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Captulo 7
TEORIA, TRANSIES E CRISES1
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Em 1983, colaborei com Guillermo O'Donnell na organizao de um seminrio
internacional, sob o ttulo "Democracy and Democratization: North and South", que teve
lugar em novembro daquele ano no Kellogg Institute da Universidade de Notre Dame. O
seminrio, que contou com a participao de cientistas polticos latino-americanos, norte-americanos e europeus, ocupou-se das convergncias, percebidas como importantes, entre
os problemas de autoritarismo e democracia prprios dos pases latino-americanos e do
Sul da Europa, por um lado, e certas tendncias manifestadas pelo fenmeno do
neocoporativismo nos pases europeus mais avanados, por outro. Oito anos depois,
diante da derrocada do socialismo, certos autores, como Adam Przeworski, sustentavam
com plausibilidade a proposio de que o que ocorreu na antiga Unio Sovitica e no
Leste europeu com a derrocada do socialismo poderia ser visto como um processo de"latino-americanizao".2 Parece claro, assim, que os problemas das "transies"
democrticas no contexto latino-americano e da eventual consolidao da democracia em
nossos pases podem ser proveitosamente ligados a processos cujo alcance e significao
extravasam de muito o mbito continental. Isso propicia razes em favor de uma
disposio comparativa e teoricamente ambiciosa no trato dos problemas envolvidos, em
contraste com certas disposies restritivas e mesmo irracionalistas que se encontram a
respeito com alguma freqncia. Os aspectos relevantes da questo podem talvez ser
destacados em alguns itens.
1 Adaptao de trabalho elaborado para o seminrio Dilemas e Perspectivas da Democracia na AmricaLatina, realizado no Memorial da Amrica Latina, em So Paulo, de 28 a 30 de novembro de 1991, sob acoordenao de Guillermo ODonnell, e tendo como uma das preocupaes centrais a conexo entre criseseconmicas e as perspectivas de consolidao democrtica no continente. Na forma em que aqui aparece, otexto foi publicado anteriormente emLocus: Revista de Histria, vol. 3, no. 2, 1997.2 Adam Przeworski, "The 'East' Becomes the 'South'? The 'Autumn of the People' and the Future of EasternEurope",PS: Political Science and Politics, vol. 24, no. 1, maro de 1991.
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a) Entendo que a opo em favor da teoria e de uma perspectiva mais abrangente
condio para a compreenso mais adequada do que se passa em qualquer caso
particular, o dos pases latino-americanos como qualquer outro. Com isso me oponho
frontalmente difundida (e ingnua) tendncia a contrapor de maneira cortante a reflexo
terica, de um lado, e o esforo de apreenso emprica de casos particulares, de outro. A
teoria ser tanto melhor quanto maior a multiplicidade de casos diversos de que ela d
conta parcimoniosamente com a conseqncia de que, sendo melhor teoria, na mesma
medida dar conta mais adequadamente de qualquer caso particular, permitindo captar
melhor mesmo as suas peculiaridades. Afinal, o especfico no seno a contraface do
genrico, e o interesse ocasional pelo especfico no razo para se prescindir da
orientao nomolgica e generalizante no estudo da poltica, como corresponde
vocao da cincia poltica como disciplina. b) Entendo igualmente que preciso rechaar com vigor certa abdicao
historicista muito freqente na discusso dessas questes e com a qual se pretende que o
conhecimento adequado s possvel depois que os processos em observao (ou a
prpria histria) se tenham cumprido, na linha da imagem hegeliana da coruja de
Minerva que voa ao entardecer. Antes de esgotados os processos, sustenta-se, a reflexo
terica seria "prematura".3 Naturalmente, a dificuldade crucial reside em que
extremamente problemtico pretender que a histria se tenha ou no cumprido em
qualquer momento dado. A adoo de tais pressupostos historicistas especialmente
inconsistente quando se trata, como no caso presente, de um esforo analtico orientado
pela preocupao de apreender o carter mais ou menos consolidado da democracia
implantada em determinados pases. Pois tal esforo supe a possibilidade de avaliar
resultados nos quais um processo em andamento de alguma forma se estabiliza e se torna
passvel de apreenso naquilo que tem de estvel. No parece haver razo para presumir
simultaneamente: (1) por um lado, que essa possibilidade existe tanto no caso de
3 Nos debates ocorridos no seminrio que deu origem a este texto, a imagem hegeliana da coruja deMinerva voando ao entardecer foi lembrada por Jos Luiz Fiori para opor-se ao pleito por mim formuladoem favor da teoria, sua posio sendo secundada por Guillermo O'Donnell, que destacou o carter"prematuro" do pleito. Expresso caricatural dos pressupostos e expectativas a envolvidos se tem com adisposio que encontrei anos atrs em certo estudante que apresentava ao comit de bolsas de doutoradoda Fundao Interamericana o relatrio parcial de suas atividades de pesquisa sobre o processo poltico noUruguai: ele se encontrava ento, segundo suas palavras, sentado a esperar que as coisas acabassem deacontecer naquele pas para poder concluir sua tese.
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processos seculares ao cabo dos quais a coruja de Minerva supostamente ala o seu vo
quanto no das regularidades que eventualmente presidem s oscilaes de curto prazo dos
pases latino-americanos entre a ruptura da democracia, o autoritarismo e a recuperao
democrtica mais ou menos consolidada, regularidades estas que so o objeto de tantos
esforos por parte de muitos daqueles que tendem a invocar o argumento da coruja de
Minerva; e (2) por outro lado, que ela no existe para perspectivas de certa forma
intermedirias em que se trataria de dar conta em termos mais satisfatrios justamente da
articulao entre as flutuaes das conjunturas cambiantes e a lgica que eventualmente
permeia processos de mais longo prazo.
c) Uma clara conseqncia negativa da maneira pela qual tm sido abordados os
problemas relacionados com autoritarismo e democracia na Amrica Latina o carter de
perseguio mope aos eventos revelado por muito da literatura pertinente: os estudosdeslocam-se, ao sabor das conjunturas recm-mencionadas, da ruptura democrtica
dinmica do autoritarismo, desta aos processos de abertura, transio democracia, aos
problemas da consolidao democrtica...4 Ora, patente que uma abordagem capaz de
estruturar apropriadamente nosso objeto de estudo tem fatalmente de caracterizar-se por
maior distanciamento, o que se associa tanto com maior empenho generalizante quanto
com perspectiva de tempo mais ampla. Se no, estaremos sempre expostos a repetir os
dramticos erros de diagnstico contidos, por exemplo, na difundida tendncia a avaliar a
democracia chilena da dcada de 60 como exemplar e estvel at que o sangrento golpe
de 1973 viesse desmentir tal avaliao; ou, talvez ainda mais espetacularmente, na
enftica apologia feita por Samuel Huntington do Paquisto de Ayub Khan como um
caso de institucionalizao poltica singularmente bem-sucedida pouco tempo antes de
que o pas se visse inteiramente mergulhado na violncia e no caos.5 Pondere-se, nesta
4 Estaramos, assim, diante de uma perspectiva que no v seno mudanas, tornando-se curioso assinalarque as abordagens do problema geral de que aqui se trata incluem certa perspectiva antagnica a esta que
no v seno continuidade: refiro-me abordagem que destaca a tradio "patrimonialista", "corporativa" e"autoritria" de origem ibrica, na qual nossos pases estariam inseridos e que constituiria uma espcie deessncia imutvel da vida poltica latino-americana, ou brasileira em particular. Naturalmente, do ponto devista da questo considerada no item anterior, tal abordagem "essencialista" pretenderia que a coruja deMinerva j poderia ter voado h muito tempo. Dois exemplos so Howard Wiarda, "Toward a Frameworkfor the Study of Political Change in the Iberic-Latin Tradition: The Corporative Model", World Politics,vol. 25, no. 1, janeiro de 1973, e Riordan Roett,Brazil: Politics in a Patrimonial Society, Boston, Allwynand Bacon, 1972.5 Cf. Samuel P. Huntington,Political Order in Changing Societies , New Haven, Yale University Press,1968, pp. 250 e seguintes.
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tica, a presteza com que, mal sados os pases latino-americanos de penosas experincias
autoritrias, comeou-se rapidamente a falar de alguns dos que nelas se viram envolvidos
como correspondendo a "democracias consolidadas", em certos casos antes mesmo de se
neutralizar sequer formalmente o poder autnomo dos militares.6
d) Naturalmente, o preceito que recomenda tanto sensibilidade terica e ateno
para a multiplicidade de casos ou instncias quanto perspectiva de tempo mais ampla se
refora em funo da natureza dos problemas que defrontamos. Pois trata-se de um
processo de mudana sociopoltica complexa, em que variveis ou dimenses mltiplas
interagem entre si e que contm poderosos fatores de viscosidade e resilincia que fazem
dele um processo de maturao inevitavelmente lenta e sinuosa. Tal como entendo o
desafio a contido, ele envolve a necessidade de retomada de uma perspectiva anloga,
por sua ambio analtica, da literatura sobre "desenvolvimento poltico" que prosperoucerca de trinta anos atrs. Por certo, impe-se realizar a crtica dos traos negativos
daquela literatura, incluindo-se com destaque seu claro etnocentrismo anglo-saxnico e
os postulados freqentemente ingnuos que se ligavam a ele. Mas certamente
expressivo da precariedade da cincia poltica contempornea (contribuindo sem dvida
para as deficincias existentes na literatura sobre autoritarismo e democracia na Amrica
Latina) o fato de que muito de sua dinmica intelectual seja feita de modismos e
flutuaes algo fortuitas donde a conseqncia de que invocar agora o enfoque do
desenvolvimento poltico surja como algo indevidamente anacrnico e dmod,
indispondo para o exame acurado dos aspectos analticos das questes envolvidas.
Seja como for, a apreenso adequada das vicissitudes polticas dos pases latino-
americanos que aqui nos importam parece exigir que possamos inseri-las numa espcie
de teoria dos autoritarismos modernos em conexo com uma teoria da mudana poltica
na poca moderna, ou como parte dela. Dada a inevitvel motivao prtica desta ltima,
ela se defronta inescapavelmente com a questo da direo da mudana, com respeito
qual consideraes de natureza estritamente analtica se mesclam de maneira complicada
com consideraes de natureza normativa e o tema autoritarismo-democracia toca
diretamente, como bem claro, no prprio cerne candente do interesse prtico dos nossos
6 Em alguns casos essa presteza se tem associado com a tentativa de elaborar as condies que respondempela "consolidao" em termos que omitem inteiramente e tornam como que irrelevante o fato de quehouve golpes de estado e experincias autoritrias recentes.
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esforos. Meu prprio trabalho se tem orientado na direo dada pela imbricao desses
desafios e desideratos gerais, fazenda da velha idia de mercado e da reavaliao das
implicaes profundas doprincpio envolvido nas relaes de mercado a pedra de toque
de uma tentativa de apreenso da lgica abstrata contida na experincia dos estados
nacionais na poca moderna. Nos termos dessa lgica, o problema fundamental, ou o
problema "constitucional" em sua forma mais abstrata, o de como obter que a operao
real do "mercado" (tomada a expresso em acepo ampla e ambiciosa, que no se esgota
na convencional noo econmica, apesar de basear-se nela) em qualquer sociedade
concreta no redunde precisamente na negao do princpio igualitrio e autonomista do
mercado, princpio este cuja realizao regulada e harmnica cabe tomar como o
desiderato final a ser buscado na eficaz organizao sociopoltica da coletividade e
portanto no recurso a um estado to complexo quanto se faa necessrio. Por referncia atal lgica, seria possvel tratar de estabelecerfases analiticamente distinguveis do
processo geral, as quais representam, no o rumo a ser forosamente seguido em qualquer
processo concreto, mas instrumentos teis (dada a articulao analtica relativamente
precisa que nelas se pode ter de diversas variveis relevantes) para a avaliao e o
diagnstico dos casos concretos.7
e) Um aspecto crucial do abrangente problema analtico que defrontamos diz
respeito ao reconhecimento do desafio representado pela questo das instituies polticas
e seu desenvolvimento ou, o que decisivo, sua eventual construo deliberada como
resposta ao problema prtico da organizao sociopoltica (o problema "constitucional")
que se d no convvio dos atores individuais e coletivos envolvidos no processo. A
perspectiva que acredito impor-se a respeito pode ser apreciada por contraste com certa
posio que se ilustra com um trabalho recente de Guillermo O'Donnell.8 O'Donnell
chama ateno para o fato de que a cincia poltica carece, no momento, de uma "teoria
gentica das instituies"; mas, diante da carncia assim constatada, sua recomendao
no sentido de que se trate de fazer outra coisa, dedicando-se ele prprio, no trabalho em
questo, elaborao de um modelo de "democracias delegativas", tomadas como
7 Uma elaborao recente de tais idias, feita justamente na tica do tema das "transies" na AmricaLatina e na Unio Sovitica, se tem em Fbio W. Reis, "Para Pensar Transies: Democracia, Mercado,Estado", neste volume. Vejam-se tambm meus trabalhos "Solidariedade, Interesses e DesenvolvimentoPoltico", tambm neste volume, ePoltica e Racionalidade, Belo Horizonte, UFMG/PROED/RBEP, 1984.8 Guillermo O'Donnell, "Delegative Democracy?", manuscrito, CEBRAP, So Paulo, dezembro de 1990.
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"animal" ou entidade "peculiar", modelo este supostamente adequado a certos casos
latino-americanos. Ora, tal proposta me parece conter nova abdicao (lembrando um
pouco a conhecida histria do bbado que, tendo perdido a chave de casa, procura-a sob o
poste de iluminao porque ali h luz, apesar de saber que a perdeu em outro lugar).
Particularmente se temos em conta a motivao prtica de nosso interesse pela questo de
autoritarismo-democracia, no h como deixar de lado o empenho de eventualmente
responder indagao sobre como se poderia pretender fazer construo institucional
bem-sucedida e o desafio posto nesses termos tem conseqncias analticas
importantes.
A principal dessas conseqncias diz respeito s conexes equvocas do problema
das instituies polticas e seu desenvolvimento com a temtica da "cultura poltica". O
privilgio freqentemente concedido cultura poltica no exame das questes deautoritarismo-democracia e das perspectivas de consolidao democrtica tende a
ressaltar a importncia dos elementos de natureza valorativa ou normativa. Em contraste,
penso que, embora um problema de estabelecimento de normas e valores efetivos esteja
certamente envolvido, parte decisiva das questes relevantes depende da operao de
fatores de natureza cognitiva, isto , das percepes e expectativas dos atores com
respeito situao em que se encontram e dos matizes que tais percepes e expectativas
apresentam com respeito s relaes entre atores mltiplos e perspectiva de tempo dos
atores. possvel dizer que o que importa apreender, em ltima anlise, so as atitudes
(ou disposies a agirdesta ou daquela maneira) dos atores, atitudes estas que, alm de
envolver sempre um elemento motivacional (os desejos, aspiraes, preferncias ou
interesses que esto, naturalmente, sempre presentes), so condicionadas tanto por
valores e normas quanto por cognies (percepes e expectativas). Por certo, em
qualquer momento dado h normas e valores de algum tipo que tm vigncia mais ou
menos efetiva. Mas a perspectiva que aqui se sugere ressalta duas idias: por um lado, a
idia de que analiticamente mais agudo e fecundo postular que a efetividade da vigncia
das normas e valores depende das percepes referidas situao geral (dados os
complicados problemas de coordenao que ocorrem tanto no plano intertemporal com
respeito s aes de determinado ator quanto no plano das relaes entre muitos atores
em dado momento ou em diferentes momentos, problemas estes que principalmente a
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literatura da rational choice tem destacado com vigor); por outro lado, a idia de que as
situaes de crise em que com freqncia se atua, ou se cr atuar, so especialmente
propensas a tornar salientes os aspectos cognitivos, dramatizando a urgncia e o
imediatismo dos interesses e encurtando a perspectiva de tempo dos atores, e assim
comprometendo a vigncia ou a eficcia das normas e valores.
Isso se desdobra na proposio de que o condicionamento realstico
(eventualmente, a manipulao realstica) das percepes e expectativas pr-requisito
indispensvel para a prpria criao ou implantao de valores e normas que se
considerem desejveis como os que supostamente favorecem a prtica estvel da
democracia. Essa proposio se ope frontalmente a certo moralismo edificante e
exortatrio a ser encontrado em muito do que, a respeito dos prospectos democrticos,
escrevem no apenas jornalistas e polticos profissionais, mas tambm socilogos ecientistas polticos, cujos trabalhos com freqncia redundam em pregar, de maneira
aberta ou velada, a reforma moral ou ideolgica da sociedade. Meu exemplo predileto
da perspectiva alternativa que aqui se prope se tem com a contribuio trazida pelos
Federalistas, especialmente James Madison, elaborao da constituio dos Estados
Unidos. Temendo os males que as faces poderiam acarretar para a repblica americana,
os preceitos que defende Madison se traduzem, no na exortao edificante contra os
vcios do comportamento faccioso, mas na aparelhagem institucional dos checks and
balances que contam com as faces e procuram assegurar sua neutralizao recproca e
a eventual promoo do interesse pblico, de certa maneira,por meio delas. V-se, assim,
que, se o processo de desenvolvimento institucional deve conter, em algum plano ou
esfera crucial da sociedade, um elemento de desgnio e reflexividade que v alm da
freqente miopia dos interesses dados e das perverses que tendem a brotar do jogo
espontneo e mope dos interesses mltiplos (por outras palavras, se o processo de
desenvolvimento institucional necessita ao menos ocasionalmente tomar a forma de
efetiva construo institucional), a reflexividade requerida se distinguir sobretudo pelo
fato de que ela no se permite perder de vista, onde quer que seja (no mbito econmico,
social, poltico ou mesmo moral), as condies dadas da sociedade. E a construo
institucional bem-sucedida no ser aquela que tenha como condio de xito a de que os
agentes socioeconmicos e polticos venham a atuar movidos por motivos altrustas,
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cvicos ou ticos, mas antes aquela que se baseie pragmaticamente na suposio realista
de que tais agentes tendero a atuar movidos pela busca mais ou menos estreita de seus
interesses e pelo clculo (informado ou desinformado, tosco ou sofisticado) que da
resulta. talvez til assinalar, na linguagem da teoria dos jogos, que aquilo que aqui se
descreve como manipulao destinada a condicionar convenientemente as expectativas
pode ser traduzido como meio (talvez o nico meio disponvel) de eventualmente
transformar situaes correspondentes a jogos do tipo "dilema do prisioneiro",
caracterizadas pela incompatibilidade radical entre o interesse particular e o interesse
geral, em outras do tipo dos jogos de solidariedade condicional (assurance), onde a
considerao lcida do interesse prprio induz ao convergente com o interesse geral.
2
A questo geral da articulao entre a priso das circunstncias imediatas e a
reflexividade requerida pela busca de objetivos democrticos estratgicos coloca-se de
maneira especialmente aguda, como vimos h pouco, nas situaes de crise. Como
avaliar, em termos gerais, a relevncia das crises econmico-sociais conjunturais para o
problema poltico-institucional e para os prospectos de estabilizao e consolidao
democrtica?
Um aspecto decisivo a ser ponderado para colocar o tema em perspectiva tem a
ver com o desdobramento diretamentesocialdo problema posto pela convivncia entre o
capitalismo e a democracia poltica, que redunda no cerne mesmo da questo poltico-
institucional ou da questo constitucional de que falamos anteriormente. Com efeito, se
o problema geral da democracia visto usualmente como correspondendo a um problema
de distribuio de poder que diria respeito antes de tudo ao acesso diferencial
aparelhagem do estado, tal problema de distribuio de poder se coloca igualmente j no
prprio plano social ou socioeconmico (no planoprivado). A viso liberal convencional
pretende que as relaes de poder s existiriam entre os indivduos privados, de um lado,
e o estado, de outro, enquanto as relaes dos indivduos entre si seriam horizontais,
contratuais e livres de poder.9 Contrariamente a isso, o capitalismo como forma de
9 Cf. Gianfranco Poggi,A Evoluo do Estado Moderno, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 104.
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organizao econmica envolve, naturalmente, a existncia de classes sociais
estratificadas. Mas a estrutura de classes apresenta peculiaridades importantes
relativamente s estruturas tradicionais de dominao, em particular o fato de estar
fundada na operao do princpio do mercado, com a potencialidade igualitria que lhe
prpria. Ao dar-se a afirmao e a penetrao do capitalismo junto a uma estrutura de
tipo tradicional, com os conseqentes deslocamentos populacionais e a redefinio da
articulao entre identidades pessoais e coletivas e os interesses correspondentes, cria-se
a necessidade de reacomodao no convvio das categorias estratificadas. Na dinmica
que assim se deflagra, um trao essencial o efeito corrosivo exercido pelo igualitarismo
do princpio do mercado sobre os componentes de desigualdade e hierarquia da estrutura
social tradicional. Embora o capitalismo instaure a sua prpria desigualdade, esta,
fundada no mercado, inerentemente contraditria e potencialmente revolucionria, porcontraste com o conformismo da condio tradicional. H, portanto, um sentido
importante em que o capitalismo se mostra ele prprio socialmente democratizante, ao
envolver a expanso das relaes de mercado. E, contra a tendncia usual a conectar a
discusso do tema do capitalismo diretamente com o da democracia poltica, possvel
dizer que o prprio problema da democracia socialsurge com o capitalismo e talvez
mesmo que por suas conexes com o tema da democracia social e as virtualidades a ele
ligadas que o tema da democracia poltica adquire importncia e dramaticidade em suas
relaes com o capitalismo, configurando o problema constitucional bsico a exigir
soluo.
As alternativas em princpio abertas para tal soluo as quais tm fornecido,
como possibilidades postas ao menos no horizonte dos atores, os parmetros dentro dos
quais o jogo poltico se tem desenvolvido, especialmente no caso dos pases capitalistas
menos avanados incluem: (1) o confronto revolucionrio e a eventual supresso do
capitalismo; (2) a represso implantada por regimes de autoritarismo conservador, em
que se extrema o compromisso do aparelho estatal com os interesses dos capitalistas; e
(3) algum tipo de equilbrio e de compromisso democrtico. Cada uma dessas solues
pode apresentar, naturalmente, maior ou menor grau de eficcia e estabilidade. As
condies da atualidade indicam com fora que a soluo real, efetivamente estvel, se
tem com o compromisso democrtico que se viabiliza com o amadurecimento do prprio
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capitalismo: ela contrasta com o carter instvel do autoritarismo conservador,
distinguido pela aberta represso de determinados interesses e pela presena de forte
elemento coercitivo, e com certas complexidades quanto estabilidade da sada
revolucionria de que nos ocuparemos adiante. Mas importa sobretudo ressaltar que a
soluo estvel do problema antes a exceo: a regra so as idas e vindas do problema
constitucional no resolvido, assumindo a forma do pretorianismo destacado nas
anlises clssicas de Huntington sobre o problema da institucionalizao poltica e
ensejando a oscilao do quadro poltico entre os arranjos abertamente autoritrios, por
um lado, tipicamente marcados pelo controle ostensivo do processo poltico pelos
militares, e, por outro, as formas populistas nas quais o estado tende a mostrar-se
exageradamente exposto ao varejo de uma multiplicidade de interesses que se afirmam de
maneira mais ou menos imediatista, estreita e fisiolgica.10
Quanto questo do papel das crises econmicas conjunturais nessa dinmica geral,
certa presuno parece natural para o caso em que o capitalismo se acha implantado e em
operao: a de que, se o processo econmico afeta de maneira negativa as condies
sociais gerais, isso tender provavelmente a resultar em conseqncias negativas tambm
para os termos em que se desenvolve a interao estratgica e mais propriamente poltica
entre os atores e para os prospectos institucionais (ou constitucionais) de mais longo
prazo. Alm disso, sempre nas condies dadas pela miopia relativa do presente e da
conjuntura que se desenvolve qualquer atividade humana, incluindo as aes orientadas
por objetivos "constitucionais" de longo prazo e essa miopia, como vimos, tender a
agravar-se em conjunturas de crise.
Contudo, ocorrem aqui matizes de grande importncia. Assim, a premissa
segundo a qual a crise socioeconmica conjuntural ter conseqncias negativas para o
problema constitucional geral contempla uma situao de estagnao ou recesso na qual
se detm ou reverte circunstancialmente a dinmica do desenvolvimento capitalista. As
suposies envolvidas quanto relao de causalidade entre os dois termos do problema
parecem incluir sobretudo a idia de que tal reverso tender a produzir insatisfao
popular, escalada de reivindicaes e conseqentes manifestaes de instabilidade
sociopoltica, que podero eventualmente desaguar em novas rupturas do jogo
10 Huntington,Political Order in Changing Societies.
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democrtico. Mas um ngulo adicional a ser destacado o de que, vistas as coisas na
tica do problema constitucional tal como anteriormente caracterizado, o fator
fundamental a configurar o quadro de instabilidade sociopoltica em que emergem
socialmente tanto as aspiraes democrticas quanto os experimentos autoritrios da
natureza dos que temos conhecido recentemente so antes a afirmao e a penetrao do
capitalismo junto a estruturas sociais tradicionais. Ora, dependendo das condies
estruturais tradicionais em que se inicia o processo, mesmo um capitalismo
comparativamente dinmico por certos aspectos, como foi o caso do capitalismo
brasileiro durante vrios decnios, pode produzir resultados em que os efeitos
sociopsicolgicos usualmente associados afirmao do capitalismo e das relaes de
mercado tenham penetrao apenas parcial ou limitada. Este precisamente o caso do
Brasil, onde o grande fosso social nascido do escravismo continua separando as classessociais e permite apontar certa caracterstica remanescente de relaes de castas como
estando ainda presente em grau importante na estrutura social do pas. Nesse quadro,
subsiste na massa popular a vigncia extensa de hbitos de deferncia, passividade e
conformismo ainda que tais hbitos convivam com certa insatisfao difusa e que se
produza, na mescla desses elementos, o populismo que tem marcado o processo poltico-
eleitoral brasileiro, com o apoio das massas a lideranas que com freqncia lhes so
heterogneas.
O que isso sugere que provavelmente existem limiares a serem transpostos no
que se refere penetrao ou difuso das relaes de mercado e dos mecanismos
sociopsicolgicos correspondentes para que as vicissitudes da conjuntura possam ter
efeitos mais significativos na direo prevista pelas suposies indicadas. Por outras
palavras: certo grau de reduo social e psicolgica da desigualdade, ou seja, de real
democratizao social, condio para que a desigualdade venha, aos olhos das massas
populares, a ser efetivamente sentida como problema, e sobretudo como problema
passvel de traduzir-se em reivindicaes levadas de maneira mais conseqente esfera
poltica. Se referida seqncia estabelecida por T. H. Marshall entre os componentes
civil, poltico e social da cidadania, que supostamente se sucederiam nessa ordem, o
ngulo de viso aqui sugerido indicaria uma correo importante, segundo a qual a
dinmica especificamente "social" se torna, em alguma medida, condio para a
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penetrao e difuso da prpria idia dos direitos "civis" como direitos reais, para no
falar dos direitos polticos.11 No caso brasileiro, lembre-se que foi o dinamismo
econmico, acelerando-se especialmente em certa fase do regime autoritrio recente e
produzindo conseqncias sobre a estrutura ocupacional do pas, que criou as condies
para o surgimento do novo movimento sindical autnomo e afirmativo e para o
ineditismo de sua ramificao partidria e bem claro o sentido em que tal surgimento
representa o agravamento, ao menos imediato, do problema constitucional latente, ao
dificultar a operao dos mecanismos de cooptao e controle que estiveram
tradicionalmente disposio das elites poltico-econmicas. Mas, no obstante a
existncia e a atuao de certas importantes "vanguardas" populares que assim se
constituem, as condies gerais socialmente desfavorveis imperantes no pas certamente
impediram, at aqui, a ocorrncia mais plena do efeito civil-poltico indicado, com aconseqncia de provavelmente reduzir o impacto poltico-institucional
("constitucional") de crises socioeconmicas especficas at o ponto em que tal impacto
dependa de disposies reivindicantes e autnomas entre os setores populares por si
mesmos.
Contudo, essa qualificao final pode revelar-se de importncia decisiva. Pois a
prpria idia de uma crise constitucional pode assumir, com o agravamento e a eventual
exasperao da crise socioeconmica "conjuntural", feies inteiramente distintas das at
aqui consideradas. Assim, apesar do que h de apropriado em ligar, em princpio, o
problema constitucional com a afirmao e a penetrao do capitalismo e com a
conseqente necessidade de acomodao nas relaes entre novos atores e categorias
sociais que o capitalismo desloca e "mobiliza", a eventual exacerbao da crise
socioeconmica tende a empurrar a questo constitucional para o nvel de uma radical
desagregao social, de desgoverno e talvez ingovernabilidade, onde podem recolocar-se
at mesmo inquietudes relativas prpria viabilidade nacional. Em vez de indagaes
11 A crtica das concepes clssicas de Marshall pode encontrar-se em Anthony Giddens, "Class Division,Class Conflict and Citizenship Rights", em A. Giddens,Profiles and Critiques in Social Theory, Londres,MacMillan, 1982. Rica elaborao das relaes entre as dimenses "civil" e "cvica" no desenvolvimentoda idia de cidadania, com implicaes de grande interesse para os problemas tocados nos pargrafosseguintes do texto, se tem em George A. Kelly, "Who Needs a Theory of Citizenship?",Daedalus, outonode 1979 (vol. 108, no. 4 dosProceedings of the American Academy of Arts and Sciences). Eu prprio mevalho da distino entre as duas dimenses para a discusso mais detida dos problemas brasileiroscorrelatos em "Cidadania Democrtica, Corporativismo e Poltica Social no Brasil", captulo 12 do presentevolume.
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inspiradas, digamos, por Marx e seu questionamento das relaes entre o capitalismo e a
democracia poltica, o que se tem no horizonte, na hiptese considerada, antes uma
imagem de caos hobbesiano, no qual o dilema olsoniano de como assegurar a
solidariedade e o bem pblico se colocaria no plano mais bsico e profundo, em que a
prpria ordem social e a segurana de cada um se veriam ameaadas.12 Nessa situao, os
mecanismos de "vale-tudo" e de defesa imediatista e "fisiolgica" do interesse prprio
que se associam com a vigncia do pretorianismo tenderiam a intensificar seu vigor e a
difundir-se pela sociedade, estendendo-se s diversas reas de atividade e interao
social.
Se consideramos os processos efetivamente vividos pela sociedade brasileira na
atualidade, clara expresso das ameaas contidas nesta forma alternativa da crise
constitucional se tem na dinmica selvagem da inflao que experimentamos at hpouco. Torna-se a patente a tenso entre o interesse de longo prazo da coletividade
nacional como tal em poder contar com preos estveis e o interesse imediato de cada
agente isolado em maximizar ganhos ou evitar perdas nas circunstncias dadas pelas
expectativas sobre o que faro os demais agentes e pelo complicadssimo problema de
coordenao que resulta mesmo se supomos agentes "virtuosos" e sensveis ao interesse
coletivo. Da a conseqncia de que cada um adote formas de comportamento que
tendem a manter e agravar a inflao e de que a proximidade pressentida da
hiperinflao supostamente catastrfica para todos no faa seno intensificar tais efeitos
perversos.
O interesse deste ngulo do problema tem a ver com o fato de que, se a
deteriorao descrita avana alm de certo ponto, a "sada" correspondente a algum tipo
de ruptura autoritria e militarista aumenta suas probabilidades de ocorrncia de maneira
talvez independente, em maior ou menor medida, da lgica geral da dinmica capitalista
e das vicissitudes quanto a autoritarismo-democracia que tendem a acompanh-la e nas
quais se enquadram as formas "normais" do problema constitucional. E a importncia
desta linha de consideraes se v provavelmente acrescida em funo do novo cenrio
mundial, onde as novas tendncias econmico-tecnolgicas e a prpria derrocada do
socialismo pareceriam retirar plausibilidade a uma perspectiva atenta para focos sociais
12 A referncia, naturalmente, a Mancur Olson, The Logic of Coolllective Action: Public Goods and theTheory of Groups, Nova York, Schocken Books, 1965.
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capazes de agir como catalisadores conseqentes de insatisfao e para a relevncia da
percepo mais ou menos difusa do risco da ocorrncia de revolues anticapitalistas.
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No caberia pretender perseguir minuciosamente aqui as possveis implicaes
das sugestes formuladas na seo anterior. Contudo, gostaria de tomar brevemente dois
pontos de interesse.
Em primeiro lugar, a observao de que as relaes algo circulares acima
indicadas entre o plano civil-poltico e o plano social no que se refere s disposies ou
atitudes populares representam um aspecto crucial a ser tido em conta no exame
comparativo dos prospectos democrticos nos diferentes pases latino-americanos, assimcomo em outros casos de democracia problemtica. Note-se que os mecanismos em jogo
na penetrao e difuso dos correlatos sociopsicolgicos do princpio do mercado, cujo
carter mais ou menos pleno ou limitado resulta nas feies especficas assumidas pelas
relaes entre as dimenses social e civil-poltica, so provavelmente os fatores por
excelncia a responder pela difuso do clculo instrumental de interesses cujo papel foi
acima contrastado com o dos elementos de natureza normativa do ponto de vista de suas
conseqncias para a implantao de instituies polticas estveis. O alcance maior das
perspectivas assim abertas tem a ver com o lapso mais ou menos duradouro e
problemtico que se estabelecer entre um suposto momento inicial de penetrao
"mercantil" do sentido de autonomia e da propenso ao orientada pelo clculo de
interesses, com a ruptura da vigncia das disposies normativas de cunho tradicional e
conformista, e o momento "final" da eventual instaurao efetiva de novas normas
apropriadas operao continuada de um "mercado" que no se veja permanentemente
ameaado de deteriorar na disposio generalizada fraude e, no limite, beligerncia.
Tomemos a elaborao feita por Guillermo O'Donnell, a partir de conhecidas
idias de Roberto da Matta, das diferenas entre as atitudes supostamente tpicas de
brasileiros, argentinos e norte-americanos diante de interpelaes que colocam em
questo o carter igualitrio do relacionamento social. Refiro-me supostamente bem-
sucedida interpelao brasileira do "Voc sabe com quem est falando?", que os
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argentinos supostamente contestariam com "Y a mi que mierda me importa?",
contestao esta que contrasta fortemente com o "Who do you thinkyou are?" que seria
tpico dos norte-americanos em situaes anlogas.13 Tais diferenas referem-se a
hipotticas cristalizaes sociopsicolgicas (culturais...) que resultariam justamente do
jogo entre as dimenses social e civil-poltica e que provavelmente poderiam ser vistas
como correspondendo a "fases" ou "momentos" diferentes do processo em que tende a
ocorrer o "lapso" acima indicado: o conformismo ingnuo diante da autoridade real ou
alegada (Brasil), a afirmao cnica e agressiva da autonomia pessoal (Argentina), o
sentido "civil" da autonomia temperado por certa moderao "cvica" que contesta sem
maiores arrogncias a imprpria postura autoritria do outro (EUA)...14 Aparentes
"peculiaridades" culturais apareceriam, assim, como o resultado da lgica em jogo no
processo geral. E parte importante do desafio envolvido num esforo comparativoanaliticamente bem orientado diria respeito produo de indicadores com base nos
quais fosse possvel estabelecer a posio relativa de diferentes casos nacionais no
"lapso" constitucional aberto no desdobramento do processo.15
O segundo ponto anunciado anteriormente refere-se possvel relevncia das
diferentes implicaes "constitucionais" das crises socioeconmicas conjunturais, de que
13 Veja-se Guillermo O'Donnell, "E Eu com Isso?", em G. O'Donnell, Contrapontos: Autoritarismo eDemocratizao, So Paulo, Vrtice, 1986; e Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e Heris, Rio deJaneiro, Zahar, 1978.14 Numa perspectiva algo cnica (e portanto afim a certas "espertezas" argentinas ou, em geral, latino-americanas), poder-se-ia sugerir que a idia de certa "cultura" ou psicologia coletiva apropriada democracia redunda numa espcie de "gullibility theory of democracy", ou de viso na qual certa inocnciaou ingenuidade aparece como necessria estabilidade democrtica. O capitalismo e o mercado incipientesacarretam a perda da inocncia, parcial ou totalmente. E o desafio seria o de como restaurar certa forma deinocncia na prpria vigncia do capitalismo e do mercado: vale dizer, uma "inocncia" que fosse capaz deimpedir que se resvalasse para a busca desenfreada e cnica do interesse prprio, mas que fosse ao mesmotempo inequivocamente instrumental, pragmtica e mesmo "egosta" no renunciando, portanto, buscado interesse e da afirmao pessoal autnoma e cognitivamente to sofisticada quanto possvel em seu
pragmatismo.15 Dados produzidos e examinados (em textos ainda inditos) em conexo com um projeto de pesquisa
executado sob a coordenao do autor h alguns anos fornecem indicaes potencialmente importantessobre a articulao complexa entre os aspectos normativo e cognitivo (ou de clculo) que essas observaessugerem. Eles mostram que, no contexto brasileiro (e provavelmente de maneira mais geral), nveis maisaltos de informao e sofisticao se acham associados, em condies normais, com maior propenso a daradeso a valores solidrios ou cvicos; contudo, na ocorrncia de circunstncias que tendam a tornarobjetivamente incua ou ineficaz a postura cvica, quanto maiores a informao e a sofisticao, tantomaior a propenso a substituir a postura cvica pela disposio defesa desembaraada ou cnica dointeresse prprio. bem clara a relevncia que isso pode ter para fenmenos como a deteriorao dedisposies democrticas em situaes de crise e para a eventual apreenso da lgica do processo geralsugerido no texto.
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se falou acima, se apreciadas do ponto de vista de uma eventual teoria dos autoritarismos
modernos, como parte de uma teoria da mudana poltica que permita superar a miopia
de muito de nossas discusses. As breves sugestes que aqui se podem fazer so bem
simples, tratando-se apenas de indicar certas conexes que se opem igualmente
tendncia a ressaltar "especificidades" ou "peculiaridades".
Por contraste com os casos de regimes autoritrios onde existe a figura de um
caudilho que de alguma forma personifica o regime e propicia um foco de coeso para as
foras que os sustentam (em particular as foras armadas), o autoritarismo brasileiro de
ps-64 corresponde a um autoritarismo sem caudilho cujo ncleo representado pela
corporao militar como tal. Os dois tipos diferem quanto dinmica que os caracteriza:
enquanto os regimes de caudilho parecem exibir maior estabilidade de curto prazo ao
mesmo tempo em que se vem expostos a ameaas mais srias a sua prpriasobrevivncia no momento de sucesso, os regimes sem caudilho parecem debater-se
num dilema que o caso brasileiro mostrou de forma clara: o xito mesmo dos militares
em restringir a participao nas decises polticas cruciais corporao militar como tal
tende a fazer desta um organismo exposto competio interna e a riscos de dissenso.
Independentemente da questo de qual tipo poder eventualmente ser considerado mais
avanado, a ocorrncia de um ou de outro provavelmente se acha relacionada ao grau
geral de desenvolvimento e complexidade alcanado pela estrutura socioeconmica e
poltica, bem como ao grau de profissionalizao da prpria corporao militar (apesar de
que o papel exercido pela figura do chefe nos regimes propriamente fascistas sugira
padres mais complexos a este respeito). Por sua vez, tais aspectos podem relacionar-se
de maneira no muito simples com ambientes sociais gerais que variam quanto
penetrao e ao amadurecimento do capitalismo e das condies psicossociais que lhe so
prprias.
De qualquer forma, "autoritarismo", nesse contexto, refere-se nitidamente ao
campo compartilhado pelos casos que vieram a se tornar conhecidos sob a denominao
de regimes "burocrtico-autoritrios" proposta por Guillermo O'Donnell. bem clara a
afinidade desses casos com outros que poderiam ser vistos (e o foram) como
intermedirios entre a democracia representativa e o totalitarismo, como o caso da
Espanha de Franco (no obstante a "peculiaridade" pretendida por Juan Linz para o
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autoritarismo desse tipo, justamente em oposio idia de que ele representaria uma
espcie de categoria intermediria e, como tal, de alguma forma "instvel").16 E recorde-
se que a discusso feita pelo prprio Guillermo O'Donnell dos fatores conducentes ao
autoritarismo BA assinalava a importncia de consideraes funcionais relacionadas com
as necessidade de "aprofundamento" do capitalismo. Tal perspectiva me parece
essencialmente correta, apesar de expor-se a certas crticas que resultam, a meu juzo,
precisamente de uma leitura demasiado "conjuntural" da idia proposta por O'Donnell.17
Se admitimos, porm, que casos como o da Espanha franquista e os recentes
autoritarismos latino-americanos devem ser vistos como respostas para os mesmos
problemas bsicos, que dizer das relaes de ambas as categorias com outros
autoritarismos modernos o fascismo, eventualmente o nazismo? Tomem-se, por
exemplo, as anlises de Salvador Giner e Gianfranco Pasquino no volume dedicado aosul da Europa do livro sobre transies publicado h alguns anos por O'Donnell,
Schmitter e Whitehead.18 Giner apresenta o fascismo italiano como uma espcie de
prottipo da categoria de autoritarismos perifricos que se acaba de mencionar, enquanto
Pasquino caracteriza o fascismo italiano como "experincia totalitria fracassada", o que
sugere que o prottipo seria antes algo como o nazismo e acabamos tendo uma conexo
intrigante entre diferentes autoritarismos, a qual dificilmente justificaria a pretenso de se
tratar cada um deles de maneira isolada se se quer realmente chegar a entender o que se
passa. De novo, note-se que as anlises de Giner, que toma o fascismo como prottipo,
destacam as condies de atraso relativo em que se do certos avanos na penetrao do
capitalismo como fator causal importante (no que, alis, Giner no faz mais do que seguir
certa tradio de anlise). Do ponto de vista do contraste examinado acima entre duas
formas de se articularem as crises socioeconmicas conjunturais e o duradouro problema
16 Juan Linz, "An Authoritarian Regime: Spain", em Stein Rokkan e Erik Allardt (eds.), Mass Politics:Studies in Political Sociology, Nova York, Free Press, 1970.17
As conhecidas idias de Guillermo O'Donnell a respeito podem encontrar-se, por exemplo, em "Sobre o'Corporativismo' e a Questo do Estado", Cadernos DCP, n. 3, maro de 1976, e em "Reflexiones sobre lasTendencias Generales de Cambio en el Estado Burocrtico-Autoritario", CEDES, Buenos Aires, 1975. Paraa avaliao dos trabalhos de ODonnell, veja-se David Collier (ed.), The New Authoritarianism in Latin
America, Princeton, N.J., Princeton University Press, especialmente o captulo de Jos Serra, "ThreeMistaken Theses Regarding the Connection between Industrialization and Authoritarian Regimes".18 Salvador Giner, "Economia Poltica, Legitimao e o Estado no Sul da Europa" (especialmente pp. 46-7),e Gianfranco Pasquino, "A Derrocada do Primeiro Regime Fascista e a Transio Italiana para aDemocracia: 1943-1948" (especialmente pp. 76-7), ambos em Guillermo O'Donnell, Philippe C. Schmittere Lawrence Whitehead (orgs.), Transies do Regime Autoritrio: Sul da Europa, So Paulo, Vrtice, 1988
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constitucional, cabe tambm assinalar que a hiptese em que a crise conjuntural ameaa
degenerar na situao-limite hobbesiana de desagregao radical e insegurana
generalizada certamente prover terreno mais fecundo para que se tornem atraentes as
lideranas "fortes" e os apelos de solidariedade nacional irrestrita em que o autoritarismo
propriamente fascista tende a fundar-se.
Mas o exerccio relacionado com o eventual parentesco entre diferentes
autoritarismos e os desafios analticos correspondentes no tem por que deter-se nos
casos at aqui mencionados. Sem dvida, todos eles apresentam ainda certa afinidade
como autoritarismos "de direita", digamos , que permitiria contrast-los em conjunto
com casos como os dos pases de "socialismo real". Contudo, mesmo se deixamos de
lado as abordagens que pretenderam aproximar nazismo e stalinismo como casos de
"totalitarismo", as mudanas recentes na antiga Unio Sovitica e nos pases do Lesteeuropeu impem perguntas nas quais os experimentos ali ocorridos e seus
desdobramentos atuais se situam em cheio no mbito dos problemas que nos interessam e
intrigam.19 A tese da "latino-americanizao", de Adam Przeworski, pretendendo
descrever o que se passa naqueles pases como a implantao da combinao de
capitalismo pobre com instabilidade poltica (com a eventual ocorrncia de autoritarismos
anlogos aos nossos...), no seno uma formulao dramtica da relevncia recproca
dos dois conjuntos de casos. Mas, cabe indagar, como possvel que um processo de
desenvolvimento institucional que por vrios aspectos pde pretender ser, ao menos
potencialmente, uma forma de organizao sociopoltica superior "mera" democracia
liberal, e que ademais pde amadurecer durante longos anos, venha de repente juntar-se
ao nosso duradouro pantanal de subdesenvolvimento econmico e poltico-institucional?
Tratar-se-, de fato, apenas de latino-americanizao, isto , do mero fracasso ou
derrocada de um modelo de organizao sociopoltica? Ou os eventos recentes nos traro
alguma revelao nova sobre a natureza mesma dos sistemas de "socialismo real", com
base na qual certos matizes talvez importantes da "derrocada" possam ser tidos em conta?
Creio que parte importante da resposta principal perplexidade envolvida nessas
questes, isto , a relativa restaurao algo sbita de condies anlogas s que
19 A discusso algo mais extensa de algumas das idias esboadas a seguir podem ser encontradas Fbio W.Reis, "A Estranha Derrocada do Socialismo",Jornal do Brasil, caderno de Idias-Ensaios, 17 de novembrode 1991, bem como em "Para Pensar Transies: Democracia, Mercado, Estado", neste volume.
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encontramos em nosso prprio continente, tem a ver com o fato de que, tudo somado, o
"modelo" de maior vigncia e aplicabilidade mais ampla somos ns, ou seja, o que
corresponde aos casos latino-americanos: como se disse antes, a regra o problema
constitucional no resolvido, com a instabilidade pretoriana de mltiplas faces em que ele
se expressa, e nessa regra tendero a recair sempre as excees que no consigam
sustentar-se como tal. J se destacaram acima a singularidade da soluo representada
pelo compromisso democrtico permitido pelo capitalismo maduro e o carter
excepcional de que ela se reveste. A grande indagao com respeito ao "socialismo real"
a de at que ponto, com a prolongada durao que foi capaz de exibir, ter ele
representado outra exceo verdadeira e consistente ao pretorianismo (que fosse talvez
possvel pretender retomar com as apropriadas "correes") ou, diversamente, somente
uma forma alternativa de bloquear autoritria e repressivamente as manifestaes deinstabilidade prprias do problema constitucional bsico, o qual teria subsistido de
maneira latente, preservando-se, portanto, a propenso recada pretoriana nos pases em
questo.
Uma ponderao a ser contraposta nfase unilateral e provavelmente excessiva
na idias de "fracasso" e "derrocada", particularmente com respeito Unio Sovitica
(como foco hegemnico e "matriz" do que se passou nos demais pases socialistas do
Leste europeu), a que assinala a indita capacidade de reflexividade e desgnio por parte
da aparelhagem governamental, capacidade esta que se evidencia naquilo que
ironicamente veio a se revelar, ao cabo, como a crise final do regime. Afinal, quando, na
histria mundial, um sistema poltico-econmico levou a cabo de forma to amena
reformulaes de tal alcance e ritmo e em meio a uma crise de feies to diversas e de
tais propores? Cabe lembrar que o teste decisivo da consistncia e vigor das
instituies polticas certamente sua capacidade de auto-reformulao: no limite,
instituies polticas efetivas so aquelas capazes de fazer nada menos do que revolues
pacficas, na linha da "subverso permanente" que Roberto Mangabeira Unger reclamava
h alguns anos (com boas razes doutrinrias, ainda que com pauprrimas razes em
termos de uma sociologia poltica realstica da atualidade brasileira) como algo a ser
instaurado pela constituio brasileira de 1988.20
20 Conferncia pronunciada na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, em 21 de maio de1985.
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Seria preciso indagar, assim, como se d que um sistema autoritrio
aparentemente monoltico tenha podido engendrar a capacidade de auto-renovao e
sabido evitar em grau notvel o vale-tudo pretoriano e a violncia no processo
correspondente. Do ponto de vista da aparelhagem organizacional, esse elemento de
reflexividade e desgnio certamente uma espcie de contrapartida positiva da hipertrofia
estatal no modelo do socialismo sovitico, em correspondncia com a atrofia dos
mecanismos de mercado que to caro haveria de custar em termos da eficincia
econmica global do sistema. Mas talvez igualmente importante o que se pode apontar,
no caso da Unio Sovitica, como o contedo mesmo da intencionalidade estatal, e que
provavelmente tambm a razo principal de que a aparelhagem institucional do pas tenha
acabado por ajustar-se mal imagem de monolitismo sinistro: depois de tudo,
apropriado lembrar a afinidade ltima entre o iderio socialista e o anseio democrtico.De qualquer forma, a proposio central aqui a de que o processo recente na
antiga Unio Sovitica representou a reabertura ou recolocao dos termos gerais do
mesmo problema constitucional bsico com que nos defrontamos todos os que nos vemos
s voltas com a forma de organizao sociopoltica "nacional" prpria da poca moderna
- deixando de lado o fato de que, com os novos processos econmico-tecnolgicos e
sociais da globalizao, o problema constitucional, com o desafio de organizao que
envolve, passa a colocar-se dramaticamente, na verdade, na prpria escala transnacional
ou planetria. Naturalmente, na ex-Unio Sovitica o problema se recoloca de maneira
distinta em relao a outros casos nacionais, em funo da peculiar combinao que l se
tem dos elementos de mercado e estado. A diferena decisiva se refere a que o problema
se reabre aps um longo perodo em que foi possvel aprender que pretender prescindir
inteiramente do capitalismo e dos capitalistas significa abrir mo no apenas dos aspectos
"viciosos" do mercado, mas com eles tambm dos aspectos "virtuosos" em termos de
eficincia econmica coletiva, bem como em termos do valor democrtico
correspondente autonomia dos agentes, quer individuais ou coletivos de diferentes
escalas. Resta a indagao crucial (de grande interesse luz de certos aspectos antes
destacados a respeito do caso brasileiro) sobre a maneira pela qual as condies de
igualdade social que se produziram na Unio Sovitica em condies dadas pela
hipertrofia estatal e na ausncia da operao mais ampla do princpio do mercado
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interferem com as perspectivas gerais que se abrem para o pas. Estaro presentes de
alguma forma, como conseqncia dessa igualdade social bsica, os mecanismos
sciopsicolgicos de inconformismo e busca da "afirmao de si" que tendem a associar-
se com a atuao difundida do princpio do mercado? Que cabe esperar, como resultado,
no apenas para as perspectivas imediatas de converso capitalista, mas tambm para as
perspectivas de estabilidade poltico-institucional a mais longo prazo, na medida em que
aqueles mecanismos venham a ser apropriadamente estimulados e eventualmente a
difundir-se? Como se agregar a esse quadro a memria de uma real experincia
revolucionria, bem como certo ethos socialista que parece longe de haver-se dissipado
inteiramente?
Concluamos com a observao de que, no caso do Brasil, no obstante a retrica
neoliberal que se tornou dominante (e admitindo o que h de vlido em certa reviso queessa dominncia imps com respeito a outras concepes anteriormente em voga),
tambm o estado que se v chamado de maneira que envolve, paradoxalmente, grande
medida de paternalismo a criar e difundir as prprias disposies "civis", reivindicantes
e autonomistas que em outras situaes puderam basear-se em maior grau na dinmica
espontnea dos mecanismos de mercado.
As perplexidades e indagaes assim sugeridas abrem, quero crer, rumos talvez
propcios pesquisa teoricamente orientada e comparao fecunda.