moreira - cap 9

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1 DE CARL ROGERS A MERLEAU-PONTY: A PESSOA MUNDANA EM PSICOTERAPIA CASTELLS, M. La era de Ia información. Madrid: Alianza, vol. L, 1998. EHRENBERGER, A. La fatigue detre sói. Dépression et societé. Paris: Odile Jacob, 2000. FROMM, E. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. GOLDMANN, L. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972. GOLDMANN, H. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. HAYECK, F. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1976. HIEBSCH, H. & VORWEG, M. Introdução à psicologia social marxista. Lisboa: Novo Curso, 1980. HORKHEIMER, M. Filosofia e teoria crítica. In: W. BENJAMIM, M. HORKHEIMER, T. ADORNO & J. HABERMAS. (Eds.). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. IANNI, 0. Introdução. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1979. LEIBNITZ, G. Novos ensaios sobre o entendimento humano. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. LIPOVETSKY, G. La era delvacio. Barcelona: Anagrama, 1986. MARX, K. capital. Paris: Sociales, 1977. MILL, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: J. BENTHAN Y J. MILL. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. MOREIRA, V. Prefácio. In: FIGUEIREDO, L.C. Psicologia: uma introducción visión histórica de Ia psicologia como ciência. Santiago: Editorial Santiago de Chile, 2002. MOREIRA, V. & SLOAN, T. Personalidade, Ideologia e Psicopatologia: Crítica. São Paulo: Escuta, 2002. MULIÁN, T. Chile actual: anatomia de un mito. Santiago: LOM, 1997. ROUSSEAU, J. El contrato social. Madrid: Edaf, 1978. SARTRE, J. & FERREIRA, V. O existencialismo é um humanismo. Lisboa: Presença, 1970. SMITH, A. Investigação sobre a natureza e as causas das riquezas das nações. In: A. SMITH & D. RICARDO (Eds.). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. TRAN-DÚC-THÁO, M. Phenoménologie et matérialisme dialectique. Paris: Gordon & Brean, 1971. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: (Ed.). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Capítulo 9 A NOÇÃO DE PESSOA NA TEORIA DE CARL ROGERS* A CONCEPÇÃO DE HOMEM EM ROGERS A teoria psicoterapêutica desenvolvida por Rogerstem como fundamento uma concepção filosófica de homem que se encontra implícita em toda sua obra. É a partir da ideia de homem definido como pessoa que o pensamento rogeriano se organiza em uma teoria de psicoterapia, por meio da elaboração de conceitos e de um corpo metodológico, embora só em sua segunda fase, o termo pessoa apareça como denominação de sua proposta. A revisão cronológica dos escritos rogerianos mostra que estes se vão constituindo, reformulando e ampliando ao longo dos anos, desde a Teoria Não-Diretiva até à Abordagem Centrada na Pessoa, num caminho em que as ideias vão se superando a si mesmas, os pontos de vista complementam-se e os conceitos se re-elaboram. É interessante notar, porém, que a concepção de homem de Rogers se mantém, ao longo de toda sua teorização, ligada à noção de pessoa como centro. Ainda que em seus primeiros escritos não desenvolva uma proposta psicoterapêutica, pode-se encontrar suas sementes, já que a concepção de pessoa em Rogers não se modifica estruturalmente, ainda que se amplie e se vá refinando teoricamente. Este fato é tão marcante que, frequentemente, os escritos de Rogers são repetitivos, dado que o autor retoma sempre sua concepção de pessoa para fundamentar a evolução de seu pensamento. Este capítulo é a reformulação do artigo Moreira, V. A noção de pessoa na teoria de Cari Rogers. Revista Brasileira de Pesquisa em Psicologia, v. 4, n. 2, p, 7-18,1992.

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Page 1: Moreira - Cap 9

1 DE CARL ROGERS A MERLEAU-PONTY: A PESSOA MUNDANA EM PSICOTERAPIA

CASTELLS, M. La era de Ia información. Madrid: Alianza, vol. L, 1998.EHRENBERGER, A. La fatigue detre sói. Dépression et societé. Paris: Odile Jacob, 2000.FROMM, E. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.GOLDMANN, L. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difusão Europeia

do Livro, 1972.GOLDMANN, H. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.HAYECK, F. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1976.HIEBSCH, H. & VORWEG, M. Introdução à psicologia social marxista. Lisboa: Novo

Curso, 1980.HORKHEIMER, M. Filosofia e teoria crítica. In: W. BENJAMIM, M. HORKHEIMER, T.

ADORNO & J. HABERMAS. (Eds.). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.IANNI, 0. Introdução. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1979.LEIBNITZ, G. Novos ensaios sobre o entendimento humano. In: Os

pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.LIPOVETSKY, G. La era delvacio. Barcelona: Anagrama, 1986.MARX, K. Lê capital. Paris: Sociales, 1977.MILL, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: J. BENTHAN Y J.

MILL. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.MOREIRA, V. Prefácio. In: FIGUEIREDO, L.C. Psicologia: uma introducción • visión

histórica de Ia psicologia como ciência. Santiago: Editorial Santiago de Chile, 2002.MOREIRA, V. & SLOAN, T. Personalidade, Ideologia e Psicopatologia: Crítica. São Paulo:

Escuta, 2002.MULIÁN, T. Chile actual: anatomia de un mito. Santiago: LOM, 1997.ROUSSEAU, J. El contrato social. Madrid: Edaf, 1978.SARTRE, J. & FERREIRA, V. O existencialismo é um humanismo. Lisboa: Presença,

1970.SMITH, A. Investigação sobre a natureza e as causas das riquezas das nações. In: A.

SMITH & D. RICARDO (Eds.). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.TRAN-DÚC-THÁO, M. Phenoménologie et matérialisme dialectique. Paris: Gordon &

Brean, 1971.WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: (Ed.). Os

pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Capítulo 9A NOÇÃO DE PESSOA NA

TEORIA DE CARL ROGERS*

A CONCEPÇÃO DE HOMEM EM ROGERS

A teoria psicoterapêutica desenvolvida por Rogers tem como fundamento umaconcepção filosófica de homem que se encontra implícita em toda sua obra. É a partirda ideia de homem definido como pessoa que o pensamento rogeriano se organizaem uma teoria de psicoterapia, por meio da elaboração de conceitos e de um corpometodológico, embora só em sua segunda fase, o termo pessoa apareça comodenominação de sua proposta. A revisão cronológica dos escritos rogerianos mostraque estes se vão constituindo, reformulando e ampliando ao longo dos anos, desde aTeoria Não-Diretiva até à Abordagem Centrada na Pessoa, num caminho em que asideias vão se superando a si mesmas, os pontos de vista complementam-se e osconceitos se re-elaboram. É interessante notar, porém, que a concepção de homemde Rogers se mantém, ao longo de toda sua teorização, ligada à noção de pessoacomo centro. Ainda que em seus primeiros escritos não desenvolva uma propostapsicoterapêutica, pode-se encontrar aí suas sementes, já que a concepção de pessoaem Rogers não se modifica estruturalmente, ainda que se amplie e se vá refinandoteoricamente. Este fato é tão marcante que, frequentemente, os escritos de Rogers sãorepetitivos, dado que o autor retoma sempre sua concepção de pessoa parafundamentar a evolução de seu pensamento.

Este capítulo é a reformulação do artigo Moreira, V. A noção de pessoa na teoria de Cari Rogers.Revista Brasileira de Pesquisa em Psicologia, v. 4, n. 2, p, 7-18,1992.

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184 DE CARL ROGERS A MERLEAU-PONTY: A PESSOA MUNDANA EM PSICOTERAPIA

A TENDÊNCIA ATUALIZANTE INERENTE A PESSOA

A obra de Rogers refere-se à noção de pessoa como organismo digno deconfiança, que traz em si mesmo uma tendência natural a se desenvolver de formaconstrutiva e positiva. Essa confiança no potencial da pessoa encontra-se presente nopensamento rogeriano desde o início de sua carreira, ao trabalhar com crianças em1939. Nessa época, Rogers afirma que "deve haver uma disposição para aceitar acriança como ela é, ao seu próprio nível de adaptação, e dar-lhe liberdade para tentarsoluções próprias para os seus problemas" (Rogers, 1978a, p. 247). Pouco depois,em 1942, Rogers apresenta a confiança no indivíduo como uma característica daconsulta psicológica (Rogers, 1979), explicitando, mais tarde, que "a abordagemcentrada na pessoa baseia-se em uma premissa que a princípio pareceu arriscada eincerta: uma visão de homem como sendo, em essência, um organismo digno deconfiança" (Rogers, 1976a, p. 16). Em 1951, aparecem as primeiras referências àtendência direcionalpositiva (Rogers, 1975); tendência espontânea, presente em todosos organismos vivos, que seria chamada tendência atualizante, conceito sobre o qualestá construída a Abordagem Centrada na Pessoa. Rogers a descreve como "um fluxosubjacente de movimento para uma realização construtiva de suas possibilidadesintrínsecas (...) uma tendência natural para o desenvolvimento completo" (Rogers,1976a, p. 17), ou ainda, como uma tendência inerente à pessoa que possibilita o seudesenvolvimento (Rogers, 1977a).

Rogers (1977b) conceitua a tendência atualizante como intrínseca e inerenteà pessoa, ao considerar o homem como seu próprio arquiteto. Sua propostapsicoterapêutica visa a proporcionar condições facilitadoras à pessoa para que elautilize plenamente seus recursos. Refere-se a esse modelo de pessoa como a queexerce completamente as potencialidades de seu organismo, sem deixar de evoluir.A tendência atualizante faria brotar a enorme capacidade de aprendizagem ecriatividade da pessoa, quando esta se encontra em uma atmosfera politicamentefacilitadora (Rogers, 1976a), o que responde ao objetivo dessa abordagem, não apenasem psicoterapia, mas também no trabalho com grupos, comunidades e educação,entre outros. Trata-se de ajudar a pessoa a dar-se conta de seu poder, participandoresponsavelmente de cada decisão que a afete (Rogers, 1984a). Rogers (1983a)fundamenta seu conceito de tendência atualizante em um movimento universal maior:a tendência formativa, definida como "uma capacidade para a mudança súbita ecriativa no sentido de estados novos e mais complexos" (p. 14). Cita trabalhos deBiologia e de Física que demonstram a existência dessa tendência, referindo-se aexemplos tanto da vida orgânica como inorgânica; a formação da galáxia a partir de

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um turbilhão de partículas; dos cristais a partir de vapor informe e da célula viva, queforma sempre colónias mais complexas1 (Rogers, 1983a). Na espécie humana, essatendência expressar-se-ia ao evoluir o indivíduo de seu início unicelular para umfuncionamento orgânico complexo em direção positiva, o que leva Rogers a compararo desenvolvimento humano ao de uma planta que cresce em direção ao sol.2

Por outro lado, Rogers (1978b) desenvolve grande confiança no processo degrupo, já que o considera também como um organismo capaz de autodesenvolver-se positivamente. O mesmo ocorre em sua proposta de educação - O Ensino Centradono Aluno (Rogers, 1978c) - na qual sua visão do aluno como um ser autónomo, leva-o a considerar que ele é capaz de aprender sozinho, desde que conte com condiçõesfacilitadoras (Rogers, 1985). Depois de proporá tendência atualizante em diversoscampos - psicoterapia, educação, grupos e comunidades - Rogers (1983a) denominafinalmente sua teoria como Abordagem Centrada na Pessoa, tendo em conta,justamente, sua concepção de pessoa como centro.

NATUREZA HUMANA OTIMISTA E SOCIALIZADA

A partir da tendência atualizante, a visão de natureza humana contida na teoriade Rogers é, por conseguinte, moralmente positiva. Fazendo uma analogia da naturezado homem com a natureza animal,3 Rogers (1957) não considera o homem comohostil ou destrutivo. Reconhece uma série de características positivas inerentes àespécie humana e não encontra maldade em sua natureza. Sua experiência comoterapeuta leva-o a afirmar que são as influências culturais que influem no maucomportamento das pessoas (Rogers, 1984b). Acrescenta, além disso, que

o centro mais íntimo da natureza humana, as camadas mais profundas de

sua personalidade, a base de sua "natureza animal", tudo isso é

naturalmente positivo - fundamentalmente socializado, dirigido para diante,

racional e realista (Rogers, 1961, p. 92).

1. Rogers (1983a) diz: "quer falemos de uma flor ou de um carvalho, de uma minhoca ou de umbelo pássaro, de uma maçã ou de uma pessoa, creio que estaremos certos ao reconhecermosque a vida é um processo ativo e não passivo" (p. 40).

2. É famoso o exemplo rogeriano das batatas, que se encontravam plantadas no porão de sua casae que cresceram em direção a uma réstia de luz que passava através da janela (Rogers, 1983a).

3. Gondra (s/d) explica que quando Rogers fala do caráter positivo da natureza humana toma oexemplo de outras espécies animais, com o fim de fundar sua afirmação em um contexto evolutivoe naturalista. Neste sentido, o homem não seria perverso, corrompido ou malfeito, já que issoimplicaria reconhecer perversidade e falta de ordem em todo o universo.

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A visão rogeriana caracteriza a natureza humana como uma ótima reguladorado comportamento, apresentando a pessoa plena* como aquela que se deixa guiarpelo organismo, já que este é mais sábio que o intelecto (Rogers, 1976a). Essasabedoria intrínseca do organismo faz emergir outra característica da natureza humanaque é sua racionalidade natural: a pessoa será capaz de auto-dirigir-se, desenvolveruma auto-regulação por si mesma, de maneira positiva. Rogers (1977c) admite sentirpouca atração pela concepção largamente difundida do homem como um "serfundamentalmente irracional, cujos impulsos, se não forem controlados, levariam à suadestruição e a dos demais". Sustenta, ao contrário, que "o comportamento do ser humanoé admiravelmente racional e que se orienta com uma complexidade sutil e ordenadapara os fins que seu organismo lhe propõe" (Rogers, 1977c, p. 269).

Para Rogers, a dimensão social da pessoa encontra-se implícita no indivíduo,para quem se dirige toda sua atenção. É notório que não coloca em primeiro plano ainserção social da pessoa, embora não a negue; contudo é interessante notar que, noinício de sua carreira, Rogers tem uma grande preocupação pelas influênciassocioculturais. Critica a ênfase no indivíduo que perde de vista a importância e o vigordo grupo e das forças sociais, assinalando que "para compreender o comportamento,precisamos encará-lo como resultado complexo de todos os fatores que o compõem"(Rogers, 1978a, p. 49). Mas, à medida em que vai desenvolvendo o conceito detendência atualizante, sua teoria volta-se cada vez mais para o centramento na pessoa(Rogers, 1976a). A socialização fica, então, relegada a um segundo plano, uma vezque para Rogers ela seria inata e harmónica; ocorreria como consequência dodesenvolvimento individual sustentado no conceito de tendência atualizante.

Wood, um dos maiores disseminadores do pensamento de Rogers no Brasil,lembra que os comentários de Rogers a respeito da natureza harmónica do homemreferem-se ao contexto da psicoterapia, ainda que possam ser extrapolados para a vidaem geral. Considera que a conclusão de Rogers de que as pessoas submergem nofundo de suas consciências, e que elas não têm maldade é questionável, já que o quequalquer um pode ver no mundo é que as pessoas se comportam de formaabominável. Wood (1988) insiste em que: se todo o mundo é puro em essência, comose pode cometer tanta maldade no mundo? Diante disso, Rogers argumenta:

4. O conceito de pessoa plena descreve a imagem ideal de uma pessoa totalmente fundada em suacorporeidade orgânica. Trabalhar para facilitar o surgimento da pessoa plena é a meta daAbordagem Centrada na Pessoa, tal como se verá mais adiante, neste capítulo.

1 R7VIRGÍNIA MOREIRA

Não tenho uma visão ingenuamente otimista da natureza humana. Tenhouma perfeita consciência do fato de que, pela necessidade de se defenderde seus terrores íntimos, o indivíduo pode vir a comportar-se de maneiraincrivelmente feroz, horrorosamente destrutiva, imatura, anti-social eprejudicial (p. 38).

Para Rogers, essa faceta humana deve-se à influência negativa da cultura,unicamente com o propósito de autodefesa. No entanto, May (1987) sustenta que,embora as influências culturais sejam os principais fatores de destrutividade em nossoscomportamentos, a destrutividade também estaria presente em nós, já que somos nósque construímos a cultura (ou nos constituímos mutuamente com esta, como veremosadiante a partir de uma compreensão merleau-pontyana).

Aqui aparece uma contradição no pensamento rogeriano, uma vez que, por umlado, ele considera o homem naturalmente socializado, isto é, o social é imanente ànatureza humana e, por outro, considera-o distinto dessa sociedade que, por sua vez,perverte sua bondade inata. A distinção homem/sociedade configura-se ainda maisclaramente pelo caráter individualista de sua concepção de pessoa. A pessoa/indivíduoexistiria, então, como uma ilha, isolada tia sociedade, já que, apesar de se relacionarcom ela, não a constituiria.

UMA CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA: A PESSOA COMO CENTRO

Ao longo da obra de Rogers, especialmente em seus primeiros textos, pode-se encontrar frequentemente a palavra indivíduo como sinónimo de pessoa, utilizandoambos os termos indistintamente nos textos. Esta equivalência é extraída do sensocomum, no qual ambos os conceitos teriam o mesmo significado, como foi visto nooitavo capítulo deste livro. Esse individualismo aparece claramente na afirmaçãorogeriana que sustenta que "qualquer pessoa é uma ilha no sentido muito concreto dotermo: a pessoa só pode construir uma ponte para se comunicar com outras ilhas seprimeiramente se dispõe a ser ela mesma e se lhe é permitido ser ela mesma"(Rogers, 1961, p. 32). Essa é a visão de pessoa como ser indivisível e unitário, já queuma ilha é uma unidade separada que se mantém por si mesma. A organicidade dailha é comparada aqui a uma noção metafísica de pessoa, que antes de ser social seriaindividual, só podendo construir pontes para fora de si, sendo ela mesma. Aconcepção reducionista de pessoa, que restringe esse conceito ao de indivíduo,aproxima sua noção de pessoa da noção capitalista de pessoa, tal como descrito no

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capítulo anterior, e esse foi um dos aspectos mais criticados da Abordagem Centradana Pessoa.5 O que se pode observar é que Rogers recorre intensamente em suaabordagem a uma noção de pessoa-indivíduo que é, como foi visto, o sustentáculoeconómico do capitalismo. Ainda que bem intencionado como humanista, visandocombater a ordem social vigente através do poder pessoal, e em busca de um mundomais justo, permanece prisioneiro dos princípios fundamentais do mundo individualista,que pretende ingenuamente revolucionar.

Rogers insere-se em um humanismo antropocêntrico, ao postular a pessoa comocentro, conceito este definido como o que está no meio dos limites, margens, fronteirasou extremos; o lugar donde partem e para onde convergem ações particularescoordenadas. Ou seja, a pessoa como centro é o ponto de convergência do mundo quea cerca, cujo eixo se encontra nela mesma, dado que se desenvolve através de suatendência atualizante. Essa seria uma concepção de pessoa cujo poder teriapotencialmente a capacidade de transformar o mundo, sendo assim, dona do seu própriodestino. Já em 1951, afirma que lodo indivíduo existe num mundo de experiência do qualele é o centro e está em permanente mudança"G (Rogers, 1975, p. 467). A ideia dehomem centrado, que aparece com o Cristianismo após a morte da ideia do homemdescentradoúa civilização antiga, seria a base da Abordagem Centrada na Pessoa. Éuma abordagem centrada na pessoa já que supõe que esta é o centro do mundo. Aideia antropocêntricajustifica uma psicoterapia centradana pessoa que estaria distantedo meio-ambiente que a constitui. No entanto esta abordagem teria, ainda, outra explicação:em uma primeira etapa, Rogers busca centrar sua atenção exclusivamente no cliente,mas, depois, entende a importância do terapeuta que, finalmente, também é pessoa e parteativa da relação terapeuta-cliente (Cury, 1987).

A PESSOA COMO PROCESSO SUBJETIVO

Rogers (1977d), um apaixonado pela subjetividade humana, insiste no carátersubjetivo da existência. Tem uma

fé inquebrantável na primazia da ordem subjetiva. O homem vive, essen-

cialmente, num mundo subjetivo e pessoal. Suas atividades, mesmo as mais

5. Entre os autores que tratam do individualismo na Abordagem Centrada na Pessoa, ver: Leite, 1978;Hannoum, 1976; Gondra, s.d.; Moreira, 1984; Heather, 1977; Giroux, 1983; Fonseca, 1983 e 1985;Freire, 1989.

6. Há um provérbio hindu que ilustra muito bem essa ideia: um mesmo homem toma banho cadadia num mesmo rio, entretanto, não se trata do mesmo homem nem do mesmo rio.

VIRGÍNIA MOREIRA 189

objetivas - seus esforços científicos quantitativos, matemáticos, etc. -

representam a expressão de fins subjetivos e de escolhas subjetivas (p.152).

Essa compreensão da pessoa como ser subjetivo leva-o a afirmar que

o que constitui o meio ou a realidade da criança é a representação que ela

faz dela e não alguma realidade verdadeiramente real tal como se concebe

em certos sistemas filosóficos (Rogers, 1977e, p. 197).

O entendimento da realidade não é um fenómeno objetivo, mas sim subjetivo,formado a partir da percepção, também subjetiva, de cada pessoa que reconstrui em simesma o mundo exterior. Quando a pessoa recebe um estímulo, o faz através de suaexperiência, dando-lhe significado (Leite, 1978). Kinget (1977) afirma que

a tendência ã atualização do indivíduo, assim como sua noção de eu fazemparte de um mundo fenomenológico. Por isso, o que importa não é o caráterintrinsecamente positivo das condições, é a percepção destas condiçõespelo indivíduo. Da mesma forma, não se trata tanto do "eu" tal como existena realidade, mas do "eu" tal como é concebido pelo indivíduo (p. 43).

Esta concepção de pessoa não dá maior importância à determinaçãosociocultural do homem, caracterizando-se como uma concepção abstraia quecoincide com a noção de pessoa do mundo ocidental. Rogers (1976a) destaca seucaráter processual, afirmando que "a vida não é um processo passivo, mas ativo"(p.226) e enfatiza que

pouco importa que o estímulo provenha de dentro ou de fora, que o

ambiente seja favorável ou desfavorável. Em quaisquer dessas condições,

os comportamentos de um organismo serão dirigidos no sentido de suamanutenção, de seu crescimento e de sua reprodução (Rogers, 1983a,

P- 40).

Estas afirmações demonstram que a concepção rogeriana de pessoapressupõe um processo evolutivo que independera realidade concreta e que, portanto,é essencialmente subjetivo.

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DE CARL ROGERS A MERLEAU-PONTY A PESSOA MUNDANA EM PSICOTERAPIA

A DICOTOMIA NO PENSAMENTO ROGERIANO

A noção rogeriana de pessoa é fruto de uma visão dicotômica do mundo. Exalta-se a subjetividade, enquanto que se dá pouca importância, peso e eficácia à realidadeobjetiva. A confiança na pessoa existe em função da crença em sua harmonia internae em sua capacidade de experiência interior corno guias de comportamento. Rogers(1976a) define a pessoa plena como aquela que

vai em direção ao conhecimento de suas experiências internas e emharmonia com elas, e que percebe, sem atitudes defensivas, todos os dadosprovenientes das pessoas e dos objetivos de seu ambiente externo(p. 237).

É evidente, neste texto, pelo uso dos termos interno e externo, a dicotomia dopensamento rogeriano, que está inserido no mundo ocidental. Ao ser parte dessemundo, Rogers também pensa de uma forma dualista.

A exaltação do homem interior, em Rogers, implica a necessidade de"reconhecer que as bases dos valores encontram-se muito mais dentro das pessoasque fora, no mundo material" (Rogers, 1983a, p. 119). Tal afirmação mostraexplicitamente que a visão de pessoa interior/exterior sugere um dentro Q um foramaterial, isto é, a realidade objetiva concreta. A abordagem rogeriana sustenta que "obom da vida é interior e não depende de fontes externas" (Rogers, 1983a, p. 67). Essaênfase no interior deixa em segundo plano qualquer dimensão objetiva, externa àpessoa, reforçando sua abstração e desvinculando-a do processo histórico.

A PESSOA LIVRE

A noção de pessoa, na perspectiva rogeriana, pressupõe outra característicarelacionada às anteriormente comentadas, a liberdade. Para Rogers (1976a),

a crença no valor da pessoa livre não é algo que possa ser extinto nemmesmo por todos os modernos recursos tecnológicos: interceptação deconversas, uso de 'hospitais mentais' para recondicionar o comportamento,tortura elétrica e tudo o mais (p. 246).

A liberdade em Rogers tem características próprias: é inerente à pessoa, éíntima, subjetiva;

VIRGÍNIA MOREIRA 191

, estamos falando de algo que existe no íntimo do indivíduo, de alguma coisafenomenológica e não objetiva, mas a ser valorizada (...) portanto, estamosfalando de uma liberdade que existe na pessoa subjetiva, uma liberdadeque ela usa corajosamente para viver suas potencialidades (Rogers,1976b, p. 59).

Sendo a liberdade subjetiva uma característica da pessoa, Rogers alude aoobjetivo da Abordagem Centrada na Pessoa como a facilitaçào da liberdade interior.O conceito de pessoa plena, meta a ser atingida por sua abordagem, busca alcançara liberdade de escolha, que é a característica do indivíduo livre. Sob esse ponto de vista,a opção livre e responsável é um elemento essencial da pessoa. Essa noção depessoa livre faz com quea psicoterapia rogeriana seja uma terapia para a liberdade,devido a que o processo terapêutico consiste em aprender a ser uma pessoa plena.Segundo o próprio Rogers, identifica-se em sua teoria uma liberdade essencial eintrínseca, que fundamenta a ideia de pessoa como subjetividade livre, com importantesconsequências políticas.

A PESSOA EMERGENTE

A crença de Rogers em sua noção de pessoa leva-o a postular que asmudanças sociais ocorrerão a partir da mudança individual, através do aparecimentoda pessoa plena. Considera, então, que sua abordagem teria implicaçõesrevolucionárias, uma vez que proporciona o funcionamento pleno de uma pessoaautónoma, racional, subjetiva e individual. Afirma que seu conceito de pessoa está diantede uma drástica mudança, já que se pode perceber nela um potencial inimaginável:sua inteligência nào-consciente (Rogers, 1976a). A nova pessoa surgiria com ummundo novo e melhor, embora Rogers (1983c) reconheça que esse mundo maishumano e humanitário seja somente um sonho idealista. Defende a busca epreservação dessa nova pessoa a partir da constatação, na cultura estadunidense, daincapacidade das pessoas de governarem a si mesmas, o que representa umacrescente desconfiança no processo democrático (Rogers, 1977f). Percebe nasociedade ocidental capitalista uma tendência ao conformismo, à docilidade e à rigidez,onde a livre escolha tem pouco ou nenhum espaço. A liberdade transformou-se emum conceito inaceitável nessa cultura moderna que, na realidade "quase nunca desejaque as pessoas sejam livres, apesar de muitas afirmações ideológicas em contrário"(Rogers, 1976b, p. 74). Assinala que a Declaração dos Direitos Humanos contémvalores centrados na pessoa, mas, na verdade, não é levada em conta. Os direitos à

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liberdade de pensamento e expressão não são considerados e "no governo, que ésupostamente a fonte e o protetor da liberdade individual, a erosão dos valoresdemocráticos é ainda pior" (Rogers, 1976a, p. 241). Aponta o fracasso do Estado noatendimento às necessidades da sociedade e indica que a causa da violência está emque o indivíduo não se sinta inserido no sistema social, transformando-se em um seralienado. Salienta que

a desordem na nossa cultura faz com que se torne menos surpreendenteo fato de haver uma firme tendência para abandonar-se à liberdade pessoal

e permitir que mãos mais fortes assumam o poder. Há uma corrente a favordo controle autoritário (Rogers, 1976a, p. 224).

Ao analisar as tentativas frustradas da aplicação de sua abordagem eminstituições por períodos prolongados, Rogers (1983b) constata que nas relações depoder no sistema capitalista, o indivíduo inexiste e não tem poder de escolha oudecisão. Defende, então, a ideia do poder pessoal, propugnando a viabilidade de umasociedade que conte com a participação da pessoa. Assim, insiste em resgatar aautonomia individual da pessoa como uma forma de combater a sociedade que, porsua vez, a aniquila. Acredita que, mesmo nos regimes totalitários, as pessoas logramemergir (Rogers, 1976a). É possível apreciar nessas afirmações que Rogersdesconhece que o sistema capitalista se apoia na noção de trabalho individuais que,portanto, o indivíduo existe na própria estrutura económica do sistema. Sua percepçãoda sociedade capitalista é, pois, superficial e ingénua, já que não se aprofunda nofundamento desse sistema social. É por isso que acredita que o poder da pessoa-indivíduo mudará por si mesmo a sociedade capitalista, sem notar que, pelo contrário,esta é exatamente a concepção e o sustentáculo do capitalismo e não o seu oponente.A falta de uma análise político-econômica mais ampla leva Rogers a defender oaparecimento da nova pessoa a partir da sociedade capitalista em deterioração. Fazuma analogia com sua experiência dejardinagem, observando que os restos putrefatosde uma planta serão o alimento para uma próxima. Da mesma forma, vê "oaparecimento de um novo tipo de pessoa, emergindo através das folhas e talos mortos,amarelados, putrefatos de nossas instituições enfraquecidas" (Rogers, 1976a, p.253).Essa visão naturalista e a-histórica o leva, ademais, a caracterizar a pessoa emergentecomo aquela que não tem sede de poder ou de realização, e que se interessa por outraspessoas e pelo bem-estar social, que deseja explorar sua interioridade, crendo em suaexperiência e desconfiando de toda autoridade externa:

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As pessoas emergentes são indiferentes à comodidade e às recompensasmateriais. As máquinas, as comodidades e o luxo da sociedade da abundâncianão são já uma necessidade (...) O dinheiro e outros símbolos materiais de statusnão são os principais objetivos destas pessoas (Rogers, 1976a, p.253).

Em outras palavras, a pessoa emergente da degeneração dessa sociedadecapitalista é, segundo Rogers, uma pessoa que teria valores não-capitalistas. Assim,pode-se concluir que a pessoa emergente de Rogers também deriva do humanismoantropocêntrico do mundo ocidental capitalista.

LIMITES E PERSPECTIVAS

Resumindo a discussão sobre a noção de pessoa na teoria rogeriana, pode-se caracterizá-la como centrada, autónoma, racional, dotada dos recursos para seudesenvolvimento. Essa pessoa é pensada como um ser interiormente livre, subjetivo,absoluto e universal. Trata-se de uma concepção dicotômica, cuja ênfase, essencialistae metafísica, sublinha a interioridade da pessoa como indivíduo. A partir disso, éimportante destacar os limites e perspectivas de uma psicoterapia centrada na pessoa.

Como se viu, não é por acaso o desenvolvimento desse conceito nos primórdiosdo pensamento capitalista do século XIX. Não é tampouco por acaso que essa noçãode pessoa se mantenha até nossos dias, inclusive no pensamento de um psicólogocomo Rogers. Se essa noção prevalece, é porque ela não somente se identificaprofundamente com a ordem social, mas serve, além disso, para os fins primordiaisdo desenvolvimento económico: supostamente hiper-valorizar a pessoa-indivíduoconsiste no pilar do capitalismo. Apesar de Rogers buscar a revolução em um mundocheio de desigualdades, mantém-se preso a uma concepção de homem que é frutoda mesma sociedade que sonha melhorar. Ter a pessoa como o centro de suaproposta teórica limita sua teoria e compromete sua prática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CURY, V. Psicoterapia Centrada na Pessoa: evolução das formulações sobre a relaçãoterapeuta-cliente. 1987. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, São Paulo, 1987.

FONSECA, A. Psicologia humanista e pedagogia do oprimido: um diálogo possível? In:ENCONTRO LATINO DA ACP, l, 1983, Santa Maria. Santa Maria: FaculdadesFranciscanas, 1983.