê?–Queossoldadosvãomatarvocê.Elesdiziamissoeeubatineleseporpouconãomatotodos.Gustavoengolesaliva.Senteumaopressãonacabeça.Asorelhasardem.Quersentar-se.Estar

longe.Estarantes.Antes,comoera?Tavitoestáfalando,estádizendo:–AtiaBertamemostrouumafotodequandovocêerapequeno.Eunãotinhaconhecidovocê

pequeno.Antes,eunãoconhecia...EentãoGustavosentequelentamenteretrocedemosrostosdofilhoedoscompanheirosedos

soldadoseviaja,destediaedestacadeia,paraoutrotempo.Ovelhotemporegressa,ovelhomundo,e,antesquefuja,Gustavoestábrincandonabeiradomar,aoseuladooanãoTachuelaestádançando,comumavassouraparadanapalmadamão:Gustavoperseguiaabandadacidade,osquatrooucincovelhosdesarticuladosque iamdesatandoabagunçados tambores,eadiantede todosmarchavaumnegrodedentesbrilhantes,quesopravaacornetacomoninguém;onegroparava,erguiaacornetacomumamãoecomaoutralevantavaGustavoeria,gargalhada,eosol,vendoaquilotudo,tambémmorriaderir.

–Quisficarcomafoto,maselametomou.E,vinteanosdepois,Tavitoperguntavaporqueospingüinsvêmmorrernacosta,eaprendiaa

pressentirachuva:cantaobem-te-viseucantoquebradoefugaz,ospassarinhosbatemasasascontraaterralevantandopó;asformigasatravessam,desesperadas,oscaminhos.

–Quandovocêvaivoltarparacasa?–Nãosei.Logo.Oventonorte,oquebatenassuascostas,éventodeterra,masquandovemopampero,Tavito,

vemparalimparoar.Olha.Hoje,omartemespumadecerveja.Umagaivotaroçousuacabeçacomuma asa. A espuma se inchava, tremia, abria bocas, respirava. Subia a maré: o tempo será bom,Tavito.Aespumavoava,Tavitotinhabigodesdeespuma.

–Amanhã?–Podeser.Nãosei.Tavito perseguia as flores de cardo que subiam e flutuavam e subiam pelo ar e Gustavo

perguntava:quemcanta?–eTavitoparava,aguçavaoouvido,dizia:pintassilgo.Não,olhalá:eentãoGustavomostravaacabecinhaamareladopica-pauentreosgalhosdasárvores.

–Queméquesabequandovocêvaivoltarparacasa?–Ninguémsabe,Tavito.Quantos dias se passaram?Quantosmeses?Uma noite, descobre-se que fazer a conta é pior.

Antes,antes.Gustavoolhasemver.Aboliro tempo.Voltaratrás.Ficar,Carmen, ficaremvocê.Euachava,Carmen,quevocênãoiaterminarnunca.Aperteisuamãoeamãolatejava,estavavivacomoumpássaro.Antes, antes de tudo. E as estrelas, papai, que fazem durante o dia? Por que puserammosquitosnaArcadeNoé?Porqueamamãemorreu?Doiscachorrosrodavammordendo-sepelasdunas eGustavo já tinha estado preso, não dormia em casa, três vezes tinham vindo remexer nascoisasunscarasdeuniforme,estavamarmadoscomoosquetrabalhamnatelevisão,essesdasérie“Combate”,remexiamemtudonacasaeTavitoolhavaparaeles,sempestanejaresemabriraboca,grudadonaparede;ocorpotremiaatéosdedosdospés.Gustavotinhaditoaele:hátantascoisasquevocêvaiterquedescobrir,Tavito.Ascoisasinvisíveis,asdifíceis,abrechaqueesperaporvocêentreo desejo e omundo: você apertará os dentes, resistirá, nunca pedirá nada. Não, não se vive para

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vencerosoutros,Tavito.Vive-separasedar.Tavitoaponta,comoqueixo,ossoldados.–Eestes,nãosabemquandovocêvaivoltar?–Tambémnãosabem.Dar-se.Mas,eele?Tenhodireito?,seperguntaGustavoagora.Ele,queculpatem?Escolhipor

elesemconsultá-lo.Meodiará,algumavez?Gustavovêquandoeleseaproximadeumdossoldados.Tavito fala, o soldado encolhe os ombros e em seguida estende amão para acariciar sua cabeça.Tavitosalta,comoseamãodosoldadoestivesseeletrizada.

Tenho direito? Decidi por ele. Havia outra maneira? Gustavo olha para os lados, oscompanheiros, rosto por rosto, os homens com quem divide a comida e a pena e as palavras deânimoquepassamunsaosoutros,comoomate,debocaemboca.Otempodeagoraeotempodedepois.Alguématiraparaele,dooutroextremodafila,ummaçodecigarros.Gustavoapanha-oemplenovôo.EentãoTavitodiz:

–Nãosepreocupe.Diz:–Quandoeuforastronauta,vamosirparaaluaouvamosirpescar.Fora,oinfinitocaminhodaterraseestende,póefrio,atravésdoscotosdasárvorespodadas.Há

umsolbranconocéu.Tavitoolhafixoparaosol,emseguidafechaosolhos,senteosolmetendo-se,estremecedor,nocorpo.A luzopersegueeaquecesuascostas.EntreosoleTavito,caminhaumamulherquelevaumpacotederoupapenduradoemumamão.

Dooutroladodascolinas,asacáciascheiramamel.Enacidade,nãomuitolongedaqui,oventoerguepapéisvelhos,emredemoinhos,pelasruas.Nosmercados,anunciammorangosdeSalto.Oscachorroscochilam,aosol,juntodosmendigos.Sentadonabeiradacalçada,umgarotinhodesenhaomundocomumpalito.

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GAMADOS

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HOMEMQUEBEBESOZINHO

Assentinelasvigiam,osrevolucionáriosconspiram,asruasestãovazias.Acidadeadormeceuao ritmomonótono da chuva; as águas da baía, viscosas de petróleo, lambem, lentas, o cais.Ummarinheiro tropeça, discute comumposte, erra o golpe.Nos pés domorro, arde como sempre achamada refinaria.Omarinheiro cai de bruços sobre umcharco.Esta é a hora dos náufragos dacidadeedosamantesquesedesejam.

Achuvacresce, agoramais feroz.Chovede longe; a chuvabate contra as janelasdo cafédogregoefazvibrarosvidros.Aúnicalâmpada,amarela,luzdoentia,oscilanoteto.Namesadocanto,não há nenhumamoça tomando café e fabricando barquinhos com o papel do açúcar para que obarquinhonavegueemumcopod’águaedepoisnaufrague.Háumhomemquevêchover,namesado canto, e nenhumaoutraboca fumade seu cigarro.Ohomemescutavozesquevêmde longe edizemquejuntossomospoderososcomodeuses,edizem:querdizerquenãovaliaapena,todaessadorinútil, todaessasujeira.Ohomemescuta,essamentira,estátuadegelo,comoseasvozesnãochegassemdofundodamemóriadeninguémefossemcapazesdesobrevivereficarflutuandonoar,no ar que cheira a cachorro molhado, dizendo: gosto de gostar de você, minha linda, minhalindíssima,corpoqueeucompleto,vocêmetocacomosdedosesaifumaça,nuncaaconteceu,jamaisacontecerá,edizendo:tomaraquefiquedoente,quetudodêerradonasuavida,quevocênãopossacontinuarvivendo.E também:obrigado,éumasortequevocêexista,que tenhanascido,queestejaviva,etambém:malditosejaodiaquelheconheci.

Como acontece sempre que as vozes chegam, o homem sente uma insuportável vontade defumar.Cadacigarroacendeopróximoenquantoasvozesvãocaindo,trepidantes,esenãofossepelovidrodajanelacomcertezaachuvamachucariasuacara.

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CONFISSÃODOARTISTA

Euseiqueelaéumacoreumsom.Sepudessemostrá-laavocê!Dormiaali,nua,abraçandoasprópriaspernas.Euamavanelaaalegriadeanimal jovemeao

mesmotempoamavaopressentimentodadecomposição,porqueelahavianascidoparadesfazer-seeeusentiapenaquefôssemosparecidosnisso.Mostravaapeledoventre,quepareciaraspadaporumpentedemetal.Essamulher!Algumasnoitessaíaluzdeseusolhoseelanãosabia.

Passoashorasprocurando-a,sentadonafrentedocavalete,mordendoospunhos,comosolhoscravadosnumamanchadetintavermelhaquepareceoentusiasmodosmúsculoseatorturadosanos.Olhoatésentirquemeusolhosdoemefinalmentecreioquecomeçoasentir,noescuro,aspulsaçõesdapinturacrescendoetransbordando,viva,sobreatelabranca,ecreioqueescutooruídodospésdescalços.sobreamadeiradochão,suacanção triste.Masnão.Minhaprópriavozavisa:“Acoréoutra.Osoméoutro”.

Levanto,ecravoaespátulanessavísceravermelhaerasgoateladecimaparabaixo.Depoisdematá-la,deitodebocaparacima,arfandocomoumcão.

Masnãopossodormir.Lentamentevousentindoquevoltaanasceremmimanecessidadedepari-la.Ponhoocasacoevoubebervinhonosbotecosdoporto.

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GAROA

Tinha sidoaúltimaoportunidade.Agora, sabia.Dequalquermaneira,pensou,poderia termepoupado da humilhação do telefonema e do último diálogo, diálogo demudos, namesa do café.Sentia na boca umgosto demoeda velha e no corpo uma sensação de coisa quebrada.Não só naaltura do peito, não: em todo o corpo: como se as vísceras se adiantassem à morte, antes daconsciênciadecidir.Semdúvida, tinha aindamuitoque agradecer amuita gente,mas ele se lixavaparaisso.Agaroamolhava-ocomsuavidade,molhavaseuslábios,eeleteriapreferidoqueagaroanãootocassedaquelejeitotãoconhecido.Iadescendoparaapraiaedepoisafundoulentamentenomarsemnemaomenostirarasmãosdosbolsos,etodootempolamentavaqueagaroaseparecessetantoàmulherqueelehaviaamadoe inventado,e tambémlamentavaentrarnamortecomorostodelaocupandoatotalidadedamemóriadesuapassagempelaterra:orostodelacomopequenotalhonoqueixoeaqueledesejodeinvasãonosolhos.

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MULHERQUEDIZTCHAU

Levo comigo ummaço vazio e amassado deRepublicana e uma revista velha que ficou poraqui.Levocomigoasduasúltimaspassagensde trem.Levocomigoumguardanapodepapelcomminhacaraquevocêdesenhou,daminhabocasaiumbalãozinhocompalavras,aspalavrasdizemcoisas engraçadas. Também levo comigo uma folha de acácia recolhida na rua, uma outra noite,quandocaminhávamosseparadospelamultidão.Eoutrafolha,petrificada,branca,comumfurinhocomoumajanela,eajanelaestavafechadapelaáguaeeusopreievivocêeessefoiodiaemqueasortecomeçou.

Levo comigoo gosto dovinhona boca. (Por todas as coisas boas, dizíamos, todas as coisascadavezmelhoresquenosvãoacontecer.)

Nãolevonemumaúnicagotadeveneno.Levoosbeijosdequandovocêpartia(eununcaestavadormindo, nunca). E um assombro por tudo isso que nenhuma carta, nenhuma explicação, podemdizeraninguémoquefoi.

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ANDANÇAS

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TERDUASPERNASMEPARECEPOUCO

Eu não sabia como era a fronteira. Como seria? Nunca tinha visto uma fronteira. Teriaorquestra?Teria.Ebaileefestaetiroaoalvo.Ecirco?Orquestra,comcerteza.Circo,nãosabia.

Jálevavadiasacavalo,masnãoestavacansado.Comiaoquepodiaetinhafumodesobra.Sabiaque a fronteira ficava no rumo norte e tocava em frente sem medo nem pressa. As estrelas, denoitinha,corrigiammeurumo.Naverdade,eraocavaloquesabia.Euconversava,pediaparaelenãoseconfundir:olhaaí,vamospronorte.Eleiaaosabordovento.

Euestavadescalçoesemesporas,comascalçasarregaçadasacimadosjoelhos,eestavacomminhapernanuagrudadanoseucouro,comosefôssemosparaaguerramontonera.

Quandovinhaanoite,desmontava.Debruçavanabeiradeumarroioeosdoistomávamoságua.Nãooamarravanunca.Eumeestendiaapicarfumodecorda,debaixodeumaárvore,eviaquandoele saía pastando por perto. Nunca o vi dormir. Nem bem chegava a manhã, ele me despertavarelinchandosuaveeempurrandominhaspernascomofocinho,antesqueosolpudesseespetarmeusolhosportrásdosgalhos.Entãosaíamos,cedinho,trotandoatrotelongo.

Eu tinha ido embora porque queriamudar. Senão, no diamenos esperado ia estar dentro docaixãodemortosemsaberparaqueexistira.Pensavanoscarasquenão têmnovidadesnovasparacontar,enãosobraoutrojeitoquecontarnovidadesvelhasoupicharosoutros.Paramim,valiamaismorrerqueseguirvivendoassim,carregandoáguaparaascasasedá-lhelustrarsapatosnaestaçãodotremesemprecomdornosrins.Viverassim,paraquê?Claroquesetodoscomeçarmosapensaremmorrerecomeçarmosamorrerestaremosfritos.Agentetemquebuscarumjeitodenãomorrer.Pensava em Cristo, que há uns dois mil anos está na luta filosófica e na quantidade de dias queestavamme esperandopara que eu os vivesse. Pelomeio das orelhas daquele cavalo, podia ver omundointeiro,queeraenormeenãoeradeninguémetinhaumcheirodecapimecouroúmidodemontaria.

Pensavanasortequetinhaporternascidohomem.Pensavaemminhairmãmaior,queferraramporquenãosecasaramcomela,eemminhairmãmenor,queferraramporquesecasara.Eemminhamãe,quequisviveroutravidamasnãosabiaqualedormiacomosolhosabertosdesdeanoiteemquemeuvelhoarouboudosciganos.Eemtodasasmulheresdeminhavidacurtamaspoderosaetristementecélebre.Porqueeu,mulherquevejo,mulherquemedávontadedebotarnahorizontalemeter-meládentro,eulevoparaomorrinhoatrásdocemitério,alientrearuaDomingoPetrarcaearuadasMulas,deondeantessaíamoscarrosdocurral.Asmulheresnascemparaisso,eporissoseenlouquecemsemprecisardevinho.

Euqueriaconseguirtinta,emboranãosoubessecomo,antesdechegarnafronteira.Gostariadepassarparaooutro ladocomocavaloverdeeascrinasamarelas,emhomenagemaopaís irmão,porqueessas coisas impressionammuito.Láospretos são todosdoutores e certamente estariamàminhaesperacomumaparrillada gigante.Fechavaosolhoseviaas costeletasdouradas jorrandogorduraeumafogueiradetroncoseumbraseirodesseslindosdeseolhardenoite.Euiaentraragalope com o pingo colorido por baixo de um arco de trepadeiras e haveria pelomenos uns 20clarinschamandoparaafesta.

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Quantomaisme aproximava,mais contente estava. Porque lá são asmulheres quem tiram asroupas dos homens, aos poucos, aos pouquinhos, como quem descasca uma banana, e pintampaisagensdetodasascoresnasbarrigasdoshomens,omorrodoCorcovadocomCristoetudo,edepoistomarbanhoéumalástima.

Andavaporumatrilhaestreita,loucoporcausadosespinhos,osmangangászumbindopertinho,ederepentedeidecaracomumadessasplaníciesqueagentevênocinema,muitoselvagem,comunspastosdotamanhodeumapessoaqueoventomoviaemondasbravas,edebaixodelesandavamas lebres, no cio, perseguindo-se como flechas. Cruzei todo esse campo e depois atravessei umriachocheio,eeusemprecomaimpressãodequeumassuntomuitoimportanteestavaespalhando-sepelaatmosfera.

Desci do cavalo, abri uma porteira e tornei amontar. Então, justo quando estava passando apernaparaooutrolado,viquedelongevinhaumcavaleiroatravessandoocampo.Espereiocavalo,comtodaaemoção.

Ocavaleirovinhaparacáeeuiaparalá.Sentiacomoseocampoestivesseadormecidoeeuiadespertando-oaopassar,comumaalegriasemfim.Atéaí,eusemprefizeraumavoltaquandopodiacruzar com alguém; evitava o humano como se fosse onça ou cobra. Mas esse tipo eu via,aproximando-se,comsuacapanegravoandoaovento,envolvidonaneblinavermelhaqueaspatasdocavalolevantavam,e–comodizer?–éramoscomodoiscaudilhosqueiamseencontrar.Assimeramisteriosaminhavidanaquelesmomentoscruciaisdaexistência.

Ocoraçãobatiacomtodaavontadeeeunãosabiaqueiammeengaiolarportrêsanosporandarescapandocomcavaloalheio,emborasoubessequeelefossepropriedadeprivadadeoutro.Euestavaloucodealegriaenãotinhanemidéiadequeafronteiratinhaficadoparatrás,quetinhapassadoporela sem perceber, nem sabia que o homem de capa negra era um tira. Como ia saber? Todos ospoliciais têm pinta de polícia, já nasceram assim, e por isso não servem para outra coisa. Todos,menosaquelecara,quenaverdade,vistode longe,puxa...pareciaumtremendojusticeiro,comooZorro.

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NOEL

Achuvatinhanossurpreendidonametadedocaminho;tinhasedescarregado,raivosa,durantedoisdiaseduasnoites.

Faziajáalgumashorasqueosoltinhavoltado,eascriançasandavamaopédomorrobuscandoo jacaré caído do céu.O sol atacava as lamas das roças e amata próxima, arrancando nuvens devaporearomasvegetaislimposeembriagadores.

Nós estávamos esperando que um ruído de motores anunciasse a continuação da viagem, edeixávamospassarotempo,entrebocejos,sentadosdecostascontraafrentedemadeiradoarmazémoudeitadossobresacosdeaçúcaroudemilhomoído.

Dos braços de umamulher, aomeu lado, brotava, contínuo, umgemidodébil.Envolvido emtrapos,Noelgemia.Tinhafebre;ummaltinhaentradopelaorelhaetomadoacabeça.

Paraládoscamposamarelosdesoja,seestendiaumvastoespaçodecinzasetocosdeárvorescortadasecarbonizadas.Logotornariamaseerguer,portrásdessesdesertos,asespessascolunasdefumaçadas fogueiras que abriamcaminho emdireção ao fundodamata invicta, onde floresciam,porqueeraépoca,ascampainhasavermelhadasdoslapachos.Esperando,esperando,adormeci.

Me despertou,muito depois, a agitação das pessoas que gritavam e erguiam pacotes, sacos epanelas.Ocaminhão,vermelhodebarroseco,tinhachegado.Euestavaestendendoosbraçosquandoescutei,aomeulado,avozdamulher:

–Meajudeasubir.Olheiparaela,olheiparaomenino.–Noelnãosequeixamais–disse.Ela inclinouacabeçasuavementeedepoiscontinuoucomavista semexpressão,cravadanos

altosarvoredosondeserompiamasúltimasluzesdatarde.Noel tinha a pele transparente, cor de sebo de vela; a mãe já tinha fechado seus olhos. De

repente,sentiqueminhastripasseretorciamesentianecessidadecegadedarumaporradanacaradeDeusoudealguém.

–Culpadachuva–murmurouela.–Achuva,quefechaoscaminhos.Mais que a tristeza, era o medo que apagava sua voz. Qualquer motorista sabe que dá azar

atravessaraselvacomummorto.Subimosnacarroceria.Oscontrabandistas,ospeõesdomato,oscamponesescelebravamcom

cachaçaaapariçãodocaminhão.Algunscantavam.Ocaminhãopartiue todosficaramemsilênciodepoisdosprimeirostrancos.

–Eagora,porquevocêcontinua?Foiaprimeiravezqueolhouparamim.Pareciaassombrada.–Aonde?–IssolevaagenteparaCorpusChristi.–Paraláéqueeuvou.VouatéCorpusrezarparaquechegueopadre.Opadretemquefazero

batismo.Noelnãoestábatizadoeeuvouesperaratéquechegueopadrecomaságuassagradas.Aviagemsefezlonga.Íamosaostrancospelapicadaabertanaselva.Jáeranoitefechadaepor

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aquelacomarcatambémvagavam,disfarçadasembichosespantosos,asalmaspenadas.

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CERIMÔNIA

O diabo está bêbado e reumático e temmilhões de anos de idade. Sentado em cima de umafogueiradecacosdevidro,envolvidoemchamas,jorrasuor.Rezaamissacomascostasapeadasnotroncodaquelafigueiraque,condenadaporCristo,nãodáfrutos.

“Queseestivercaminhando,vejaminhasombra.Queseestiverdormindo...”Sacodeacabeça.Oscornosde trapobalançamsobreosolhoseumfiodebabadespenca, trêmulo,deseu lábio;aoredor,estãopenduradosossantosdocéuedoinferno.Afumaçaondulaentrecaveiraseamuletoseoferendas;osbodesbebemvinhonegro,osgalosgritam,ossaposseinchamdefumaçadecharuto.“Euteesconjuropelosnovemesesquetuamãetecarregounoventre,pelaáguaquetejogaramemcimaepelosalquetederamparacomer.Ossoporossoemúsculopormúsculo,veiaporveia,nervopornervo...”

Odiaboselevantaestalandoecomeçaacaminharencostaacima,pelosarbustos.Umcetrodesetedentesdeferroservedebastão:ossetesoldados,guardiõesdosportõesdoinferno,oguiamnonegror da noite e lhe dão forças para manter rijos os músculos enquanto dribla as pedras e aramagem do morro. Anda torto, enrolando-se aos tropeções com sua própria capa rubro-negra,chamuscadaerota,eacadapassoumadoragudaretorceseusrins.

Páranametadedocaminho.Juntoàcascata,umamulher,depé,estáesperando.Elacarregaumameninanosbraços.

–Temmuitafebre?–Não.Amorte,sualongalíngua:–Estáindo.Édordemaisparaseupoucotamanho.“Galoquecanta,cãoquelate,passarinhoquepia,gatoquemia,criançaquechora,Satanás...”O

diabocoçaaorelhapontiaguda:–Não.Porqueeunãoquero.Doze rosas brancas. Um punhal virgem. Sete velas vermelhas, sete velas negras. Uma toalha

intacta.Umcoponãotocadopornenhumaboca.“AestrelaealuasãoduasirmãsCosmeeDamião”Acendemasvelas.Láembaixo,antesdomar,tremem,fracas,asluzesdacidade.Amadrugada

começaadesenharsualinhanohorizonte.–Sonheiqueelamorria.–Quemdormecomabocaparabaixonãosonha.–Umcavaloapoiavaaspatasnaminhabarriga.Edepois,commãosdemulher,meapertavaa

garganta.Percebique,seeudissesseonomedela,elamorria.–Qualéonome?–Onomedeminhamãe.Odiabocoçaabarbichacomaunha,longa,dopolegar.Odiabonãotemcheirodeenxofre.Tem

cheirodecachaça.

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–Quantosanostem?–Anos,não.Temdias.–Aavóvembuscá-la.Éelaquemquerlevaramenina.Ameninaestáestendidasobreopanobranco,rodeadadefloresevelas.Odiaboseinclina,se

ajoelha, e com a ponta da adaga desenha dois talhos, em cruz, nomeio da cabeça.Apóia sobre aferidasuasgengivassemdentesebebeosangue.Ameninanãotemforçaparasequeixar.

– Iara, que será chamada por outro nome, não vaimorrer.O dia que omundo acabar ela sesalvaránumcarrodefogo.Ostemposmudamtodososdias,mas,deagoraemdiante,elaéminhaneta.

Despejaasrosasnaságuasdanascentedomorro,paraquelevemasdesgraçaseasatiremnomar.

–Oxalá,DeusdasAlturas,CriadordoCéu,do Inferno,doMundo,dos filhos,da tristeza,meajudaacriarestafilha.Elaétuafilhaeminhaneta,efilhademinhatristeza,ai.

Depoisergueopunhoparaasúltimasestrelasdocéue,apontandoparaelacomossetedentesdeferroenferrujado,clama,avozrouca:

–Nahora emque te lembrares,Deus, que essamenina existe sobre aTerra, ela sofrerá.Tuavingança,queosveadosdaigrejachamamdemistério!Masporfeitiçoelanãovaisofrer.Nempormau-olhado.Nemporinveja,nemporpraga,nemporquebranto.Nempormaldição.

Cospe no chão. E continua acusando as alturas e sacudindo o punho peludo, enquanto a luzinvade,lenta,oarcinzento:

–Ah,velhocarrasco!Carniceiro!Elaentraránumjardimedeixaráacriançanasoleiradeumacasadericos.Depoiscontinuará

caminhando até a costa, até chegar na praia doDiabo, que é pequenamas engoliumuita gente. Ecomeçaráabuscar,naareiaaindafriaeúmida,ocordãozinhocomaqueletalismãqueaprotegiadaspenúriasduranteodia,edospesadelosduranteanoite.E,seIemanjáachamardaslonjurasdomar,elasedespiráesedeixaráirnavegandocomoseseucorpofosseumavelabranca,atrásdavozdadeusa.

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ATERRAPODENOSCOMERQUANDOQUISER

Umpontinhovemcrescendo,pouco apouco,da lonjura.Nesta estepegelada, sempastonemmarcas,deondeatéoscorvosfogem,aluzqueimaosolhos.Apunaétãoaltaquesepodetocarocéucomasmãos:aluzcaidemuitoperto,earrancadapedralisabrilhosdecorpúrpuraoudecordeenxofre.

O pontinho vai se convertendo, lentamente, em umamulher que corre.Usa um chapéu pretocomoos dePotosi e umchale vermelho, tão amplo como suavasta saia.Ela corre deslizandonomeiodessasdesolaçõesquenãocomeçamnemterminamnunca,banhadapelaluminosidadequesaidochãocomoseestivesseatrasadaparachegaraalgumencontro.

Peloquemecontaramaqui,oyatirivirouyatirisemquereroudecidir.Foiescolhido.Enemasovelhasviramisso–nãohaviahomensouanimais:nãohavianinguém.Umavozochamoudoaltoda noite quando ele ainda não era yatiri e ele subiu atrás da voz caminhando pela montanha atéchegarláemcima,muitoalémdasnuvens.Sentouaopédapedraeesperou.

Então caiu o primeiro raio e ele foi partido em pedaços. Depois caiu o segundo raio e ospedaçossereuniram,maselenãopodiaficarempé.Aícaiuoterceiroraioqueosoldou.

Assimfoiquebradoeconstruídooyatiri,mortoerenascido,eassimfoisempre,peloquemecontaramaqui,desdequeViracochacriouomundoeoraioquecai,aspedrasquedespencam,osriosquearrasamplantaçõesecurrais,a inundaçãoeaseca,asepidemiaseosterremotos.(Edesdequecriouanós,oshomens,ounossonhou,porqueaíelejáestavadormindo.)

Uma cortina de água apaga o vão alto e negro que separa os picos altos no horizonte. Umrelâmpagoatravessaessevão.EstáchovendoparaosladosdeChayanta.

Debaixo da terra, metidos nas grotas e nas fendas, os homens perseguem os filões. Queaparecem,escorrem,seoferecem,senegam:éumavíboracordecaféeemsuacarnebrilha,trêmula,acassiterita.Umacaçadaque se fazem três turnos,bemnomeiodamontanha.Eondeparticipammilharesdehomensarmadosdecartuchosdedinamiteoudeanfo:essamanteigaquetambémseusaparabrigaremcimadaterraequeoscapatazesdesconfiam,quandovêemospacotesqueosmineiroscostumamlevardebaixodeseuscasacõesdetrabalho,quesãoamarelos–deumamareloraivoso.

Um rato agarrado num buraco fundo: uma opressão entre o peito e as costas, uma dor quecaminhapelocorpo:avingançadopódesilício:antesdatosseedosangueedaaniquilaçãotemporã,osperseguidoresdofilãoperdemogostodabebidaedacomidaeperdemocheirodascoisas.

Llallagua:deusadafecundidadeedaabundância.Llallagua:umgrandedepósitodelixocercadodepotesdechicha.AlguémcruzaapontesobreorioSeco,arrastandoumcarrinhodemãocheiodecachorrosmortos,comasbocasabertas.

Tenho,tenho,dizenãotemnadanemumtostãonobolso

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paraoscigarros...

Orioéumleitocinzaeescassoquecorreentreaspedras.TodasaságuasdeLlallagueacabamparecidas com a areia espessa que brota da boca da mina e todas as ruelas de Llallagua,escorregadiasdebarro,levamparaolixo.

Aqui,osolincendeia,oventoarrebenta,asombragela,ofriofere,achuvacaicomopedradas.Duranteodia,oinvernoeoverãocortamoscorposemdois–aomesmotempo.

Àluzdevelas,umamulherdançahuaynonochãodeterra.Asváriassaiasdamulherflutuamealongatrançanegravoaparatráseparaafrente,eelaacariciaatrançacomosdedos.

Alguémsegreda:“AHortênsia temamor.Massóporumtempinho:sóparaumtempinho.Vaioferecermaravilhasparaele.Masdepois...”

Todosbebem:–Aqui!Aqui!Seco,fundoseco,mostremoscopos!Sirva-se,sirva-se,nãosejagalinha,vamos

ver!–Agentetemdefuzilá-los,porra,todos,todinhos,porra!–Umtragoporisso!Umbrindepelosquedançam!Masquesejaforte!– Na nuca, porra, por tanta encheção de saco! E a tiros, que é melhor! É, além disso, mais

pedagógico,porra!–UmbrindeporCamacho!Brindemospormerdanenhuma!Euestouna rua, nestamerdade

rua!ElLobotemduasmulheres,mastodossabemqueuma,acorcundinha,sóservecomoamuleto,e

queaoutraquertirararoupatodavezqueficabêbada.

Cantarei,esó,Dançarei,esónãosobrounemáguaparamim

Quemtrabalhanasmanhãsdesegunda-feira?Osdistraídoseossuicidas.Nemospadres.

Meteramduaslhamasbrancas,vivas,nofundodogrotão.Oyatiriafundounopescoçodelasseupunhal deprata ebebeuo sanguequentena conchade suamão, e depoisofereceu sangue à terra,porque a terra pode nos comer quando quiser. Com um chifre de caça, chamou os inimigos dosmineiroselevou-osparalonge.

– Irmãos, companheiros. Estamos oferecendo boa presa para que apareçam bons filões nasminas, e a sorte boa contra os desmoronamentos e contra os caminhos perdidos. Agora estamosbrindandopelostiosetiasenesteinstanteelesestãofazendoomesmopornós.Elesestãoenchendoacaranoinferno,pelanossasaúde.

Os mineiros, sentados em roda, olhavam – sem fixar os olhos – para o tio, em seu tronoiluminadopelaluzdasvelas,suassombrasespantosasnasparedesdasgrutas.Nasvasilhas,aospésdotio,aaguardenteiabaixandodeníveledesaparecendo,asvíscerasdaslhamassofriamdentadasinvisíveis e as folhas de coca se convertiam empolpa babada.O charuto virava cinza na boca dodiabodebarro.

–Asduaslhamasquesacrificamosestãosendodevoradaspelosdiabos,etodasasvirgens,juntocom eles, também estão comendo a carne sagrada. E amanhã, ao amanhecer, vamos recolher osrestosquesobrarem,eentãovamoscomernós.Edurantesetediasninguémentraráaquieninguémtrabalhará.

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Ainda que ele acreditasse, como todos, que tempos idos não voltammais, houve alguémquedesejou que aparecesse o Tio em pessoa, trabalhando ao meio-dia, batendo com um martelo asparedesdeumalavraabandonada,umalavrafalsa,ebatendonapelededonSimónPatiño,quetiveraa sorte eodinheiroeopoder.Masoqueelesviam,quando fechavamosolhos, eramoshomensmortosabala,bêbadosaindaeluminosospelasfogueirasdeSãoJoão.

Me perguntavam como era o mar. Eu contava que na boca dos pescadores o mar é sempremulheresechamalamar.Queésalgadoemudadecor.Contavaparaelescomoasgrandesondasvêm rodando com suas cristas brancas e se levantam e se estraçalham contra as rochas e caemrevolvendo-senaareia.Contavaparaelesdabravuradomar,quenãoobedeceaninguémanãoseralua,econtavaquenofundoeleguardabarcosmortosetesourosdepiratas.

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OSSÓISDANOITE

Omineiroéumpássarodeplumasnegrasqueosmineirosperseguemenãovêemnunca.Voamuitoaltoevai alvoroçandocomseugritoduroo topodasmontanhas.Sabe-sequedescansanosúltimosgalhosdoscedrosdasfarrobas.

Háoutrospássaros,ocapaneroeapiscua,quetambémanunciamoesconderijodosdiamantes.Quandoapiscuaestámuitoalegreecantapiiiiscua,piiiiiiscua,époralgumacoisaboa,mascuidadocomessepassarinhomanso,deplumascinzentas,quandoficatristeecantabaixo,comoseestivessecomraiva:melhoréirembora.Emcompensação,cadavezqueomineirinhoariscogritaseuúnicogrito,estámostrandoodiamantequefoge,paraqueoshomensselancemsobreapedraealevantemnopunho.OmineiroconduzosmineirosatéofundodaselvadeGuaniamo,ondevive.Quandosainasavana,malcomeçaavoar,morre,porqueoardaplanurabateemseupeito.

Odiamanteéumapedraquemagicamenteaparecenomeiodaspeneiras,desprendidadeumamassa de pedras inúteis e barro, depois de esconder-se nos leitos de areia dos rios ou nasprofundidadesdaterra,entreossinaisdelatores:coisasqueparecemgrafitedelápis,lentilhas,merdadepapagaio,pedaçosdemetalesementesderomã.Paraencontrarodiamante,estesenhor,éprecisotersanguenasveias.

OmineiroéumpretovelhoqueprotestaporquesãotrêsdamanhãenaruadaSalvaçãojánãose pode beber. O que é meu é meu, grita. Eu tenho reales, não preciso pedir dinheiro a essesbotequineiros.Somosgenteboa,masquandodáraiva,dáraiva.TenhoumdiamantegrandecomoodaÁfricaaquinomeubolso,enãomeatendem.Quecantemasmáquinas!Quesaiamasmulheres!EstãopensandoqueMarchánéalgumvira-latas,nessenegócio?Nãomedêemnada.Eutenhomaisreales,maisqueessesquetêmnegóciosepicas,eutenhorealesnobolsoenobancodeCaracaseemtodososlugares.Aquiestoucommeuburricoequeroqueasmulherestiremaroupaedêembanhonomeuburricocombrandy,porqueéassimqueelegosta!DonMarchánéohomemmaisricodetodasasminasdessepaís,quecaralho,eeumechamoDionísioMarchán.Quemquiserdormirnessepaísquefaçacasa.Aquitemmuitamadeira.Vocêvaimefazercalar?Eunãotenhomedodevocênemdeninguém.Euéquefaçovocêcalar.Façovocêcalarabocaamachadada.Eununca,emnenhumamina,pediesmolaaninguém.Equemtiverraivademimeumematocomele,euouele,amachadoouabalaoudojeitoquefor.Eohomemquemevenha,quemevenhafrenteafrente,assim,porquemamãenãomepariu escravo.Eu souumhomemsemamo!Umhomemsemmedo!O tigremaisbravo que sair, já o amamentei. Eu souMarchán. Eu aprendi para saber. Que ninguém banque oinimigo comigo. Uns quiseram, mas não puderam. Que saiam as mulheres, todas as mulheres!Peladas,queMarchánpagaestanoiteafestadamina!QuesaiamaMenaeaTurcaeaRosa!Aquiamáquinatemdecantar!Sejadoutor,capitão,sejaoquefor,ninguémnaSalvaçãovaifecharaportaparamim.PorqueeusouMarchán.Jáestoupassandodossetenta,massoucomoburrobom,obrioeunãoperdi,jáconheçoavida!Eusouumhomemquematadefrente!Hojejánãosobramhomens,issosim.Hojeoqueexistesãopunheteiros.Quecantemasmáquinas,eufalei!Vamosarrebentaro

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pescoçodasgarrafas!Asmulheres,quedancem!Hojesouoqueontemnãofuieoquepossosernãosou,poisessediadehojeéoquedigodemim.QueDionísioMarchánmorreudevelho.Essenãofoimorto,essenão!

Odiamanteéumaplantaquenasceemqualquerparte,porqueparaexistirnãoexigeboaterra.Mastemseusmistérios.Sefazperseguirpelostúneisagolpesdelançaeapagaquandoqueravelaouospulmõesdosmineiros.

O diamante está no topo de um morro invencível, onde muitos quiseram subir e rodaramencosta abaixo pelas pedreiras.Omorro, que se ergue nas costas doCaura,mostra, apesar disso,cicatrizes de escaladas que se perdem de vista muito lá em cima, e do alto se desprende, pelasmanhãs, uma cascata de laranjas muito doces (nestas terras onde só crescem a seringueira e asarrapia).

Odiamante jaz no fundodo leito arenosodo rioParagua, no sítio exato e secreto ondeumamulher encontrou, quando as águas baixaram, um canhão de bronze como suporte quebrado, umtremendocanhãodaquelesqueosconquistadorescarregavampelabocaepunhamfogonamecha.Ocanhãoestavaali,emborafosseimpossívelestarali,porqueascataratasdorioteriamsucumbidoosgaleões ou as corvetas e ninguém poderia ter aberto uma picada, de tão longe, através da selvacerrada.

–DonSifonte!Mandam-lhelembranças.–Comoandamascoisas?–Atéomomento,nãoandam.–Comovaivocê?–Maisvelhoqueontem,maispertodamorte.–Pasteizinhosquentes!Paravelhosquenãotêmdentes!Oscaraquenhossãounsfrescos.Asluzesquenascemdodiamantecortamcomofaca.Oscomerciantesosexaminamcomlentes

grossas.Àsvezesodiamantenãoéumdiamante:éumquasequase.

Omineiroéumbarulhoquenascepelasnoites,quando todosdormem,e levanta levementeeflutuasobreosonhodetodos.

Omineiroéomurmúriodassurucasnasmãosdosfantasmas;asurdaagitaçãodospedregulhoslavando-seefiltrando-seportrêspeneirassucessivas;osomquasesecretodaareiaque,defiltroemfiltro,vaicaindo.

Omineiroéoruídodeferrodaspásedaslançasquesolitáriasseerguem,dançam,seesfregamentre si e se põem em movimento até os poços, e vão penetrando a terra e cavam os socavãosenquantotodosdormem.

Eéoeleitoqueescuta,comorostocrispadoetodososmúsculosemtensão,atéquefinalmenteo ruído cessa e fogem os fantasmas para que não os surpreenda e osmate a luz do dia. E então,desesperadamente,oescolhidoseafundanogrotãoondeodiamanteoespera.

O diamante é uma presa que se esconde debaixo da língua de um homemmuitomagro, quetremedemedo.Outroshomenstiraramsuaroupa,arrancaramsuaroupaemfarrapos.“Vocêroubou-noscincobaldes”,dizem.“Vimosquandovocêosroubou.”Falamcomosdentesapertados.“Todomundoviu”,dizem.

Ohomemmuitomagronegaagitandoacabeçaemurmuraalgumaspalavrassemqueninguémpercebaquetemodiamantedebaixodalíngua.

–Nadando,nessaáguaimunda?Nemvocêacreditaemvocê.Estavaroubando.Issoéoquevocêestavafazendo.Roubando.Eissonãosefaz.Issoépecado.Éfeio,muitofeio,fazerisso.

Ohomemmagroestárodeadoporeles,umaneldehomenscomolharesacesos.Umdelesatira

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cuidadosamenteonóescorregadiodeumacordalongaquetemnumadasmãosparaogalhoaltodeumaárvore,eohomemmuitomagroengoleodiamanteesecondena.

Omineiroéumhomemcomumarcoeumaflechatatuadosnopeito.O mineiro fala, movimento de arco em tensão: Barrabás abriu uma época. Lá pelos anos

quarenta, diz, Barrabás encontrou no Polaco um diamante do tamanho de um ovo de pomba, quevaliameiomilhãodedólares.Essamanhã,diz,oscomercianteslhehaviamnegadocafécompão.

Vôo alto da flecha em direção ao alvo: o diamante era perfeito, transparente e com reflexosazulados,emborativesseasbeiradasirregulares.Nuncavisto.

Alegria da flecha no ar: Barrabás oferecia banquetes ao presidente e dava grandes festas emCaracas.Passeavapelasruasegostavadasmoçasnasvarandas:compravadelasumolhareumcopod’águaporcembolívares.Mandouarrancar todosdosdentese fazerumadentaduradeouropuro.Apaixonou-sepelafilhadopresidente.

Aflechabate:omineirodizqueBarrabásofereceudezmilbolívaresparaentrarnossalõesdoTamanaco,equenãodeixaram,porserpreto.MasoTamanaconãoexistia.

Aflechaquebrada:Barrabásdefinha,pobreevelho,numaminaperdidadafronteira.Aniquilaçãodaflecha:quandovoltoudeCaracas,nãoconseguianemumquilodearrozfiado.E

jánãopodecontarnemconsigo.

O diamante é um espelho profundo onde os mortos de fome acreditam encontrar seusverdadeirosrostos.

Odiamanteéumrecém-nascidoqueseofereceàsputascolombianasdazonavermelhaouseevaporaemrumouuísqueescocêsoucainaemboscadadosbaralhosmarcadosnasvendinhasdostrapaceirosprofissionais.Odiamantefazdançarosmilhõesàluzdalua,e,quandosaiosol,nobolsonãosobranemumtrocadoparacomprarabalaquefariafalta.

Odiamanteespera,adormecido,entreasraízesdeumagameleiraquearde,aopédasgalhadasemchamas,nocentrododelíriodeumhomemquedesesperadamentesabequenãolembrará.

O mineiro é um corpo quente e gelado que treme numa rede, à intempérie, com os olhosqueimados pela febre. Omineiro acha que chove.Mas a chuva é uma folha de palmeira que umhomemarrastaporumcaminhopoeirento,recém-abertoamachadoejárachadopelosol,eafolhaavançae soacomoumachuvaque roda.Seachuvacaísse, averdadeirachuva, talvezaliviasseosfervores da febre do mineiro que queria sair da rede e da febre, mas está preso, as pernas nãorespondem,oqueixotreme,osdentesseenlouqueceramechocam-seentresi,essediamanteémeu,umamão na garganta o afoga e resseca sua boca, esse diamante tão grande como um penhasco,necessitavomitaroquenãocomeunembebeu,lambidopelofogo,eu,euquemebanheiasexta-feirasantaenãofuitransformadoempeixe,aondemevãolevar,osporossedilatam,estouram,aondeatranspiraçãosaltaajorros,seaquinãotemosnemcemitério,odiamantereinanoincêndiodasraízesespantosasdasgameleiras e no incêndioda febrena cabeçadomineiro, a cabeça separte, euquedormi commulher numa sexta-feira santa e não fiquei grudado, aonde vão me levar, um alicatequente que tritura o crânio e suprime a respiração, querem me despojar, querem me roubar, atranspiraçãoaosjorros,abusadores,filhosdamãe,apedranascidaparamimaíembaixodaárvorequearde,amorte,quandoosquenãovoaramvoam,aonde,quandoosquenãocorreramcorrem,asflores grudadas, os pássaros mudos, e bruscamente surge então a invasão de borboletas negras,grandes comourubus, apagamo céu e cortamos caminhos e omineiro sente que está indo, abrecaminhoentreasborboletasamachadadas,invencíveleveloz,asoprosdeventopuroabrecaminho,deixa-seirrumoàpedraqueochama,fulgurante,dafogueiradeárvoresàbeiradorioedofimdetodasascoisas.

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Odiamanteéumapedramaldita.Odiamanteéumapedrasó.Comsuaslínguasdediamante,asantigasbruxaspoderosascortamoossoeoaçoeatravessamacarnedosplanetas.

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ELESVINHAMDELONGE

Setivessemconhecidooidiomadacidade,poderiamterperguntadoquemfezohomembranco,de onde saiu a força dos automóveis, quem segura os aviões lá no céu, por que os deuses nosnegaramoaço.

Mas não conheciam o idioma da cidade. Falavam a velha língua dos antepassados, que nãotinhamsidopastoresnemvividonasalturasdaserranevadadeSantaMarta.Porqueantesdosquatroséculosdeperseguiçãoeexpoliaçãoosavósdosavósdosavós tinham trabalhadoas terras férteisqueosnetosdosnetosdosnetosnãopuderamconhecernemdevistanemdeouvirfalar.

Demodoqueagoraelesnãopodiamfazeroutrocomentárioqueaquelequenascia,emchispasbem-humoradas,dosolhos:olhavamessasmãospequeninasdoshomensbrancos,mãosdelagartixa,epensavam:essasmãosnãosabemcaçar,epensavam:sópodemdarpresentesfeitospelosoutros.

Estavamparados numa esquina da capital, o chefe e três de seus homens, semmedo.Não ossobressaltava a vertigem do trânsito das máquinas e das pessoas, nem temiam que os edifíciosgigantespudessemcairdasnuvensedespencaremcimadeles.Acariciavamcomapontadosdedosseuscolaresdeváriasvoltasdedentesesementes,enãosedeixavamimpressionarpelobarulhodasavenidas.Seuscoraçõessentiampenadosmilhõesdecidadãosquepassavamporcimaeporbaixo,decostasedefrenteedelado,sobrepernasesobrerodas,atodovapor:“Queseriadetodosvocês”–perguntavamlentamenteseuscorações–“senósnãofizéssemososolsairtodososdias?”

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TOURISTGUIDE

Naoutramargemdolago,oarcebispoclama:“Umamaldiçãoameaçaacidade!”,denuncia:“Osfilhosrenegamospais!”Doisgeneraisacompanhamoarcebispoatéoaeroportoenasaladeesperaumamulherpuxaatúnicadosacerdote:pedeabênção,padre,queasiguanasabandonemotelhadodaminha casa e as dores meu corpo. Os fotógrafos dos jornais rodeiam o arcebispo, o arcebispotranspira,amitratremeemsuacabeça.

Destamargem,vazia,ergooolharevejooavião,oarcebispoatravessaasnuvenseseperdenocéu. Atrás demim, no lago, junto com as infinitas torres de ferro, ardem as chamas de gás e asperfuradeiras continuam seu cabecear eterno, os cabos pendem dos bicos como baba de petróleo.Aquiosolardecomfúriaearrancadaterraumanuvemdeóleoefumaça,cadavezmaisespessaemais difícil de atravessar.Neste deserto negro, brilhoso de petróleo, não cresce pasto nem crescenada,nãosobranada:assolasdasbotasgrudamnochão,masasmarcasdemeuspassosseapagam,comidaspelopetróleo,antesdefixaremsuaimpressão.Existemalgunscartazesrasgados,restosdeletras que disseram: “Cuidado. Não passe. Cachorro bravo”, disseram: “É proibido jogar lixo”,disseram:“TerraNegrareclamadoPrometido”.

Aqui, os pássaros não cantam: se queixam. Uns poucos patos flutuam, sem se mover, noscharcospantanosos.Oscorvossãoaúltimacoisavivaquerestouparaaspalmeiras.

Jáestoucompletandonoventaesete.Estouchegandoaofim,masquerover–nãoé?–sefalocomoSenhorparaconseguirmaisumtempinho.

Como não vou lembrar de quando chegaram as companhias. Foi quando começou a correrdinheiro.Opessoaldaquiaindatrabalhavanaterra,naquelesanos,euesqueçodasdatas,masistoeramuitobonito,oshomenspescavamno lago,bebiamáguado lago.Naquelaépoca,haviacapitãesedoutores. Lá no lamaçal comíamos ovos de jacaré; matávamos o jacaré, salgávamos sua carne efazíamosguisadinhode jacaré.Seéramosfelizes?Ninguéméfeliz.Equantomaisposiçãotenhaohomem,pior.Mastodostínhamosvidaprópriaehaviamuitaunião.Agora,aáguaestáenvenenadaevivemosencurraladosentreogretãoeodique.Agentenovanão ficaporaqui,nãocria raízes.Agarotadavaicrescendoeindoembora.

Eu,irembora,nãovou.Eunasciaqui,mecrieiaquieaquiestou,semprevendendoamendoimnoestabelecimento“AMãodeDeus”,comovocêestávendo,queanteseraumlugarzinhoquevendiacomidaeondeopessoaltinhaseusbailinhos.Aquieufico.Minhafilhafoiembora,elasim,eébemsaidinha minha filha, me escreveu um verso que diz: “É tanta a minha inteligência, que minhasimprovisaçõesnascemdasregiõesazuisdofirmamento”.Elaestánacapital.Porquenão?Cadaumvivedasuacapacidade.Enãomeperguntemais,porqueasescolasdeantessóensinavamacontaratécem.

Não há nem ao menos porcos escavando o chão inchado de lixo. As moscas me acossam,bêbadasdecalor,zunindoforte,asmoscasbatemcontraminhacara,grudamemminhapeleoleosadesuor.Gotasgordasdesuorpendemdeminhaspestanas.Medeixoguiarpeloolfato.Estasruínasexalam um hálito demoribundo; os odores, cada vezmais azedos, vão anunciando, enjoativos, o

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lugarondeoprimeirojorrodepetróleobrotou,hásessentaanos:oburaco.Parecequesepassaramséculos desde que se escutou por aqui o rumor dos últimos passos de um homem, e agora sópersistemosruídosdademolição,odesmoronamentodetodasascoisas,orodardaspedrascaindo,maslento,lentíssimo,omoribundoestároncandoeseescutaociciodedentesderatosqueserrilhamasmadeiraseomuro,alepraqueavança,lepradotempo,ozumbidodasmoscaseoborboleteiodosol que cozinha o lixo e faz ferver os charcos de petróleo, o estalido das bolhas de petróleoinchando-seearrebentandonestasmarmitas,eaoredordoscharcosdesopanegraochiardaterraque racha,emfendasabertaspelocalor,comorugas,ao longoeao largoeatéoossodacaradaterra.

O jorro brotara até as nuvens e o vento fez chover petróleo sobre a comarca. Caía petróleosobre os tetos de folhas de palmeiras das casas e os lavradores e lenhadores e os caçadores seafogavam em petróleo, atônitos, com os olhos fora das órbitas, porque nunca tinham sabido queaquilolhesfaziafalta.

Eveiogentedooriente,do suledocentro.Oscamponeses jogavamaospoçosos laçoseasfoicesevinhampelorioeatravésdasselvas.OsdeCoroforamtrazidosparaomonte,paradevastarosbosquesagolpesdefacãoemachado,easerpenteguayacáneamaláriaacabaramcomeles;osdailhaMargaridaarrebentavamospulmõesamarrandocanosnofundodolago.

Homensdetodasascoresedetodososidiomasbrotavamdomaremnaviosnegros,deproasdeferro.Apareceramasmáquinas,derodasdentadaselâminasbrilhantes,melhoresqueoshomenspararesistiràsmordidasdaserpenteeàsfebres.Astorreseramdemadeiraedepoisforamdeferroebrotavamumaaoladodaoutra.Tambémtrouxeramautomóveis,gramofones,mesasdepanoverdeemulheres capazes de fazer o amor vinte e cinco horas por dia: elas se chamavam Chavefixa,Seteválvulas,Rompepregas,Tubulação.Depoisdaguerra,osbaresabandonaramTasajeraseforamparaAltaGracia,depoischamadaCoréia,alémdeLagunillas.Paralásemudaramosbaresenormes,e lá estão; parecem prisões ou fortalezas.Quando caiu a ditadura, surgiram no país revolvido asjuntaspró-melhoraseasjuntaspró-desenvolvimento,eumaequatoriana,quetinhasidodamadealtogabarito,organizouaquiumagrevedepernasfechadas.SechamavaMonosábia.Elastriunfaram.

Desprendeu-se,quebroueseprecipitounovazio.Estessãoospedaçosdeumaúnicacoisa,hojearrebentada, mas que foi. (Havia existido entusiasmo, e luta, e vida viva.) Os restos: como umarrependimento:dentesdeguindastesforradosdeferrugem,cadáveresdeautomóveis,latasdeleiteempóMilk,óleoDiana,mata-baratasEfetan,sucode laranjaElla,montanhasde latas, farraposdeumvestidodefestapenduradosnumprego,cabinesdecamionetessemcamionetes,umaespumadebaba seca sobre madeirames verdolengos, luvas de trabalho que perderam os dedos, pneus paramedir apressão, sapatos afogadosembarro,ossosdegalinhas e cachorros, seringas,umcadillacreduzido amofo, cascas de coco, fiapos de capas de chuva, umônibus sem rodas nemparalamasafundadocontraumarbustoequeagoraformapartedessearbustocomostirantesdotetoaoventocomovértebrasougalhossecos,elásticosdepoltronas,garrafascomseusbicosemcacos,sucatasdeguindastes e de perfuradeiras, monstros em papelão cinzento que antes foram caixas de VeuveClicquotouYeMonkseagoratêmmandíbulasebraçoseestãoencolhidoseàespreita,fiosnegrosdecascasdebanana,vegetaçãopodre,pelesdevacassemvacaseacossadasporexércitosdemoscas,taladrosabandonadoscomsuasbasesdecimentocomoruínasindígenasdepoisdeumincêndio,comhordas de vermes surgindo debaixo de cada coisa, um letreiro deCafenol, o camelo deCamel, amolduradeargamassadeumalto-relevocomtrêsdedosdeumamãoeabocadeumacara,pilaresde estuque, um muro desfeito de onde pendura-se uma língua de papel florido, um busto demanequimerguidosobreosescombros,alçando-se,deusasdegesso,sembraçosnempernas,com

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umacaradedespeitoeospoucoscabelosaindagrudadosnocrânio:elasorri.

Éumaarmadilha,penso.Nãomemovo.Estourodeadodelixopelonorteepelosul,olixometomadeassaltodelesteaoeste.Eolixoqueavança,nãoeu,outalvez,sejaessefedorafermentoetripas emdecomposiçãoquemeencurralamemevão traçandopara asfixiar-mee eupensoqueéumacilada,oprimeiropoçodepetróleonãoexistiununca,nuncahouve,nuncapodereisairdaqui,nãoseiporondevimenãoháestrelasparameguiarem.Medeixocairsobosolemchamasecomacabeçaapertadaentreojoelhorogoquecaiamemcimademimanoiteouachuva.

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OESPERADO

EunascinodiadainvençãodeSantaCruzeporissomepuseramonomedeMaria,MariadelaCruz. Foi aos 12 anos justos, no dia demeu aniversário, que a planta cresceu e brotaramnela osfrutos amarelos e falou comigo.Enanoitedessedia sonhei o sonhobonito enodia seguintemetrouxeramparaacidade.Foinoano68quemetrouxeram,paracuidardascrianças.EnaquelacasadaruaObispofiquei30anosvendopassaroshomenseoscavalosportrásdasgradesdasjanelas.Eram tempos de Espanha e, pormais pobre que fosse um branco, nenhum negro ou negra podiaolhá-lo.

Eu nunca soube se fui vendida ou dada de presente. Porquemuitos negrinhos eram dados depresente,entreguesnumabandeja:eraumafestadecasamento,soavaumgolpedealdrabanaportaeentãoentregavamumnegrinhopelado,comumasfitonascoloridaspenduradasnabandejadeprata.Maseujáeracrescidaquandometrouxeramparacá,eaplantajátinhafaladoparamimeeujátinhatidoosonho.

Os amos me arrancaram um colar que eu tinha trazido comigo da plantação, um colargrandíssimo,desementesdepeônias.Aspeôniastêmduascaras,umacaravermelha,grande,eoutracaranegra,maisescondida.Aspeônias,comoasmáscarasdeElegguá,têmavidaetêmamorte.Ocolar pertencia a SantaBárbara, era tão lindo, tinha sido presente domoreno velho que tocava otambor no bembê do engenho. Ele dizia: “Eu toco quandominhamão coça”.Dizia: “Meu tamboracreditaemmim,acreditaemtudo, tudo.Meutamboracreditaemmim,mesmoquandoeuminto”.Eletocavaotambore,quandoacerimôniaestavaboa,amúsicasaíadotamboresemetianoscorposdosbailarinoseentãoamúsicanasciadoscorposdosbailarinos.Aovelhoeuconteimeusonhoetambémaspalavrasdaplantaefoielequemmedissequeeunãoiamorrersemveroesperado.Medeuocolarparaquecontasseosanos.Foiesseocolarquemearrancaram.Dequalquermaneira,aspeôniasnãoteriamdadoparacontarquaseumséculo.

Avezemqueeudescobriaplanta,lánoengenho,elaestavapequenininha,etocaramosinoeeutivedeiremboracorrendo.Todosnósconhecíamososinodecor,osgrandeseospequenos.Porqueantesnãohaviamáquinas.Nemhaviacarvão.Osnegrospequenoscomcestasgrandeseosnegrosgrandes com cestas enormes fazíamos umas montanhas de bagaço e passávamos o dia inteiroregandoobagaçoparaque secasse e ardessebem.As carretas levavamobagaço eo jogavamnafornalha para que desse fogo emoesse a cana.Osmachos trabalhavammais que nós, as fêmeas.Desde criança, os machos já serviam para guiar os bois das carretas. Havia uma balança muitogrande,grandecomoestacasa,eaíentravamepesavamasarrobasdecana.Quandotocavamosino,eraprecisochegar.Senão,eram25chicotadasnascostas,comachibatadecourocru.Paracastigarasgrávidasabriamumburacoeasdeitavamcomoventredentrodesseburaco.DepoisdochicotepintavamascostasdelascomtinturadaFrança.Oamoqueriatodososanosumnegrinho.Oudois.Sesaíamdois,melhor.

Tocava o sino e omaioral nos contava. Os negros grandes estavammuito vigiados, porque

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fugiam.Ocapataztraziacachorroseossoltavanascovasdosíndios,ondeosnegrosseescondiam.Depois,batiamnelescomcourocruoucortavamumaorelha.

Aplantinha estavanomeiodeumaclareira eparavê-la erapreciso atravessaromatagal.Euvoltei. Morria de medo, mas no dia seguinte voltei. Sozinha. Sentei numa rocha e contemplei aplantinha.Oarestavaclaríssimo;quandoosolsaía,jánosencontravatrabalhando.Deumdiaparaooutro, a planta tinha crescido. Tinha todos os ramos cheios de botões com pontinhas amarelas,inchadas,comosefossemarrebentar,eessediaeufazia12anosesentiaumcalorestranho,quenãoera de fome, dentro do corpo. Não respondi nada, mas eu estava quieta e mesmo assim estavacaminhando.Desdeaqueledia,tenhoessepoderdecaminharquandoquerosemmexerumpé.Eessanoitefiqueidormindonobarracãoeentãodemeucorpobrotaramfolhasecaracóis.

Entãoeusabia.TantosanosquepassaramdesdeostemposdaEspanhaeninguémsabia,maseusim.Eusabiaqueeleiachegar.Fiqueiquaseumséculoesperandoesabendo.Euestavaesperandoporelemesmosemconhecê-lo.Sabiaquefaltavaumequeiachegarparasalvar-nostodos.

O dia em que ele chegou, eu estava vestida de branco, um vestido comprido. Só gosto devestidos longos: achomaismajestoso. Eu ia caminhando e as pessoas comentavam: “Olha, olha”.Todomundodizia:“Lávai”.Elechegoudaserracomumabarbanegraepombasnosombros.Antestinhamchegadomuitoshomens,comcabeloscompridosebarbascomoasdosprofetasedisparavamtirosaoar.Euovichegandoeparamimnãofoinenhumespanto.

Agorapensonaplantaenãoseioqueterásidodela.Devetercontinuadoacrescer,emalgumlugar.Umavezvolteiparabuscá-la,masnãoaencontrei.Eutinhaentendidotudoqueelemedissera.Masnãoseisedepoiselefoiumflamboyant,quetemessasfloresqueseincendeiam.Ouumcupey,quetemfolhasparamandarrecados,queagenteescrevecomumpauzinhoenãoseapagam.Ouumaguásima,dessasquesãoboasparadarsombraeparaenforcar.

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BANDEIRAS

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ASFONTES

Você podia ter ficado longe e sem correr riscos. Mas voltou. Entrou sem bigodes, com oscabelostingidosecortadoscurtoseóculosdementiraeumnomequalquer.Tinhamsepassadodoislongosanos.Vocêpôdecaminharpelasruasdacidade,emborapoucoecomcuidado,eocoraçãopareciadarmurrosnopeitoeacidadereconheciavocêemsegredoeoaceitava.Evocêmedisse,com voz de touro, enquanto mordia uma maçã: “Tinha que voltar. Não se pode ficar sentado naprópriasegurançacomosefosseamaiorbundadomundo”.Vocêestavamuitonervosoequeriarirenãoconseguia.

Pouco depois veio o verão, você mandou um recado, nos encontramos para tomar cervejagelada. Você falou na frente de um exército de garrafas vazias. Você tinha podido mexer-se umpouco,quasenada,mastinhasidosuficiente:suficienteparaquevocêsentisseocheirodafúrianosbairros,acidadetinhaosdentesapertados:“Sedemoroumanoamais,sóencontrocinzas.Eaindanão existem condições objetivas? Tem uns caras-de-pau... Você quer contradições maissuperantagônicas?Daquiapoucoaspessoasvãobrigaratépelocapimquecrescenascalçadas”.

Asmoscaspasseavam,lentas,peloarpegajoso.–Essadesgraçatodavemgrávida–vocêdisse.Bebeuacervejadeumgolesóelimpouaespumadabocacomascostasdamão.

Não quero dizer que seja tão fácil como soprar garrafas. Já sei que a fome também produzfaquires.Vocêsomamisériaemaismisériaeàsvezeso resultadoéapenasmaismiséria. Jásei,agentetemquerespeitararealidade.Foidifícilaprenderisso.Emaisdifícilfoiaprenderqueelanãotemnenhummotivoparanosrespeitar.E,setivermosdenosarrebentar,asoluçãoéarrebentar-seepronto,nãoé?Foidifícilaprenderisso.

Umarúmidoequentepesavasobreasruas.Cedooutardechoveria,teriaquechover,derepenteestourariamosventresdasnuvensparidorasdetormentas.Vocêdisse:

–Serácertoquenofundosomoscristãosapressados?Baixarocéucomasmãos.Nóstambémtrazemosaboanotícia.Oreinodosjustosedoslivres...Juanteriagostadodaidéia.Querodizer,seestivessevivo.

Acerveja estavadensa, a espumaeraumcreme frio, era sentidanaboca enagarganta enastripas.“Ascoisassãofáceis–vocêdisse–,estãomaisclaras.”Eemseguidavocêdisse:“Masserãomaisdifíceisparamim,agora.Jáestãosendo,sabe?”Eemseguida:

–Foimuitoduroparamimvir,sabe?Vocêestavasentado,ascostascontraaparede.–Porqueagoratenhomulher.Vocênuncadavaascostasaninguém.–Nemmesmopodemos nos escrever.Nãomequeixo.É umpreço que se paga e está beme

aconteceamuitosoutros.Vocêfalavacomosolhosfixosnaportadobar,estavatenso,nãomovianemumúnicomúsculo:–Quemsabesevouvê-ladenovo.

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E,emseguida,olhandoparaapalmadamãoaberta:–Sãoosriscosdaprofissão,comodiziaumsamuraiamigo.Na janela, ondulava um bando de gaivotas. As gaivotas se precipitaram sobre o porto; um

alvoroçobrancoentremastrosefumaçaevocêdizia:“Eutinhaconseguidooqueprocuravaenãomeanimavaa lhedizer.Nuncalhedisse.Vejasó.Devemserproblemasdecaráter.Outalvez tenhasentidoquenãotinhaessedireito.Seilá.Éumadesgraça.Ounemisso”.

Calculouaspalavras:–Jáseique,senãotivessevoltado,teriamesentidoumtraidor.Asgaivotaslevantaramvôomaisalémdasnuvensqueestavam,escurasdechuva,nocéu.–Ejásei,também,porquesoube,porqueeunãosabia,quenãoestamosbrigandoapenasporum

montãodecoisasmuitograndesemuitonobres.Nãoéqueeuqueiranadaparamim.Não.Émuitomais simples. E veja como foi besta o tempo que demorei para saber.Anos.Anos sem saber quetambémsepodiaestarnissopelosorrisotristedeumamulherepelacinturalivredepistolas.

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AINICIAÇÃO

Fernandotinhaforçadoa janelinhacomachavedefendaeabriraaportadoRenault.Depois,apagara a luz vermelha do freio e ligara o motor com um fio de arame. Com fita isolante eesparadrapo,pedacinhosnegrosepedacinhosbrancos,Panchomudaraosnúmerosdachapa:ocincoviroutrês,ooitovirouseis,oseisvirounove.

OventoempurravaasondasviolentamentecontraocaisemultiplicavaoruídodamaréaltaportodaaCidadeVelha.Uivouasirenadeumbarco;poralgunssegundos,vocêsficaramparalisadosecomosnervosà flordapele.OGatoRomeroolhouorelógio.Eramduasemeiadamanhã–emponto.

Vocênãotinhacomidonadadesdeomeio-diaesentiaborboletasnoestômago.OGatoexplicaraqueémelhorcomabarrigavazia,equeconvémtambémesvaziarosintestinos,porquepodeentrarchumbo,evocêsabe...Ovento,ventodejaneiro,sopravaquente,comosaídodabocadeumforno,etodavia um suor gelado grudava a camisa em seu corpo.A sonolência paralisava sua língua e osbraços e as pernas,mas não era sonolência de sono.A boca tinha ficado seca, e você sentia umamolezatensa,umadoçuracarregadadeeletricidade.DoespelinhodoRenaultpendiaumdiabinhodearame,quedançavacomotridentenamão.

Depois,vocênãoreconheceuaprópriavozquandoescutou-adizer:“Semexe,eeutequeimo”,deixandocaircomomarteladasumasílabaatrásdaoutra,nemseuprópriobraçoquandoafundouocanodaBerettanopescoçodoguarda,nemsuasprópriaspernasquandoforamcapazesdesustentá-losemtremeredecorrersemperceberemqueumadelas,apernaesquerda, tinhaumfurocalibretrintaeoitoqueatravessavaomúsculoejorravasangue.Vocêfoioúltimoasair,esvazioutrêspentesdebalasantesdesemeternoautomóvelemmovimentoeacadacurvatudocaíaelevantavaetornavaacairealevantar,ospneusmordiamassarjetas,ficavamatrásasfileirasdeárvoreseascarasdosedifícioseosbrilhosdos faróis;arrastadospelovento,ospedaçosdomundoseatropelavameseconfundiamevoavamemrajadasescuras.Esóentão,quandovocêficouenroladocomoumnovelo,arquejandonobancodetrás,descobriu,extenuadoesemassombro,queaprimeiravezdaviolênciaécomoaprimeiravezemquesefazoamor.

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ONDEELAESTAVAACONTECIAOVERÃO

Ondeelaestavaaconteciaoverão.Pensaquesoampassosnaescadaepregaascostascontraaparede.Prendearespiração:espera

quatro golpes espaçados na porta ou uma rajada de tiros. Passam os segundos, tic-tac, tic-tac,tracatrac,enquantosuacamisaazul-claroseescurecenasaxilaseasplacasdeplásticodurodocabodoColt45vãoimprimindomarcas,apressão,contraapalmaúmidadesuamão.

Emseguida suspira, comalívio, edeixa-se cair emumacadeira.Atira apistolanamesa e seaproximadela, lento,comoquemseaproximadeumbicho:apalpa,acaricia,pega,confirmaqueapistolapesamenosqueumquiloequeassetebalasdormem,limpaseordenadas,nopente.

Nãopensanarevolução,emboraachequedeveria.Investigaasmarcasdofrionapeleeriçada.Nãopensanoqueserádelesemcigarros,essepânico,nempensaquetampoucosobroucomidaparacontinuaresperando,nemnoquefará.Seocercassem,nãopoderiaescaparpelostelhadosnempornenhumporãocomlongostúneisecorredores;estálongedoúltimoandar,elongedoandartérreo.

Esteéoúltimocigarroquesobrou.Fumacomumapressaqueseriainexplicável,tragadaapóstragada,senãofossepelaurgênciaquesenteeminundardefumaçamornaocorpointeiro,dacabeçaaosdedosintumescidosdospés.

Querialembrar-sedofilho,masofilhoéumamanchabranca,semfeições,nofundodoslongoscorredoresdamemória.Ofilhojátinhatrêsanosquandoviuopaipelaprimeiravez.“Queméestesenhor?”,perguntou,eelenãoseanimouadizernadaeosoutrostambémnãodisseramnada,porqueestarausente–jásesabe–éestarmorto.

Está encurralado, agora, entre quatro paredesmofadas, e pela janela entreaberta só se vê umpedaço de outromuro com sua baba de umidade.O ar fede a fumaça e a comida fermentada.Háquantosdiasnãovêninguém?Dáumabraçoemseuprópriocorpo,agora,envolvidonocobertorúmido, tremendo por culpa do frio e também, embora ache errado, por culpa do medo. Tinhaaprendido,temposatrás,asermaisfortequecoisastãofortescomoanecessidadedefumareomedodemorrer.

Olhaparaopaletóeagravata,dependuradosnumpregonafrentedeseusolhos,eolhaaparede,gastapelosanosepelodescuido,masqueaindanãofoi trituradapelasbalas.Olhaaprópriamão,aindaviva.

Olhaaesferográficaentreosdedos,anecessidadedeescreveralgumacoisa,opapelembranco,a impotência de escrever coisa nenhuma, a tampa da canetamordida por alguém que se chamavaLúcia.(Achuvasoavacomoumgalopecontínuodecavalosquefaziamoamoratéseremrecolhidosporumacolheronaedepoissentiamdoresnosossosdurante trêsdias.Lúciaesperava,apoiadanotroncodeumaacácia,commeiasmarronsatéosjoelhos,meiasdemeninadecolégio,eumcolardefios coloridos cheios de nós, para lembrar-se das coisas. Lúcia se afastava, correndo, na neblina.Lúciasedesculpava:“Eunãochoronunca.Porquesoudesidratada.Nuncatomoágua”.)

Ohomemdeslizaalínguaportrásdosdentesressecadosepensanaqueleestadodegraça,comLúcia,maiscontagiosaquequalquerdoença,enaquelamaneirasecretadesaberdosacontecimentosaindanãoacontecidos:aquelacapacidadequetinhampararecordardeantemãoashoraseosdiasque

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iamchegar,quandoestavamjuntoseeraminvencíveis.

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CONTOUMCONTODEBABALU

Umabrumafresca,oanúnciodamadrugada,vai-sedesprendendodaterraevaga,cinzenta,peloar.Elapassou todaanoitecomosolhosabertos.Finalmente saiudoúnico lençol, tão suavementecomofoipossível;acamauivou,comodecostume,comtodaessagritadevelha loucadasmolasarrebentadas,maselenãoacordou.Éestranhoqueelecontinuedormindo.Realmentemuitoestranhoque consiga. Ela olhou para ele, tomando distância; fez um longo esforço para senti-lo longe oualheioounãosenti-lo.Oarestavaumpoucofrioeelaenvolveu-senacamisadele,queencontroutateando,caídajuntoaumadasabsurdaspatasdebronze,patascomogarras,dacama.Nestecasarãoabandonadopelosdonos, as tábuasapodrecidas sãoarmadilhasmortaisnochãoou lançamgolpessúbitos no rosto dos incautos; os ratos leram e esvaziaram toda uma biblioteca de livrosamarelecidos; os generais e coronéis, pintados a óleo com monóculos, bigodões e medalhas,parecem ainda acreditar em sua própria imortalidade, impávidos apesar das manchas de bolor eumidadequeosdeixaramaleijadosoumanetasouleprososejánãorestanenhumadasmoldurasdebronzeaoredordosquadrosantigos.

Elanuncamaispisará,esabedisso,estelugarondefoifeliz.Esteéoúnicotipodeperigoquerealmenteteme:estaráproibidoolhar,proibidoretrocederatéestetempoqueagoraestáterminandoe até esta armação de uma fazenda em ruínas. Começou a caminhar, descalça, pelo terraço, atéaborrecer-sedospassosdepreso,cinco,seis,idaevolta,eficousentadasobreamolduradajanelaaberta. No dormitório há uma poltrona demonarca, com a heráldica ainda visível no encosto decaioba,masnãotemassento;sobramumaouduasmolassoltas,comodeumacaixadesurpresassempalhaço.

Elaapóiaacabeça,suavemente,contraomarcodemadeiradajanela.Olhaemdireçãoaoleste,lá em cima, em direção aos arvoredos que se erguem no horizonte de montanhas. O bosque seconfunde ainda com o negror desafiante da noite; logo as primeiras estrias do sol partirão assombrasempedaçoseanaturezarecobrarásuasformaseseuslimites.Ah,comogostariadedeixar-seganharpelapulsaçãodaterra,lenta,lenta.Esfregaosolhos,acendeocigarroquetemhátemposapertadoentreosdentes:ah,sepudesse,opulsardaterraquedorme,semansiedadesnemruídos,sepudesseflutuar,fazersuaaprofundarespiraçãodaterra.

Elecontinuadormindo.Éestranhoquedurmatanto.Nãoseconseguenuncadormirmaisdoquealgumashoras,eatéissoédifícil,porculpadomalditozumbidoquenãoseapaganuncanocentrodesuacabeça.Acamisadele,abertasobreospeitosdela,pareceumcamisolãodefantasma;chegaatéseusjoelhos,ouquase.Oventosopra,emrajadasleves,eentãoacamisaviraveladebarquinho,eapeledelaseestremecepeloroçardotecido:acamisabrancadele,quetemocheirodeleeaformadocorpodele.Elapensaquepediráquedeixe a camisa.Não,umpresentenão,nãoqueroquemedêcomopresente;quero tê-la,masquecontinuesendosua.Elenãoavê,nãovênada,nemaomenossabequepelaprimeiravezdesdeaquelavezestáconseguindodormirlongamente:dormir,quefesta,parecementira.

Eleabre,finalmente,osolhos,parafechá-losemseguida.Pisca,nãoqueracreditar:desapareceu

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essafúriadeabelhasnocrânio.Aluzrecortaocorpodelacontraovãodajanelaeacendeumaauradouradaquefazcomquetudofiquemaisbaixo,aolongodoperfildeseucorpo.Estátodaluminosa,doqueixoerguidoedolongopescoçoemarcoatéosjoelhosondedescansaamãocomocigarroabandonadoentreosdedos.Osjasminserguem-seaoladodoterraço.Acamisaesvoaça;osjasminsbalançamlevemente.Eleescutaosilêncio,senteseugosto.Elaviraacabeça,olha-osemsorrir.Umasuaverajadadeventoempurraseucabelonegro.Écomoseestivessevendo-aagalope,aprimeiravezqueaviu,agalope lento,comoscabelosnegros tambémgalopandoeo rostoquevirouparaolhá-lo,semsusto,balançando-seaoritmodocavaloqueelenãovia,porcimadaspontasdelançaaindaverdesdomilho.Elesim,sorri.Estiverapresopelosom;recebeosilênciocomoaliberdade.Devoracomosolhosestaimagemdela,brilhantedeluzdourada,paraimprimiresteresplendorporcimadetodasasoutras imagensdamemória:esta janela,estabocadodia.Respirafundo,deixa-seinvadirpelointensoaromadosjasmins.Abreabocamaselaseadiantae,semolharparaele,diz:

–Jáseiquevocêvaiembora.Seiquevocêvaihoje,agora.Eleseassusta.Tinhaesquecido.É incrível.Avozbaixa,quaserouca,damulhersoaanotícia,

nãoarecriminação.Mastinharealmenteseesquecido?Estamulher,estamenina:deslizavanelacomoporumaveia.Mordeoslábios:

–Sabe?Nãosintonemumpoucoatorturadozumbido.Iadizerissoparavocê.Nãosintonada.Entendeoqueissoquerdizer?Agorapossopensar,possofalar,posso...écomoumpresente!

Estavatãoacostumado.Sempredespertavaacossadoporesserumorintenso,insuportável.Nosprimeirostemposapertavaosouvidoscomasmãos,gritava.Tinhagritadonoprimeirodia,quandodespertou naquela rede, com o corpo desfeito e uma dor como se todos os nervos estivessem àmostra.Depoissoubequeestavadebaixodeumacabanadefolhasdepalmeira,longedetudo,asalvodetudo,equeaquelesrostosnebulosospertenciamàboagentequeotinharecolhido,meiomorto,noaterro.Foramelesqueocuraram.Durantemaisdedoismeses,deram-lhedebeber,aáguaemgotas,ajudaram-noamover-seaospoucos,cobriramsuapele,deacordocomazonaecomaferida,comalgas,ungüentoseóleosvegetais.Desapareceramaschagas,osossosserecompuseram,eosdentes,quedançavamnaboca, recobraramsua firmeza.Mas ficouomancaraocaminhar, lembrançasdasporradas que os soldados lhe haviam dado às toneladas, e ficou o zumbido. O zumbido oacompanhava dia e noite, às vezes muito intenso, enlouquecedor, às vezes distante e quaseimperceptível, como se necessitasse dele para não esquecer as sessões de dias e noites deinterrogatórios,osfiosamarradosàsorelhaseaostestículosoumetidosatéofundodosouvidosedonarizedorabo,asmordidasdaeletricidadearrancando-lheasvíscerasaospedaçosacadagolpenaalavancadabateriamanejadaporumoficialdebigodesvermelhos.

Comasmãosnanuca,elediz:–Talveznãosejamaisqueumatrégua,nãosei.Masmesintotãobem.Tãodiferente.Ediz:–Sonheicomumpássarogigante,quetinhaumacidadedentro.Opássarosubiaesubia...Elamoveacabeça,osolhostristes,abocacontente.Tantascoisasquequeriadizer.–Vocêvaificardoente,aínajanela.Dizer-lhe: desdeque conheçovocê, todos dizemque estoumudada.Dizer-lhe: quero ter você

comotenhominhasmãoseminhaspernas.Dizer-lhe:jáseiqueparavocêtambémserádifícil.Maseunãoseioquequeronemparaquenasci,paraquefuifeita,porque....

Esimplesmentecomprova,semomenordramatismo:–Eujásabiaquevocêiaembora.Elefranzeocenho,nãodiznada.Olhaparaela.Querialambê-la,comoumsorvete.Nuncahavia

sentido, com ninguém, o que sente com ela. Seria possível, agora, voltar a ser nada mais que ametade de alguma coisa? Será necessário arrepender-se de ter sido feliz?Ela, que nem aomenos

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conheceseuverdadeironome.–Voutrazercafé.–Sobrou?–Umpouco.–Bom.Escutaobreveruídodecozinha,eemseguidaelaregressa,precedidapeloaromadocaféeos

rangidos do chão, com duas xícaras fumegantes nas mãos. Sentam-se frente a frente, as pernascruzadas,emcimadacama.Ela,quetalvezpensequeseucrâniovibraporquevibraepronto.Ela,quenemsabequalfoiolugarondeelenasceu.Ela,quenãofazperguntas.Queaceitaoqueeledisser:“Venhoda lua”.Quefazcaradequemacredita,quandoeleconta:“Dalua,comoaqueles índiosdeZulia.Ládecimaeuviaaterra,osvalesverdes,asárvorescheiasdefrutas,umamulherigualavocê.Eficavatentadoequeriavir.Entãomedespedideminhagenteemependureiporumcipócomprido,equandoeuestavaquasechegandonaterraocipóarrebentou.Éporissoquenãopossovoltar,eépor isso que fiquei assim, manco, com esta perna sempre atrasada, sempre atrás: por causa dotombo”.Ela,quediz:“Mago”.

–Contaumcontoparamim,Mago.

Agoraodiaavançacomoumtremdesesperado.Époucoo tempoquesobra.Semanapassadarecebeuanotícia.Soube,alémdisso,doscompanheirosmortos.Soube,emborajáosoubesseantes,queadorsemultiplicaeaalegrianão.Mário.TambémchamadoJacaré.Trateidenãolembrar-medelenunca,porquenãoqueriatrazer-lhemásorte.Eparaqueserviuisso?Dequevaleu?

Olha para o relógio e ela vê quando ele olha o relógio: olha para ele com olhos opacos,apertando os dentes. Mudo, com a xícara de café vazia entre os dedos, ele escuta os minutoscaminhando,senteopassarimplacáveldamanhãrumoaomeio-dia.

Nãoseanimaa tocá-la,nemadizer-lhenada.Oscorposnusnemaomenosseroçam.Acadapequeno movimento, a cama protesta, range, geme. De qualquer maneira, se ela conhecesse averdadeirahistóriaoua loucuradosprotestos, ascoisasmudariam?Como?Jánãohá tempoparanada. Poderia dizer-lhe: “Não é uma vingança pessoal, entende? Esta raiva coincide com anecessidadedevingançademilhõesdehomens,emboraessavingançanão tenhaaindadespertado.Entende?”Poderia explicar-lhequeos companheiros caídos aparecemna sua frenteo tempo todo.Poderiadizer-lhequeéprecisonadarparanãoseafogar,equenãoexisteoutramaneiradefazê-lonemdeexplicá-lo.Voltoalutarcontraacorrente,poderiadizerisso,emboranãovejaaindaacosta.Emboranunca,nuncavejaacosta.Háanosestounisso,edevoaissotodososanosquetenhopelafrente.Oudizer-lhequalfoimeunome,comoqualeunasci,dar-lheumsinaldeidentidadeanterioratantos passaportes falsos e a tantas fronteiras atravessadas?Para quê?Vocêmesma contou-mequeentreos índiosdoAltoOrinocoéproibidomencionarosmortos:elessim,sãosábios,vocêdisse.Nãovaleapena.Nempediravocêquemeespere,emboramorradevontadedepedir,voltareiparabuscarvocê,nãodeixedemeesperar,nunca,logo,quando:voltareie...chegarãooutroshomens,elaosamará:estacertezapassaporsuacabeçacomoumasombradeasadepássarogigante,omesmocomoqualhaviasonhado.Passaporsuacabeçaedói.Calhorda–seacusa.Sente-seinútil.Tudosefaz tãodifícil. Irembora,éumdeverouumfurto?Pensa:seráduropartireduroviversemvocê:matarvocênamemória,paraquenãodoa.Poderei?Eela,comosetivesseescutado,pensaquesenteódiodeleporqueelepoderá.

Ele percorre com os lábios o fio de umidade que atravessa a face dela. Seqüestra seu dedomindinho,morde, lambeepropõe:“Trocoodedoporumahistóriaquemecontaramumavez,emumailha”.

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Comonasmileumanoites,pensa.Trocarumahistóriaporumnovodiadevida.Umnovodiadevidasemaquelesruídosinsuportáveisnacabeça.Ummilagre.QuerdizerqueChaplintinharazão,quandodiziaqueosilêncioéoourodospobres.Estousalvo?Sedurasse...

–Terminabem?–Vocêvaiver.–Senãoterminarbem,nãoconte.–VocêconheceBabalu?EOlofi?Olofiéodeusmaisimportantedetodos.Fezomundocomas

mãos. Fez tambémBabalu, Babalu-ayé, o negro lindo e forte de quem todas asmulheres gostam.Deus lhe disse: “Você pode fazer o amor quando quiser, Babalu”. E Babalu ficoumuito contente.Dava pulos de alegria.Mas também lhe disse: “Qualquer dia,menos nas sextas-feiras.Nas sextas-feiras,nada”.Babaludesobedeceu-odepressa.EentãoDeusficoufurioso.Paracastigá-lo,condenou-oàlepra.IsolaramBabalueDeuslhedisse:“Vocêmerece”.EopobreBabalusequeixavaeDeusnãooescutava,eocorpodeBabalúfoicaindo,pedaçoapedaço.

–Nãogostodessahistória.Nãocontinue.–Porquê?–Souumaboba.–Não,não.Vocêjávaiver.PorqueentãochegouOxumaoreinodeOlofi.Oxum,vocêconhece?

Não?Éadeusadasensualidadeedaságuasdoces.Éumamulatapequeninhaetemoscabelosnegros,onduladosecompridos,comovocê.Usaumvestidoamarelo,comooseu,egostadecomerfruta,comovocê.Tambémgostadetocartamboretomarcervejaerumecomerbatata-doce.

–Proibido,comohoje.–Quê?–Hojeésexta-feira.Nãotinhapercebido?Eleri,eelatambémri.Agorasesentemmelhor.–Então,OxumchegouaoreinodeOlofiparasalvarBabaludalepra.Eladançouanoiteinteira

emvolta da casa deDeus, e enquanto dançava ia regando emvolta da casa comos sumos de seucorpo.QuandoDeussaiu,bemcedinho,provouaquelemelesedeliciou.SãotãosaborososossumosdeOxum!Deuslambeuochãoatéquenãoficounenhumagota.Equismais,mais.Quemtrouxeessemel tãodelicioso?“Essemelémeu”,disseOxum.Edisseque,sequisessemais, teriaqueperdoarBabalu.Deussenegou.De jeitonenhum,disse.Elefoicastigadoporquemedesobedeceu.EOxumdisse: “Babalu foi castigadoporquegostavamuitodestemeldemulher.E agoravocê,Deus, vocêtambémquerdessemel.Vocêtambémquercontinuarcomendoessemel”.EntãoDeuscompreendeutudo.Creioquefoiaúnicavezquecompreendeutudo.ElivrouBabaludesuapena.Devolveu-lheocorpoea saúde.Mas impôs, claro,umacondição.Babalucurou-seda lepramas ficouobrigadoalevartodososdiasacarretadosmortosparaocemitério.Quemforaocemitériodemanhãvaivê-locomacarreta.

–Oxumdevetermuitospoderes–dizela.–Todosospoderes.Nãoexistenenhumamulherque...–Elaésuaamiga?–Muitomaisqueisso.Sabedeumacoisa?QuandoodeusOloficriouasoutrasdivindades,deu

acadaumaumlápiscomumaborrachanaponta,paraescreverdeumladoeapagardooutro.OlápisqueeledeuaOxumestavaincompleto.Oqueelaescrevenãosepodeapagar.Mesmoqueelaqueira,não pode.Oque ela faz não é possível esquecer.Nunca se pode esquecer.Oque ela faz, faz parasempre.

Escutamastossesdomotordeumvelhoautomóvel,quepárajuntoaoportãodacasa.Eeladiz:

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–Agora,vocêvaiembora.Eelediz:–Agora,euvouembora.

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ACIDADECOMOUMTIGRE

Tinhamchegadocedo,depoisdecaminharalgumasquadras,aoazar,debaixodachuvinhafinaquefaziacócegasemseusnarizes.

DaveaspirouseuCamel sem filtro, sentiu a fumaça invadindo, cálida, seuspulmões.VoltouapendurarsuamãodireitanoencostodacadeiradeJimmyepasseouoolhar,semvontade,pelolugar.Astirasdeplásticopenduradascomobabacoloridadoforrodetaquaraseosgordosfrutosdepapelirradiavamumaluzvermelhaefraca:emvezdeatenuaradesolaçãodograndeespaçoabertoondeninguém dançava, os resplendoresmortiços faziammais agudo o desamparo geral. As vibraçõescom ritmo de fox-trot da orquestra permanente do El Chiltepe – marimbas, rostos ossudos –pareciamprocurarumlugarenãoencontrá-loentreasmesasvaziasdeclienteseapistadeserta.

No extremo oposto, um velho se deixava acariciar: estava a quilômetros de distância. DavesentiaexplodiraoseuladoarisadadeTom,sentiaqueTombatiaemseujoelhocomamão,etudopareciaserdeoutroplaneta.Mergulhadonaneblinadecoresdobareemsuaprópriatristeza,Daveergueuosombros.Amassouocigarromeiofumadosobreamesinhadeplástico.Pensouqueseriamelhor estar longe dali,metido até os cabelos namissãomais perigosa de todas, ou talvez fossemelhorestaremnenhumaparte,comninguém.MasseráqueDavetinhanenhumaparteondeestar?Umdia,alguémtinhadito:oquenosmoveéumsecretodesejodemorte.

Nem bem o pacote da velha cai no chão, um pacote embrulhado em jornais que cai junto àsarjeta, ela sente um choque.Às suas costas, uma voz gritou “alto”.A velha não atina em virar acabeçaeficacomasmãosparalisadasnaatitudedoabraço.Nãosenteachuvafracasaltandoemseucorpoedeslizando,insidiosa,sobsuasroupas,masescutaospassosdosoldadodeguardaquecruzaarua,vindodaesquinaoposta.

O soldado afasta-a com a arma e ela escorrega e seus ossos vão dar no chão molhado. Abaionetadestripaopacote.Restosdecomida,trapos,lixo.

Avelhaselevantacomopodeesemeteemcasa;fechaaportacomatrancaantesdecomeçarase queixar. Não encontra quem a escute gemer pela humilhada sorte dos pobres. A manta deSebastian,frouxacomoumapelesemcouro,estáabandonada,sozinha,sobreaesteiraestendidanochão,aoladodesuaprópriaesteira.EelagemeaiJesusCristo,elemeabandonououtravez,gemeai,puríssimaVirgem,quantadesgraça,veja,podemmatá-lo,Deusmeu,cuidedele,enquantotrememasaltasluzesdasvelas,umfilhomeu,meufilhinho,oúnico,aiJesusCristo,eosbrilhosavermelhadoslambem seu rosto,que não penso emoutra coisa que nessa sepultura,AveMaria puríssima, estãocavandoessa sepultura, ai JesusCristodeminhasangústias,meu filhinho,meuúnico filho, e umacortinadelágrimasseparaosolhosdavelhadafileiradecasasvizinhas,todasiguaisentresi,chatas,gastas,equepodemnadamaisqueseremadivinhadasnaluzenevoadaquealua,prisioneiradeumanuvem,projetasobreacidade,ainda.

EnquantoescalaapequenaencostanoCerrodelCarmen,Sebastianpercebequejánãochoveedobraojornalcomquevinhacobrindoacabeça.Notopo,aigrejanãoparece,comonastardes,um

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brinquedoquesaltoudacaixadesurpresasdeummeninogigante.Asnuvensseretorcemcontraanegruradocéuedaigrejaemanaumresplendorbrancoegelado.

Sebastiansenta-senoparedão,comoolharfixo,atravésdoarvoredo,naruadesertaelevementeiluminada que abraça o morro. A brisa, que sopra suavemente, desperta rumores na folhagem.Sebastian torna a olhar o relógio, comprova que só passaram quatro minutos desde que chegou,pensaquepodeter-seenganado:respondeasimesmoquenão,jápassouahoradoencontro,passouhácincominutos,eSebastiantornaadescobrir,comoemoutrasvezes,queasuspeitadeumerronohorárioémelhorqueoutrassuspeitas.Háumasemana,MedioLitroapareceuaopédeumbarranco,comumpedaçodacaradevoradopelasformigas.

Osvagalumessemeiamchispasvoadorasnaescuridão.Assombrassemovem,maisnegrasqueanoite.Sebastianapuraoouvido.Não sedistingueo ruídodepassos entreo ciciodas folhas eocantodascigarras.Asnoitessemluzdainfâncianosul.OCadejotemcarademorcego,orelhasdecoelho,cascosdebode, roubameninasde trançascompridasedánósnascrinasdoscavalos:seusolhosdebrasaeseucheirodeenxofreguiamoscaminhantesbêbados.Elesorri.Seráqueodiaboprotegeosrevolucionários?Coçaaorelha.MarcoAntonioacredita.EjánãohámaisMarcoAntonio.Toca os botões da camisa, um por um.Haviamoscas namorgue, amorte era uma tela de vidrocobrindo aspupilas deMarcoAntonio e até a roupa, durade sangue e todaperfurada, parecia termorridotambém.MarcoAntoniotiveracaradeíndioecorpodevulcão,umaquantidadeinumeráveldedentesnosorrisoededoslongosechatoscomoespátulas:tinhatidovinteanos:foiparadopelasbalasecontinuoutendoseusvinteanos.ComoAlberto.Albertoestendidocomaspernaseosbraçosabertos.Apolíciaamarrouemseutornozeloumcartãocomonomedeseudocumentofalso.Tinhafurosnassolasdossapatos.Baixouàfossacomnomedeoutro.

“Nenhum deles tem idade, agora. E eu, qual a minha idade? É mais velho um homem decinqüentaquevaimorrerdecâncerdaquiadezanos,ouumtipodevinte?Querodizer:seessetipodevinteanosvai sermortodentrodedezminutos.”Sebastian senteque sobre suascostasexisteopeso de um século. A seus pés, a cidade, silenciosa, negra, está esparsa. Algumas poucas luzesbrilham,láembaixo,comoolhosamarelos.Sebastianpregaascostascontraaparedefantasmagóricadaigreja.Temasmãosmuitoafundadasnosbolsoseorostoerguidocontraoventinhomolhadodanoite.

–Meu amigo está um pouco amargurado. São os nervos – disse Tom à menina. Ela sorriuporquenãoentendiainglês.

Tomtinhaidocomelaparaumamesaafastadaehaviainstaladoamoçasobreseusjoelhoscomomovimentodeumbraço–nãoprecisaradooutro.

Um senhor bêbado, flutuando dentro de um smoking, piscava os dois olhos e anunciava “OPoderdoAmor”,pelograndeConjuntoTrinidad,senhoresesenhoras,nestanoite inesquecível:osgorjeiosvoavam,nascidosdafileiradetabuinhasdasmarimbas,ondulavamnoarmornodefumaçadosalãoe,aoritmodasondas,desciamsobreaescassaplatéia.TomdeslizavaosdedosatravésdosbotõesdablusaapertadaeconfirmavaumadasmaisimportantesdiferençasentreoCaribeeaÁsia.AmoçadissequesechamavaDórisesedeixavabolinar;mas,paranãoroubar-lhesoprazerdevencerresistências,mexiaumpoucoocorpo,entreumarisadinhaeoutra.

–Dave.–Sim.Davepestanejou,comosetivessedormidoeagoradespertasseemoutracidade.Liquidoudeum

tragoorestodaáguageladacheirandoauísquequetinhaficadonofundodocopo.Acendeuoutrocigarro,pausadamente,edeixouunsdólaressobreamesa.DisseaJimmy:“Vamos”.

Tomalcançou-osantesquechegassemàsaída.PassouobraçoaoredordosombrosdeDave.

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Davedirigiuumolharopacoaodesertor.–Possopedirparavocêir?Nãoénadaalémdeumserviçoderotina.Ocara...bem,vocêsabe.À

uma,noPanAmBar.Ocaravaidarumjeito.Entregaamercadoriaimundaevocêdizquesábadoquevemeleverámaisdólaresdoquejamaishaviasonhado.Seainformaçãomerecer,claro.

Daveabriuacortina.Amúsicadiminuía,àssuascostas.Darua,chegavaumcheiroagradáveldeasfaltomolhado.Encaroucomalívioelástimaacidadeeanoite,emsilêncio.Atrás,avozdeTom,novamente.

–Dave.–Sim.–Vocêseincomoda?–Deir?–Querodizer:deeunãoir.Virou-separaorostocongestionadodeTom.–Bem–disse.–Émelhorvocêvoltar,Tom.–Oquevocêquerdizercomisso?–Quevocêdevevoltarparaasuagarotaeficarcomela.–Masoqueestáacontecendocomvocê,porra?Então,DavefezposedeboxeadoreTomdobrou-seagarrandoabarriga.Riu.

Duranteanoite,acidade,encolhidasobresimesma,nãoofereciaoutracoisaqueumsilênciocheioderancorefreqüentementerasgadopelosestampidoseosecosdaviolência.Quandochegasseamanhã,entrariamnelaasvozesgritandoElGráficoePrensaLibre,oferecendofrutasde todasascores e sucos tropicais, tortillas cheirando a gordura.Umperfume adocicado, penetrante, andariasolto, balançando no ar, junto aos lentos redemoinhos de pó quente. Se escutaria o alvoroço doscarrinhosdelixoeoestrépitodosônibusquebra-ossos;ocoloridodecaleidoscópiodasroupasdosíndiosdariademaneiratãointensaumaaparênciadealegria,queacreditarnelaseriaumatentação:deixar-seenganarpelotecnicolordeumcartão-postaltamanhogigante.Maslogoanoitecairiasobreoespetáculo,comoumacortinametálica.

DaveeJimmysubiram,lentos,anonaladeira.Seuspassosretumbavamnacalçadabrilhantedechuvaetransmitiamumavisoaosistemanervosodacidade.

OJicaquedirigesemdeixardeolharparatráspeloespelhinhoretrovisor.Atrintametros,vemoVolkswagen de Miguel Angel, com as mãos da Aliança para o Progresso pintadas nas portas.Sebastianpergunta:

–Vocêviu?Mário,vocêviuele?

OJicaqueémagroepeludocomoummorcego.Vãopelasextaavenida.Oautomóvelatravessabrilhosvermelhos,azuis,dourados;aindaexisteiluminaçãoemalgumaslojas;dentrodemeiahora,aspessoassairãodoscinemas.Aplatéiade“ODireitodeNascer”abandonaráasalacomosolhoschorosos: cada um irá diretamente para sua casa, sem alterar esse silêncio de funeral com que acidadepressente,noiteanoite,seuspróximosmortos.

–Vamosagoramesmo.Nãoélonge.O automóvel vira à esquerda antes de chegar aomercado; atrás, oVolkswagen faz amesma

coisa.De repente, uma luzbranca atravessaopára-brisas e cega a todos coma intensidadede calviva.OJicaqueoprimeo freioatéo fundoeasacudida fazcomquebatacomopeitonovolante.Reprimeatempooreflexodelevaramãoparabaixodaaxila:ali,nãotemagoraoutracoisaqueachagadeixadapelocoldre.Os trêspoliciais seaproximameSebastiansenteocoraçãochutandoopeitopordentro.Ocanocheiodefurinhosdeumametralhadoraentrapelajanela.Oautomóvelde

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Miguel Angel passa, lento, e continua seu caminho. Sebastian ordena a sua mão que tire osdocumentosdobolso.Amãoobedece.OJicaquebrinca:“Nãoédiadebatizado,compadre–diz–,grandinhosdojeitoqueosenhorvê”.Oguardaolhaosdocumentos,sorriedizquenãobatizemcomcachaça,queessassãocoisasdeDeus,eondemandacapitãonãomandamarinheiro.

Oautomóvelcomeçaaandarnovamenteeo sangue tornaacircularpelasveiasdeSebastian.Algumas quadras adiante,MiguelAngel espera empé, apoiado nomuro. Sebastian reconhece suapequena figurade longe: osóculosgrossos como fundodegarrafa, osdentesde coelho, a eternapastadecouronamãodireita.

–Jávi trêsplacasdequarentaedoisequarentae trêsmilporaquiperto–dizMiguelAngel.Melhorvoueuprimeiro.Subam,seajaneladomeioforiluminada.

Dave, homem de um único fósforo, fumava sem tréguas; se envolvia em densas nuvens defumaçacomoumaaranhaemsuateia.OfereceuoutroCamelaJimmy.

OPanAmericanBartinhapoltronasrealmenteconfortáveis,dessasquedãovontadededespejarocorpoeesquecero resto.Fazendocruzcomobalcão,alguémtocava,semnenhumavontade,BeCareful,it’smyheart.Sobreopiano,umajarragrandecomoumbarrildeixavaescorrerespumadecerveja.

Jimmyfaziacomentáriosbrevessobrequalquerassunto,primeiraspalavrasquemorriamsemresposta,eDaveolhavaumpontofixonoar.Ouísqueestavamuitofrioeligeiramenteácido,comose tivessesidodeixadonageladeiraantesdemisturá-locomogelo.Umhomembebiasozinhonobalcão,eumcasalseapertavanoextremomaisescurodobar.

–Quantotempoficaremosaqui,Dave?Davesacudiuacabeça:“Vocêpodeirquandoquiser”,disse.–Nãoestoucomsono.Querodizer:quantotempoestaremosnestepaís?–Sedependessedemim...–Jásei,mas...–Vocêestádeférias,nãoé?–Bem,atéagora,naverdade...–Oquê?–Nãoseimuitobemparaqueestamosaqui.–Járepeti issoatéofim.Vocêdeveriasaberdecor.Nossamissãoconsisteemtreinarnossos

aliados,darassessoriano...–Masconcretamente...–...KamaSutra:ascemposiçõesparamatar.Jimmysorriu.Daveolhou-ocomolhossemicerrados.–Bem,suponhoqueTompoderiaexplicarmelhor.Gritareensinaragritarquesomososmais

fortesesomososmelhores.Tomtemculhõeseestáprovandoissootempotodo,nãoémesmo?Elepoderia contar a quantidade de coisas que aprendeu no campo de batalha. Poderia dizer a você:“EstivenoVietnãdoisanos,trêsmeseseseisdias,dedicadoaonegóciodecaçarhomensematá-losquandoeranecessário (e, algumasvezes,quandonãoera).Trabalhei juntocomalgunsbons tipos.Desfruteiminhacotademulhereseprovavelmentebebimaisdoqueoestabelecidoemminhacotadebebidas. Aprendi a economizar os fundos públicos atirando vivos os presos, lá de cima, lá doshelicópteros.Aprendiausarorelhascomoamuletos”.

Davedeixoucairacinzadocigarro,pausadamente,eesvaziouseucopo.Nãoseouviamaisqueacordesdepianoeaconversadohomemsentadonobalcão,queprotestavacontraseuautomóvel.

Dave sorriu, mas os músculos de seu rosto continuavam contraídos e a boca endurecida.Murmurou:

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–Essehomemnãoacredita.–Quem?–perguntouJimmy,sementender.–Essehomem.Nãotemamenorvontadedetocar,mastocaassimmesmo.Emseguida,DavefaloudoVietnã.FalouefaloudoVietnã.EdoirmãoTri.Láfora,achuvacaíacomviolência.

O Jicaque fuma, de costas para os outros, na janela.Miguel Angel está sentado à direita deMário.Máriocolocaopentecomsuassetebalasnaquarentaecinco,ajustaosilenciadoreSebastianrecebeapistola,acariciaogatilho,opolegarbrincacomopontovermelhodatrava.OJicaquesorri,semvirar:najaneladafrentesurgeumvulto.

–Ponhaaroupa.Da pasta de Miguel Angel aparece um lenço negro, cuidadosamente dobrado e passado. Há

também ummissal e um rosário.O selo e a numeração da pistola foram limados.Mário diz quepassouvaselinanocano,masqueasbalastalvezsintamfaltadeumbanhodesol.Depoisdiz:

–OnomeéThomasVaughan.Éumboinaverde.Umassassino.VeiodoVietnã.Umlourodecabelos curtinhos e costas larguíssimas. Miguel Angel vai buscá-lo para você. Já está tudocombinado.

Davecontava:–Noscercaram.Nosagarraramcomosefôssemosratos.Choviambalasdetodososlados.Tri

estavaaomeuladocomosbraçosabertoseeuacheiqueestavamorto.Tambémachavaqueeuestavamorrendo.Océueramaisbonitoquenuncae,apesardisso,nessemomentodeixeideacreditaremDeus.NesseexatomomentoDeusfoiemboraparasempre.Quandoeumaisprecisavadele,nãoé?Éestranho.Soubederepentequetudomorreriacomigo.

Davesoprouumanuvemdefumaçaqueficouquieta,comosetivessesidoamestrada,naalturadeseusolhos.Opianistasumiu.

–Nãosentiamedo.Sentiauma insuportávelsensaçãodeperda.Descobripelaprimeiraveznavida,emcadaumdospêlosdacostadamão,aexcitaçãodosporos,viabesouroscirculandonaareiaeviaasbalas–entende?–euviaasbalaspicandoelevantandopóamilímetrosdaminhacaraemesentianu.

Dave falava com os olhos fixos no copo. Sua voz grave, gasta pelos cigarros e pela bebida,pareciaestarserevelandoumsegredo.

– Nos salvamos por engano – disse. – Fomos os únicos sobreviventes do grupo. E entãovoltamos e precisávamos convencer-nos de que estávamos vivos, antes de ir buscarmulheres ruaabaixo.Precisávamosfalarbemalto,escutarnossasvozesfortesdeprofissionais,depoisdetermosficadosussurrando tantosdias.Eenchernossasveiasdeálcool.E foioque fizemos.Passamosdaconta, já tinha acontecido outras vezes,mas desta vez Tri soltou a língua. Eu nunca tinha ouvidoninguém dizer aquelas coisas do nosso lado, compreende? Coisas que Tri dizia sobre seu paísocupado, ocupado por nós, e toda aquela corja de ladrões que era o governo. Depois, Tridesapareceu.Ficoutrancadoemseuquarto,esperandoapolíciamilitarcomumafacanamão.

Aspalavrastransmitiameletricidade.–Meapresentouàsuafamília.Comeceiasaircomairmã.Amulhermaisformidávelque...Atensãodavozaliviou,osnervosafrouxaram.Davenegoucomacabeça,comorespondendoa

elemesmo:–Nãotinhaoscabeloscordemel.Tinhaoscabelosmorenos.Oscabelosmorenoscompridose

brilhantes.Tinhasidopostaparaforadeseuemprego,nobarmaisluxuosodeSaigon.Houvesilêncio.Davefumava.Davecontinuou:

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–Visitava-os todososdias.Comia comelespeixe, arroz, aquelesmolhos.A família fezumapequenacerimôniaparameaceitarcomoirmão.

Jimmy tinhapedidomaisuísque.Tinhaosolhosvidrados.Daveencheuabocacomumtragogeladoemanteve-oatéquepassou-lheoarrepionosdentes.Davetinhaficadoquietonovamente,asmãosafundadasnosbolsos,asrugasnatesta,osolhosfechados.Jimmytinhadoiscoposcheiospelafrente:nãopodianemolharparaeles.Sentia-sedominadopelanáusea,masacimadanáuseasentia-sedominadoporumaespéciesecretaderespeito,quenãohaviasentidoporninguémantes,equeeramaisfortequesuanecessidadedevomitar.

Davedisse:–Bom.Haviaumtraidor.Eeraprecisomatarotraidor.Issoeratudo.Omajormostrou-meo

traidor. Mas eu já o conhecia. Eu sabia quem era. Só faltava prová-lo. E pôr um ponto final noassunto.Pôrumpontofinalnoassuntodeumavezportodas.

Dave bebeu de novo, mas empurrando o copo com a mão. Os músculos do rosto seendureceram. Aspirou profundamente a fumaça do cigarro, deixou-a escapar entre os dentesapertados.AsnáuseascontinuavamnascendodabocadoestômagodeJimmy.

–Amissãoseguintefoifeitaparaisso.Tiramosospára-quedasnomeiodaselvainimigaeelefoiemumadireçãoeeuemoutra.Masdeiavoltaesurpreendi-oportrás.Vi.Eraaprova.Emumapequenaclareiranomeiodomato,viquandoeleentregavainformaçãoaoinimigo.Volteieesperei.Eraahoraemqueosolmorriaehaviaobarulhodeanimaismovendo-seepássaroslevantandovôo.Elevinha caminhandopelomato emeviu.E continuoucaminhando.Nãome traíramnemminhaspernasnemmeusbraços.Estávamosaunstrêsmetrosumdooutroeeleolhouparamimesorriu.Sorriucomuma tristeza irremediávele fraternal,comodizendo:“Jáseiquevocê temde fazê-lo”,como dizendo: “Já sei por que você vai fazê-lo”. Olheiminhamão fechada e a faca estava nela,emboraeunãomelembrassedetê-latiradodabainhaamarradaemminhacoxa.

Aos olhos de Jimmy, enevoados de vapores, Dave se abria em dois, tornava a fechar-se,desdobrava-seesejuntavaconsigomesmonumritmobalanceado.AosouvidosdeJimmy,avozdeDavesoavacomoumsomremotoeondulado.

–Elemesmoofez–disseDave.–Poupou-medisso.EntãohouveumfurtivobrilhodealarmanosolhosausentesdeJimmy.–Aproximou-sedemimcaminhando,comosbraçosabertos,semtropeçarnemalterarnemum

poucooritmodospassoseeucomafacaerguidanamão.OirmãoTriveioemeabraçouefundiu-secomigo.Eusenti seusdedoscrispadoscontraminhascostas, sentia longa lâminaquedeslizavapara cima, pelo ventre, e chegava ao coração. Seu corpo se estremeceu contrameu corpo e senticomo tremia e a caradele estava cravada emmeuombro.Depois caiu, deslizouao longodemeucorpo.Osanguesaíadabarrigadelecomoumamaré.Abriuosolhosnochão.Umtrejeitoretorciasuacara.Olhavacomodizendoparamim:“Obrigado,filhodaputa”.

AmãodeDavecrispou-sesobreocopo.Jimmylevantou-se.AmãodeDavequebrouocopo.

Na montanha, a gente pode tornar-se verde com os infinitos verdes das plantas, escolherqualquer uma das quatrocentas vozes do cenzontle e babar a baba que embaba, a baba da iguana;pode-sematar coma sombra comooschinchintores, ou como olhar, comomatamosbasiliscos,contrair-secomoasensitiva,anteamenoradvertênciavindapeloarouflutuarnascopasdasárvoreseofereceraoinimigofrutosqueadormecem:sercomooreiquiché,setediaságuiaesetediastigre,setediasserpente.Aselvadisfarça:acidadedespoja.Sebastiansente-senuapesardabatina.Achuvaprecipita-senafrentedeseurosto;àssuascostas,oEdifícioHorizontalabriga,entrecristaleaço,centenas de olhos possivelmente curiosos, esconde centenas de bocas possivelmente indiscretas:centenasdepossíveisinimigos.Nocampo,nasnoitesassim,asúnicastestemunhassãoosfantasmas

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quesaemdosriosquandochovemuito.OJicaquenãoestá,agora,aoseulado.SebastiannãoescutaavozcordialdeMiguelAngel,nem

tempelafrentesuafiguracômicabaixinhaecabeçudacomoumfósforo,nemsesenteguardadopelaserenidadesemtitubeiosdosolhosdeMário.Namemória,évisitadocomoacontecesemprequeestásozinhoeemperigo–pelosmortos:umexorcismo, talvez,paraconjuraromedo,aantigamagiados feiticeiros da fraternidade contra o demônio do medo. Alberto dizia que um homem podeconsiderar-se virgem até que tenha matado outro homem e criado outro: matar, ter um filho. Éestranhonãotermatado,comoéestranhonãotermorrido.Sebastianqueriaterduaspistolasequeogringoescolhesseeatirassemaomesmotempo.Mascolocaaprimeirabala,clic,naagulha.

Quando Jimmy voltou à mesa, muito pálido, com a testa banhada de suor, encontrou umdesconhecido que acabava de entrar e se inclinava, solícito, sobre a mesa. Estava empapado pelachuva.Tinhaóculosdevidrosgrossoseumsorrisoagradável.

–Osenhorsofreuumacidente–disse.Osanguecorria,abundante,dapalmadamãodeDave.–Semepermite...–disseodesconhecido,desdobrandoolenço.–Nãotemimportância–agradeceuDave.–Nãotemnenhumaimportância.–OtenenteThomasVaughan?Jimmycomprovouqueohomemchegavanaalturadesuaaxila–enadamais,apesardochapéu.

Ochapéu,dobradoparabaixocomoumsino,escorriaáguadachuva.Riosdechuva.Jimmysentia-sefraco:

–FazumtempinhoqueTom...–começouadizer.–Soueu–interrompeuDave,elevantou-se.–Ondeéquenossoamigo...?– Na porta do Edifício Horizontal – respondeu o desconhecido, apontando para a direita –,

quartaavenida,esquinacomasextarua.Aduasquadrasdaqui.–Voucomvocê–disseJimmy.Davenegou,comacabeça.Aproximou-sedobalcãoparapagar.

Sebastianquiserapoderveralémdanoiteedooutro ladodachuva, seguirvendoapartirdomomentoexatoemqueoinimigosaíssedoPanAmericanBar:ThomasVaughanvindoruaacima,rumoàquartaavenida,protegendo-sedachuvasobumguarda-chuvaoudebaixodasmarquisesdosedifíciosoudebaixodo seuprópriobraçoounãoprotegendo-sedachuvaemabsoluto, abrindoachuva com seus grandes passos de bruto – virá, aí vem, Dave saiu do bar, entra na chuva, Davecaminha, envolvido aindanos efeitos de sua tristeza teimosa, semcelebrar a frescura da chuvanacaraenocorpo,acamisagrudadanapele,apeleempapada,adensacortinadechuvafriasedesloca,enquantoelepassa,juntocomele,sobreele,atravésdele:nãodesconfiadamisturaescorregadiadebarroegraxaqueestápisando,nãodescobreaameaçavibrandonachuva,nãoadivinhaqueháumenigmanesseencontroaoqualelecompareceemlugardeoutro:nãosabequeeleestácumprindo,sempossibilidadedetraiçãoourenúncia,comumencontroqueestavamarcadoaestadeterminadahora e nesse determinado lugar –marcado para ele: Sebastian sente um arrepio que atravessa seucrânio,escorrepelanucaepelocourocabeludo:ahistóriaéassuntodedinâmicaedemachos,diziaMarco Antonio, e Alberto, que dizia?, tantas coisas ele dizia, tantas coisas tinha para dizer, umhomemnascecomumaquantidadedepalavrasparadizeredecoisasparafazeraolongodavidaeAlberto tinha uma quantidade extra de palavras para dizer e coisas para fazer e quando morreupensei:talvezjátenhaditotodasassuaspalavras,feitotodasassuascoisas,emerespondiquenãoesoubequeeraumcrime,queumcrimeeraexatamenteisso:éele,nãoéele,Thomasnão-sei-quê,nãoenxergodireito,seaproxima,caradegringoeletem,masquerdizerqueeraumtipomagro,estenão

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é, é sim, vem para cá, na certa me viu, já me viu, a dozemetros, a dez; aliados piedosos comopoucos,pensaDave,aliadosdebatina,quemdiria,istoprovaqueDeusestádonossolado–nãoé?–a oito metros, a seis, é uma velha convicção americana; uma onda ao mesmo tempo fervendo egélidasobeedescepelascostasdeSebastianeDaveacincometros,Daveaquatro,odedonogatilhodebaixo da batina, e oh, não tenho forças, não posso fazer isso, não posso,mãos geladas, lábiosressecados, doismetros, o terror nos olhos e boa-noite amigo e uma detonação surda da bala nosegundo em que Dave se atira sobre Sebastian e outra bala e Dave se retorce e cai e Sebastiansubitamente está seguro de que já tinha feito isso antes, alguma vez, ainda que não soubesse, quehaviamatadoessehomemtemposatrásemboranãosoubesseeagoraumcheiroacredepólvoraesanguevaiatravessando,lentamente,ocheirodachuva.

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MORRER

O corneteiro tocouadiana–o toquedesilêncio–poucoantesdaalvorada.Delfinochorava.Pediuquetrouxessemsuamulher,masdisseramquenão.Marcostinhasidooprimeiroachegaraopátio, escoltado pelos guardas. Perguntou: “E não veio aquele covarde do promotor? Ele não eratodomacho?”Delfinoabraçouosacerdote.OscaracóisperambulavampelomurobrancodoquarteldeMatomoros.(Atéessemomento,Suáreztinhapensado:quemefuzilarquenada.Masagoraseusjoelhostinhamafrouxado.)

Doladodefora,ummeninoestavasentadodecostascontraomuro,comacabeçagrudadanomuro,osolhosmuitoabertos,nãopodiapiscar,nãosentiaofrio,eaoseuladohaviaumcachorrocomasorelhasempé.

Deram cigarros aos três. “Não chora, Delfino”, disse Marcos. Os sacerdotes da Ordem dasMercêssedespediramseisvezes.

–Não,padre–disseMarcos.–Decostas,não.Defrente.Suárez achou que eramelhor ajudar que lhe colocassem a venda nos olhos. As lágrimas de

Delfinocorriamporbaixodavenda.Marcosnãoquisvendanenhuma.Suárezperguntou:–Quehorassão?Quantofalta?–Cincominutos.Um pássaro brincava no céu escuro: abria e fechava as asas, anunciava com alegria o

nascimento do dia. Eles viam o passarinho. Escutavam seu canto. Cantava como se estivessechamandoostrês.Antes,nacela,Marcosquisvoltaratéaspessoaseoslugaresaosquaispertencera,quandoestavavivo;masagorapasseavaosolhospelosrostosdossoldadosdopelotão,asduasfilasdedez,umporum,todosiguais,eescutavagritarpelootãão,fiiiirmes,gritarfiiladafreeente,gritarjoelhosnochããão,via-osmoverosferrolhosdascarabinas,ossoldadosaummetroemeioprontosparaabrirumrombonoseucorpo,eotempotodosesentialongedossoldadoselongedacerimôniaedetudo,estiveralongedesdeantesdexingaropromotordefilhodaputaedeseplantarnafrentedomurocomasmãosatadas:longe,masmuitolonge,muitomaisalémdoquequalquerviagemedequalquer tempo ou qualquer destino. Olhou para Delfino, que continuava chorando porque nãoentendia. Marcos tinha dito: “Os homens não choram”, mas na verdade tinha querido dizer: “Osmortos não choram, Delfino”.Marcos escutou gritar apooontaaaar e a vida não era um jogo desombras na parede damemória, nem era um calor de fumaça de cigarro no peito, nem era nada.Entãoooficialgritoufooogoehouveumsilênciolongoeestúpido.

Quandoexplodiramostiros,todosostiroscomoumúnicotiro,aprimeiraclaridadedodiajásearrastava,nebulosa,naalturadochão.Ooficialdissetermineeocaboseinclinousobreocorpode Marcos. Marcos viu-o através da cortina de seus próprios cílios: viu-o pelo espaço de doissegundos,eapesardissopoderiadescrevê-locomtodososdetalhes,comosetivesseolhadoparaeleduranteanos.Ocaboapertouosdenteseapontounocoração.

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OSSOBREVIVENTES

Robertoquersaberquantotempofaltaparaficarlouco.Joelexalaumcheiroacre.Longedali,muitoaonortedacidade,Flávianãochora.Flávianãose trancouparachorar,maspara fugirdaslágrimasdosoutros.

Não há luz elétrica na cela onde Roberto afunda a cara nas mãos, e é uma sorte. A noitedespencou, violenta, através das grades.Roberto está banhadode suor.O calor arrancaumcheiroinsuportáveldocorpodeJoel.Assimcomoestá,Joelparecemaisalto.Aindaqueacaídadanoitenãoalivieaasfixiadaumidadequentedacela,aomenosserveparabonarosrasgosdorostodesoladoestentidoaquinochão,aoalcancedamão,comamandíbuladestroçadaporumdostiros.DesdequeosguardasatiraramocadáverdeJoelnochãodecimento,Roberto,agachadocontraaparede,nãofoicapazdesemover.“Aquideixamosteuamigo,paratefazercompanhia.”TinhammoídoosossosdeRobertoaporradas,masnãoéporissoqueeleestáparalisado.

Flávia não sabe onde está Joel. Reclamamos o corpo, Flávia. As vozes parecem trapos. Elatampoucosemexeu.Háhoraspermanecedeitadasobreoaltar,comatestaafundadanumburacodepedraeosbraçoscaídos,inertes,juntoaocorpo.SobreacabeçadeFláviaergue-sealançadosantoguerreiro, relampejando à luz das velas que trazem calor ao ar inchado de dezembro. Atrás docavalinho branco de São Jorge – patas voadoras, crinas flamejantes – há um porta-retratos demolduradourada.Dentrodoporta-retratossorri,melancólico,envolvidoembarbaralaefumaçadeumcharutoPartagás,orostodeoutrosantovingadormuitomaisatual.Amarédosmurmúriossurgesemdescansoatravésdaparededepapelão,coitadinha,ave-maria,coitadinha,asoraçõeseasqueixasdosparentesedosamigosedosvizinhos.Flávianãoquersair,Flávianãoquerficar.

Roberto continua sentado no chão. As estrelas arrebentam no céu e Roberto não as vê, oshabitantesdacidadeseatropelampelasavenidaseelenãoosouve.Oshabitantesdacidadeestãosãose salvos e lembram disso uns aos outros, alguém vira porque alguém passa, cada um sente aspróprias pernas no ritmo das pernas dos outros: cada formiga toca as antenas de outra formiga.Roberto escuta nadamais que o ir e vir dos passos do guarda, que não tem rosto nem respondeperguntas.Escuta,também,àsvezes,chiadodeumacentopéiaquecaidoteto.Umretângulodeluz,cortadopelas sombrasdasbarrasde ferro, seprojetanaparede;de tantoem tanto, écobertopelocorpodoguardaquepassa.Passouumdia.Quantofalta,Roberto?Quantotardaumhomememficarlouco?Ontemànoite,aestahora,Robertoestavalivre,omotorsenegavaaresponder,umasensaçãodenáuseasubiado fundodoestômagodeRoberto,eelepreferia jogaraculpasobreoscigarros.Antesdostiros,Joeltinhadito:“Nãotedesejosorte,conspirador.Gentecomovocênãoprecisadesorte”.Tinhamseabraçado,edepoisJoeltinhatocadocomodedoindicadoralinhadevidadesuamãoesquerda.Joelsemprefaziaisso.Tinhaumalinhadesetevidas,longaesemrachaduras.Sorriacomtodososdentes:“Coisaruimnãomorre”.

FaziamaisdeumanoqueFlávianãoviaJoel.Joelnuncasoubequeseufilhodiziapapaiparaosapato.Fláviasim,sabequenuncainventarácomninguémoqueinventara,eratantaaalegria,paraJoel. Para quem, agora? Para quê, agora? Todos os quadrinhos vazios de todos os futuroscalendários...Todososdiasserãoquarta-feiradecinzas;diasdederrota.Umcaraassimseacabae

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nãohásubstituto.Joel,queeracapazdeacenderofogocomosolhosoucomasmãos.Flávia,quevaiprecisar,masnãovaiquereresquecer.Roberto,queseperguntaseexisteumjeitodedefender-seda loucura, quando a loucura avança na escuridão como um gato que fede a coisa podre e temlanternasnosolhos.Fláviaquebra asunhas contrao altar depedra e asgotasde suordespencam,lentas,dassobrancelhasdeRoberto.Robertomordeoslábiosatésentirosabordoprópriosangue.Senteprazer;ealívio.Esegritasse?Essemortoestátomandomeulugar.Maseunãosabia,Joel.Porquevocênãosaiu?Queculpa...?Foiumaloucuraficar,Joel.Omotornãopegava,Robertotrituravaachavedocarroeomotornãopegava.Abateria?Asvelas?Oplatinado?Vocêmesmo,Joel,tinhaditoqueessecarronãoservia.Esoaramosprimeirostirosefinalmenteomotorpegou,Joel,aexplosãodachispa,orumordasalvação,osquatropistõescomprimindoelibertandotodaaquelaforçaeeuesperavavocê,Joel,euespereiduranteumséculo,ostirosestouravamnaminhacabeçaeeunãovianinguém, nem você nem eles nem ninguém e o pé esmagou o acelarador por conta própria, oaceleradoratéofundo,eeuacreditei...Sim,eu,eucomeceiavoar.Masomotorfalhava.Omotorestavamorrendo,Joel.

Esvaziaramneleoscarregadoresdeváriaspistolas,dessasderegulamento.UmaboaquantidadedechumbonocorpodeJoel.Asbalas45sãogordascomodedos.AmãodeJoelficoucrispadanocabodo revólverque já estava como tamborvazio.Desenharamcomgizos limitesdo corponoasfalto. O giz escorregava. Também o crivaram os disparadores das máquinas fotográficas, ospolegaresdosfotógrafosnosgatilhosdasrolleysedasleikas,antesedepoisdequevirassemocorpoeaparecesseesterostoquetinhasidotãosimpático.

“Temumhomemmortoali.Temnovefurosdebala.”EFlávianãodesmaiounemchorounemnada.Recordou:“Feitiço,coisafeita...Ofogonãosentefrio.Aáguanãosentesede.Oventonãosentecalor.Opãonãosente fome”.ERobertodespertou,depoisdocapuzedoschoqueseda surra,nochão da cela, e,mesmo que não tivessem ainda trazido Joel, os olhos abertos de Joel já estariamacusando-odecontinuarvivo.

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UMABALAQUENTE

Eunãotinhanemidade.Meninofuiparaaserraemeninovimdelá.Osguardastinhamditoaomeupadrinho:

–Escute,Tomazinho.Querqueeledure?Nãodeixequesaia.Porque eu jogava garrafas neles e o diabo e eles nos perseguiam a tiros. Todo mundo era

inimigo.Emeupadrinhomedisse:–Voumandarvocêparaocampo,paraCárdenas.Maseujátinharesolvidocairfora.TinharesolvidocomoCondeecomBaltazar.Ostrêsnos

jogávamosdaamuradaecomonadávamos!Portrintacentavos,queospescadorespagavamparaagente, íamosnadandoatéohorizonte,comosanzóisentreosdentes.EntãoBaltazararrebentou-secontra as rochas nummergulho e só se viu dele foi o sangue que subia, nem os cabelos foramencontrados.

– Vamos para Oriente, Conde. Num caminhão de carga. Lá em Oriente sim, vamos poderinventar.

Poucosdiasdepois,encontramosascolinasondeestavaaguerra.Oacampamentosemudavaotempotodo,eosguerrilheirosandavamparaládeMinasdeHuesito.Eeuperguntei:

–Issoéumacampamento?Eondedurmo?Eoquevoucomer?Eocapitãomedisse:–Masvocêestápensandoquevaidormir?Estáachandoquevaicomeraqui?Aqui,oquesefaz

édartiro,emuito.–Ecomquê?–Isso,vocêvaiterdeconseguirsozinho.Eeupensei:ui.Issoestáruim.Queruimestáisso.Queculpatenhoeu,seelesresolveramfazer

umarevoluçãosemarmas?Fiqueiencarregadodecontarcaminhõescomoutrogaroto,Chavitoeraseunome,queeraainda

mais pequeno que eumasmuito duro, sério mesmo, já estava há um bocado de tempo na coisa.Escondidos sobre um aterro, num desvio da estrada, contávamos os caminhões do exército daditadura. Por ali eles traziam a comida e as armas. Para Chavito era bom eu ter vindo contarcaminhões,porquequandoelechegavanos13ou14seperdia.

Passaram os meses nas colinas. Cada vez tínhamosmais gente. Nossa bandeira aparecia nospovoadosdaserraeosinimigosasdescobriamnassombrasdoamanhecerenãosabiamcomo.

Umbelodia,pertodeUvero,ocapitãonoschamouedisse:–Escuta,éprecisoquevocêslevemessamensagemparaaplanície.Quemlevavaamensagemerameucompanheiro.–Seagarramvocê,jásabe:engulaopapel.Levava a mensagem debaixo de um curativo na sobrancelha. Tinham passado uma tintura

vermelha embaixodo curativo.Caminhamos e caminhamos, semprenos escondendo, e finalmente

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encontramosopessoalquebuscávamos.Eramtrêscompanheirosquevinhamdacidade.–Vamosentrarnomonte,queaquipertoestãoosdecapaceteecomumabateriademorteiro.Um dos companheiros tinha uma Baby Thompson, que tinha arrancado de um guarda. E eu

apontavaparaocéu,issosimébom,nãovoudevolvercoisanenhuma,rapaz,umaBabyThompson!A verdade é que os ianques são uns filhos da mãe, mas lá sim fabricam coisas gostosas, essaThompsonpequeninhaetãofácildemanejar:vocêmetefogoemalguémcomaBabyThompsonenuncamaisele levanta.Essasim, transformaumanimalemcaçador.Eujásabiadistinguiroqueébom,entretodasasarmas.Sabiaqueagentenãoouveosestampidosquandoestácombatendo,esimozumbidodeabelhadasbalasquepassam roçando.Sabiaatirargranadas.Agranadaéumacoisaperigosa,quevocê temde saber esticarobraçoe flexionaro corpopara atirá-lamedindo justo adistância,porquedepoisquearrancamopinoagranadachocacomummosquitonoarepode tercertezaqueacabacomvocênahora.Tudoissoeusabia.Masnuncatinhaapertadoogatilhodeumfuzil.EaquelaBabyThompson!Eapontavaparaasnuvenseasperseguiapelamira,sempressa,eperdoavaavidadasnuvensenquantomeencantavacomaBabyThompsonapertadaentreasmãosecontraacaraeerguiaamira,ajustava,continhaa respiração,me imaginavaapertandoogatilhoelançandobalasquentescontraocéucomaquelamaravilhaeatésentiaocheirodepólvoranoareentão,derepente,ocorreuumaexplosão,aexplosãonosouvidos,equandotorneiaabrirosolhosmedisseram:

–Nãoponhaamãoaí,nãotoquenisso,vocêestácomastripastodasdefora.Estava num hospitalzinho improvisado, desses de folhas de guano que tinham na serra. Me

amarraramasmãosnojiraudemadeira.Eunãomelembravanemdemeunome,nembempudefalareoprimeiroquemeocorreu foiperguntarpelaThompson.Estavacomeladentrodomeucorpo.TinhamfeitoagentevoaraospedaçoscomumtremendomorteiroetodostinhammorridoeaBabyThompsontinhasemetido,empedacinhos,portodomeucorpo.Aindatenhounsferrinhosmetidosentreosossos.Imagineseeuteriagostadodeteraquelaarma.

Nohospitalzinhooúnicodesinfetanteeraagasolinadoscaminhões.Esseeraocheiroqueeusentia,ocheirodegasolina,etambémocheirodecoisapodrequemesaíadasferidas.Olhavaparaocéu e via os urubus, com suas asas abertas, dando voltas e esperando. Via suas cabeças chatas àespreitaeosbicosabertosetãopertoqueatépareciamestarpiscandoumolhoparamimdizendo:“Rapaz,comovocêégostoso”.Eugritava:

–Desgraçado!Vocêsnãovãomecomer,eunão.Estavaamarrado.Nãopodiaatirarpedrasneles,nemameaçá-loscomopunho.Estendidoeamarrado,tinhamquemedarcomidanaboca.Diaenoiteeuescutavaasdetonações

easexplosõesdaguerraepensava:–Não,pensava:–Aquieunãofico.Nembemmedesamarraram,eu fui embora.FuicomoConde,que tambémestavaaliporque

tinhamvoadocomosdedosdesuamão.Roubamosumrevólverefomosembora.ChegamosàcolunadeRaul.Noslevaramaoestado-maioreaí:–Olhaaí,unsfujões.Nosmandaramparaaretaguarda.Eusópodiamanejarrevólveres,ecommuitocuidado.Amão

estavaficandoinútil,comosdedosretorcidosquecadavezmedoíammais.Comumbraçoarrastavaooutrobraçoecomumapernaaoutraperna.Umdosolhosjánãomeserviamaisparapiscar.

Umdia,medisseram:–Escuta,fiquesabendoqueseusóciocaiu.

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Quem? Como? Onde? Como estava vestido? Era o Conde, não era o Conde: era. A carabranquinha,seucavanhaqueeascosteletasmuitofininhas,pareciaumtipodeteatro.Tinhammetidoumtirodecanhãoemseupeito,duranteoassaltoaumcomboio.

Quandochegouavitória,entreigroguedesonodentrodeumtanque.Chegueigrogueenãovinada.Aquelagentetoda,aalegria,asbandeiras:nada.Fui levadodiretoparaumhospital,parapôrplatinanascadeiraseumas injeçõesnanucaparamoveraspernas.Lánaserra tinham ligadomalminhastripas,eeuvomitavatudo.

EveioalimpezadeEscambrayeláfuieu.EaconteceuodaPraiaGiróneFideliaemumtanquepraguejandoegritandomaldições.Aspessoasmarchavamabraçandootanque,todaainfantariaali,paracobri-lo,e issoeraocontráriodoquedeveria ser.Euviaessascaras semuso, todasaquelascriançasquenãosesabiaseiamparaaglóriaouparaamorteouparaonde,enãomedeixavamir,umoficialmedisse:

–Vocênãoestáemcondições.–Evocê,oqueestápensando,queeuvimsóparaolhar?Edissemaisparaele:–Filhodamãe.Queraguerrasóparavocê?Ecomapernaboapisavaduronestaterra.Na confusão toda, me incorporei ao pessoal de Efigênio. Tivemos muitos mortos, porque

semprepartíamosparaládaslinhas.Essesvermes,dizíamos,eraprecisoesmagá-losbem,atéacabarcomeles.ElesatiravamcontranósbalasteleguiadascomosGarand,agenteviaascentelhasnanoite,enósavançandoquatrooucincodecadavezebuscandoaquelaschaminhasedepoisnãose sabiaquemderrubavaquem.Asnossasbalaseramnormais,massaíamaslínguasdefogodasbocasdosfuzis,porissoeraprecisopularparaoladoemseguida,correndodotiroteioderesposta.Nembemdávamosumtiroeelesjáestavamdisparando,bang-bang,eeuestendidonochãosemcapacete,nãosabiaoqueeralutarcomcapacete,comoéquevouenfiarumcapacetenacabeça,senemseicomosefaz? Os tiros deles eram verdadeiras rajadas e os nossos eram tirosmesmo, um a um, para nãodesperdiçar e porque, além disso, não é nada fácil correr depois de dar tiros depressinha, sériomesmo, aindamais se você estiver atirando há tempo e o fuzil não estivermuito limpo, o coicetremendo que ele tem, bup! bup! bup!, e que quantidade de granadas! As granadas flutuavam nospântanos,comoosmortoseasroupas.Eumearrumavacomacanhota.Amãodireitajátinhaviradogarra.Comoagora,quequandodeixocairalgumacoisa,digo:estamãodemerda.Aindaquenemsempresejaculpadamão.

Estamãojánãomeacompanha.Aúltimavezquefuiaohospitalparaquemefizessemumamãodeborracha,osmédicosqueriamcortá-laaquipelametade.Unsqueriamabrir-meporaqui,outrosporestelado.Tomavamminhasmedidasediscutiamentreelesojeitoqueiammecortaramãoeeusaícorrendo:

–Nãosoucobaia,porra!Enquantoeutiverumapernaparacorrer,nenhummédicomeagarra.Jámeoperaramsetevezes,

desdequevolteidaserra.Nãoébastante,paraeles?Sei que não estou bem.Qualquer dia desses caio dormindo e não acordomais. Eu antes não

sofriafaltadear,nãomeafogava,eagoratemvezesqueficocomopensamentoembranco.Assim,comosemefaltassevida.Paraasafra,nãovolto.Comeceiacortarcanaemeamarraram.Nãomedeixamnemdistribuirágua.Umavez fugiparacolher laranjasea feridaemminhabarrigaabriu,estaaquiquepareceumaaranhagigante.Meagacho,esintoafolhadeumfacãoentrandopoucoapoucoemmim.

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Maseutenhomedoqueosmédicosmedigam:–Vocêficanohospital.Eeumevejatrancadoesaibaqueissoéofim.Não,eunãovounemaodentista,eunão.Ésóver

osaparelhoseosmédicosetodaaquelagentecomcurativos,quesintoarrepios.EumorrocomospedacinhosdaBabyThompsonnocorpo,que,quandodoem,maisquedoerécomoseconversassemcomigo.E,sehouveroutraguerra,euvouparaabrigacommeuspedacinhosdaBabyThompsonnocorpo.

Ruimmesmo,andaamão.Dóiearde,umavelametidaaquidentro,eàsvezesesfriaeobraçoterminanumblocodegeloquenãoémeu.Oar-condicionadoatacamuitominhamão.Eugostodeverosfilmesumasdezvezes,masnocinematenhodemeteramãonobolsodacalçaeapertarcomforça,paradar-lhecalorepoderagüentar.

AMariana,essamoçaqueédeOriente,eufaleideiraocinemaeelamediz:–Agoranãoposso,porqueestoutrabalhando.Masolha,amanhãsim.Eentãoacontecequeamanhãquemnãopodeirsoueu,porquesoueuquemestátrabalhandoe

nãovouchegarparaoadministradoredizer:–Hojenãotrabalhoporquevouaocinema.Imaginesó.–Escuta,masemquepaísvocêachaqueestávivendo?Devezemquando fico loucopor causadaMariana, avontadededizerpara eladuasou três

coisasdomuitoquegostodela,maschegoatéondeestáeficomudo.–Vocêiamedizeralgumacoisa.Vocêtinhaalgoparamedizer.Eeumudodeassunto.Seiquetemunssaposcomosolhosvidradosnamenina,eeu:eusoumedroso.E,mesmoassim,

elamedáumaatençãoespecial.Maseupenso:eseeufalhar?Eseelanãoquisernadacomigo?Aúltimavezquemeoperaram,euestavamalmesmo.Queriamorrerporqueamorteeraofim

dadorqueeusentia.EfechavaosolhoseviaMarianaparadaaospésdacama,comasmãosapoiadasnagradedeferro,eelamedizia:vim,viusó?

–Soubequevocêestavadoente.Nãomeperguntecomo,maseusoube.Eentãoelafechavaasmãoscontraagradedeferroeseusdedosficavambrancos:–Vimparadizerquetequero.Eufechavaosolhosepensavanessaalegria.

Tenhocertezadeque,quandodisseraela,elavaidizer:–Masporquevocênãomefalouantes?Deveserafaltadecoragem.Masamanhã,eufalo.Falomesmo.Ounasegunda-feira.Segunda-

feira,semfalta,eufalo.Eagoramesmovoupassarpelotrabalhodela.Quehorassão?Paraverela.Parafazerumagraçaeesperarsuarisada.

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APAIXÃO

Jánãotinhamlembrançasparadividir,nempiadasparacontarnemvontadedecavartúneisouficareminvisíveisouatravessarosmurosAcadeiatinhasetransformadoemcostumeealiberdadeconsistia,agora,emperambularpelopátiodebaixoduranteo tempopermitido,oshomenssósouempequenosgrupos, dandopulinhos contrao frio, sem falar nada, torcendodevez emquandoopescoçopara perseguir as nuvens que, lá emcima, lá longe, tambémcaminhavam.Mas as nuvenscaminhavamparaondeoventodeinvernoaslevava.

Umamanhã, o garotoOscar veio com a notícia. Ele tinha sido agarrado: “É um dos chefes.Alguém o entregou”. Do quarto andar brotou, de repente, o estrépido de uma música da moda,obrigaaado, senhoor, pelas estreelaas, o rádio chiava, obrigaaado, senhor, por mais uuum diia, etodosospresosdopátiodebaixoolharamparaajaneladessaceladoquartoandar,euuummaveezmaaaaais,obrigaadosenhoor,eemseguidaseolharamunsaosoutros,longamente,tuuudo,tuudovaimelhoor,bemmelhoorcomcooca-coooola,ointerrogatóriohaviacomeçado,atlaaanticserviçonotadeeez,elessabiam,sóóessodááaoseucarroomááximo,epararamasorelhasparadistinguirouivodeumavozhumanaatravésdasaladadeavisosemúsica,masnão,erasóumcantorqualquerquegritava:nãoqueeeronuuuuncamaaaisamaaar.

Estavamaliporquenãohavialugar.OgarotoOscarestavaesperando,comotodososoutros,atransferênciadeumacadeiaaoutra.Faltavamaindaonzeanosparaquesaísse,econtavaosdias.OgarotoOscarestavapresoemlugardeoutro,oupelomenostinhaachadoissonocomeço,e tinhaaprendido,comotempo,anãoprotestar.Ogarotocomentou,erguendoosombros:“Esteéumdoslíricos.Nãoroubamparaeles”.Dissequeoconheciadosvelhostempos,deantesdafuga,equeeraumhomemquefalavapouco.Imaginava-o,agora,decostascontraochãogelado,comumavendasobreosolhosouumcapuzemboloradoamarradoaopescoço,nu,osbraçosemcruzeaspernasatadas às estacas, surdo à música que os atordoava e surdo às vozes dos homens que apagavamcigarroscontraasuapele.

Masdestavez,vaicantar,pensouogarotoOscar.“Nãovaiagüentar.Todoscantaram.Jánãoécomo antes.” O garoto Oscar, abraçado a si mesmo, massageava as costelas para se esquentar eolhava,paranãopensar,osmalabarismosqueSapatoUsadofaziacomquatromoedasnoar.

Ao entardecer, no corredor que levava ao banheiro, o garotoOscar cruzou com oZorro.OZorro,antes,tinhavividobem,injetandocháemgarrafasdepurouísqueescocês.OZorrocomentouque este era um dos últimos importantes que tinham ficado de fora, e que o movimento estavadesfeito:“Nemelesseacreditammais”.OZorrosabia;eleliaosjornais.Haviacoisasqueosjornaisnãopublicavam,masoZorro tinhaexperiência:osgolpesnanucacomolâminasdenavalhaenosrinscomobalasdecanhãoenosouvidoscomoumestalodegranadas,asperguntaseosinsultos,asinvestidascontrao fígado:vaicantarouvaimorrer?Sabiaque jáestavamhavianovehorasnesseassunto.“Vinhamcomamaquininhadechoqueeeracomosearrancassemomeubraço.”

Namanhãseguinte,nopátio,ogarotoOscarperguntoueoZorrorespondeu:

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–Atéagora,nemopróprionome.SapatoUsadoosescutavacomoquemouvechover.SapatoUsadonãofalavanuncaeosoutros

achavamqueerafilhodeumpalhaçodecirco:mantinhasuasmoedasdançandonoareissoeratudoquefazia,aúnicacoisaquesabiafazer,brincarcomasmoedasdurantetodoodiaetambémduranteasmuitasnoitesquepassavasemdormir.Sealguémcontasseparaeleoquesuamemóriasenegavaarecordar,teriafaladodopesadelodeserumabolachutadaporváriasbotaseacarnearrancadaaospedaços pelas mordidas da eletricidade no pescoço, nas axilas, no chamado ventre, e então, essealguémteriaditoaele,vocêprocurouumagileteparaabrirasveiasebebiaoprópriomijoelambiaolododochãodacelaequandoabriramaportavocêolhouparaelesedisse:“Estoumorto”,mastudo recomeçou, Sapato Usado, novamente. Até que uma noite, esse alguém contaria, você searrastou até o banheiro e abriu a torneira e em vez de água saíam gritos e levaram você para ohospício.

JorgeMartínez Dias ou Eusébio Sosa ou Julián Echenique (também conhecido como PoucaRoupa), que tinha estrangulado uma bicha velha com umameia de seda, comentou em voz baixa:“Deveterdesmaiado.Temqueterdesmaiado”.SapatoUsadoestavajuntoesorriu:nãoentendianada.EPoucaRoupa,entendia?PoucaRoupapensavaque já tinhamsidovintequatrohorasseguidasdetratamentonoquartoandarepensavaqueaquelecarajádeveriaterpassadooslimites,porquetemdehaver um limite, e este cara nãopode continuar calado alémdesse limite, porque, alémdo limite,pensavaPoucaRoupa,ocaradizoquequeremqueelediga,faladepessoasquenemconhece,trocaseupaiouseuirmãoporumatrégua.

Duranteasegundanoite,depoisquedesligaramorádio,ospresosdebaixoesperaram,emvão,umavoznovaquesacudisseasparedes,entreosgritosroucosdesemprequenoiteanoitediziam:mebateram,estousemroupa,morrodefrio.filhosdaputa,mearrebentaram.

“Seacabou”,pensavam.Houvequemimaginouacomunicaçãooficial,atentativadefuga,ouosuicídio por um pulo de mais de quatro metros de altura, mas muito antes da madrugada foramdespertados novamente pelo rádio a todo volume, música de dança, eeera aqueele cheeiro desaudaaaaaade, ressoando pelo corredor, quee me traaz você a cada instaaaante, atravessando asparedes,caboooclo,escorrendopelospátios,êêêêtacafezinhoboooooooom,emetendo-senascelasenos calabouços, embora não fosse exatamente o barulho do rádio o que tinha aberto os olhos detodoseosmanteriamabertospelorestodanoite.

–E?–seperguntaram,naterceiramanhã.–Dizemquecontinuamudo.–Dizemquetirouocapuzecuspiunacaradeles.–Dizemquedeurisada.Estehomemestálouco,pensouonegroViana.OnegroVianativeraobraçoforteetiveraum

inimigo:acabaracomele,comumaúnicapunhaladadeixara-opregadonacarroceriademadeiradeum caminhão: o homem ficara pendurado no caminhão, comos olhos abertos de assombro e umcabodepunhalduroemseupeitoeospésbalançandonoar.OnegroVianaachavaqueapolíticaacabaenlouquecendoaspessoas,pormelhoresquesejamessaspessoas.Tantaconfusãoporcausadapolítica.OnegroVianapensavaqueocaraachavaque iamorrer:pensavaqueocarapensavanosoutros, os que tinham soltado a língua, tinham apertado a ponta de um lápis no peito deles e elesvenderamomelhor amigo,mevenderam,meentregaram, e então, pensavaonegroViana:Vale apena?Paraquê?

Aoseulado,olhandoparaosprópriossapatos,ogarotoOscarcomentou:–Essecara...nãoseinão.

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–Esquisito,nãoé?–Seilá.–Estouquerendoqueelemorra,paraqueparemdeencherosaco.Orádiocontinuava:meeucoraçãããão,nãoseiporquêêêê,baaaatefeliiiiz.OZorroestavabeminformado.–Masnãodissenada?Nada?–Acaradeleestáodobrodotamanho.Todos rodeavam o Zorro e ele garantia que daquela cela do quarto andar não tinha saído

nenhum preso, mas ninguém acreditava nisso. Olhavam para as grades que guardavam aquelajanelinha fechadadeondevinhaobarulho,omurocinzento emuito alto escorridodeumidade, emaisacimaocéuqueiamudandodecoreiamudandoassobrasdelugar.

–Eraumlindogaroto.Pareciabemnascido.Eseestámorto,pensavam,porquecontinuambatendonele?

Aquartamanhãnasceunublada.Ospresosdopátiodebaixoseapertavamunscontraosoutrosdisputandooraiodesolqueabriacaminho,apareciaedesaparecia,atravésdosfiaposdenuvensdocéudechumbo.

Então,trouxeram-no.Semroupas.Trouxeram-noarrastadoedeixaram-nocontraaparede.Puseram-nodecostascontraaparedee

ele escorregou e ficoudeitadono chão, coma cabeça contra o ombro: semossos, umbonecodetrapo,umjudasprontoparaamalhaçãodealeluia.

Primeiro,foioespanto.Olhavamparaeleecontinuavam,mudos,semacreditar.Olhavamparaeledeumacertadistância,eninguémsemexia.Elenãoeramaisqueummontinhodepele,todocordevioletaporcausadasmanchasedofrio,semforçasnemparatremer.

Finalmente, semexeu.Apoiando-se nas costas e nos cotovelos, tratou de se erguer e caiu.Acabeçacaíadelado,pendurada,balançandocomosetivessemarrebentadosuanuca.

Várias vezes quis levantar e várias vezes ficou caído,mas cada vez as costas avançavam umpoucomaisdaparedeacima;cadavezerammaisaltasasmanchasdesanguequeiadeixando.

Ninguém se animava a ajudá-lo porque ninguém pode sentir pena de um cara assim, e unstinham vontade de abraçá-lomas não sabiam como se faz para abraçar um cara assim.Havia ummúsculosecretodentrodaquelecara:omúsculosecretotinhadespertadoesecontraíaeseesticavalutandoaum ritmo furiosoe erguendo-ocontra amorte, contra aputamorte:osporos tinham-seabertocomobocaseatranspiraçãovinhaaosborbotõeseeraassustadorqueatranspiraçãopudessemais que o ar gelado de uma manhã de inverno dura como esta, e era assustador que ainda lherestassesucoparalargar.

Antes domeio-dia, ficou empé. Ficou lá, contra a parede, com as pernas abertas e o queixocaídocontraopeito.

Foilevantando,poucoapouco,acara.Pôdeentreabrir,aopoucos,osolhosinchados,enquantoapertavaosdentesnumtrejeitodedor.Nãobalançavamais.Osminutosseesticavamcomoelásticos.

Percorreucomosolhosafiladepresosqueolhavamparaelesempestanejar,cadaumcoladoàsuaprópria sombra.Olhouparaelesqueoolhavam,caladosedistantes, acara torcidaeacordosangueseco.Todosolhavamsuacara,comoesperandoalgumacoisa.Quisfalareocoraçãodeuumsalto e atravessou-lhe a garganta. Mas finalmente pôde gritar: “Companheiros!”, com uma vozquebrada,ecaiu.

Algumasnoitesdepois,nohospitalmilitar,umamoçaaproximou-sedaúltimacama,ondeele

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estava.Nãohavianenhumenfermeironasalaeosguardasestavamadormecidosnaporta,comosfuzissobreosjoelhos.

Amoça,inclinada,sussurravaperguntasemseuouvido.Elerespondiacomosolhos,pequenasfendasabertasentreosbolos inchadosdorosto,e todasas imagensde tudoquehaviaocorridosesucediamnosolhosdeleeamoçaiavendoelaspassarem,comonumfilme.Osolhoseramtudodevivoquesobravanele.

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OUTROSCONTOS

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CINZAS

1

Erameio-dia,masrapidamentefoi-sefazendonoite.OtemporaldeSantaRosaestavaprestesadesabar, com hora marcada. Alvoroçadas nos telhados, as cigarras anunciavam chuva. Talvezimpedidoporessasúbitaescuridão,Alonsonãooviuchegar,ouentãoporqueeleamarrouseubarconoancoradouroquandoAlonsoestavadecostas,trabalhandonofornodepão.Tambémnãooouviu,poiselehaviachegadoemsilêncio,deslizandopelorio.Remava lentamente,empénobarco,comdignidadedecavalheiro.

Alonsoestavatirandoasbrasasdofornocomumapá,jogando-asnocarrinhodemão.Teresatinhapreparadoospãescomobomfermentoeas tortas, recheadasde torresmo.OsmúsculosdasgrandescostasdeAlonsocontraíam-seacadamovimentoqueelefaziacomapá.Oesplendordasbrasas lambia a sua pele e sua transpiração se iluminava, brilhando como pequenas gotasavermelhadas.Teresasentiuumfortedesejode tocarsuascostas.Aproximou-seeestendeuamão.NessemomentoAlonsosevirou:

–Éprecisoabrirorespiradourodoforno–disse.Caminhou alguns passos. Quase esbarrou no forasteiro. Era mais alto que ele, o que já era

descomunal,eusavaumagrandecapanegraquelhecaíadosombros.Oforasteirosaudou-ocomumlevetoquedededosnaabadoseugrandechapéu,enterradoatéosolhos.Pediuumcopodevinhoebebeu,goleagole,comocotoveloapoiadonobalcãodemetal.

TeresafoiatéoriomolharunssacosdeestopaeAlonsoterminoudetirarasbrasasdoforno.Oforasteironãodissenadaefoiembora.

TeresaeAlonsoficaramolhandosuamajestosafiguradefalcão,atéperder-sedevistananegrabrumadorio.Colocaramospãeseastortasnoforno.Alonsofechouaportadeferroecobriu-acomosgrossospanosmolhados.Então,sentou-separafumarumcigarro.Aoseulado,Teresadescascavabatataseascolocavanumtacho.

–Euvioqueeletrazia–disseTeresa,semsemover.–Traziaonde?–Nobarco.Aproximei-meevi.Nãoagüentavamaisdecuriosidade.–Hum!Alonso se levantou, abriu e fechou a porta do forno: os pães tinham crescido rapidamente e

estavamassandobem.–Ataúdes.Eraoquetrazia–disseTeresa.–Dois.–Podiamserlatasdegasolinaoualgoassim–disseAlonso.–Não.Eramcaixõesdedefunto.Euvibem.–Estavamescondidos’?–Não,estavamàvista.–Vazios?–Nãosei.

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–Estavam.–Oquê?–Vazios.Aindaestavamvazios.–Quemsabe.–Veioparamatar–disseentãoAlonso,quetinhavistoapontadeumfuzilsobacapa.–Quemseráqueelevaimatar?Alonsodeudeombros,maselesabia.–Elevaiesperarquecomamedepoisfaçamasesta–disse.

2

OLobodormiamal.Respiravacomdificuldades.Seusossose seusdentesdoíam.Passavaosdiasdeitado.Poderiacaminharesalvar-se,masnãoqueria;nenhumavoztinhaforçasuficienteparatirá-lo daquele estado.Àsvezes, na gelada escuridão antes do amanhecer, fixavaos olhos no teto,fumando,eviajava.Issolhetraziaalgumalívio,masnãoocorriacomfreqüência.DespertandoaoseuladoaGalegaquasesempreoencontravacomosdentesapertadospelassecretasdoresdamemóriaoudocorpo.

Lobotinhaacaraescondidapelabarba.Nãofaziaabarbaporquesentiaimpulsosdequebraroespelho a socos.Quanto tempo fazia quenão ia pescar peixe-rei?As iscas apodreciamnas linhas.Quando tomaria a decisão de calafetar o bote? Se tomasse o sol do verão, no estado em que seencontravaamadeira,obotenãochegariaaooutono.

Naquela madrugada o Lobo ouviu um galo cantar: nenhum outro respondeu. Levantou-se,nervoso,paraesquentarcaféenochãodacozinhaviusuasombrasemcabeça.

Quandoemplenodiaocéuescureceu,aGalegaviua tormentaaproximar-se.Antes,nosdiaschuvosos, oLobo assobiava. Somente nos dias de chuva sabia assobiar.Mas agora não assobiavanunca.

AGalegaesquentouoguisadodojantardanoiteanterioreserviusomenteumcopodevinho.Osdoistomaramdomesmocopoe,noentanto,oLobonãoadivinhouosegredodela.Elatinhadito:“Tenhoumsegredo”.Eleresmungouqualquercoisa,pediumaisvinho,nãoolhouenemfaloumaisnada;depoisfoicaminhandoatéoancoradouro.AGalegaapertouasmãos,cravando-seasunhas,esufocouavontadedechorar.Queriaqueelepercebesseporsisó,semterquedizernada.Acriançadadailhaandavaaoseuredor,seguindo-acomogalinhas,excitados,eissoeramuitomaisseguroqueamenstruaçãoquenãovinhafaziadoismeses.AGalegapensavaqueaqueleeraomelhordiaparaqueelepercebesse,porquehádezanosatrás,naquelemesmodia,elatinhaouvidosuavozpelaprimeiravez.

3

A Galega cozinhava num casarão cheio de coisas que valiam muito dinheiro. Era umacozinheira demão cheia e, por isso, lhe pagavambeme não a obrigavama levantar-se cedo.Elapunha o despertador para as sete horas,mas somente para ter o gostinho de continuar dormindo,quentinhadebaixodascobertas.

Comodecostume,umamanhãselevantouparairaobanheiroetopoucomumcaramascaradoquelheencostouumapistolanopeito.

–Oqueéisso,homem?–disse,assimquepôdeengolirsaliva.–Desviaissodaí.Discutiram.– Espera um momento – dizia ela. – Eu não agüento mais. Foi por isso que levantei e não

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agüentomais.Espereummomento.Nãoestouagüentando,homem!Ohomemdisse que tinha que consultar o chefe.O chefe eramais alto emais fone.Também

tinhaumameiaenfiadanacabeça.Eledissequepodiair,mascomaportaaberta.Elaviusuasmãos,osdedospálidoseossudossegurandoaarmaeessafoiaprimeiravezqueelarecebeu,atravésdosdoisburacosnameia,ofogodosolhosdele.Quandoentrounobanheirojátinhaperdidoavontadeeficoufuriosa.

Depois,aamarrarameajogaramnochãodoquartoondeestavamosoutros.Nãohaviajeitodefazê-laficarcalada.

Gritava:–Levemtudo,malandros!Limpemtudo!Enãoesqueçamdepassaraflanela!Tiveramqueamordaçá-la.–Queremcafé?Servireicomcianureto!Passaram-seosdias.Umamanhã,quandosaiupara fazercompras,elaoencontrouencostado

emummuro, numa esquina, fumando.Reconheceu-o pelasmãos, pelo fogodos olhos e pela vozroucaque a convidoupara umencontronodomingo à noite, emumcafédo centro.Ela o olhou,querendoodiá-loequerendodizer-lhe:

–Espere,queireicomapolícia.Naquele domingo, fechou-se no seu quarto e não foi.Apartir de então esteve lutando, dias e

noites,contraavontadedeireencontrá-lodenovo.O domingo da semana seguinte amanheceu ensolarado.AGalega saiu para caminhar.Andou

pelosparquesequandoanoiteceusuaspernasalevaramaocafésópelacuriosidadedesabercomoera.Sentou-seepediuumcafégrande.Pôsaçúcar.Estavamexendocomacolherinhaquandooviuempé,àsuafrente.

–Vocêdemorou,hem?–disseele.Pareciaqueseusdentesestavamficandomoles.–Acabalogocomisso–disseele.–Estáquente–balbuciouela.Daprimeiranoiteelairiarecordar,parasempre,obarulhodossapatoscaindoeamedalhade

SantaRitaquenodiaseguintenãoestavamaisemseupescoço.Eeledisseaela:“Aoseulado,mesintomaisfelizquepobrequandotiraasortegrande”,eela

eraumcarrapichogrudadoparasemprenocolodele,enãohavianadaquenãofosseaplaudido,nadaquenãofosseperdoado.

4

Sentou-se juntoaoLobo.Suaspernas ficarambalançandonoancoradouro.Aúnicacoisaquenelesemoviaeraocigarroapagado,queiadeumcantoparaoutrodaboca.Tinhaselevantadodamesa depois de ter provado uns bocados. Quanto tempo fazia que ele tinha perdido o prazer dedesfrutar de uma refeição?Quanto tempo fazia que ela já não sentia vontade de preparar para elefrangoàcalabresaouraviolescaseiros?Quantotempofaziaqueavidaperigosaeodinheirotinhamterminado?

–Vejaestanoitetãoestranha–disseaGalega.Colou-seaeleeagarrouemseubraço.–Cheirocoisafeia,homem.Vemcoisaruim.Vamosemboradaqui.Oqueestamosesperando?O Lobo não respondeu. Então ela perguntou pelo Colt. Tinha revirado a casa e não tinha

encontradoorevólver.Ele,comumpuxão,sedesvencilhoudoseubraço.–Jásei.Vocêovendeu–disseaGalega.

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Eleselevantou.Elasepôsnasuafrente.–Vocêvaimecontar–disseela.Ele a empurrou para o lado e ela o perseguiu, aos tropeções, segurando-o pela camisa e

golpeando-lheopeito.–Vocêestádoente,Lobo.Estálouco.Oqueestamosesperando?Quevenhammatar-nos?Eujá

nãopossoviverassim.Porqueeu,agora,eu...Queroquevocêsaibaque...Lobocuspiuocigarroedisse:–Reze.Sequiser,oulembrar.Eladeuumpassoparatráseseusolhosbrilharam:–Vocêjánãotemgrandezanenhuma,nemparasegabar,Lobo.Comamãoaberta,eledeuumtapanorostodela.

5

Oriachocarregavaumaáguabarrentaemdireçãoaorioaberto.Amaréestavasubindo.Omatador,escondidoatrásdosjuncos,estavacomodedonogatilhodofuzil.Tinhaamarrado

seubarconaentradadeumcanaleseaproximou,rodeandoailhapeloladodetrás.Estavapertodosacossados. De onde estava, apesar de estar escuro e dos salgueiros, dava para ver bem os dois.Semprepensaraquematá-losde longenão teriagraça.“Meucorpoédo tamanhodocaixãodessehomem”,tinhapensadosempre,“eocorpodeletemotamanhodomeu”.Tambémsempresoubequeera preciso matar a Galega, para que o Lobo morresse de verdade. Uma ou outra vez nasperseguiçõesqueo levaramacidadesepraiasdistantes,pensouquenãoseriamáidéiaamarrá-loscaraacara,levá-losparaobarcoejogá-losnomar,paraquetivessemotemposuficientede,atadosumaooutro,odiarem-seatéofundodaalmaantesqueasedequeimassesuasgargantas.Masdecidiu-sepelasbalas.Iaprecisardemuitabalaparaacabarcomassetevidasqueelestinham.

Agoraestavaàmão.Erafácil.Levantouofuzileoapoiouaolongodorosto.Então,ouviuadiscussão.ViuoLobodaro tapae aGalegacairnochão.ViuquandooLobocaiude joelhos.OLobo

apertouacabeçaentreasmãos.Omatadorpensououvi-logemer.OLobopassouamãonorostodaGalega,pegouáguadorioemolhouseurosto.AGaleganãoreagia.

Masomatadornãomatou.Passouanosperseguindo-os,masnãoosmatou.Talvezporque,juntocomomomentodamorte,chegouarevelaçãodequeocastigonãoestánamorte,masnomalquesuasombra faz; talvezporque tenhapercebidoqueacossareraoquedavasentidoa seusprópriosdiasdeperseguidor.

Abaixouofuzil.

6

Alonso cruzou com o barco que voltava. Na escuridão, ainda conseguiu ver os ataúdes. Oforasteiroremavaempé,comonaviagemdeida,sempressa.Alonsodeteveseuboteeesperoucomosremosnoar.Oforasteironãovoltouacabeça.

“Nãohánadaquefazer”,pensouAlonso.Masseguiuviagemrioacima.Nãodemorouaverailha aparecendo como um castelo de árvores na neblina negra: havia alguma coisa nela, umaluminosidadefantasmagórica,quegelavaosangue.

AlonsonãoescutouquandoaGalegadisseaoLobo:–Nãovoltarei.Nãoestouesquecendonadaaqui.

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AGalegaestavaempénoancoradouro,comamalaaolado,esperando.Sozinha.–Estávivo?–perguntouAlonso.–Sim–disseaGalega.Alonsoviuseurostomachucadomasnãoperguntounadamais.Colocouamalanoboteeelase

sentou,defrenteparaaproa.

(1975)

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ORESTOÉMENTIRA

(aPedroSaad)

1

–Vounodomingo–digo.–HáumvôodiretoparaBarcelona.–Não–dizPedro.–Não?–Nodomingovocêirá,iremos,aGuaiaquil.Edali....Douumarisada.–Escuta–dizPedro,eeu:–Nãopossoficarmaisnenhumdia.Tenhoque...–Vocêvaimeescutar?

2

QuandocomentocomAlejandraamudançadosplanos,eladiz:–EntãovocêvaiverAdãoeEva.Fumaediz:–Euqueromorrerassim.

3

Na península deSantaElena, que se chamavaZumpa, o tempo é quase sempre cinzento.Nãolongedaqui,maisaonorte,omundoseparteemdois,deumasóvez.Aquiotemposeparte.Metadedoanoésoleaoutrametadeécinza.

Caminhamospelaterraempoeirada.Pedromeexplicaquehámilharesdeanosomarvinhaatéessas terras. Basta escavar um pouco e aparecem conchas do mar. Os ventos do sul deixaram apenínsulaárida.Osventoseopetróleoquesedescobriuporaqui.TambémascozinhasdeGuaiaquil,porqueosbosquesdeguayacán forampararnosseusfogõese,nãofazmuito tempo,meioséculoapenas,cobriamestedesertoeserviamparafazeraoferendadeincensodepau-santoaosdeuses.Davegetaçãosobrouapenasessematobaixo,arbustoscheiosdeespinhosqueservemparaespetá-loeparaquevocêfiqueentreessasmáquinasqueprocurampetróleo–eorestoéumaimensidãodepóenadamais.

4

–Éaqui–dizPedro,elevantaatampademadeira.Estãoquaseàflordaterra,metidosemdois

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numpequenoburaco.Olhamosemsilêncioeotempopassa.Estãoabraçados.Ele,debocaparabaixo.Umbraçoeumapernadeladebaixodele.Umamão

delesobreopúbisdela.Apernadeleacobre.Uma grande pedra achata a cabeça do homem e outra, o coração da mulher. Há uma pedra

grandesobreosexodelaeoutrasobreosexodele.Olho a cabeça da mulher apoiada ou refugiada nele, sorrindo, e comento que tem a cara

luminosa,caradebeijo.–Caradeespanto–contradizPedro.–Elaviuosassassinoseergueuobraço.Forammortos

comessaspedras.Olho o braço levantado. Amão protegeu os olhos de alguma súbita ameaça ou mau sonho,

enquantoorestodocorposeguiadormindo,enroscadonocorpodele.–Estávendo?–dizPedro.–Quebraramacabeçadelecomestapedra.Mostra-meateiadearanhanarachaduradocrâniodohomemediz:–Pedrasgrandescomoessasnãosãoencontradasporaqui.Trouxeramdelongeparamatá-los.

Quemsabedeondeastrouxeram?Estãoabraçadoshámilharesdeanos.Osarqueólogosdizemoitomilanos.Antesdotempodos

pastores e dos lavradores.Dizemque a argila impermeável da península conservouos seus ossosintactos.

Ficamosolhandoepassaotempo.Sintoosolbrilhandoentreocéusemcoreaterraquenteesinto que esta península de Zumpa ama os seus amantes e que por isso soube guardá-los em seuventreenãooscomeu.

Esintooutrascoisasquenãoentendoequemedeixamtonto.

5

Estoutontoenu.–Elescrescem–digo.–Esóocomeço.Esperaeverá–advertePedro,enquantoocarrosedirigeparaacostaentre

nuvensdepó.Eeuseiquemeperseguirão.Magdalenaosviuegritouquandoiaembora.

6

–Foramdescobertosporumamulher–dizPedro.–UmaarqueólogachamadaKaren.Estãotalqualelaosencontrouhádoisanosemeio.

Esperoquenãovenhamdespertá-los.Fazoitomilanosquedormemjuntos.Quefarãoaqui?Ummuseu?–Algoassim–sorriPedro.–Ummuseu...porquenãoumtemplo?Penso:“Suacasaéesseburaquinhoeficou invulnerável.Quantasnoitescabemdentrodeuma

noitetãolonga?”Estremeço,pressentindoosupershowdosamantesdeZumpanasmãosdostouroperators,uma

experiênciainesquecível,umtesourodaarqueologiamundial,câmerasefilmadorasescoltadasporenxames de turistas compradores de emoções. Penso no belo corpo que eles formam no longoabraço dos anos e nos tantos olhos sujos que não osmerecerão. Logo em seguida, acuso-me deegoístaeumpoucodevergonhamesobenacara.

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7

Comemos no litoral, na casa de Júlio. Servem um bom vinho, que aparece na mesa comomilagre; sei que o peixe está saboroso e que a conversa vale a pena,mas estou ali como se nãoestivesse.Umapartedemimbebe,comeeescuta,edevezemquandodizalgo,enquantoaoutraparteanda vagando pelos ares e fica imóvel frente ao pássaro que nos observa através da janela. Todomeio-diaessepassarinhovem,pousanumgalhinhoeobservaenquantoduraoalmoço.

Depoismeestendonumaredeoumedeixocairnela.Omarcantabaixinhoparamim.Euabrovocê, eudescubrovocê, eu façovocênascer, canta-meomar, oupor suaboca sussurramaquelesdois que vêm antes da história e o inauguram. As ramagens atravessadas pela brisa repetem amelodia.Antigos ares, que tão bem conheço,me recolhem,me envolvem eme embalam. Festa eperigonumeternodesenrolar...

–Levanta,dorminhoco!Colocoasmãosfrenteaosolhosparaprotegê-los.AsúbitavozdePedrodevolve-meaomundo.

8

–Não–dizKaren.–Nãoosmataram.Aspedrasforamcolocadasposteriormente.Pedroinsinuaumprotesto.–Aspedrasteriamrolado–insisteaarqueóloga.–Seelastivessemsidojogadas,teriamrolado.

Elasestariamnosladosenãoemcima.Estãocuidadosamentecolocadassobreoscorpos.–Mas...eessapartedocrânioquebrada?–Émuito posterior.Quem sabe algum carro ou caminhão estacionou sobre eles.Quando os

descobrimos, estavam assim, a um palmo da superfície. Somente ossos muito antigos podemquebrar-secomolouça.

Pedroaolha,desarmado.Euqueriaperguntar-lheoquesentiuquandoosdescobriu,masficocomoumboboenãoperguntonada.

–Aspedrasforamcolocadasquandoosenterraram,paraprotegê-los–continuouKaren.–Nestelugarencontramosumcemitério.Haviamuitosesqueletosenãoapenasosdos...dos...

–Amantes–digo.–Amantes?–diz.–Sim,éassimqueoschamam.OsamantesdeZumpa.Éumnomesimpático.–Masencontraramtambémrestosdecasas–dizPedro.–Edecomida:conchasdemariscos,

ostras.Talvezenterrassemosmortosemsuascasas,comooutrastribosque...–Talvez–admiteKaren.–Nãoémuitooquesabemos.–Oupodehaverumadiferençano tempo,nãoé?Umadiferençademilharesdeanosentreo

cemitérioeascasas.Osamantespodemsermuitoposterioresouanterioresaosdemaisesqueletos.–Talvez–dizKaren–,masduvido.Elanosservecafé,enquantoseusfilhoscorrematrásdeumcachorro,enosexplicaquenãoé

possívelremoveressesossosdepoisdetantotempo.– Não tocamos neles – diz – para não despedaçar tudo. Que eu saiba, é a primeira vez que

descobrem um casal enterrado assim. A descoberta pode ter certo valor científico. Vieram osossólogos,comooschamamporaqui.Elesconfirmaramquesetratadeumhomemeumamulherequeeramjovensquandomorreram.Tinhamentrevinteevinteecincoanos.Os...ossólogosdizemqueosesqueletoscorrespondemtodosaomesmoperíodo.

–Eocarbonocatorze?–perguntaJúlio.–Fizeramessasprovas.–EnviamosaosEstadosUnidosoutrosossosdomesmocemitério.Ocarbonocatorzeretificado

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revelouumaantigüidadede seis a oitomil anos.Comosossosdos... amantesnão épossível umaanálise. Só enviamos um dente que arrancamos do homem. O laboratório analisou-o.Termoluminescência,ossenhoressabem.Arespostanãoserveparanada.Dáumaantigüidadedeseisaonzemilanos.Sesoubéssemos,teríamosdeixadoodenteempaz.

Pedroesperavaestaoportunidade.–Suponhamos–diz,triunfal–quedentrodemuito,muitotempo,ostécnicosanalisassemcom

osmesmosmétodososrestosdenossacivilização.EncontrariammaçosdeMarlboronoColiseudeRoma.

Karen,sentindoatéondeiaaconversa,dáumaboarisadafrancaedepois,nasegundaxícaradecafé,adverte-nos:

–Eunãoseisevocêsvãogostardoqueeuvoudizer.Olhaparanós três,medindo-nos sempressaebaixandoavoz, comoquemditaumasentença

secreta,explica:– Eles não morreram abraçados. Foram enterrados assim. O motivo, não se sabe. Nunca

ninguémsaberáporqueosenterraramassim.Talvezporquefossemmaridoemulher,masissonãobasta. Por que não os enterraram como a outros casais?Não se sabe. Talvez tenhammorrido aomesmotempo.Nãohásinaisdeviolêncianosossos.Talveztenhamseafogado.Estavampescandoeafogaram-se. Talvez. Por algum motivo, que nunca saberemos, os enterraram abraçados. Nãomorreramassim,nemosmataram.Nósosencontramosemsuatumba,nãoemsuacasa.

Vamoscaminhandopeloareal,enquantoanoitecai.Omarbrilhaalémdasdunas.–Oscientistasafirmam–dizPedro–quehámilharesdeanosnãopoderiahaveramantesnum

grupodepescadoresseminômades,quenãoconheciamapropriedadee...Euachoquehojeéquenãohálugarparaeles.

Continuamoscalados,ostrês,olhandoaareia.Eupensonasuagrandeza,tãopequenininhos,comonós,enoseumistério.Maismisteriosoque

ograndepássarodeNazca,penso.Comosímbolo,fezmaispartedemimdoqueacruz,penso.Evoupensando:monumentomaisdaAméricadoqueafortalezadeMachuPichuouaspirâmidesdosoledalua.

–Algumavezvocêsviramalguémquetivessemorridoafogado?–perguntaJúlio.Esegue:–Eujá.Osafogadosficamcontraídos,comocorponaposiçãode...horror,equandoostiram

da água estãomais rígidos do quemadeira. Se tivessemmorrido afogados, ninguém conseguiriaabraçá-loscomoestão.

–Esenãotivessemseafogado?Haviaoutrasmaneirasdemorrer.– Eu também não acredito – diz-me Júlio. –Osmortos se endurecem rápido. Eu não sei... –

vacila. – Karen sabe. Ela sabe, mas... Não sei. Não creio que... Estão numa posição tão natural.Ninguémteriasidocapazdeenterrá-losassim.Oabraçoétãoverdadeiro...Nãoémesmo?

–Euacreditoneles–digo.–Emquem?–Neles–digo.

9

MalditosamantesdeZumpaquenãomedeixamdormir.Levanto-menomeiodanoite.Vouparaasacada,respirofundo,abroosbraços.Eosvejo,traídospelalua,emalgumpontodoaroudapaisagem.Vejooshomensnusquese

arrastamemsilênciopelomangueeatacamarmadosdepunhaisdepedranegraouossosafiadosde

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tubarão.Vejoosobressaltodelaeosangue.Depoisvejoosverdugoscolocandosobreoscorposaspesadaspedrasquetrouxeramdelonge.Osprimeirosagentesdaordemouosprimeirossacerdotesdeumdeusinimigocolocamumapedrasobreacabeçadele,outrasobreocoraçãodelaeumapedrasobre cada sexo, para impedir a saída dessa fumacinha que baila no ar, fumacinha enebriante,fumacinhadeloucuraquepõeomundoemperigo–esorrio,sabendoquenãohápedraquepossacomela.

10

Namanhãseguinte,avolta.Avegetaçãocresceàmedidaquemedistanciododeserto enoarvemchegandoocheirodo

verdeaoentrarnoluminosomundomolhadodeGuaiaquil.Acompanham-me,parasempre,aquelesquemelhormorreram.

(1980)

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Capa:MarcoCenaRevisão:RenatoDeitoseDelzaMeninTradução:EricNepomuceno

G151vGaleano,Eduardo,1940-Vagamundo/EduardoGaleano.–traduçãodeEricNepomuceno.–PortoAlegre:L&PM,2011.(ColeçãoL&PMPOCKET,v.185)

ISBN978.85.254.2375-7

1.Ficçãouruguaia-Ensaios.I.Título.II.Série.CDDU864CDU860(899)-4

CatalogaçãoelaboradaporIzabelA.Merlo,CRB10/329

©EduardoGaleano,1999

TodososdireitosdestaediçãoreservadosaL&PMEditoresRuaComendadorCoruja314,loja9–Floresta–90.220-180PortoAlegre–RS–Brasil/Fone:51.3225.5777–Fax:51.3221-5380Pedidos&Depto.Comercial:[email protected]:[email protected]

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TableofContentsGarotos

SegredonocairdatardeOmonstromeuamigoOpequenoreivira-lataOdesejoeomundo

GamadosHomemquebebesozinhoConfissãodoartistaGaroaMulherquediztchau

AndançasTerduaspernasmeparecepoucoNoelCerimôniaAterrapodenoscomerquandoquiserOssóisdanoiteElesvinhamdelongeTouristguideOesperado

BandeirasAsfontesAiniciaçãoOndeelaestavaaconteciaoverãoContoumcontodeBabaluAcidadecomoumtigreMorrerOssobreviventesUmabalaquenteApaixão

OutroscontosCinzasOrestoémentira