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Capítulo 4 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA PSICOTERAPIA DE BASE HUMANISTA* DA NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO Psicoterapeutas humanistas têm destacado um problema essencial que lhes preocupa cada vez mais: os fundamentos teórico-filosóficos da psicoterapia de base humanista. Surgida em meados do século XX, a abordagem humanista em psicoterapia (uma parte da chamada terceira força em psicologia) propõe-se a combater os supostos intelectualismo da psicanálise e mecanicismo do behaviorismo, postulando uma visão globalizante do ser humano que enfatiza a vivência das emoções. Entretanto, a partir da preocupação prioritária com a experiência, a teorização ficou frequentemente em segundo plano, pelo que as abordagens psicoterápicas humanistas têm sido acusadas de ter como metodologia somente a subjetividade e a intuição (Boris, 1987). Mais ainda, interpretações erróneas da ênfase na vivência e na experiência, associadas à ações irresponsáveis de profissionais que não contam com a preparação necessária, têm fomentado algumas dessas acusações. Além disso, acontece frequentemente que alguns pensem, equivocadamente, que a formação do psicoterapeuta humanista é mais fácil e que o aluno teria que estudar menos, uma vez que o que vale é a vivência das emoções. Este capítulo está baseado no artigo Moreira, V. Bases epistemológicas de Ia Psicologia Humanista. Revista de Humanidades de Ia Universidad de Santiago de Chile, Santiago, v, 4, n. 4, p. 87-95, 1999.

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Capítulo 4FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS

DA PSICOTERAPIA DE BASE

HUMANISTA*

DA NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO

Psicoterapeutas humanistas têm destacado um problema essencial que lhespreocupa cada vez mais: os fundamentos teórico-filosóficos da psicoterapia de basehumanista. Surgida em meados do século XX, a abordagem humanista em psicoterapia(uma parte da chamada terceira força em psicologia) propõe-se a combater ossupostos intelectualismo da psicanálise e mecanicismo do behaviorismo, postulandouma visão globalizante do ser humano que enfatiza a vivência das emoções.Entretanto, a partir da preocupação prioritária com a experiência, a teorização ficoufrequentemente em segundo plano, pelo que as abordagens psicoterápicas humanistastêm sido acusadas de ter como metodologia somente a subjetividade e a intuição (Boris,1987). Mais ainda, interpretações erróneas da ênfase na vivência e na experiência,associadas à ações irresponsáveis de profissionais que não contam com a preparaçãonecessária, têm fomentado algumas dessas acusações. Além disso, acontecefrequentemente que alguns pensem, equivocadamente, que a formação dopsicoterapeuta humanista é mais fácil e que o aluno teria que estudar menos, uma vezque o que vale é a vivência das emoções.

Este capítulo está baseado no artigo Moreira, V. Bases epistemológicas de Ia Psicologia Humanista.Revista de Humanidades de Ia Universidad de Santiago de Chile, Santiago, v, 4, n. 4, p. 87-95,1999.

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Cabe destacar que esses mal-entendidos não surgiram por acaso. O fato é queos autores da abordagem humanista despreocuparam-se do fundamento teórico-filosófico de seus pensamentos, argumentando serem abordagens experienciais. CariRogers, entre estes, só em 1951, na primeira edição do livro Terapia Centrada noCliente (1975), faz as primeiras alusões à filosofia existencial e fenomenológica. Em1957, no artigo A note on the nature ofman, responde às tentativas de alguns autoresde vincular seu pensamento aos dos iluministas do século XVIII, afirmando que se suateoria tem algo em comum com o pensamento de Rousseau, não é de forma direta,uma vez que seu único elo com o trabalho daquele filósofo se havia dado por meio daleitura da obra Emile, para prestar um exame de francês durante sua adolescência.Essa resposta, comentada no primeiro capítulo desse livro, para quem desejava colocara Psicoterapia Centrada na Pessoa numa linha filosófica determinada, tem uma cotaimportante de responsabilidade pelo atual "fetiche da wVéndaff(Drawin, 1985) queencontramos por aí, com aplicações pouco sérias em nome da psicoterapia humanista.

Essa visão crítica leva Figueiredo (1991), a delinear as matrizes do pensamentopsicológico, onde insere essa psicologia na matriz vitalista e naturista, referindo-se aum humanismo romântico com manifestações místicas de liberdade. Assinala que anoção de uma força criativa, de um impulso vital, aparece metaforicamente em Rogerse em Maslow, para quem o objetivo da psicoterapia é "libertar esta energia, dar-lhecampo para atualizar-se na criação" (p. 129). Assim, argumenta que a matriz vitalistaestaria a favor da vida e contra a razão; a tecnologia existiria somente como instrumento,enquanto que a inteligência seria substituída pela intuição e o interesse tecnológico pelointeresse estético.

A revisão da literatura da área mostra que a preocupação com a fundamentaçãoteórico-filosófica dos enfoques psicoterápicos humanistas teve um desenvolvimentosignificativo no final do século XX. Esse tema foi tratado em especial por autores que,muitas vezes, estão buscando um suporte teórico para defender-se das acusações deinconsistência, bem como para desenvolver o seu trabalho de forma mais competente.Assim, na última década, autores oriundos de uma formação humanista têmdesenvolvido teórica e tecnicamente a psicoterapia através de pesquisas com basefenomenológica e existencial (Amatuzzi, 1989; Fonseca 1998; Sánchez, 1999; Gobbi& Missel, 1998; Holanda, 1998; Moreira, 1985a e b; 1993/94; 1997 e 1999).

É interessante notar que dentre os desenvolvimentos mais recentes daAbordagem Centrada na Pessoa, Segrera (2002) descreve como uma de suas váriasvertentes a fenomenológica, que teria se desenvolvido principalmente no Brasil. Estedesenvolvimento, sem dúvida, estaria relacionado à busca de uma fundamentaçãoteórico-filosófica para a psicoterapia humanista, que encontrou seu caminho

principalmente por meio da filosofia de Buber, de Nietzsche e de Merleau-Ponty, talcomo veremos a seguir, por meio de uma revisão da literatura dos anos oitenta enoventa sobre essas perspectivas, período que concentrou as publicações que sepreocupavam em fundamentar filosoficamente não apenas a Abordagem Centrada naPessoa como a Gestalt Terapia (no Brasil, estes dois referenciais humanistas emmuitos momentos andaram juntos, ou quase que superpostos, na formação dosprofissionais humanistas). As duas últimas partes deste livro retomam o tema dafundamentação filosófica para o desenvolvimento de uma clínica para além da pessoa,com foco específico na filosofia de Merleau-Ponty.

O FUNDAMENTO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

Cury (1987) descreve as afinidades da teoria rogeriana com o pensamentofenomenológico. Assinala que o surgimento da fenomenologia e do existencialismo seproduz durante a primeira metade do século XX, tendo um efeito importante nopensamento psicológico europeu. Somente na década de quarenta essas abordagensfilosóficas atraíram a atenção de filósofos americanos, enquanto que somente nos anoscinquenta e sessenta a aproximação fenomenológica e existencial aos problemaspsicológicos usa o termo fenomenologia psicológica para referir-se à fenomenologiacomo método aplicado aos problemas de natureza psicológica, como um procedimentoespecífico para explorar a consciência. Os dados fenomenais (sentimentos e imagens,entre outros) seriam aceitos e descritos tal como são experienciados, sem nenhumpressuposto ou transformação. O conhecimento passado e as tendências teóricasdever-se-iam manter entre parênteses para possibilitar uma visão pura do mundofenomenal.

Seria um erro crer que a inclusão da fenomenologia na psicologia se produzsomente por influência de Husserl, uma vez que se podem encontrar exemplos daaproximação fenomenológica em todos os períodos da história da psicologia, desde oséculo V com a biografia de Santo Agostinho, passando pelas pesquisas de ênfasesensório-perceptiva do século XIX, até o início do século XXr com os estudos defenomenologia experimental realizados por Katz e Wertheimer. Assim, a fenomenologianão é uma escola ou uma doutrina, mas somente um movimento que engloba distintasescolas cujo denominador comum é o método fenomenológico. A respeito doexistencialismo, suas bases encontram-se na obra de Kierkegaard, no século XIX e,posteriormente, floresce como um movimento filosófico na Europa durante o períodocompreendido entre as duas guerras mundiais. Segundo Cury (1987), a trajetória deRogers na fenomenologia se dá através de seu interesse prático pela relação que se

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estabelece entre o terapeuta e seu cliente, quer dizer, o fenómeno presente na situaçãopsicoterapêutica. Seus primeiros livros - O tratamento clínico da criança-problema(1978), publicado originalmente em 1939, e Counselingandpsychotherapy(\W2) nãocontêm referências a teorias filosóficas. Somente em 1951, com a introdução doconceito de campo fenomenal, aparecem as primeiras tentativas de elaborarteoricamente a relação terapeuta-cliente. Em 1961, em seu livro Tomar-se pessoa,Rogers refere-se ao conflito entre sua educação dentro do positivismo lógico e aabordagem existencial que orientou seu trabalho. Declara não ter estudado a filosofiaexistencial, com a qual vai tomar contato mais tarde a partir da leitura de Buber eKierkegaard, em resposta à insistência dos seus alunos. Trabalhando com Gendlin,no CenterforStudies ofthe Person, de La Jolla, na Califórnia, Rogers sente-se atraídopela ênfase na experiência que, posteriormente, derivará na abordagem experiencial.Segundo Spielberg (1972), Gendlin tinha como objetivo que Rogers passasse dopositivismo lógico para uma orientação existencialista. Gendlin (1970), por sua vez,assume a influência de Sartre, Husserl e Merleau-Ponty em suas incursões sobre aexperiência: "Estar no mundo e cpm outros (em diálogo) é a primeira consideraçãodo existencialismo; o indivíduo visto como uma entidade separada é explicável apenasem segundo lugar (p. 80). Entretanto, Spielberg (1972) recorda que considerar todapsicologia rogeriana como fenomenológica seria um exagero evidente. Rogers adotouessa denominação tardia e incidental mente e nunca tentou praticar uma abordagemfenomenológica intencionalmente. No contexto norte-americano, a assimilação dopensamento fenomenológico-existencial foi também tardia. Em 1958, May, com outrosautores, publica a primeira edição do livro Existência (1977) onde apresenta umainterpretação do pensamento existencial. Sartre & Ferreira (1970), por seu lado,referem-se ao existencialismo como um humanismo. No entanto, a verdade é que oexistencialismo norte-americano não está imbuído da melancolia de guerra que atingeo pensamento europeu (Jacoby, 1977).

Boris (1990), ao analisar as aproximações e divergências entre a TerapiaGestáltica e a Abordagem Centrada na Pessoa, assinala que o ponto comum entreessas duas perspectivas seria a vinculação à fenomenologia existencial, que semanifestaria nos seguintes aspectos: ênfase na experiência vivida no presente,valorização dos sentimentos, refutação das explicações causais, visão holística do serhumano, entre outros. Ao contrário de Rogers, Perls (1969) reconhece desde seusinícios a Terapia Gestáltica como um dos três tipos de psicoterapia existencial, junto coma Logoterapia de Frankl e a Dasein Análise de Binswanger. Para Tellengen (1984) apostura fenomenológica da abordagem gestâltica tem raízes históricas, uma vez quesua linha mestra se inscreve na fenomenologia husserliana. A reflexão sobre a

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existência humana encontra sua expressão nos filósofos existenciais que poderiam tersido mais bem aproveitados na busca de uma maior explicitação das basesfenomenológico-existenciais da Terapia Gestáltica e que têm em comum com asterapias da linha existencial, a ênfase no homem -em- relação, em sua forma deestar no mundo, na radical escolha de sua existência.

Segundo o resumo de Cury (1987), pode-se identificar como denominadorcomum das várias linhas teóricas e terapêuticas humanista-existenciais:

- O respeito à pessoa;- O reconhecimento da totalidade e unicidade do outro;- A intolerância frente a todas as manifestações de tendências deterministas;- A ênfase na relação humana como forma de crescimento.

A FUNDAMENTAÇÃO NA FILOSOFIA DE BUBER

A filosofia de Buber é, provavelmente, a mais profunda influência existencial nocontexto da relação terapêutica (Matson,1975). A maioria dos autores que tratam dafundamentação teórico-filosófica das abordagens psicoterápicas humanistas destaca aimportância do trabalho de Buber (Holanda, 1998), o qual, em seu livro Eu e tu, afirmaque existiriam duas atitudes básicas, duas formas de existir ou de ser no mundo que sealternam durante a existência humana: as atitudes Eu-Tu e Eu-lsso. Não se trata de doistipos de homem, mas de duas posturas presentes em todos nós, em nossa relação como outro, com as coisas e com o mundo. Por exemplo, na atitude Eu-Tu, o homem integra-se completamente com o mundo, numa totalidade caracterizada pela integração dosopostos, onde desaparecem as peculiaridades e contradições individuais. No entanto, oEu não seria necessariamente uma pessoa, poderia referir-se a animais, elementos danatureza, etc. É por isso que "o homem não pode viver sem o Isso, embora aquele quevive somente com o Isso não é homem" (Buber, 1977, p. 39).

Von Zuben (1984) caracteriza os aspectos essenciais referentes à relação Eu-Tu: a) reciprocidade (ato mútuo entre duas pessoas); b) presença (ou o momento dareciprocidade; a presença recíproca garante a alteridade); c) imediatismo (aqui eagora); d) responsabilidade (entendida como capacidade de resposta). Indica queBuber destaca a experiência entre as modalidades da relação Eu-lsso. Para Forghieri(1985) o que caracteriza a relação Eu-lsso é a separação, o distanciamento entre oEu (egótico) e o Tu (isso, ele, ela). Com relação à situação terapêutica sintetiza:

o psicoterapeuta atua numa alternância entre o conhecimento objetivo e a

intuição categorial, entre o Eu-lsso e o Eu-Tu, entre o passado e a

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presentificação, entre o raciocinar e o existir como totalidade, entre o atuar

sobre o cliente e ser com ele (p. 30).

Por sua parte, Boris (1987) vê que a obra de Buber está marcadaessencialmente pela procura do sentido da existência humana, resgatando suaresponsabilidade pela construção de um mundo mais coerente com este sentidohumano. Buber baseia suas indagações no diálogo como categoria existencial porexcelência. A compreensão da realidade humana dar-se-ia através do prisma dodialógico, do vínculo entre a experiência vivida (ação) e a reflexão (pensamento). ParaBuber, a relação Eu-Tu é uma experiência fugaz, rara e difícil, dado que o homem nãosuporta manter um envolvimento tão intenso constantemente. Aparta-se e recolhe-se,tendendo a transformar-se em Isso, permanecendo em estado latente, comopossibilidade. Assim, sublinha Boris (1987), não se deve encarar a relação Eu-lssocomo algo negativo, uma vez que ela é mais duradoura, mais estável e, portanto,proporciona uma sensação de segurança. A relação Eu-lsso tornar-se-ia negativasomente quando submetesse o homem, embora ela tenda a ser relegada a umsegundo plano, considerada como prejudicial e como um vínculo objetivante e frio. Cria-se um pudor em relação ao saber científico como se este propiciasse relaçõesmecânicas e pré-determinadas, onde o terapeuta estaria agindo sobre o paciente comose fora um objeto manipulável, esquecendo-se da alteridade como condição básica paraqualquer relação. As concepções de Buber sobre o encontro propiciaram uma propostade relação terapêutica sob o prisma do Eu-Tu, com a primazia do vivido. A relaçãopsicoterápica deixaria, então, de ser um mero vínculo Eu-lsso entre um cientista e seuobjeto, para transformar-se num encontro entre duas pessoas, de sujeito a sujeito(Boris, 1987).

A psicoterapia humanista, surgida como reação aos métodos da psicoterapiapositivista e propícia a utilizar o método fenomenológico (intuição eidética,intersubjetividade, redução, etc.)( escolhe a atitude Eu-Tu como a forma de relaçãopsicoterapêutica por excelência: "psicoterapeuta e cliente são, cada vez mais,compreendidos como duas pessoas, envolvidos numa relação de sujeito a sujeito,essencialmente igualitária, baseada na intersubjetividade, intuição e afetividade" (Boris,1987, p. 70). Na perspectiva buberiana, por meio de uma supervalorização da relaçãoEu-Tu, em detrimento da relação Eu-lsso, Boris (1987) explica a falta de consistênciateórica das abordagens psicoterápicas humanistas. Lembra que não basta descrevero fenómeno, sendo necessária uma reflexão acerca dessa experiência vivida; propõeuma melhor compreensão da dialética das atitudes Eu-Tu e Eu-lsso, defendendo anecessidade de teorizar sobre a relação terapêutica.

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Vale lembrar que a busca realizada por vários autores, de uma fundamentaçãopara a psicoterapia humanista na filosofia de Buber, já fora tentada pelo próprio Rogersao sugerir em um debate público realizado com Buber que a relação psicoterapêuticaseria um exemplo da relação Eu-Tu. Buber não concordou com Rogers:

nega, exatamente, pela restrição de mutualidade que aí se verifica, pela

própria definição da natureza da relação, definição que não depende de

Rogers nem de Buber, mas está assim socialmente definida ou

institucionalizada, faz parte da expectativa de papéis com as quais as

pessoas chegam à situação (Amatuzzi, 1989, p. 58).

A FUNDAMENTAÇÃO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

Advincula (1991) traça um paralelo entre os conceitos de tendência atualizanteem Rogers e a vontade de potência em Nietzsche. Vê na filosofia de Nietzsche umfundamento para a concepção da natureza humana que norteia as abordagenspsicoterápicas com base humanista, a partir da sintonia com a vida, ponto básico deunião entre os dois pensamentos.

Rogers (1961) defende a sabedoria do organismo e a importância das direçòespara as quais aponta o experienciar organísmico, propondo o conceito de tendênciaatualizante como um dos conceitos mais revolucionários de sua experiência clínica,na medida em que reconhece que "o centro mais íntimo da natureza humana, ascamadas mais profundas de sua personalidade, a base de sua 'natureza animal', tudoisso é naturalmente (...) racional e realista" (p.91). Para Rogers (1983), essa tendênciaestá sempre atuante, em direção a uma ordem crescente e a uma complexidade inter-relacionada, visível tanto no nível inorgânico como no orgânico. A Psicoterapia Centradano Cliente compreende o homem, essencialmente, como um organismo digno deconfiança, já que traria em si mesmo esta tendência natural a desenvolver-se de umamaneira construtiva e positiva enquanto uma tendência direcionalpositiva (Rogers,1975). Esta tendência espontânea, presente em todos os organismos vivos, que serádenominada tendência atualizante, é o fundamento sobre o qual está construída aAbordagem Centrada na Pessoa. Rogers a descreve como "um fluxo subjacente demovimento para uma realização construtiva de suas possibilidades intrínsecas (...) umatendência natural para o desenvolvimento completo" (1975, p. 17) e inclusive como "umatendência inerente para desenvolver todas as potencialidades das pessoas e paradesenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e seu enriquecimento" (1977,p. 159).

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Advincula (1991) relaciona o experienciar organísmico inconsciente, presentena tendência atualizante, com a sabedoria dos instintos proclamada por Nietzsche,quando aponta o corpo como o fio condutor para o conhecimento. Assinala que aohomem conceituai, Nietzsche contrapõe o homem intuitivo, considerando a vida comoo valor maior, o princípio último da evolução. Para Nietzsche,

tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis oessencial. O corpo é um fenómeno muito mais rico que autorizaobservações muito mais claras. A crença no corpo é bem melhorestabelecida que a crença no espírito (Machado, 1985, p. 105).

Assim como Nietzsche em sua fisiologia da potência menciona que os instintostêm o poder de auto-regulação na inter-relação de suas forças, Rogers, ao visualizara pessoa em pleno funcionamento, refere-se ao equilíbrio interno dos instintos emrelação mútua. Nas palavras de Advincula (1991),

... o princípio último da vida é a própria vida - este é o lema de ambas asconcepções. Nelas evidencia-se que o fim último da vida é sua realização:a plenificação da vida, e a atualização do ser, nas expressões utilizadas pelaAbordagem Centrada na Pessoa, e a expansão dos instintos fundamentais,a intensificação da potência, e a intensificação das forças, nas expressõesda filosofia nietzscheana. Estas são expressões que compõem, em Rogers,o conceito de tendência atualizante e, em Nietzsche, o conceito de vontadede potência (...) Mesmo os comportamentos estranhos, doentes e destruido-res são reveladores da tendência atualizante, segundo Rogers. Nietzschetambém reconhece nas expressões dos fracos, dos despotencializados, amanifestação da vontade de potência. Na concepção de ambos os autores,o homem se plenifica na medida em que experimenta a vida intensamentee que suas reflexões são o resultado destas vivências (...) o homem quefunciona plenamente, segundo diz Rogers, aproxima-se ao grego arcaico,da visão nietzscheana, pois tanto um como o outro constitui uma expressãode inteireza e unidade. A visão dionisíaca de Nietzsche se chega à visãoholística de Rogers, onde o uno originário será reencontrado ou, maisprecisamente, o homem e a natureza e os outros homens se reconciliarãonum sentimento místico de unidade (pp.212-213).

A FUNDAMENTAÇÃO EM OUTROS PENSAMENTOS FILOSÓFICOS

Embora somente a título de referência, vale a pena citar outras possíveis fontesde fundamentação para as abordagens humanistas e, especificamente, para a teoriarogeriana (Moreira, 1986). Assim, apesar da pretensão inovadora da teoria de CariRogers, suas ideias podem ser detectadas no século XVIII com o pensamento deRousseau, como foi visto no primeiro capítulo deste livro. Hannoun (1976) identifica umadireçãorousseauniana em Rogers, embora aquele não a assuma. Este autor cita, alémdisso, os antiautoritários, como um rastro da proposta rogeriana, lembrando aexperiência de Summerhill, de educação livre (Neill, 1982). De Peretti (1974), por suavez, cita a Kilpatrick e Dewey como influenciadores do pensamento rogeriano, comofoi analisado no primeiro capítulo. Destaca, também, que Otto Rank foi um contato quemarcou Rogers, já que estimulou o interesse pela atitude individual e os valores vividospelos terapeutas. O mesmo autor recorda, além disso, que foi através da leitura deKierkegaard que, em 1951, Rogers qualifica sua obra de existencial ou fenomenológica.

A CRÍTICA ÉTICA DE BASE MARXISTA

Freire (1989) realiza uma pesquisa sobre a ética de uma abordagem centradana pessoa, analisando a obra completa de Cari Rogers, em edição brasileira. Investigao desenvolvimento teórico-metodolCgico da Abordagem Centrada na Pessoa em suadimensão ética, orientando-se na direção do estudo da questão moral desta abordagem,na medida em que entende ética como ciência da moral, que estuda o comportamentodo homem que afeta a vida de outros homens, grupos ou sociedade em geral. Esteestudo teórico toma como base a perspectiva do Materialismo Histórico e Dialético equestiona a fragmentação epistemológica da psicologia. Freire conclui que Rogerscarece de uma visão dialética, sendo a sua teoria de mudança da personalidade acrílicae individualista, tanto em termos éticos como epistemológicos. Este autor propõe atransformação das noçòes-chave da teoria da Abordagem Centrada na Pessoa a partirde uma fundamentação no Materialismo Dialético.

A contribuição de estudos nesta linha é, sem dúvida, fundamental aosdesenvolvimentos atuais em psicologia humanista. O Materialismo Dialético é o panode fundo, inclusive, da primeira parte deste livro. No entanto, tal como discutido na suaintrodução, é na própria fenomenologia - não em qualquer abordagem dafenomenologia, mas na fenomenologia de Merleau-Ponty - que se identifica umcaminho mais viável para possíveis desenvolvimentos da psicoterapia humanista, dadoque, por um lado, Rogers e Marx provêm de campos epistemológicos totalmente

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distintos, Rogers priorizando o indivíduo, Marx priorizando a sociedade. Ambos semantêm no âmbito do pensamento dualista ocidental, ao optar por um dos pólos, oindividual ou o social. Por outro lado, tal como se verá no capítulo dez deste livro, opróprio Rogers, ainda que não possa ser considerado fenomenológico, desenvolve seupensamento em uma direção fenomenológica, embora não consiga ir adianteexatamente por ter a pessoa como centro. Nesse sentido, a fenomenologia ambíguade Merleau-Ponty, de cunho antropológico, oferece elementos indispensáveis a umaelaboração teórica que fundamente a prática clínica humanista, tanto no sentidometodológico como epistemológico e ético. Mas isto é um tema para estudos futuros.No momento é importante adiantar essa discussão apenas trazendo o pensamento deMerleau-Ponty como uma possível fundamentação filosófica, ainda que o que sepretenda, no rumo de umapsicoterapia fenomenológica mundana, seja mais que isso.

A FUNDAMENTAÇÃO NA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY1

Na crítica ao humanismo antropocéntrico em psicoterapia, cabe levar em contaas palavras de Merleau-Ponty (1960) ao definir o humanismo como "uma filosofia queconfronta como problema as relações do homem com o homem e a constituição entreeles de uma situação e de uma história que lhes sejam comuns" (p.283). Estaafirmação do filósofo francês traz luz às seguintes inquietudes teóricas: será possívelum humanismo cultural? Como desenvolver um humanismo cuja preocupaçãofundamental seja o homem, mas que não tenha o homem como centro e o situe comoum ser mundano? Como desenvolver uma prática psicoterapêutica enraizada nomundo? Um caminho para que isso ocorra é a elaboração de uma psicoterapia na qualo homem seja mundo e o mundo seja homem, abolindo uma visão de homemdicotomizada, que o divide em interioridade e exterioridade, em individual e social. Namedida em que o homem é sujeito e objeto, mistura-se na geléia geral que compõe omundo, o homem, a história, ao mesmo tempo em que se singulariza com suas ações,pensamentos e discursos.

A partir desta perspectiva, em psicoterapia ver-se-ia o paciente como um serintrinsecamente interligado ao mundo, que é sua própria história e sua possibilidade detransfiguração: o mundo já não é considerado como objeto, assim como o clientejánão é visto como sujeito. Ambos, o cliente e a sociedade, fazem parte da mesmacontextura carnal, como será detalhado no décimo primeiro capítulo. Para elaborar o

1. Este tema será abordado com profundidade no capítulo 11 desse livro.

VIRGÍNIA MOREIRA 107

conceito de carne, Merleau-Ponty (1964) parte da ideia de intercorporeidade, onde acarne é aquilo que o meu corpo é, ativo-passivo, visível e vidente. Carne não é a síntesehomem-mundo, é uma forma de abordar o ser que escapa à representação. Não ématéria nem espírito, mas está entre ambos. É o sentido do corpo em sua relação comos objetos, já que para o filósofo o homem não tem uma consciência constituinte dascoisas, como propõe o idealismo, mas que

visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas, é

captado na contextura do mundo e sua coesão é a de uma coisa. Mas, já

que se vê e se move, ele mantém as coisas em círculo em volta de si, elas

são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua

carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do próprio

estofo do corpo, afirma Merleau-Ponty (1964, p. 19).

Depreende-se, então, da filosofia de Merleau-Ponty e, particularmente, do seuconceito de carne, um modelo de homem que não se insere no pensamento dualistaocidental, já que se situa para além das dicotomias corpo-alma, sujeito-objeto, interior-exterior, individual-social. Este homem, que sempre está entrelaçado com o mundo,não é o centro do mundo. Ele o constitui tanto quanto o mundo constitui a ele, de talmodo que não existe um centro. A partir de uma crítica ao humanismo antropocéntrico,é necessária urgentemente uma (re)formulação da concepção de homem na práticade um humanismo histórico e cultural em psicoterapia. A elaboração pertinente dessavisão de homem parece ser um passo fundamental nesse sentido. É necessáriotranscender a ideia de centramento que aprisiona as abordagens psicoterápicashumanistas, impedindo-as de realizar-se fenomenologicamente, tal como elas sepropõem. É preciso que a sua fundamentação se dê sobre uma concepção de homemenquanto ser no mundo e, como tal, como fenómeno em mútua constituição com omundo. Somente assim será possível o desenvolvimento de uma psicoterapia cujomodelo teórico realmente seja comprometido com a história, considerando que homeme mundo são vistos em mútua constituição (Moreira, 1990), ideia que será retomadana terceira e quarta partes desse livro. Vale ressaltar que esta proposta não se restringea buscar fundamentos para as abordagens psicoterápicas humanistas na fenomenologiaexistencial, visto que esta mesma é tributária de um certo centro (ver a consciência emSartre, por exemplo). O importante para as abordagens psicoterápicas humanistasseria acompanhar o processo no qual a própria fenomenologia existencial livra-se danoção de centro. Isto ocorre através da trajetória de Merleau-Ponty, que conseguiutranscender o centramento teórico da fenomenologia (na consciência e no sujeito) em

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DE CARL ROGERS A MERLEAU-PONTY: A PESSOA MUNDANA EM PS1COTERAPIA

direção à mútua constituição. De forma que, no âmbito da filosofia, Merleau-Ponty, emsua última fase (1960, 1964, 1970), traz uma contribuição preciosa para afundamentação filosófica das abordagens psicoterapêuticas humanistas (Moreira, 1990).

OMDMOEMPSICOTERAPIA

A elaboração de uma fundamentação filosófica para as abordagenspsicoterapêuticas humanistas se dá por conta da busca de uma prática clínicacompetente, comprometida com o homem e com o mundo. Assim, mais que encontrara fundamentação filosófica para esta proposta, faz-se necessário repensar suateorização tal como se dá atualmente na psicoterapia humanista, além de realizarpesquisas sobre a mundaneidade humana, tal como se apresentará mais adiante nesselivro. Deve-se pôr fim às acusações que consideram a psicoterapia de basehumanista como individualista, alienada e pouco transformadora. Deve-se ir mais alémdas discussões indivíduo-sociedade que perpetuam uma concepção dicotômica dohomem. Enquanto se mantenha a pessoa comocentronão há maneira de se superarestas críticas. Não se pode realizar uma psicoterapia transformadora se esta não vêo homem e o mundo em sua mútua constituição. Nesse sentido, a filosofia de Merleau-Ponty apresenta-se como um horizonte para onde a psicologia deve se dirigir. Seuconceito de carne pode converter-se numa significativa contribuição para a elaboraçãode uma concepção de homem não dicotomizada, de tal forma que possamosdesenvolver teoricamente uma psicoterapia para além da pessoa, como se investigana terceira parte desse livro.

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