milner amor da lingua

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7/26/2019 Milner Amor Da Lingua http://slidepdf.com/reader/full/milner-amor-da-lingua 1/128 J ean-C l aude  M ilner D AMOR DA LÎNGUA 

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Jean-Cl aude Mil ner 

D A M O R D A L Î N G U A  

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O amor da língua

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oUNICAMP

Universidade Estadual  de Campinas 

R eitor

Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade

Edgar  Salvadori De Decca

E D E T O R A  

Conselho E ditorial

Presidente

Paulo  Francmett i

 A l c ir  Pécora - Christiano  L yr a Fi lho  

 José A. R. Gonti jo  - José R oberto  Zan  

Marcel o  K nobel  - Marco  A ntonio  Zago  

Sedi Hirano  - Sil v ia Hunold Lar a

Co leção Psicanálise e seus Litorais: Arte, Ciên cia e Filosofia

Comissão Editor ia l

 A na Maria Medeiros da Costa - A ngela Maria R esende V orcaro  

Cl áudia Thereza Guimarães de Lemos - José A ntonio  R och a Gont i jo  

Nin a V irgínia  de A raújo  Leite (coordenadora)

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 Jean-Claude Milner

O AMOR DA LÍNGUA 

Tradução e notas 

Paulo Sérgio de Souza Jr.

 Revisão técnica

Cláudia Thereza Guimarães de Lemos

Maria Rita Salzano Moraes

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua

Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 1009.

FICHA CATALOGRÁFTCA ELABORADA PELOSISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP

DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

Milner, Jean-C laude

M fijSa O amor da língua / Jean-Claud e Milner; tradução e notas: Paulo Sérgio de

Souza Jún ior; revisão técnica: Cláu dia Thereza Guimarães de Lemos e Maria

Rita Salzano Moraes. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, zon.

1. Linguística, z. Linguagem. 3. Psicanálise. 4 . Ciência - Filosofia. I, Souza Júnior, Paulo Sérgio. II. Título.

CD D 410400

150.195ISBN978-85-168-0980-2.______________________ _______ _______  501

 índ ices para catá logo sistemático:

I. Linguística 4IO1. Linguagem 4OO3. Psicanálise 150.195

4. C iência - Filosofia 501

Tirulo original: Lamour dela langueCop yright © Éditions du Seuil, Paris

Copyright © by Jean-Claude MilnerCopyright © 10 1 1 by Editora da Unicamp

Nenh uma pa rte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada , reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

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»MémaraèQueMdísúptiWrartcá

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à la Publication io n Carlos Drummon dde Andrade de la Méd iathèque d e la Maiso n de France, bénéficie du soutien du Ministère français

des Affaires Etrangères et Européennes.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação io n Carlos Drummondde Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com o apoio do Ministério francês

das Relações Exteriores e Europeias.

Editora da UnicampRua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp

ce p 13083-891 - Campinas - SP- BrasilTei./Fax: (19) 3511-7718/772.8

 www.editora.u nicamp.br  -  ven [email protected] nicamp.br

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SUMARIO

PREFÁCIO................................................................................................................................  y 

1 PRÓLOGO.......................................................................................................................... I5

2 PR ODUÇÃ O DA LÍN G U A ........................................................................................... 25

3 LINGUÍSTICA SUTIL E ESMORECENTE ...........................................................  39

4   LIN G U ÍS TIC A UN A E IN D IV IS ÍV E L .................................................................... 49

5 DES VIO PELAS CHICANAS DO TO D O ............................................................... 69

6 UM LIN GUISTA D ESEJA N TE................................................................................... 83

7  DA LÍN GU A...................................................................................................................... 95

8 DO LIN G U IS TA ............................................................................................................... I O y 

9  REM ATE.............................................................................................................................. H o

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PREFÁCIO

O campo freudiano é coextensivo ao campo da palavra. Mas, uma vez

que ela se choca incessantemente com o fato de que não se diga tudo, a

própria palavra não vai em todos os sentidos.

Isso porque há um impossível próprio da língua que sempre retoma ao

seu lugar e pelo qual há quem chegue — aqueles chamados “puristas” — a

morrer de amores: os “diga isso, não aquilo”, a regra, o uso predominante.

Dito de outro modo, um real — e o ser falante tem de se arranjar com ele.

Mas o que haveria de surpreendente na tentativa de, no sentido próprio do

termo, domesticar esse real através dessa arte de amar chamada gramática e

dessa ciência chamada linguística?

O limite entre a arte e a ciência subsiste em um axioma que a primeirarenega e sobre o qual a segunda se sustenta: o real da língua é da ordem do

calculável. Mas ao próprio axioma não se chega sem rodeios. Deve-se:

i) constituir a língua como um real: fazê-la causa de si, descartando toda

causa que não seja de sua ordem, fazendo-a causa apenas de sua própria ordem.

E o que se chama de arbitrário do signo — que dita apenas que o signo não deve

ter outro mestre a não ser ele mesmo, e que só deve ser mestre de si mesmo.

 z) constituir a língua como um real representável para o cálculo, comoum real que possa ser substituído pelas letrinhas de uma formalização. Para

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isso servem o conceito de signo e o princípio de distintividade: cada seg

mento da língua — palavra, frase, som, sentido — , entendido como signo,

é representado de maneira unívoca e analisável: identidade por identidade,

diferença por diferença.

3) considerar do ser falante, de modo geral, apenas aquilo que faz com

que ele seja base de cálculo; pensá-lo como ponto sem divisão nem exten

são, sem passado nem futuro, sem consciência e sem inconsciente, sem

corpo — e sem outro desejo que não seja o de enunciar. Trata-se da figura

do anjo que, em todas as épocas, cinge aquilo que sucede a um sujeito,

quando dele retemos apenas a dimensão da pura enunciação.

4) considerar da multiplicidade dos seres falantes apenas aquilo que é

necessário à constituição de um real calculável como língua, ou seja, dois

pontos: um de emissão, outro de recepção. Pontos simétricos dotados dasmesmas propriedades, e, portanto, indiscerníveis — a não ser por sua duali

dade numérica. É o que o conceito de comunicação efetua.

 Assim, cálculo por cálculo, vai se construir a rede do real, tendo como

único princípio de investigação o impossível — leia-se, aqui, o agramatical.

O surpreendente é que isso seja exequível.

 A psicanálise dispõe, aí, de uma única intervenção válida: enunciar que,

em matéria de língua, a ciência possa faltar. E isso a ciência sequer poderá

contestar, uma vez que não acontece com a linguística o mesmo que aconte

ce com a lógica: o real em que aquela se sustenta não é um real suturado, mas,

sim, percorrido por falhas — e da própria ciência elas se deixam perceber.

Essas linhas de falhas se entrecruzam e se sobrepõem, O cálculo as de

marca como algo a ele irredutível, mas aquilo que elas configuram não se

trata de uma outra rede, com a qual se poderia construir uma ciência nova,

inaudita — quimera das gramatologias. A natureza e a lógica dessas linhas,

porém, são inteligíveis a partir do discurso freudiano: em lalíngua, dora

 vante concebida como não representável para o cálculo — isto é, como

cristal — , elas são os recantos em que cintila o desejo e nos quais o gozo se

deposita.

Foi assim que, no ano de 1974, anunciei uma série de conferências que pretendia ministrar no Departamento de Psicanálise de

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 Vincennes. Ocupava-me na época a redação, para fins universitá

rios, de um trabalho de estrita sintaxe — surpreso, sem dúvida, por

me ver conduzido a esse extremo; e surpreso ainda, entretanto,com o fato de que não me entediava mais do que de costume. Mas

também me ocorria, de quando em vez, a seguinte desconfiança:

será mesmo que a linguística me interessa?

No que diz respeito à gramática, eu sabia; afinal, havia podido

constantemente observar o quanto, entediado com os trabalhos

que exigem originalidade e invenção, eu me entregava a provações

de pura língua: traduções ou comentários filológicos. Mas nada

disso remetia à linguística, que há muito eu havia adotado como

apenas um sucedâneo, imposto pela dura modernidade, dessa gra

mática desde então caída em descrédito. Ora, ali estava eu, exigin

do de mim mesmo que me envolvesse com a ciência que me qua

lificava no mundo; isso ia contra as expectativas e merecia que me

interrogasse.Sem dúvida eu teria podido sustentar que a única coisa que me

movia nessa empreitada era um zelo epistemológico: se, afinal, a

linguística é uma ciência, não é oportuno que, no momento em

que um praticante se devotar ao detalhe, ele faça retorno aos fun

damentos e se atenha ao fato de expô-los na linguagem conceituai

conveniente? Mas eu bem sabia que isso teria sido distorcer os

fatos. Por um lado, porque eu sequer acreditava na epistemologia:se Koyré e Lacan têm razão, e a ciência, desde Galileu, é apenas um

campo característico para a observação, em função da combinação

de dois caracteres — constituição de uma escrita matematizável

e validação de toda técnica eficaz —, então a questão epistemoló-

gica fundamental “tal conjunto de proposições éuma ciência?”

revela-se não tendo como ser mais frívola; basta estabelecer se essas

proposições pertencem ao campoda ciência, isto é, se apresentam

as características requeridas. Sem dúvida, e não faz muito tempo,

alguns epistemólogos trataram de se valer de uma urgência polí

tica. Isso porque, se é preciso que o marxismo seja ciência, vemos

 justamente que a ciência não teria como ser definida moderna-

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mente: onde está a escrita do marxismo, onde está a técnica que

ele validaria? E preciso, então, recorrer aos critérios clássicos, ligei

ramente adaptados de Aristóteles: boa definição do domínio, do

objeto, dos conceitos, dos axiomas — resumindo, o ferramentalordinário. Mas a urgência política já vinha perdendo seu peso há

algum tempo: ainda que o marxismo encerrasse uma verdade qual

quer, por que é que ele deveria ser ciência? Não havia nisso algum

preconceito? O preconceito moderno por excelência, de fato: o

de que o lugar de toda validade só pode ser a ciência? Quanto a

saber se o marxismo atinge efetivamente alguma verdade, deixemos

isso de lado. Não havia mais nenhum impedimento, então, para a

recondução de todas as questões epistemológicas à sua forma sim

ples. Ora, é particularmente fácil para a linguística, hoje — di

gamos, depois de Chomsky —, estabelecer sua pertinência ao

campo das escritas galileanas; o que não tem grandes consequên

cias, aliás, a não ser estabelecer a relação exata que ela mantém com

a gramática.

Supondo, no entanto, que eu tenha atribuído alguma impor

tância à epistemologia, o fato é que ela não era, de modo algum,

aquilo que me absorvia no momento. Eu vinha, com efeito, sendo

requisitado pelas circunstâncias a chegar ao lugar exato em que

algo da língua — apresentando-se como regra cientificamente

enunciável — me interessava. Também a respeito desse ponto eu

tivera antigamente uma resposta pronta. Convencido de que os

animais intelectuais, como os da selva de Kipling*, deixam-se guiar

por uma palavra-mestra — que basta articular e pela qual toda e

* Rudyard K ipling (1865-1956), escritor e poeta de origem indiana premiado

com o Nobel de literatura em 1907, é o autor dos Thejungle books(Os livros

da selva), 1894-1895 — uma coletânea de histórias infantis ambientadas na

índia, publicada em dois volumes, e que versa sobre o universo de um garoto,

Mogli, criado por uma família de lobos em meio a outros animais selvagens,

com os quais interage. (N. do T.)

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qualquer proposição se encontra medida —, imaginei que em épo

cas distintas essa palavra fosse emitida de diferentes pontos: a teo

logia, sem dúvida alguma, mas sua época havia passado; a filosofia,

pelo contrário, estava então — por volta de 1960 — em pleno es

plendor, mas meu parco gosto pelas ideias originais afastava-me

de uma disciplina dominada por elas. Restava a gramática: afi

nal, de um certo ponto de vista, é verdade que ela tem jurisdição

universal sobre toda proposição. Bastava, então, valer-se desse

ponto de vista para deter as insígnias de uma monarquia absoluta

sobre os discursos. Assim, ao me deparar com a estrutura de uma

disputa medieval* — interceptando-a, todavia, por meio da resig

nação —, eu procurara do lado da gramática aquilo que a filosofia

parecia furtar-me. Sem dúvida encontrei posteriormente outros

recursos na epistemologia, que, por definição, convoca toda pro

posição e afere suas medidas com as palavras-mestras “ciência” ou

“teoria”; ou ainda na política, em que, na França, o típico é impu

tar-se poder universal de validação e de invalidação. Mesmo assim,

no entanto, a gramática — ainda que fosse sob sua forma moder

nizada em ciência — permanecia sendo uma possibilidade menor,

* Conforme Nicola Abbagnano nos apresenta em seu Dicionário de filosofia (Martins Fontes, 2007, p. 9.81), a expressão designa a disputa sobre o status ontológico dos universais. Ela tem seu princípio no século XI, com a Esco

lástica, e caracterizará toda a filosofia medieval — não sem se estender, mu- tatis mutandis, à filosofia moderna. Essa disputa fora motivada por um trecho

da Isagoge(Introdução) de Porfírio às Categorias de Aristóteles. Segundo

Porfírio: “dos gêneros e das espécies não direi aqui se subsistem ou se são

apenas postos no intelecto, nem — caso subsistam — se são corpóreos ou

incorpóreos, se separados das coisas sensiveis ou situados nas coisas, expres

sando seus caracteres comuns” (. Isagoge, Prefácio). As duas soluções típicas einiciais do problema são o realismo e o nominalismo: para o primeiro —

representado pela tradição lógica platônico-aristotélica —, o universal é, além

dc conceptus mentis, a essência necessária ou substância das coisas; para o

segundo — representado pela tradição estoica —, o universal é um signo das

coisas. (N. do T.)

n

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porém garantida, na medida em que imperava a crença de que a

linguística houvesse cumprido o destino de todas as ciências do

homem.

Mas em 1974 eu não acreditava em mais nada daquilo. Nãoapenas a filosofia e a política foram para o espaço, mas, radical

mente, o real havia passado; não há palavra-mestra — porque há

um Mestre; porque há uma infinidade de palavras [moís], todas e

nenhuma, ao sabor da sorte, podendo servir ao discurso desse mes

tre; porque, afinal, não há universalidade dos discursos. Entre

tanto, a linguística resistia; e não é só isso: resistia em si mesma, e

não mais como avatar recente da gramática. De onde é que, uma

 vez mais, vinham essa resistência e essa determinação inesperada

de um desejo?

Havia somente uma saída: tentar estabelecer se acaso faz algum

sentido falar de um desejo do linguista enquanto tal, e então tentar

nomeá-lo. Isto é, articular as vias através das quais um ser falante

pode se inscrever como suporte de uma ciência cujo terreno é aqui

lo que faz com que haja ser falante, e que tem como objeto alguma

região desse terreno. Forma de autoanálise selvagem, talvez, mas

não obstante garantida pelos significantes da orientação lacaniana,

que interdita que aí se profira qualquer coisa. Desses significantes

eu fui me valendo para questionar a ciência na qual estava desco

brindo que era precisamente como sujeito que eu me inscrevia.

Quem sabe aí esteja o que alguns chamariam de epistemologia

lacaniana; e isso de modo assaz impróprio, uma vez que apenas

importa, no caso, o modo de enodamento entre um desejo e algu

mas locuções — as quais, eventualmente, podem ser apreciadas na

ordem da ciência.

 As conferências que eu havia divulgado sucederam no decorrer

do primeiro semestre de 1974-197$) e, como era de esperar, nãodeixaram de ter efeito sobre aquele que as proferiu; a tal ponto que,

certo dia, ao reler o anúncio que eu redigira, pareceu-me ser pos

sível e desejável uma maior precisão. Não julguei oportuno deixar

de testemunhar isso de alguma maneira. Por fim, sem ceder a ne-

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nhuma instância que não a minha, transcrevi minhas conferências

e submeti à revista Ornicar, que consentiu em publicá-las; semi-publicação, na realidade — reserva que convinha ao teor provoca

tivo do meu projeto. Em seguida, o testemunho de algumas pes

soas (tradutores ou poetas, que por si sós se reconhecem

interessadospelalíngua), não menos, aliás, que o silêncio incomo

dado de alguns aturdidos, certificou que eu havia, ainda que obs

curamente, atingido alguma verdade. Daí veio a vontade de pu

blicar mais, talvez aguçada por uma insidiosa necessidade de fazercom que ela me fosse mais inofensiva.

Sabe-se, contudo, que não é sem empecilhos que se verte para

uma forma mais patente aquilo que fora clandestinizado: eu não

queria e nem podia retomar o texto daOrnicar  sem nenhuma mo

dificação, mas, por outro lado, ele não deixava de existir — e havia

uma nuvem de malversação que o diluía, ao injetar complementos

retardatários aqui e acolá. Além disso, fui tocado por algumas observações de Deleuze e Guatarri, em seu “Rizoma”*. Afinal, do que

é que precisávamos, de fato: de livros arborescentes ou lineares?

Preferi, então, conformar-me com as rebarbas e com o heterogê

neo; conservar o texto da Ornicar  mediante algumas revisões de

detalhe, mas nele implantar um desvio tríplice: recobrando, ante

cipando, deslocando o que pertence ao texto — ora corrigindo,

oraconfirmando por outras vias. Numa só palavra, um pouco de

agitação; mas não muita, pois temos os nossos tabus.

, U   G. Dcieuze e E Guattari, Milplatôs. Introdução: “Rizoma”. Trad, A.

Guerra c C. P. Costa; vol. I. Rio de Janeiro, Ed. 34,1995. (N. do T.)

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PRÓLOGO

 Apresenta-se a nós um conjunto de realidades que se chamam lín-

guas. De fato, sequer hesitamos em lhes atribuir esse nome — atodas e a cada uma delas —, como se sempre dispuséssemos de umaregra que nos permitisse, dada uma certa realidade, determinar seela pertence ou não ao conjunto. Isso supõe, inarredavelmente, aexistência de algumas propriedades defmitórias, compartilhadaspor todos os elementos dignos de receberem o nome de língua erepresentadas exclusivamente por eles. Que por abstração se confira a essas propriedades um ser autônomo, e obtém-se aquilo quesc chama linguagem’, em si, nada mais que um ponto a partir doqual as línguas podem ser reunidas num todo — mas um pontoao qual se conferiu extensão, ao se lhe atribuírem propriedadesenunciáveis.

Mas esse momento, o da linguagem, não faz mais que temati-Z&r uma operação anterior, pois dizeras línguas talvez já seja, mi

nimamente, concebê-las como próprias a serem reunidas. Então,tm se tratando da ancoragem das línguas na linguagem, uma pro-

 j ÊOflição deve ser restituída: “as línguas formam uma classe consis-

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tente” — logo, uma classe cujos elementos podem ser pensados

todos juntos sem contradição1.

Isso é o que dizem as nossas palavras, mas aquilo que percebe

mos é justamente o contrário; afinal, quem não se dá conta de quea classe das línguas pode ser dita inconsistente, tendo em vista que,

entre os seus elementos, há sempre um que não pode ser admitido

sem se revelar incomensurável com todos os outros ?Essa língua,

que chamam habitualmente de materna, pode ser sempre conside

rada por um lado que a impede de ser contada junto a outras, de

se acrescentar a elas, de ser comparada com elas. Ora, uma vez es

tabelecido isso, o que impede abordar todas as línguas desse ângu

lo e considerá-las como radicalmente impróprias a se totalizarem,

fazendo com que aquilo que avaliza a sua semelhança se torne jus

tamente o que afiança a sua incomensurabilidade?

 Ao dizer as línguas, todavia, ainda dizemos algo mais: certa

mente estamos fazendo a suposição de que elas são várias e estão

reunidas, mas também de que é sempre possível diferenciá-las en

tre si. Pois esse plural é, na verdade, uma coleção de singulares ao

mesmíssimo tempo iguais e discerníveis. Dito de outro modo, sus

tentamos que há sempre sentido em dizer “uma língua” — de tal

modo que sempre se possa, para um segmento qualquer, determinar se ele pertence ou não a ela. Mas isso é muito pouco provável:

mesmo presumindo que sempre saibamos determinar se um seg

mento de realidade é ou não língua, isso não significa que sempre

se possa atribuí-lo a uma determinada língua mais do que a outra.

Paralelamente aos casos habituais, em que a distinção é trivial, há

também aqueles em que identidade e diferença se embaralham: o

que dizer dos tipos diversos de sintaxe que um mesmo sujeito, con-

I Cf. J.-A. Miller, “Théorie de lalangue”, Ornkar, ne i, pp. 27-8 [“Teoriadálíngua (rudimento)’’, in Maternas I. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar, 1996, pp. 65-6. As referências a esse livro serão baseadas nessa edição.].

 A fonte é a carta de Cantor a Dedekind, datada de 28 de julho de 1899, in

 Abhandlungen mathematischen u. philosophischen Inhalts. Hildesheim, Olms

 Verlag, 1966, pp. 44V4-

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forme o seu humor ou as circunstâncias, poderá ocasionalmente

adotar ? O que dizer de dois sujeitos convencidos de falarem a mesma língua e de cujos julgamentos de gramaticalidade, entretanto,

podemos testemunhar constante divergência? O que dizer dos

dialetos, dos “níveis de língua”?

 Ainda que às vezes se possa determinar se duas línguas são ou

não são idênticas, isso não chega perto de se poder asseverar sempre

que toda locução — e que, por isso, toda língua, enquanto conjun

to de locuções — é idêntica a si mesma. Existem, sem dúvida, precauções elementares que permitem contornar as dificuldades ime

diatas: assim, é preciso pelo menos evitar que qualquer episódio

circunstancial, por menor que ele seja, possa ofuscar o fulgor do

idêntico. Aceitemos, então, chamar de a língua esse núcleo que,

em cada uma das línguas, sustenta suas unicidade e distintividade.

Ela não poderá ser concebida do lado da substância — indefinida

mente sobrecarregada de acidentes diversos —, e sim como uma

forma — invariante através de suas atualizações —, visto que se

define em termos de relações1. Reconhece-se aqui a cisão da língua

com a fala, cuja mecânica vale, abertamente ou não, para todas as

 versões correntes da linguística. Logo, a operação é possível, mas

não deixa de levantar suspeitas; e isso quando observamos que

também é sempre possível — sem se esquivar da experiência ime

diata — fazer valer em toda locução uma dimensão do não idên

tico, Trata-se do equívoco e de tudo o que lhe diz respeito: homo-

fonia, homossemia, homografia — enfim, de tudo aquilo que

lUstcnta o duplo sentido e o dizer em meias-palavras, incessante

tecido de nossas interlocuções.

 Vê-se justamente que uma locução, quando trabalhada pelo

iquívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra. Sua unicidade 8Crefrata seguindo séries indiscriminadas, visto que todas elas,

 ÉÊ  Pouco importa se essas relações são as que Saussure — e, depois dele, o estru-

turdismo — descreveu como paradigmáticas e sintagmáticas, ou se elas se

V 'êicrcvcm como regras de natureza diversa.

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assim que nomeadas — significação, sonoridade, escrita, etimolo

gia, sintaxe, trocadilho.*. —, refratam-se indefinidamente uma

após a outra. O que temos aí não é a árvore que faz o cálculo desse

múltiplo, mas o cristal do aleph com o qual Borges talvez metafo-rize o lugar não idêntico no qual todo ser falante, enquanto tal, se

inscreve*. Reciprocamente é possível reconhecer na célebre asser

ção de Saussure — de que “a língua é uma forma, e não uma subs

tância”** — a fórmula que resguarda o idêntico, cabendoà substân

cia da língua revelar, afinal, o que ela é: o não idêntico a si.

Sem dúvida, pode-se ir ao encalço do equívoco através de pro

cedimentos determinados: se é pelo som que ele se constitui, re

correr ao sentido; se é pelo sentido, recorrer ao som; se é pela es

crita etc. Numa só palavra, apoiar-se no fato de que há estratos. Vai-se admitir, portanto, que os fonemas articulam as palavras e as

distinguem; que as palavras articulam os grupos; e os grupos, as

frases. Através dessa operação se introduzem tipos e ordens de uma

maneira tão semelhante ao método russelliano, que se poderia

acreditar que ele não passa de uma simples repetição daquilo que

as gramáticas sempre souberam: da mesma forma que os paradoxos

consistem apenas em confundir os tipos***, também o equívoco se

fundamenta num espectro [fantôme] que brota da conjunção in-

* Cf. J. L. Borges [1949], “El aleph”, in El aleph. Buenos Aires, Emecé, 197Z. (O aleph. Trad. Flávio José Cardoso. Rio de Janeiro, Globo, 1001). (N. do T.)

** Cf F. de Saussure, Curso de linguísticageraU  4a ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes,

I. Blikstein. São Paulo, Cultrix, 197a, p. 131. (N. do T.)

*** “Para garantir a teoria de conjuntos e, simultaneamente, evitar os paradoxos,

Bertrand Russeli propõe, em 1903, o que ele chama de ‘Doutrina de Tipos’,

que vai gerar a Teoria Simples de Tipos Lógicos e a Teoria Ramificada de

Tipos Lógicos [...]. O método empregado hoje para evitar os paradoxos se

mânticos é a chamada ‘Doutrina dos Níveis de Linguagem’, desenvolvida por

Tarski nos anos 1950, e que consiste na especificação de uma hierarquia de

níveis de linguagem: linguagem, metalinguagem, metametalinguagem etc.

O casal K neale [...] propõe que essa necessidade de distinguir entre vários

níveis de linguagem pode ser derivada da Teoria Simples dos Tipos Lógicos,

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devida de vários estratos — ele explode em unívocidades com

binadas. Mas suponhamos, em contrapartida, que estamos no

nível da experiência: na locução — seja ao falar, escrever, ouvir ou

ler —, é por abstração que se distinguem os estratos. Nada reivin

dica essa diferença que faz com que Paris seja simultaneamente um

grupo nominal, um nome, uma série de fonemas — que, por sua

 vez, pode ser entendida como menção ou como uso —, a não ser

a demanda de que a língua não seja equívoca: esfera imaginária

em que aquilo que permite satisfazer a demanda não tem outroalicerce além da própria demanda.

Mas o real do equívoco resiste: a língua não cessa de ser deses-

tratificadapor ele.

Tanto que, tendo em vista a própria língua, não faltam pontos

cm que a estratificação se suspende. O inventário, apesar de incom

pleto, não é desconhecido: pronomes pessoais, performativos,

insultos, exclamações — todos elementos cuja definição, em men

ção, implica circularmente o uso do definiendum*; cujo sentido só

scexplica inteiramente por um recurso ao proferimento do próprio

som. Sabe-se, afinal, que eu designa aquele que diz "eu”; que jurar  

é dizer “eu juro” etc. Isso, sem dúvida, não afeta a possibilidade de

uma referência regular: para que a língua se edifique, basta que,

atravésde uma nomeação adequada, esses elementos que exorbitamdo ordinário encontrem-se fixados em posição de limite. Mas até

ifio não se realiza sem perda: é preciso que, a partir daí, se admita

 Apresença de singularidades heterogêneas no éter da língua.

O que nos devolveria ao trabalho inicial de Russell” (B. Neto. Lógica: breve

Introdução à lógica; texto inédito, disponível em <http:/ / people.ufpr. br/ ~borges/ diversos/ publicacoes.htmi>). (N. do T.)

Nu operação de definição, o que está em jogo é especificar a natureza de algo.

 Aquilo que queremos definir chama-sedefiniendumi edefiniem, por sua vez,

é 0 nome atribuído àquilo que o define. Por exemplo, podemos definir o

■'étfinitndum “prata” através dodefiniens “o elemento cujo símbolo na tabela

pirlódica é Ag”. (N. do T.)

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Mas a língua só se concebe claramente na isotopia absoluta: de

qualquer ponto que se a considere, ela deveria oferecer uma mesma

fisionomia. No entanto, isso é o que os dados mais simples não

confirmam: na série de lugares homogêneos sempre despontamalgumas singularidades.

Uma língua, como objeto possível de uma proposição capaz de

ser válida para todos, e mais ainda da menor escrita científica, exi

ge ser sempre distinguível do que não é uma língua, sempre distin

guível de uma outra língua, sempre idêntica a si mesma, sempre

inscritível na esfera da univocidade e sempre isótopa. Numa só

palavra, ela deve serUma. Ora, é evidente que essas condições ir

redutíveis só são satisfeitas caso se descartem determinadas pro

posições:

— as línguas, por serem incomensuráveis, não formam uma

classe consistente;

— uma língua não é idêntica a si mesma;

— uma língua é uma substância;

— uma língua pode cessar de ser estratificada;

— uma língua não é isótopa.

Mas, como vimos, não há nada na experiência que faça com que

alguma dessas proposições seja impossível de ser sustentada. E por

uma decisão de princípio que elas são descartadas, e esse princípio

se reduz à pura e simples demanda de que um determinado tipo de

proposição universalizável possa ser proferido sobre toda língua.

Há mais a dizer, uma vez que essas cinco proposições descarta

das não deixam de configurar, quando tomadas em conjunto, um

determinado lugar de língua: algo real, que insiste em cada uma e

que nem linguística, nem gramática creem renegar. Esse elementoimpassível é da ordem das línguas, muito precisamente; e, além

do mais, não se furta inteiramente aos sentidos, visto que é por

meio da própria experiência que o encontro com ele pode ser des

crito — tanto que, para mantê-lo apartado, só procedendo por

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abstração. Fica faltando, então, nomear esse intrometido que trans-

passa as cinco proposições e do qual ainda não fomos capazes deavistar nada mais que o vulto. Mas aqui a dificuldade aperta: teria

como ser surpreendente, afinal, o fato de que nenhum nome se

proponha facilmente para tanto, uma vez que todo nome visa à

univocidade? Nada de designação univoca, então, para o lugar dos

equívocos. Apenas um semblante pode se prestar a isso, ele mesmo

trabalhado pelo equívoco cujo real é aqui visado; compreende-se,

então, que lhe seja apropriado o nome forjado por Lacan: lalíngua \ lalangue\K 

 Lalíngua é, pois, uma língua entre outras; ao mesmo tempo em

que, uma vez formulada, ela impede, por incomensurabilidade,

que se construa uma classe de línguas que chegue a incluí-la. Sua

figuração mais direta é precisamente a língua materna, que não

carece de muita observação para admitirmos a necessidade de uma

torção bastante forte, para todos os efeitos, caso o intuito seja aco

modá-la no lote comum. Mas ela é, tão logo, qualquer língua — na

medida em que todas são, em algum aspecto, uma entre outras; e

quesão, para algum ser falante, língua materna. Não que o caráter

distintivo que funda a incomensurabilidade de uma língua possa

■nunciar-se em proposições linguísticas; aliás, muito pelo contrá-

flo, a incomensurabilidade se esvai no momento em que se adota

0 ponto de vista que permitiria tais proposições. Dito de outro

Blodo, lalíngua é o que faz com que uma língua não seja comparável

1 nenhumaoutra, na medida em que ela justamente não tem outra;

Aftmedida em que, inclusive, não teria como se dizer o que é que

t ftx incomparável.

Lalíngua é, em toda língua, o registro que a fada ao equívoco.

«mos como chegar a ele: desestratificando, confundindo siste-

MlMto notadamente a “O aturdito” (J. Lacan [197a], in Outros escritos. Trad.

Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, £003, pp. 448-97) e à última lição de

li Ainda  ■— assim como ao comentário de J.-A . Miller, in “Teoria

pp. 55-72-

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maticamcntc som c sentido, menção e UlOiÉWlIflfrflpreiientadn;impedindo, com isso, que um estrato perna HfVÍr dl lipoio paradesembaraçar um outro. Mas que se tenha cauteU aqui, pois esseregistro não passa daquele que distingue absolutamente uma língua de outra qualquer — a particularidade de uma língua se deveapenas às séries em que sua unicidade se decompõe. Um modosingular de fazer equívoco: eis, então, o que é uma língua entreoutras. Por isso ela se torna coleção de lugares, todos eles singulares e heterogêneos: de qualquer lado que se a considere ela é outrapara si mesma, incessantemente heterotópica. E por isso, também,que ela constitui igualmente substância, matéria possível para asfantasias \ fantasmes\ , conjunto inconsistente de lugares para o desejo — a língua é, desse modo, aquilo que o inconsciente pratica,

prestando-se a todos os jogos imagináveis para que a verdade, no

compasso das palavras, fale*.Lalíngua é tudo isso. E por via negativa, então, que se tem aces

so a ela: a partir de palavras comuns — “língua”, “linguagem” —,cujo uso que delas fazemos deixa-se facilmente traduzir em teoria.Contudo, uma vez assumida, ela aparece como aquilo do qual essaspalavras comuns são o tratamento e a adulteração. Pode-se, então,proceder por via positiva e, a partir de lalíngua, situar linguageme língua. Para lalíngua, a linguagem empresta os traços que a conduzem rumo à compatibilidade e à pertinência a uma classe; ao

mesmo tempo, a linguagem a insere no todo das realidades, no qualela ganha lugar e distinção. Paralelamente, distinguido pelo fatode falar, o ser falante também se concebe como um todo: o gênerohumano, cujo atributo essencial é a linguagem. E bem fácil, paraquem quiser fazê-lo, situar aqui a deriva imaginária: acaso a linguagem se sustentaria em outra coisa que não nesse momentoem que o ser falante se assimila reflexivamente como tendo congê-

* Cf. J. Lacan [1955], “A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud empsicanálise” m Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1003,p. 410. (N. do T )

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nirci que formem clame com ele e que *c distinguem mim uni-

 verso! Reiuinlndo: há algum outro fundamento além doespelho

• da imagem do semelhante que aí sc forma?

 A língua, por sua vez, também não deixa de ter efeito de deriva:

preicrvando a identidade a si, por acaso não é ela quem confere a

Ulíngua aquilo que lhe é necessário para que uma coleção qualquer

it leres falantes subsista? — a saber, o mínimo de permanência

que todo contrato exige e do qual a escrita se faz comumente o

lUporte. Estaríamos dizendo, então, que se deve atribuir a língua

Ifltdramente ao imaginário ?E o que muitos sustentam. Mas será

que é preciso chegar ao ponto de admitir que gramáticas e dicionários, que a escrita como tal, não comprovam nada além da fa-

chada a que, efetivamente, muitas vezes se prestam? Dito ainda de

OUtro modo, será que a língua não passa de uma máscara arbitra

riamente construída e que não tangencia nenhum real? Essa é jus-

lamente a incerteza que trespassa o linguista, por menos que a

•fetividade da psicanálise não lhe seja desconhecida. Pouco lhe

Importa que a linguagem seja só deriva, pois, a seu ver, é apenas a

língua que conta; e isso a tal ponto que ela é tudo para ele — tan

to que, se fosse absolutamente verdade que a língua não toca ne

nhum real, é o desejo do linguista que se encontraria fadado à cara

fcia. Em contrapartida, se os rumores atinentes à língua são infun

dados, eles convergem para um único fim: fazer com que o linguis

ta abra mão do seu desejo.Esclarecer a relação de lalíngua com a língua tangencia, então,

a ética*.

* Cf. J. Lacan, O seminário, livro VII — A ética da psicanálise. Trad. A. Quinet.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 381. (N. do T.)

2.3

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PRODUÇÃO DA LÍNGUA 

Nosso objeto será a linguística, na medida em que é afetada pela

possibilidade da psicanálise. Daí o título que escolhemos: seu se

gredo é simples e consiste na conjunção de termos correntes que

foram simplesmente levados ao pé da letra. Mas o que, de fato, é

precisoque a língua seja para que possamos designá-la tanto como

objeto de uma ciência quanto como objeto de um amor?

 Aventamos aqui três teses:

 J   — quando se diz amar a língua, é propriamente de um deter

minado amor que se trata;

•— ft língua que está aí em causa é justamente aquela que a lin-

Itelca tem de conhecer;

é por esse entrecruzamento que se pode descobrir o ponto

Uftl o desejo vem corromper uma ciência humana; ponto em

Htando alerta, é possível notar que se entrelaça uma relação

 ível comuma teoria possível do desejo.

flt&oé, portanto: o que é a língua se a psicanálise,existe?

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Mas, ao dizer língua, evocamos uma vez mais esta série que a

língua francesa nos propõe e que a tradição cuida de nos impor:

langue,parole, langage*. Evitaremos efeitos de vacilação, consta

táveis em demasia na literatura, exclusivamente para determinar

para esse conjunto um ponto a partir do qual ele seja possível de

seconstruir . A série, tal como qualquer outra, receberá efetiva

mente sua lógica do termo que lhe é exorbitante, e que ela é feita

para obliterar; esse termo, nomeado através de um artifício, élalín- 

gua — dito de outro modo, aquilo por meio do qual, num só gol

pe, há língua (ou seres qualificáveis como falantes, o que dá na

mesma) e há inconsciente.

Seja, então, lalíngua: a linguagem é a designação daquilo que o

saber elucubra no que se refere a ela e, notadamente, no que tangeà sua existência — de tal modo que o conceito de linguagem con

siste inteiramente na questão de “por que é que lalíngua existe?”

Em outras palavras, a linguagem não é nada além delalíngua apa

nhada na bifurcação de sua existência ou de sua inexistência: um

saber que passa pela ausência fantasiada de seu objeto. E por isso,

aliás, que a linguagem tem sempre a ver com as hipóteses sobre

origem, uma vez que essa última é a imagem móvel da bifurcação

imóvel — a forma narrativa na qual ausência e presença se articu

lam consecutivamente. Já a língua é uma outra coisa: diferentemente da linguagem, ela

não mobiliza a questão da existência como tal, mas, sim, a da mo

dalidade da existência. A pergunta que esse termo sintetiza é: “por

que a língua é como é, e não de outro modo E bastante evidente,

contudo, que essa pergunta suponha uma outra — “mas como a

língua é?” —; e vemos que essa última, por sua vez, terá como

resposta um “é assim”, o que simplesmente ignora a questão a res

peito do que é que poderia instituir a existência, bem como não

concebe nada relativo a uma possível inexistência. Reciproca-

“língua”, “fala”, “linguagem”. (N. do T.)

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mente, aliás, é por isso que aqueles que se ocupam da língua des

cartam todo questionamento relativo à origem*.Há um caminho aparentemente simples para compreender o

“éassim”. Seja, uma vez mais, lalíngua: o fato de língua consiste

em haver impossível em lalíngua — impossível de dizer, impossí

 vel de não dizer de uma determinada maneira. Nisso reconhece

mos com facilidade a partição entre o correto e o incorreto que

está no coração das gramáticas e das descrições linguísticas*1. Daí

em diante a língua em si não passa dessa partição considerada de

modo geral: uma língua, uma forma particular dessa partição; um

dialeto de uma língua, uma reorganização específica de uma par

tição particular.

Mas essa simplicidade é capciosa, pois a verdadeira natureza da

partição está abarrotada de cunhos imaginários. O mais conhecido

e perigoso consiste em utilizar a linguagem da soberania \ maitrise\ : em entender o impossível como uma obrigação que depende —

quer se trate de acordo, capricho ou consenso tácito —- de um

soberano. Sabe-se, aliás, que os ditadores, de César a Stalin, sempre

se preocuparam com a língua, reconhecendo nela a mais fiel ima

gem de um poder nu, que sequer necessita dizer seu nome. Inversa

mente, parece que a causa da liberdade concerne ao fato de denun

ciarmos o artifício das gramáticas e a presunção de suas regras — a

ponto de sustentar que a língua não conhece impossível1.

* Cf. , sobre í íngua e linguagem, J, - C, Milner, Introduction à une science du lan-gage (Introdução a uma ciência da linguagem). Paris, Seuil, 1989, pp. 41 ss.

(N. do T.)

1 Há, mais precisamente, uma borda real, que a divisão do correto e do incorreto cinge. Trata-se, segundo Lacan, da mesma relação que sustenta, no não

todo da relação sexual, a divisão em metades sexuadas às quais os eus [moi] se atracam. Para uma outra interpretação c uma discussão da homologia

entre as duas formas de borda, c f Judith Milner, “Langage et langue — Ou;

de quoi rient les locuteurs?”, in Change, n- 2.9, pp. 185-98, e n- 51, pp. 131-61.

1 C f, entre milhares de outros, Deleuze e Guatarri, Kafka, pp. 43 ss. [Kafka:  for uma literatura menor, Trad. J. C. Guimarães. Rio de Janeiro, Imago, 1977,

pp. 36 ss.].

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 Abandonemos por um instante a evidência da linguagem da

soberania e nos atenhamos ao mínimo: falar de língua e de parti

ção é reconhecer que não se pode dizer tudo. Em outras palavras,

o puro conceito de língua é o de um não-todo marcando lalín-gua; ou, ainda, a língua é o que sustenta lalíngua na qualidade de

não toda.

Retomemos aquilo que Lacan, em “Televisão”*, fez com que

operasse como ponto inicial de seu discurso: não se diz a verdade

toda, e isso porque com ela as palavras estão em falta. A proposição

que ele isola disso, por equivalência, é que a verdade, enquanto não

toda, concerne ao real.

Mas a leitura pode não parar por aqui: pode-se também con

cluir, do fato de que a verdade não se diz toda, que ela não passa

daquilo com o que as palavras estão em falta; ora, as palavras sem

pre estão em falta e o não-todo que marca a verdade, uma vez que

ela deve ser dita, marca também lalíngua, uma vez que todo dizer

passa efetivamente por ela. Disso se segue que, assim como apro

pria verdade, lalíngua concerne ao real.

Portanto a tese de que a língua sustenta lalíngua na qualidade

de não toda se deixa precisamente traduzir por: a língua sustenta 

o real de lalíngua.De que a língua esteja ligada à operação do não-todo não custa,

apesar das aparências, reencontrar vestígios ao longo das tradições:

afinal, o mito de Babel não diz outra coisa além disso, visto que

liga a possibilidade da língua à possibilidade de uma divisão inde

finida e não somável*3. Da mesma forma, Saussure constrói o mito

de dois contínuos (dois fluxos) que se conjugam e, por esse mesmo

encontro, veem-se divididos — e cada um acaba excedendo o outro

* Cf. J.Lacan, “Televisão”, in Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro,

 Jorge Zahar, 2003, pp. 508-43. (N. do T.)

3 “As línguas imperfeitas porque várias, a suprema falta...” (Mallarmé, Crisede Vers) [S. Mallarmé, Igitur  — Divagations — Un coup de dés. Paris, Gallimard,

1976, p. 244]-

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c fadando-o ao fracasso. Sabe-se, enfim, que a tradição legou aos

gramáticos a série das partes do discurso; não custa revelar o que

há aí de romanesco, mas os hipercríticos não se deram conta deque, no caso, o importante residia menos na listagem exata dessas

partes do que no fato de elas serem sempre e necessariamente su

postas. Que seja entre nome e verbo que se tenha de fazer a distin

ção é discutível, mas do fato de que se tenha de distinguir ninguém

escapa; dito de outro modo, como escrevera Platão (Sofista, 262a),

a língua, ainda que a imaginemos como totalidade enumerável, é

também necessariamente marcada pelo heterogêneo e pelo não

superponíveí.

Que a língua seja da ordem do real, em contrapartida, passa-se

a vida desconhecendo: por exemplo, traduz-se a língua em termos

de realidade, situando-a na rede do útil — a título de instrumento

(de comunicação) — ou na rede das “práticas” — sociais, entre

outras. Mais um exemplo: escande-se o real da língua com o quadro

clínico das neuroses para descrever os dialetos da histérica, do ob

sessivo etc., fazendo simultaneamente se passar por reais as fanta

sias construídas através da remendagem de seus fragmentos.

Entretanto, são precisamente teses atinentes ao estatuto desse

real que estão em jogo nos diversos discursos sustentados sobre a

língua. A partição maior deixa-se resumir da seguinte maneira: o 

real ou é concebido como representável, ou não.Essa partição não tem, na verdade, nada de específico: ela arti

cula, em sua forma mais geral, o próprio encontro do ser falante

com o real. Suponhamos que, de fato, haja real — o que, aliás,

nenhuma lógica teria como impor* —: tudo o que o sujeito de-

manda, caso ele o encontre, é que de alguma maneira uma repre

sentação seja possível. Somente a esse preço, pelo qual o imaginá-

* Cf. J.-C. Milner [1983], Os nomes indistintos. Trad. P. Abreu. Rio de Janeiro,

Cia. de Freud, 2.006, p. 7. (N. do T.)

 Z 9

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rio o defrauda, o sujeito poderá suportar aquilo que, de si, lhe

escapa. Para tanto, há duas condições: que para o sujeito haja o

repetível e que esse repetível constitua rede. Através da primeira

funda-se toda escrita; através da segunda toda escrita adquire a

consistência de algo representável.

Representações são o que não falta, sem dúvida; mas para os

modernos as únicas que valem devem comparecer na ordem da

ciência. Dito de outro modo, elas devem se formular como teo-

rias, nas quais os retalhos de escrita, que escrevem algumas pontas

de real, recosem-se numa figura que vale como um certo todo e

para todos. A dificuldade é que, por si só, a ciência moderna não

propõe nenhuma representação, não impõe nenhuma teoria — ela

se restringe a estabelecer escritas. Quem garantirá que as teorias

sobre o universo — e até mesmo ele próprio, entendido como uma

rede — não passem de fantasias ?Mas quanto à língua estamos mais

confiantes, tranquilizados por um procedimento de duas etapas

em que a gramática, enunciando num só lance o repetível e a rede,

avaliza de antemão sua garantia científica. Sustentar que o real da

língua é representável é fatalmente o passo inicial de toda gramá

tica: consiste em reconhecer o impossível próprio da língua naqui

lo que ele tem de repetível4 e, além do mais, em constituí-lo emrede — é o que chamamos deregular . A partir daí o real pode ser

objeto de regras e de tabelas que delineiem seus contornos. A lin

guística acrescenta, então, apenas o seguinte: a representação entra

na órbita da ciência.

 A ciência de que se trata é justamente a ciência moderna: aque

la que, após Galileu, substitui o objeto por letras e por símbolos a

partir dos quais ela raciocina. Que isso seja possível para uma lín

gua qualquer, só se desconfiou muito recentemente; para dizer a

4 Eis por que o gramático raciocina sobre exemplos que, por definição, impli

cam o repetível.

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 verdade, como havia percebido Saussure desdeseu Mémoire* [Me

morial], de 1878, é a gramática comparada que é aqui decisiva5, e

não, como talvez se pudesse pensar, as gramáticas racionais. Estasultimas, com efeito, puderam valer-se da ciência — não somente

a de Aristóteles, mas também a de Descartes e a de Newton (como

se pode1er no Prefácio da Grammaire générale et raisonnée [Gra

mática geral e razoada], de Beauzée6) —, mas jamais cumpriram o

mínimo exigível: a edificação de uma escrita. Consideremos, por

outro lado, a gramática comparada das línguas indo-europeias: o

que é importante não é que ela determine sucessões históricas — se

notará, aliás, que ela jamais data suas formas e se restringe a esta

belecer relações de ordem —, mas, sim, que ela possanotar  formas

por definição não observáveis, desempenhando a função de matriz

para um conjunto de formas observadas. A raiz indo-europeia,

combinada às leis fonéticas, enuncia em n signos (três, em princí

pio) uma multiplicidade de lexemas possíveis e cada um dos signos

que a soletram simboliza uma série aberta de correspondências

fonéticas. Resumindo: a gramática comparada consiste na escrita

regrada de um real estruturante — que esse real também deva ser

considerado como um antecedente é aqui secundário.

 Acrescento que a noção de “parentesco” entre as línguas supõe

que elas tenham propriedades indiferentes quanto àquilo que co

municam e designam. E isso porque, afinal, quem acreditaria queuma palavra grega, uma sânscrita, uma latina, uma germânica, uma

tocariana etc., ainda que apresentassem a mesma estrutura, teriam

0 mesmo valor referencial? Assim, é compreensível que o

* F. de Saussure, Mémoire sur le système primitifdes voyelles dans les langues 

indo-européenes. Hildesheim, Georg Olms, 1968. (N. do T.)f As fontes manuscritas do Cours são muito claras sobre esse ponto. Cf. edição

critica de Engler, B 18-15, e a de Tullio de Mauro, pp. 411-2.

$ Cf. N. Beauzée, Grammaire générale, ou exposition raisonnée des éléments nécessaires du langage. Paris, Barbou, 1767. Disponível em <http:/ / gallica. 

bnf.fr/ ark-./ i2i48/ bpték50449f/ fi.image>.

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Cours* — que, no fundo, não passa da exposição das condições

conceituais que tornam possível a gramática comparada — descarte

a referência, isole o formal e abra a possibilidade de uma notação

simbólica.

Feito isso, passaria a ser natural, por assim dizer, adotar a ciên

cia universal dos simbolismos possíveis como referência para as

notações: dito de outro modo, a lógica. Foi essencialmente o que

fez Chomsky, substituindo a escrita amadora do estruturalismo

por um formalismo inteiramente integrável à teoria dos sistemas.

Mas o real da língua tem a particularidade de não ser reconhe

cido de maneira unívoca, e a “regularidade” pode nele ser conside

rada mais a máscara que o signo. A oscilação é antiga: ela funda a

querela que separava os gramáticos antigos entre anomalistas eanalogistas*7. Para esses últimos, o efeito de língua sustentava-se

precisamente na proporcionalidade, ou analogia, que permite as

regras gerais; tudo o que aí não se integra é pensado como exceção,

ou seja, como parasita, assombração na língua daquilo que não é a

língua — mas, sim, herança (o arcaísmo) ou intenção retórica (a fi

gura), por exemplo. Para os primeiros, em contrapartida, as regras

gerais são artifício, uma racionalização dos gramáticos profissionais;

a língua, pelo contrário, é reconhecida naquilo que ela comportade obrigações não repetíveis, inteiramente singulares — a bem

dizer, anômalas — : o que era percebido negativamente como ex

ceção é agor a a positividade do real. Esse real, portanto, é essen

cialmente não representável; nada de tabelas, de regras gerais ou

de qualquer escrita simbólica, obviamente, mas apenas a simples

asserção de um impossível: “diga isso, não aquilo”.

* Uma vez que não é claro, em francês, se o que temos aí é um singular ou

um plural, deixarei em suspenso a decisão quanto ao número do substantivo

que intitula a compilação realizada por Charles Bally e Albert Sechehaye.

(N.doT.)

7 Comodamente resumida por R. H. Robins, Brève histoire de la linguistique. Paris, Seuil, 1976, pp. 13-6 [Pequena história da linguística. Trad. L. M. M.

de Barros. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1979, pp. 13-7].

n

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Se o real não é representável, então a língua não é, no sentido

lacaniano, matematizável em termos de representação: não teria

como, mediante nenhuma teoria, haver transmissão de um maternaatinente a esse real. Se há transmissão, ela consiste propriamente

numa iniciação que se dá por vias designadas de diversas maneiras

(a pertença étnica, social, a “fidalguia”* de Vaugelas**), mas que

sempre escapa à razão — figura do sujeito suposto ao materna. Ao

contrário, os defensores do representável estão, por isso mesmo,

condenados a enunciar o transmissível — daí a relação intrínsecaque mantêm com a escola. E compreensível, então, que a tradição

gramatical — especialmente na França — divida-se em dois ra

mos bem distintos: um, expresso na forma de tratados completos

e ordenados, chamados de gramáticas ou sintaxes, é destinado às

l&lãs de aula; o outro, apresentado em notas curtas nos jornais

OUem livros de aforismos, é iniciático — que os iniciados não

•Xcedam o conjunto risível de fidalgos, isso não altera nada na estrutura. A oposição já era aquela de Port-Royal*** a Vaugelas ou a

* Termos correntes no século XVII, bonnêieté(fidalguia) e bonnêtes gens (fidalgos, homens de bem) sugerem a ideia de integridade e civilidade. A edu

cação do fidalgo denota uma verdadeira formação do caráter, ultrapassando

tt polidez formal; dela rambém faz parte o desenvolvimento da competênciann conversação (incluindo, aí, o domínio das normas do idioma culto) e da

t cultura literária — além da elegância e do fato de ser uma boa companhia.

{N, do T.)

 J* Clftudc Favre, o Barão de Vaugelas (1585-1650), garantiu seu lugar entre os

primeiros membros da Academia Francesa, assim como entre os integrantes

dftcomissão responsável pelo preparo do Dictionnaire, Ele tinha a intenção

dl Inventariar as regras do francês e, para tanto, fez do testemunho do uso

0 leu método de trabalho — tanto que Saint-Beuve o chamara de “es-IflluráHo do uso”. O saber que Vaugelas desenvolveu a partir dos seus obje-

I — textos de grandes autores e de eruditos e a fala da corte — era digno

rwpcito cm sua época e gozou de autoridade durante todo o século XVII.

duT.

i ItttnaireGénémle et Raisonée(G ramática geral e razoada) — con-

irte linguística da Lógica de Port-Royai [i66z] — foi publicada pelos

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Bouhours**, e ela ainda subsiste (se bem que existam pontos de

 junção, sendo Grevisse** o mais característico deles). Caso con

 venha chamar os defensores do representável de gramáticos, os

do irrepresentável bem poderiam ser aqueles que chamamos de

puristas.Ignora-se facilmente aquilo que está em jogo no purismo e que

não é nada menos que o seguinte: considerada um real irrepresen-

 jansenistas Arnauld e Lancelot, no ano de 1660, e inserida no roídas gramá

ticas filosóficas. A gramática, como tal, era aí compreendida como a “arte de

falar”; e falar, por sua vez, como “explicar os pensamentos através dos signos”.

Se as línguas sâo expressão do pensamento e o pensamento é atribuível a

todos os homens, a preocupação da gramática, fortemente influenciada pe

las Regulaede Descartes, seria a de procurar o que há de comum nas línguas

e também o que as particulariza, bem como refletir a respeito da natureza

do signo — enquanto sons e caracteres — e também a respeito da natureza do

processo de significação — a maneira como os homens, através desses signos,

expressam seus pensamentos. (N. doT.)

* No séculoXVII os jesuítas procuravam a todo custo divulgar a heterodoxia

dos jansenistas. Estes, contudo, com a primeira das Provinciales de Pascal

[1656] — que conseguiu chegar aos ouvidos dos fidalgos (ver primeira nota

do tradutor da p. 33) —, insurgiram-se fortemente contra seus censores. O

padre Dominique Bouhours (1618-1701), então, vendo que a Companhia

de Jesus não conseguia retaliar, elegeu o domínio da língua para fazer valer

sua voz. Ele publicou escritos gramaticais que tinham, sobretudo, a função

de discutir o emprego de palavras e expressões — e assim era feita a crítica

aos jansenistas, que compareciam ilustrando os argumentos que Bouhours

erigia contra o mauvais langage(linguagem ruim). (N. do T.)

** Maurice Grevisse (1895-1980) foi um gramático belga que, ao se dar conta

de que os guias gramaticais não satisfaziam suas necessidades como profes

sor, reuniu suas anotações sob o título de Xe Bon Usage(O bom uso). Ape

sar de se inscrever na tradição purista — tanto que é, para alguns, “o Vau-

gelas do século XX” — , Grevisse não vê problemas, por exemplo, na

profusão de mudanças recaindo sobre a língua. Isso também o aproxima,portanto, da posição dogramático, tal qual demarcada por Milner, uma vez

que temos aí uma perspectiva de tratamento da língua que a considera como

sendo algo representável — como esquadrinhada pela possibilidade da regra

geral —, e não como uma demarcação particular do acúmulo de excrescên

cias. (N. do T.)

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tável, a língua pode funcionar como dgalma, tesouro, objeto (a).  A “pureza” torna-se causa de um desejo e o purista é o sujeito para

o qual ela acena na língua. É realmente de um verdadeiro amor quese trata, então: o próprio amor da língua — fonte de ridículo, evidentemente, quando ostentado. E por isso que o purista, tal qualo avarento, arrancando do ciclo do útil um tesouro que nunca valenada, é motivo de piada.

Pois, diferentemente de Harpagon*, a arca do purista está sem-pre em falta com ele: nada garante que detenha a pureza da língua,causa de seu desejo; nada a não ser, talvez, um reino de mortos,conjunto inerte de citações através do qual os autores são convocados a dizer o puro. Ao passo que nada obriga um gramático aaplicar a gramática que ele próprio edita, o purista deve sê-lo namenor de suas frases: iniciado em um grimório**, ele é seurepresentante na terra e seu primeiro discípulo. Portanto, cadaVezque ele fala, a decadência o espreita; se ele escapa, no entanto,éporque transpôs vitoriosamente o Aqueronte, trazendo, tal qual

UmOrfeu moderno, uma flor que a luz definha imediatamente:0 puro como tal***.

* EmUAvare(O avarento), dc Molière, Harpagon é um homem muito rico

que vive assombrado pelo pavor dc que lhe roubem a arca de ouro enterradacm seu jardim. Depois de muitas reviravoltas no enredo, devido a descober

tas inusitadas, os outros personagens se ajeitam cada qual à sua nova circuns

tância, enquanto Harpagon resta sozinho, agarrado à sua única certeza: sua velha arca de ouro escondida. (N. do T.)

** íiHmoire(na Idade Média,grãmaire, “livro de magia”): espécie de diário quecontinha saberes ocultistas — orientações sobre confecção de talismãs, con

 juração de entidades sobrenaturais, aplicação de feitiços, dentre outros.

Trata-se de uma alteração no vocábulogrammaire(gramática) que, na épo-^CAi designava especialmente a gramática em latim — ininteligível a uma

L pessoa comum, a um “não iniciado” (N. do T.)

l í Pilho de Calíope, Orfeu era um músico capaz de paralisar aquele que ouvis-■b IUa lira. Eurídice, sua amada, morre picada por uma cobra; Orfeu, incon-■brmado, decide ir ao reino dos mortos pedir que Hades reconsidere. Para

fcnto, precisa atravessar o Aqueronte, o que fez convencendo através de sua

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Essa é a primeira figura do amor da língua. Nós não a encontraremos mais, pois ela é aquilo de que a linguística e a gramáticapõem-se a se desembaraçar; entretanto, que se a conserve na me

mória, pois talvez ela revele na língua um poder que vem da suaessência.

 Nota anexa

Diferentemente da língua, a linguagem resume uma questão da seguinte

forma: “por que é que X existe?”. Sabemos que esse tipo de questão é, por de

finição, filosófica, visto que se baseia na diferença entre uma existência e aqui

lo que a funda. A linguagem pertence estruturalmente, então, à esfera da filo

sofia — tanto que se fala apenas em “filosofia da linguagem”, e não em

“filosofia da língua”. Do mesmo modo, aliás, dado que a língua não é apanhada

na bifurcação de uma inexistência que vira existência, ela não possibilita os

relatos [récits] de origem — tanto que se fala apenas em “origem da linguagem”,

e não em “origem da língua”.

 Assim se constrói facilmente uma grade de oposições que permite interpre

tar os textos que versam sobre a língua ou sobre a linguagem, e, em especial,

classificá-los de um lado ou do outro. Às vezes a interpretação é menos fácil do

que se crê. Eis, por exemplo, o texto célebre de Horácio, Artepoética (70-72).

Multa rcnascentur quae jam cecidere, cadentque

Quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus

Quem penes arbitrium est et jus et norma loquendi.

“Daqueles que já pereceram, muitos vocábulos renascerão; e dos que agora

estão a postos, muitos hão de cair, quando quiser o uso — junto ao qual residem

o poder de decisão, a lei e a regra”.

música o barqueiro Caronte — responsável por conduzir as almas recém-

chegadas — ; sua lira adormece Cérbero, o cão que guarda os portais, e Orfeu

consegue chegar ao trono do deus. Hades fica furioso ao ver um vivo por ali,

mas concede o retorno de Eurídice, contanto que Orfeu não a fitasse até que

ela estivesse sob a luz do Sol. Entretanto, chegando ele à luz, decide olhar

para trás para se certificar de que ela o seguia; com isso, a presença de Eurí

dice foi se turvando: ela retornaria ao reino dos mortos e Orfeu perdería

para sempre sua amada. (N. do T.)

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Eu traduzo usus por “uso”, como sempre se faz, já que esse texto é sempre

citado como um dos primeiros em que está expressa a doutrina da soberania do

uso sobre as línguas. Notaremos, de passagem, que os três termos que designama autoridade não estão distribuídos por acaso: arbitrium parece designar um

poder efetivo que opera nos fatos; jus é alei escrita; norma, a regra corrente, sem

outro título que não seja o hábito — na tradição latina essas são, portanto, as

três formas possíveis da autoridade, que, agrupadas, esgotam a figura do mestre.

Nessa interpretação tradicional o texto de Horácio exprime uma proposição

sobre a língua, já que não se coloca, de maneira alguma, a questão de uma origem,

e, de fato, ele parece inscrever-se na forma que assinalamos: imaginar em termos

de soberania a partição que organiza a língua, sendo o correto concebido aquiComohonos, “posto oficial”; e a língua, como conjunto de formas in bonore, istoé, “a postos”.

No entanto, M. Grimal, em seu estudo sobre a Arte poética (Paris, Sedes,

1968; pp. 92-7), adota uma posição diferente. Seus argumentos são: 1) usus, no

ícntido que se lhe dá aqui, é muito raro, talvez até sem precedentes; 2) Horácio

0 emprega noutro lugar com relação aos fatos linguísticos e não lhe dá esse sen

tido; na referida passagem (Sátiras, 1,3, v. 102) usus designa a necessidade, a qual

Mtá na origem das técnicas, mas também das palavras [motsj. A partir daí aposição se reduziria ao seguinte: as palavras nascem e desaparecem ao sabor da

necessidade e o princípio que está na origem da linguagem é 0 mesmo que rege

1 lua subsistência. Então o fato é que o termo usus contém em si mesmo, impli

citamente, uma tese sobre origem; ea. Artepoética, em seu conjunto, não versa

lobre a língua, como habitualmente se crê, e sim sobre a linguagem.

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LINGUÍSTICA SUTIL E ESMORECENTE

Lalíngua é não toda. Disso deriva o fato de que há algo nela quenftocessa de não se escrever — e esse algo exerce uma ação em todas

M formas discursivas que se relacionam com lalíngua. Para a linguística a coisa é simples: trata-se de ignorar por completo oponto de cessação, e essa ignorância a estrutura.

 Antes de precisar aquilo que está em causa, gostaria de elucidá-lo,deantemão, partindo de um caso diametralmente oposto: uma po-llçfto que se define por não ignorar o ponto de cessação, por fazerretornoa ele incessantemente, por jamais consentir que ele passe em

branco — a saber, a poesia. Seja a falta que marca lalíngua: que selhe confira um ser e fica concebível propor como um dever dizer esse

■Ifer. fazer com que ele cesse de não se escrever. Passo constitutivo dolUftl existem testemunhas — que se leia Yves Bonnefoy a esse res-

Í

tO, para apreender em que sentido o ato da poesia consiste emMcrever em lalíngua mesma, e por suas próprias vias, um pontoCCisação da falta ao escrever [manque à sécrire]. É nisso que a

■U tem que ver com a verdade (dado que a verdade é, estrutural-Igti aquilo com o que a língua está em falta) e com a ética (já queBtO dc cessação, uma vez circunscrito, exige ser dito).

39

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Todo mundo sempre soube, aliás, e é fácil de reconhecer na

tradição crítica, diversos nomes do ponto de cessação, que se po

deria chamar inclusive de ponto de poesia: para uns, a morte; para

outros, o obsceno; e, para outros, o sentido mais puro que se atin

ge arrancando as palavras do círculo da referência ordinária — oque designamos como hermetismo*. Para outros, como Mallarmé*

ou Saussure, o ponto em que a falta cessa — o um a mais que a

preenche — reside na própria fonia; trata-se, então, de despojá-la

do que ela tem de útil para a comunicação, isto é, renunciar ao

distintivo: não mais o cúmulo de pureza do sentido, mas a faceta

multiplicada da homofonia.

O surpreendente é que o fracasso não seja absoluto e que se

reconheça um poeta por isso que ele efetivamente consegue: se não

preencher a falta, pelo menos afetá-la. Em lalíngua, a qual ele

frequenta, acontece de um sujeito imprimir uma marca e abrir

uma via onde se escreve um impossível de escrever — é isso o que

acontece.

 Aí está muito exatamente aquilo que a linguística, assim como

a gramática, deve ignorar. E por isso que a primeira tem de consi

derar a língua um objeto científico — uma forma, e não uma ma

téria. O que está em causa é seu próprio ser e aquilo que ele supõe

como tratamento do não-todo.

* Surgido nos primeiros séculos da era crista, o hermetismo — conjunto de

doutrinas místicas atribuídas pelos seus autores à inspiração do deus Hermes

Trismegisto — influenciou astrólogos, alquimistas, filósofos e teólogos des

de o Medievo até o Iluminismo. Os textos herméticos caracterizam-se por

 veicular um conhecimento em estilo velado pelo uso sistemático de palavras

comuns, cujo verdadeiro significado se encontra, porém, noutro lugar — aoqual se pode chegar apenas por meio da decifração dos simbolismos empre

gados. (N. do T.)

i “[O verso] remunera a falha das línguas”, Crisede Vers[S. Mallarmé, Igitur  — Divagations — Un coup dedés. Paris, Gallimard, 1976, p. 14$].

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Pois a língua, como dissemos, sustenta o não-todo de lalín-

gua; mas, a fim de que ela constitua objeto científico, é preciso ser

apreendida como uma completude — a língua é a rede pela quallalíngua falta, mas a rede em si mesma não deve conter falta al

guma. E por isso que a linguística é “sutil” conforme o termo de

Lacan: tal qual a consciência de Kant com a universalidade da

lei, ela sofistica com o todo e o não-todo*.

Para chegar a isso a linguística deve propriamente ignorar a

falta e sustentar: i) que não tem nada a saber sobre lalíngua e z) que

arede de impossível que a demarca é consistente e completa. Uma

comparação com a gramática esclarecerá o que isso implica mais

exatamente.

 A gramática representa a língua, mas não através de uma escri

tasimbólica; em vez disso, dela constrói uma imagem. A exigência

de completude ganha, então, uma coloração imaginária e se trans

põe em termos de totalidade: totalidade qualitativa, isto é, perfei-Ç&0(por isso que toda gramática é simultaneamente um elogio à

língua descrita); totalidade quantitativa (por isso que só se conce

be uma gramática completa). A noção de fragmento gramatical é

Uma contradição nos termos, então, dado que a imagem de uma

totalidade só pode ser, ela mesma, total. Quanto à língua, ela ad-

 Ao pensar nas ressonâncias que o termo utilizado por Milner suscita (“sofis

ticar": “sofística”, “sofista”), convém pensar na crítica feita por Hegel a Im-

ffiflnuel Kant. Para Kant, apesar de tendermos a agir de acordo com o que

(Uicjamos, todos os seres racionais teriam intuições morais objetivas: a cons-

Slélicia de um dever. Segundo Hegel, porém, a concepção minimalista de

Kant dedever  como ausência de contradição torna justificável todo tipo de

lOnduta. Assim sendo, para condenar o assassinato, por exemplo, é necessá-

rio CNtabelecer independentemente o dever quanto ao respeito pela vida

Umana c, num segundo momento, entender o assassinato como contradição

■ie dever, que, por fim, teve de ser desejado — o que nos obriga a repensar

eilczci da universalidade da lei que está em jogo para a consciência. Talvez

lllc caminho possamos obter algum esclarecimento sobre a tal sofisti-

— bem como a sofística —, em Kant, no manuseio teórico do todo e

todo de que nos fala o autor. (N. do T.)

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quire a consistência própria do imaginário e sua totalidade é a de

uma fantasia.

E por isso que a língua dos gramáticos beira tão facilmente a

fachada, uma vez que o real que a constitui se converte numa rea

lidade social, insígnia de prestígio. Reconhece-se aqui a gramática

normativa, na qual o impossível do não-todo que barra um sujeito

é assumido por um eu [moí] como obrigação.

 A representação linguística é especificamente da ordem da ci

ência; logo, nela a exigência de completude funciona diferente

mente, não mais se dimensionando por uma totalidade externa, e

sim por critérios internos. Pode-se, desse modo, conceber fragmen

tos de linguística — o que, para dizer a verdade, é a única coisa

concebível. Não há linguística completa — no sentido em que hágramáticas completas —, mas há escritas completas; presume-se,

por sua vez, que estas representem o conjunto de dados que moti

 vam seu simbolismo e suas propriedades formais, e não o conjun

to daquilo que concerne à língua. Quanto à consistência, ela é o

que se requer das escritas; que as sequências permitidas não se mos

trem contraditórias.

Uma vez que se furta à ciência, a gramática não tem de ser não

contraditória, tampouco homogênea; com isso, a completude que

ela persegue pode ser obtida através de uma gambiarra qualquer.

Da mesma forma, o não-todo que marca seu domínio não lhe

opõe grandes dificuldades: basta preencher sua falta com algum

remendo. Assim, o tino linguístico — no qual, implicitamente

ou não, todos os gramáticos dignos desse nome tipicamente se

apoiam — garante a eles què, qualquer que seja sua própria insu

ficiência, a completude da língua está presente em cada um dos

sujeitos que a falam.

Inversamente, o tipo de escrita ao qual a linguística se propõenão pode ser efetivado caso o não-todo conserve o mínimo direito

à existência. Resta, pois, nada saber; ignorar tudo o que vem dc

lalíngua. E compreensível, então, que a linguística, diferentemen

te da tradição gramatical, tenha tido dificuldades com a língua

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materna. Sabe-se que o esforço dos linguistas estruturalistas con

siste em obrigar o linguista a tratar toda língua como se ninguém

a falasse e, em se tratando da sua própria, tratá-la como idioma

estrangeiro. Era evidentemente a via mais segura de impedir todo

e qualquer retorno incômodo daquilo que pudesse desfalcar o ob

 jeto a ser representado. O truque da gramática transformacional

é, não obstante, mais sutil: nela, pelo contrário, só se está verda

deiramente em condições de descrever a sua própria língua — sen

do a intuição direta, quando se trata de reconstruir a rede do real,0 recurso empírico mais garantido. Assim, situa-se em cada sujeito

umdictamm*, voz do impossível, tão consumado quanto um man

damento ético.

Supõe-se ao real da língua um determinado saber (dito “com

petência”) e, a esse saber, um determinado sujeito (dito “sujeito

fidante”). O linguista, então, é simplesmente aquele que escreve a

Competência; porém, em se tratando da sua própria, a proposição

ftloé simples. Vê-se que o sujeito falante — ponto sem dimensão,

fttm desejo, nem inconsciente — é justamente talhado sob a me

dida do sujeito da enunciação e é feito para mascará-lo, ou, mais

•SWtamente, suturá-lo. Vê-se que o linguista funciona como tal e

que cada enunciado que ele profere enquanto sujeito pode ser, si

multaneamente, a oportunidade de uma análise. Vê-se reciproca-ite que, apesar de a língua materna ser incessantemente despo-

dc seu predicado, lalíngua está, em troca, sempre em vias de

ictíir a língua.

I,A relação do linguista com a sua própria língua é estrutural-

ttC desdobrada. Ela se arrima no ponto em que o não-todo deve

lUndo o Vocabulairefrançais de métaphysique modernedc Jean Alphonse,

1 HUn, termo latino para “ditar”, “designa o impulso endógeno responsá-

101um poder exógeno. De modo geral, infere-se, a partir daí, uma rao-

ll devida a algum poder interno, cujo condicionamento nada deve às

llldcs que solicitam reações vistas como respostas à dinâmica hetero-

tdo meio externo”. (N. do T.)

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ser projetado como um todo. Ele está, pois, sempre em vias de

imaginar um significante que preencheria a falta da língua e a faria

toda — digamos, uma palavra-mestra1. A disciplina, então, parece

ordenar-se por inteiro ao redor desta e, através dela, poder desatar

todos os nós de linguagem — o que a consagra a ocupar uma po

sição de soberania universal sobre todos os discursos, dos quais se

espera que ela seja capaz de evacuar toda falta. Quanto ao sujeito

que é o primeiro a proferir a palavra-mestra, ele está, por isso mes

mo, em posição de mestre — e sua pessoa já é o suficiente para

atestar, para aqueles que o ouvem, que a falta se tapa5.

Tangencia-se, aqui, aquilo que conecta a linguística, conside

rada ciência, à cabala — nos dois sentidos do termo — : não houve

época, na história da disciplina, em que grupos não tenham seconstituído ao redor de um sujeito suposto deter a palavra decisiva;

em que não se tenha podido reconhecer as figuras clássicas dos

discípulos fiéis e infiéis, dos grimórios secretos, do exotérico e do

esotérico*, e, enfim, da perseguição — pois é desnecessário dizer

que, entre os diversos clãs, distinguidos pelo candidato que apoiam

para as funções de palavra-mestra, há luta impiedosa.

i  Ahistó ria da linguística se resume a uma série de palavras assim: absolutivi-dade das leis fonéticas, arbitrariedade do signo, estrutura, transformação são

seus exemplos mais conhecidos. Paralelamente, pode-se descrever uma série

de clãs reunidos ao redor de um sujeito que profere a palavra-mestra.

3 Com isso ele atesta também, enquanto sujeito, que o saber integral da língua

é possível. Dito de outro modo, ele é sujeito suposto saber. Mas não estamos,

aqui, no discurso analítico — no qual o analista sustenta sua posição numa

abjeção e num silêncio. A dificuldade do detentor da palavra-mestra é que

ele fala, e, além disso, que fala no espaço da ciência, onde todos os dizeres

\propos\ são mensuráveis. Ele está, portanto, condenado necessariamente a

manifestar o que há de impossível em subjetivar a posição de sujeito suposto

saber, proferindo pelo menos uma proposição que o desvalorize e o faça

sujeito suposto à ignorância. O mestre em linguística, então, como em toda

ciência, também é imediatamente aquele que enuncia uma bobagem — e

cada um dos outros se declara discípulo ao situá-la conforme sua vontade.

* Cf. J.-C. Milner (1995), A obra clara. Trad. P. Abreu. Rio de Janeiro, Jorge

Zahar, 1996, pp. 17 ss. (N. do T.)

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Nesse sentido, a linguística leva a efeito o tipo de profissões que Valéry chama de “delirantes”*; e não sem motivo, pois a chave do

delírio — que Valéry descreve, mas não explica — sustenta-se nofato de que os praticantes dessas profissões se amparam unicamente num real que só é propriamente reconhecido por eles. Dissemos

que a língua, por exemplo, é um real, mas é hora de acrescentar quesua natureza é bastante singular, já que seu impossível não cessa deser ignorado. Para estabelecê-lo, fora preciso uma dedução**.

De faro, já é ser linguista ou gramático consentir que um impossível circunscreva a língua. Nada chega a assegurar esse círculo,constitutivo das disciplinas, e a garantir aos profissionais a existência daquilo que os qualifica.

Sem dúvida, observações análogas poderiam aparentemente serfeitas a propósito de todas as ciências chamadas de humanas; adiferença é que estas têm tipicamente a ver com realidades cuja

limitação \ contrainte\  é propriamenteparódia do impossível — aopasso que a linguística aborda um real, e não é por metáfora nemgambiarra que ela pode dizer que o formaliza. Por isso o círculoque se pode marcar ali puxou mais à tradição hermenêutica: o etnólogo, o economista, o psicólogo, o sociólogo estão submetidos,tal qual o intérprete do texto sagrado, às condições da realidadeque descrevem e comentam — daí a trivial relação de incerteza que

une observador e objeto de observação. Mas o círculo da linguística é todo outro: ele não se atém às condições de observação, mas,

* Cf. P. Valéry (1929), Monsieur Teste. Trad. C. Murachco. São Paulo, Ática,1997, p. 78. (N. do T.)

** Talvez fosse nesse sentido que Saussure dizia que as unidades da língua nãoestavam dadas à observação imediata. “Outras ciências trabalham com ob

 jetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida, de vários

^ pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre” (Ferdinand

í Saussure [1916], Curso de linguística geral. 4a ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes,L 1. Blikstein. São Paulo, Cultrix, 1971, p. 15). (N. do T.)

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sim, às propriedades do real da língua — e ao caráter “esquecível”

de seus efeitos, Além do mais, qualquer que possa ser para a linguística a ne

cessidade de ignorar o que é exorbitante à sua própria escrita, nãoé certeza que ela tenha esse poder. Sabemos que, para ela, o exorbitante concentra-se num ponto, o qual ela sutura: o sujeito daenunciação. Suponhamos, então, que na rede de real apareçamsegmentos que não teríamos como descrever sem que justamente

o sujeito interviesse. Nesse caso, a escrita linguística ficaria dividida entre dois imperativos absolutos e contraditórios: o da comple-

tude, segundo o qual é necessário que tais segmentos recebam uma

representação, e o da consistência, segundo o qual toda representação deve obedecer às mesmas leis de escrita*.

Ora, tais segmentos existem e alguns são conhecidos há tempos.

Damourette e Pichon já haviam advertido sobre one “expletivo” esobre alguns imperfeitos, e a eles podemos acrescentar muitos outros: as blasfêmias, os insultos, o discurso indireto etc. Em todos

esses casos podem se depreender dados de impossível cuja explicação exige que se recorra não mais a um sujeito falante, simetrizável

e não desejante, e sim a um sujeito da enunciação, capaz de desejo

e não simetrizável. Ao que, sem dúvida, a linguística pode obstarmediante alguns subterfúgios aos quais voltaremos, mas que não

teriam como apagar a subversão que a acomete.

* Referência ao Teorema da incomfletudedo matemático austríaco Kurt Gödel(1906-1978), segundo o qual um sistema de valores não pode ser consisten

te, caso se pretenda completo, e vice-versa. Cf. K. Godel [1931], “Über formalunentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme”,

 Monatshefte für Mathematik und Physik,  vol, 38, pp. 173-98 [O teorema de Gödele a hipótese do contínuo. Trad./ Org. M. S. Lourenço. Lisboa, Fund. C.Gulbenkian, 1977, pp. 247-90). (N. do T.)

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 As redes de real às quais a linguística está ligada revelam-se

descrevendo, portanto, caminhos que não levam a parte alguma,

ou que se perdem na floresta de lalíngua*. Há apenas duas vias: ounos inclinamos para a ética da ciência — e, a partir do ponto em

que o caminho se perde, nada queremos saber (esse é o partido da

gramática transformacional) —; ou, então, nos inclinamos para a

ética da verdade — e enquanto linguistas, e isso na própria escrita

à qual nos entregamos, faz-se preciso articular o ponto não como

indistinguível, e sim como referenciável pelo viés da falha que ele

impõe a todas as referências.

* O autor possivelmente esteja aludindo a M. Heidegger [1950], Caminhos de  floresta. Lisboa, E Calouste Gulbenkian, 1001 — traduzido para o francês

como Chemins qui ne mènent mdlepart (Caminhos que não levam a parte

ttlguma) (Gallimard, 196a). Por sua vez, a expressão foretde lalangue(floresta de lalíngua) também faz ecoar o título da obraSylva linguae latinae(Flo

resta da língua latina), do tcheco Jan Amos Komensky (1591-1670) — mais

Conhecido como Comenius —, um dos primeiros a apontar a importância

do estudo da língua materna. (N. do T.)

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LINGUÍSTICA UNA E INDIVISÍVEL

Dissemos11 a linguística”, supondo, portanto, a unicidade de um re-ftrente. Entretanto, seria fácil mostrar que teorias muito diversasWciamam para si esse título, e não sem direito, diferindo no que se

da veentender por “teoria”, por “ciência”, por “demonstração” etc. Sequisermos que o termo linguística, seja algo além de uma rubricaidministrativa, é preciso descobrir se há um núcleo comum a todasII luas versões existentes — núcleo que vai se tornar, a partir daí, olifèrcnte do termo em questão.

Se levamos em conta o desenvolvimento da disciplina, a tarefa:dc assumir uma forma simples e se reduzir a responder à seguinteTglinta; quais são as teses comuns às gramáticas estruturalistas e

gramáticas transformacionais ?ÉfíltO que a linguística foi predominantemente dominada por umarência ao estruturalismo e também é fato que essa dominância,I emdia, é coisa do passado. Por “estruturalismo” convém entender,

algopreciso: não a visão de mundo um pouco insossa ou a epis-Ogiageral um bocado simples que se designa geralmente por essei masum conjunto de proposições não triviais atinentes ao real

ae à forma de sua representação. Pode-se resumi-las assim:

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— a linguística será científica se, e somente se, ela define a língua

como um sistema de signos;

— todas as operações necessárias à ciência devem ser deduzidas

desse princípio e só as operações deduzidas desse princípio sãoadmitidas na ciência.

Nenhuma dessas proposições é evidente em nenhuma de suas

partes; a gramática transformacional, em particular, nega-as ao

supor à língua muitas outras propriedades, irredutíveis a qualquer

espécie de sistema de signos.

Durante muito tempo, entretanto, a noção de linguística pa

receu ser coextensiva à sua versão estruturalista e, ainda hoje, ape

sar de extensões e modificações, imagina-se comumente que a

noção de signo lhe seja necessária1.

Essa união consubstanciai da linguística com o signo autoriza-

se através de um fiador único e essencialmente inconteste: o Cours** 

de Saussure. Desse modo, o estruturalismo, tal como entendido

aqui, volta a afirmar: toda linguística é, por definição, saussuriana.

 Ao mesmo tempo, a pergunta que fazíamos no início pode se trans

por numa outra, a saber; o que resta de Saussure nos dias de hoje?

Depreenderemos aqui a posição de Saussure mediante a combinação de três referenciais. O primeiro só poderia ser o ideal da

ciência — que, no Cours, enuncia-se na linguagem dos fundamen

tos —: trata-se de fundar a linguística como ciência.

i C f, por exemplo, J.-L. Nancy e P. Lacoue-Labarthe [1973], Letitre de la lettre, p. 41[0 título da letra. Trad. S. J. de Almeida. São Paulo, Escuta, 1991,

p. 44]: este impossível: uma linguística sem teoria do signo”.

* Ferdinand de Saussure [1916], Cours de Linguistique Générale. Paris, Payot,

1972.(Curso de linguística geral. 4- ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein.

São Paulo, Cultrix, 1972. As referências a esse livro em nota de rodapé segui

rão essa edição.) (N. do T.)

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Essa intenção confessa não deixou de desencadear certos mal

entendidos e, particularmente entre os modernos, uma aproximação

indevida com Freud. As coisas, entretanto, deveriam ficar claras:Freud é um iniciador — ao fundar, ele faz com que passe a existir

uma configuração que, antes dele, era inédita*. Não acontece o mes

moem Saussure: a seu ver, a linguística existe — é a gramática com

parada —, o problema é que ela ignora aquilo que a possibilita.

Não se trata de iniciar, mas de autorizar em direito — reconhe-

ce-se aí o estilo kantiano. E as respostas que Saussure dá são, tam

bém elas, desse estilo: para que a linguística seja possível enquanto

Ciência é preciso, dirá ele, distinguir os fenômenos das coisas em

li, Obtêm-se, assim, pares dos quais alguns são célebres:

coisas em si  fenômenos

a linguagem

o som como fluxo sonoro

 Aideia ou o sentido

i fi ligação entre um som e

unia coisa do mundo

a língua

o som como segmento

ou fonema ou significante

o significado

o arbitrário do signo

 Até oscaveat da dialética transcendental se encontram, e nos

limos termos, em Saussure: caso a linguística pretenda se voltar

, as coisas em si, ela cairá nas antinomias — e, mais que às An- 

Wnies linguistiques [Antinomias linguísticas] de Victor Henry**,

Itamcnte às de Kant que é preciso reportar as antinomias saus-

111as.

linguística que existe e que se trata de fundamentar é a gra-

lCft comparada — a única disciplina, aliás, que Saussure prati-i

i íobre os fundadores de discursividade, M. Foucault [1969], 0 que éum Ip/ . Trad. A. F. Cascais e E. Cordeiro. Lisboa, Vega, 1991, p. 58. (N. do T.)

1Henry [1896], Antinomies linguistiques; le langage martien. Leuven,

ri, iooi. (N. do T.)

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cou. Só que, ao expor suas condições gerais, Saussure descobriu

que ela não era a única forma de linguística científica possível: dito

de outro modo, que os conceitos de língua,signo,diferença etc.,

necessários para dar conta da reconstrução indo-europeia, mostram ter um alcance muito mais geral e autorizar outras aborda

gens. Foi, aliás, o que pôde dar a entender que Saussure instituía

uma ciência inédita. Vê-se facilmente, porém, o quanto isso é ilu

sório; é preciso dizer claramente que, sob o ponto de vista do con

ceito, não há nada na linguística sincrônica pós-saussuriana — es

sencialmente a fonologia de Trubetskoy — que já não estivesse na

gramática comparada.

Na linguagem kantiana dos fundamentos reconheceremos sem

dificuldade a pura e simples afirmação do ideai da ciência. Ao erigir

os princípios por meio dos quais a linguística vai se ver legitimada,

Saussure entende realizar apenas o seguinte: ordenar cientifica

mente toda proposição que, enquanto linguista, ele irá articular.

 A ciência, então, é o ponto ideal no qual todas as proposições se

cruzam, instância simbólica através da qual o discurso se organiza.

Mas a própria ciência deve se fazer representável, isto é, dar

lugar a alguma teoria consistente. No mesmo movimento, o ideal

da ciência, como instância simbólica, refrata-se em seu correlatoimaginário: uma ciência ideal, que, por assim dizer, a encarna.

Define-se, então, um segundo referencial que determina a posição

de Saussure: uma vez admitido que este procura autorizar uma

ciência, devemos acrescentar que ele tem implicitamente como

referente um punhado de traços distintivos que lhe permitem re

conhecer sua figura ideal.

Em outros termos, um modelo particular de ciência: para resu

mir, chamemo-lo de euclidiano1. Segundo esse modelo, uma ciên

cia é um discurso regido por dois princípios:

 z  Foi Aristóteles, evidentemente, quem constituiu essa teoria. Pode-se resumi-

ia mais integralmente nestes termos:

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— o princípio do mínimo: todos os conceitos da ciência devemser deduzidos de um número mínimo de axiomas, expressos num

número mínimo de conceitos primitivos;— o princípio da evidência: todos os axiomas e conceitos pri

mitivos devem ser evidentes, o que dispensa demonstrá-los oudefini-los.

Em terceiro lugar, Saussure seleciona um conceito privilegiado

que vai lhe permitir articular a relação do ideal da ciência com aCiênciaideal, a empreitada dos fundamentos e o modelo euclidiano: o signo. Graças a ele dispomos de uma regra segura para delimitaro império dos fenômenos: no conjunto das coisas em si, quefTftVitana órbita [mouvance\  da linguagem, apenas as dimensões

 Atribuíveisao signo mostram-se da ordem de uma observação pos-*l)

A.  Uma ciência aristotélica é uma série de proposições que incidem sobre oselementos de um único e mesmo domínio, e que apresentam as seguintespropriedades:t) asproposições dessa série dividem-se em axiomas e em proposições derivadas (teoremas);i) os conceitos que aparecem nas proposições da série dividem-se em con-Ctitos primitivos e em conceitos derivados;fi<Dos axiomas se requer:

l) devem ser evidentes; logo, indemonstráveis;| ) devem ser suficientes, no sentido em que, afora eles, só as regras da lógica| |o necessárias para demonstrar um teorema.

Dos conceitos primitivos se requer:(Vem ser imediatamente inteligíveis; logo, indefiníveis;

) devem ser suficientes, no sentido em que, afora eles, apenas são necessáriastas operações de combinação para construir os conceitos derivados.

 Jbntc dessa apresentação é Sholtz, “Die Axiomatik der Alten”, in Mathesis 

Vtmlis. Bale, Schwabe, 196$, pp. X7-44. Cf. também meuspróprios Ar-  MU Unguistiques [Paris, Mame, 1973]. O modelo euclidiano eraprati-

nte o único que a filosofia havia conhecido até pouco tempo atrás,to não é muito surpreendente que Saussure tenha se inspirado nele.

SÍpio da evidência é afirmado explicitamente por todos os autores;ntecc 0 mesmo com 0 princípio do mínimo — que vem, no entanto, Hética constante daqueles que comentam as ciências.

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sível — o semiológico, para retomar o termo de Saussure, é quem

adquire, assim, seu verdadeiro valor. Mas, além disso, o signo per-

mite construir a ciência linguística em conformidade absoluta com

o modelo predominante;

a) há um axioma, mínimo absoluto, e ele é evidente; “a língua

é um sistema de signos";

b) há um conceito primitivo e ele é evidente: o conceito de

signo.

Desse axioma que não se demonstra e com a ajuda desse con

ceito que não se define3serão deduzidas todas as operações neces

sárias à linguística. Mas não é verdade que apenas as operações

linguísticas sejam dedutíveis; ao substituirmos língua por um ou

tro termo, obtemos uma infinidade de axiomas evidentes, todos

3 Tudo o que aparece em Saussure como uma definição do signo {Curso, pp. 80-1]) só concerne, de fato, à propriedade específica do signo linguís

tico — a saber, o que o distingue como linguístico. Mas não é dito nada

a respeito do próprio conceito de signo, cujo conteúdo se resume às noções

mais pobres: uma pura e simples associação e uma pura e simples diferença.

Seria despropositado, no entanto, censurar Saussure por isso. M uito pelo

contrário, é perfeitamente justificável que um termo primitivo não seja em

si mesmo definido,Isso não diminui em nada a sua eficácia. Mostraríamos facilmente que as

operações de segmentação e de substituição (combinadas usualmente na

comutação) estão analiticamente contidas no conceito do signo saussuriano.

De fato, elas se limitam a converter em procedimentos as relações de associação entre as faces e de diferença entre os signos. Aliás, a correspondência

entre operações e relações definitórias do signo foi cuidadosamente explici

tada por Benvenistc em “ Les niveaux de l’analyse linguistique”, in Problèmes de linguistique générale, pp. 119-31 [“Os níveis da análise linguística”, in Pro-blemas de linguística geral. Trad. M. G. Novák e M. L. Neri. São Paulo, Edusp,

197Ó, pp* U7-4o]-O leitor perceberá claramente nesse texto que a complexidade das descrições

estruturalistas se deixa derivar integralmente de uma teoria governada pelo

princípio do mínimo.

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eles suscetíveis de fundamentar uma ciência. É por isso, muito logicamente, que Saussure fala em semiologia geral, substituindo

implicitamente o axioma inicial por um esquema do tipo: “Xé umsistema de signos” — Xpodendo receber como valor praticamente qualquer domínio bem definido de objetos.

Entre os não saussurianos, cada um dos três referenciais (idealda ciência, ciência ideal, signo) dá lugar a tratamento e modificação. O primeiro deles é mantido, talvez não cm sua forma kan

tiana, de fato, mas na sua essência, que é: todas as formas de lin

guística, inclusive a gramática transformacional, são arbitradas peloideal da ciência e determinam, para a construção de seu próprio

saber, objetos dos quais nada querem saber — operação equivalente à distinção entre os fenômenos e as coisas em si4. Seu princípio, aliás, se tornará visível. É a chicana do todo e do não-todo àqual a linguística está ligada. Que se assuma a língua como fenômeno de linguagem ou como uma maneira de tratar o não-todode lalíngua é, a esse respeito, indiferente — ou, antes mesmo, o

segundo momento é a verdade do primeiro.

Diferentemente do ideal da ciência, o referencial da ciênciaideal mudou completamente de figura hoje em dia. Para a gramá

tica transformacional, em particular, o modelo certamente não éde tipo euclidiano: ela substitui os axiomas e os princípios de evi

dência e de mínimo pelas hipóteses, pela não evidência e pelo máximo — e uma teoria terá tanto mais valor quanto mais ela com-

4 Ordinariamente esses objetos são postos na conta do variável e do acidental:lapsos, tiques individuais, falta de atenção etc. — de tal modo que o fenomenal étambém o regular e que as exclusões parecem ligadas às própriasnecessidades da generalização. Mas isso não adianta nada à questão: a oposição língua/ linguagem — que deriva sobretudo dc uma relação de fenômeno com coisa em si — e a oposição língua/ fala que deriva sobretudo dodomínio de uma relação do regular com o acidental — são, de fato, redutíveisà mesma operação.

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portar hipóteses falseáveis (logo, não evidentes). A ciência ideal

passou a ser, efetivamente, popperiana5.

Na medida em que o conceito de signo articulava os dois pri

meiros referenciais entre si, ele será necessariamente afetado em

seu funcionamento pelo desaparecimento do modelo euclidiano.Nesse sentido, o signo constituí um ponto crítico da análise: ele

permite dimensionar o que, em Saussure, está ligado a uma con

cepção particular da ciência e o que disso escapa. Através de uma

espécie de variação concomitante* poderemos isolar aquilo que é

invariável e, assim, candidato a representar o núcleo único de toda

linguística possível.

Examinemos, então, a teoria saussuriana do signo. Muitos ou

tros o fizeram, mas não parecem ter indagado se tal teoria efetivamente existiu. Afinal, como por vezes se pôde notar, Saussure não

foi o primeiro a recorrer nem ao termo, nem ao conceito — muito

pelo contrário, referir os fatos de linguagem ao signo é um lugar-

comum da tradição filosófica, minimamente desde os estoicos6.

5 Cf. Popper, evidentemente, cuja principal obra se encontra traduzida atual

mente sob o título Lôgique de la découverte scientifique [A lógica da descober-ta científica. Lisboa, Publicações D. Q uixote, 1987]; cf. também o primeiro

capítulo de Aspects de la théorie syntaxique [Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra, Arménio Amado, 1978. As referências a esse livro se farão com

base nesta edição] e, eventualmente, meus próprios Arguments linguistiques.* O método da variação concomitante baseia-se na hipótese de que “qualquer

fenômeno que varie de algum modo sempre que um outro fenômeno variar

de alguma maneira particular é ou uma causa ou um efeito daquele fenô

meno, ou está conectado a ele mediante algum fato de causação”. Cf. J. S.

Mill, A system oflogic. 81ed. Nova York, Harper &cBrothers, 1881, p. 137.

(N. do T.)

6 D e fato, parece que, em Aristóteles, o conceito de signo designa somente um

tipo de inferência: aquilo que obtém como conclusão, partindo de um dado

sensível, um elemento que escapa aos sentidos. Ê ainda assim que o signo

funciona nos estoicos e epicuristas. Sem dúvida, acontece de a linguagem ser

mencionada como um exemplo de inferência pelo signo, mas não se trata,

então, de maneira alguma, de propor uma doutrina da linguagem: é, muito

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Ora, caso examinemos cuidadosamente essa tradição, um traçocrucial deverá evidenciar-se: a teoria do signo é sempre uma teoria

da pluralidade dos tipos de signos — convencionais, naturais, acidentais etc. Isso simé uma teoria do signo, ou seja, uma teoria quetem o signo como objeto. Numa teoria como essa, a linguagem, na

medida em que a relacionamos com um tipo particular de signo,

está inserida numa classificação mais ampla, da qual ilustra umadas zonas.

Em Saussure, contrariamente, ele é de um só tipo. Nesse senti

do, o signo não é objeto de uma teoria, mas o meio de expor uma

teoria cujo objeto é completamente outro*. Acontece, efetivamente, de as propriedades conferidas ao signo por Saussure recobrirem

muito exatamente aquelas que a tradição atribui a um dos tiposque ela distingue — de tal modo que não custa encontrar ecos do

Cours em Santo Agostinho ou Condillac. Mas é preciso dizer mui

to claramente que esse tipo de encontro não suscita nenhum interesse: não pode haver comunhão alguma entre as configurações

nas quais os signos se alinham em tipos variados — nas quais asrelações diversas que unem suas duas faces são apuradas — e aque

la na qual o Ünico e suas propriedades invariáveis se afirmam gros

seiramente; ou, para tornar ao velho raciocínio estruturalista: não

há identidade entre um elementox considerado numa rede em quese opõe aj/ e eo “mesmo”x que não se opõe a nada.

pelo contrário, o signo que é explicado pela ilustração supostamente fácilque a palavra constitui dele.

Segundo R. A. Markus (“Saint Augustine on Signs”, in Augustine. Nova York,

Doubleday Anchor Books, 1972, pp. 61-91), Santo Agostinho teria sido oprimeiro a inverter a relação e a colocar o signo a serviço de uma teoria da

linguagem; derivariam dele, portanto, e não dos gregos, todas as teorias sub

sequentes (mas cf, no sentido inverso, B. Darrel Jackson, “The theory ofsigns in Saint Augustine’s Dedoctrina christiana”, in Augustine..., pp. 92-147).

Consultaremos Todorov com proveito: Théories du symbole (Teorias do sím-bolo. Trad. E. A. Dobranszky. Campinas, Papirus, 1996, pp. 36-63).

* Cf. J-C. Milner, Le périple structural — Figures et paradigmes. Paris, Seuil,2002. (N. do T.)

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O objeto da teoria saussuriana éo linguístico e o conceito de

signo é a sua expressão — emprestada, efetivamente, de uma tra

dição. Não é evidente que essa expressão seja necessária; tampou

co é evidente, ainda que ela seja adequada, que as propriedades do

signo que fazem com que ele se preste a exprimir o objeto visadofaçam mais do que encontrar por acaso aquilo que está em questão.

O itinerário de Saussure é este, de fato, mas sem dúvida ele próprio

o ignorava: a tradição filosófica oferecia-lhe um conceito, do qual

se apossou conforme a necessidade.

O signo, único em seu gênero, tem em Saussure três proprieda

des que são dadas como evidentes e que não reclamam nenhuma

prova factual, nem demonstração lógica: ele é arbitrário, negativo,

bifacial. Notaremos que, dessas três propriedades, a última estácontida no próprio conceito de signo e, por essa razão, pouco vol

tarei a ela7; em contrapartida, as duas outras são não evidentes e

Saussure talvez só as reivindique para o signo linguístico, em de

trimento de outro qualquer.

a) O arbitrário

Não retomarei em detalhes a crítica do termo, no qual Lacan mos

trou as marcas da ascendência do discurso do Mestre — como se

Saussure só pudesse reconhecer uma lei na língua ao evocar a figu

ra de um legislador, ainda que fosse para apagá-la. Em vez disso,

gostaria de estabelecer o que esse conceito realiza.

Ele desempenha, de fato, duas funções: uma positiva, outra

negativa. A primeira resume-se ao seguinte: afirmar que a língua

está submetida à lei de um dualismo absoluto. Em outros termos,

7 A única particularidade do signo linguístico compete, desse ponto de vista,

à natureza de suas faces: o fenômeno do som, ou significante, de um lado; o

fenômeno do sentido, ou significado, do outro.

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há duas ordens: a dos signos e a das coisas — nada da primeira

podendo agir como causa sobre a segunda e vice-versa. Disso de

corre que, entre o signo e a coisa significada, a relação seja de simples encontro.

Mas é preciso ir mais longe. O som, enquanto tal, também per

tence à ordem das coisas, e o mesmo vale para a ideia ou o signifi

cado. Assim sendo, segundo o dualismo, a ligação que os une en

quanto coisas não pode ter nada em comum com a ligação que os

une enquanto faces de um signo — nenhuma causa atinente à pri

meira pode operar sobre a segunda. Desse modo, o arbitrário nãogoverna apenas a relação da coisa significada com o signo, mas

também a do significante com o significado — contrariamente ao

que Benveniste sustentara num célebre artigo8.

O arbitrário, nesse sentido, só faz nomear o encontro — mais

bem nomeado por Lacan como contingência e, ainda, como aqui

lo que Mallarmé chamava de Acaso9. Ao colocá-lo no coração dalíng ua, Saussurc autoriza-se a construir uma teoria dos signos que

não envolve nada de uma teoria das coisas: a linguística, a partir

8 Nota-sc que o postulado é bem pouco verossímil, caso sc atenha à intuição

sensível. Quem acreditaria que as coisas não possam servir de causas para alíngua, ou, inversamente, que a língua não seja causa na ordem das coisas?

Mas o arbitrário visa, justamente, a livrar a linguística das verossimilhanças

sensíveis. Lembraremos, aqui, das teses de Koyré sobre a física galileana.

9 “Acaso que resta nos termos, malgrado o artifício de sua têmpera alternada

entre o sentido e a sonoridade”, Mallarmé, Crisede Vers [Inimigo Rumor  — Revista de Poesia,  vol. zo. Trad. A. Alencar. São Paulo, Cosac Naify, 2008, p.

i(5o]. Disso decorre que 0 Coup de Dês seja uma proposição sobre a língua.

[“Lance de dados", in Mallarmé. Trad. H. de Campos, D. Pignatari. SãoPaulo, Perspectiva, 2002].

Sería falso acreditar que o Acaso de Mallarmé e a contingência de Lacan

sejam simplesmente nomes melhores para 0 arbitrário: a diferença dos termos

recobre uma subversão das posições. Em Saussure, arbitrário significa pro

priamente a recusa de saber; em Mallarmé, como em Lacan, os termos são

positivos e dizem que um saber é possível.

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de então, não é uma visão de mundo e o laço que a unia, desde os

gregos, à teoria do ser das coisas é rompido1011.

Isso quer dizer que, graças ao arbitrário, a linguística tem con

dições de ignorar. Deparamo-nos novamente com a segunda fun

ção, negativa, do conceito.

Que tal som remeta a tal sentido, que tal signo remeta a tal

coisa é pensado atualmente como puro encontro; sobre o porquê

de ser desse jeito, e não de outro, o arbitrário diz que não se tem o

que saber. Mais exatamente, o arbitrário do signo equivale a afir

mar que ele não teria como ser pensado diferentemente daquilo

que ele é, já que não há razão alguma para que seja assim. O arbi

trário encobre com exímia precisão perguntas que não serão feitas:

o que o signo é quando ele não é o signo ? O que a língua é antesde ser a língua? — ou seja, ele encobre a questão que se expressa

comumente em termos de origem. Assim sendo, dizer que o signo

é arbitrário é afirmar em tese primária: hálíngua11.

b) O negativo

O signo linguístico é negativo, isto é, segundo Saussure, opositivoe relativo.

Isso significa duas coisas: antes de mais nada, que os signos são

 vários e que eles compõem uma ordem. Nessa ordem cada signo só

tem identidade devido à relação que mantém com os demais (em

10 A língua saussuriana pertence à ordem das coisas se dela consideramos a

matéria; é do ponto de vista da forma que ela pode lhe ser disjunta. Logo,

para que o dualismo valha, é preciso considerar apenas a forma; daí a tese: a

língua é uma forma c não uma substância.

11 Ainda nessa altura as confusões são frequentes: a tese do arbitrário temcomo função eliminar toda questão sobre a origem — ela tem, pois, só uma seme

lhança superficial com o convencionalismo. De nada serve evocar, a propó

sito do Cours, a oposição thêsei -.phuset dos gregos, que é uma proposição

sobre a origem e versa não sobre alíngua, mas sobre a linguagem.

6o

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conjunto e separadamente) — aqui reencontramos o dualismo, e

tudo o que poderia conferir a um signo uma identidade indepen

dente é atribuído à ordem das coisas; logo, ignorado. Daí decorre,também, que um único tipo de relação possa ser definido, e isso

porque, além do mais, não se dá atenção a tudo aquilo que poderia

diversificá-los: entre um signoa, e um signob, visto que não se pode

dizer o que é a ou b separadamente, pode-se apenas dizer que um

não é o outro e vice-versa — chama-se isso de uma oposição.

Em segundo lugar, a negatividade implica que as unidades lin

guísticas não estejam dadas à intuição imediata. Visto que essasunidades são signos, segundo Saussure, elas só podem receber iden

tificação através da rede de relações de sua ordem; logo, elas só

podem ser deduzidas.

c) O bifacial

Sobre essa propriedade há pouco a dizer, afora o fato de que ela

permite pensar em termos de signo uma propriedade reconhecida

na linguagem desde sempre: a relação entre um movimento sonoro,

 vibração do ar, e um sentido, ideia, conceito etc.

Como se vê, essas três propriedades são bastante diferentes

e sua ligação não é evidente. Entretanto, foi por reunir essaspropriedades num mesmo ponto e por ter chamado esse ponto

designo que Saussure singularizou sua doutrina. Nada impede

imaginar uma teoria T em que todas elas subsistam, mas redis

tribuídas em lugares diversos — nesse caso o conceito de signo

desaparece, sem que, no entanto, haja incompatibilidade entre

T e o Cours.

Entendendo-o bem, o dualismo é apenas uma forma particularda operação que trata do não-todo e de sua contrapartida: a igno

rância. E preciso dizer que toda teoria linguística deve percorrer

essa via e nós sabemos a razão disso: toda ciência, de que a linguís

tica é aqui apenas uma espécie, é construção de uma escrita e se

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«sldemal,digamos — , bem como, por fim, o que poderia mascarar

0 que se repete naquilo que se repete — ou seja, as variações indi viduais. O signo arbitrário é, em Saussure, aquilo que opera todas

dnearte canto o que, da realidade, não é necessário à re-

D<9CUobjeto quanto o que, por si só, não é repetível — o

iapor sóadmitir a escrita do repetível. Isso impli-

as exclusões de uma só vez. Uma outra linguística, fundada dife

rentemente — a gramática transfcrmacional, por exemplo —, pode

locamento de interesse ou de atenção, erros” {Aspectos..,, p. 83);

mas também, por outro lado, mediante um puro e simples silêncio

alheia à repetição de exemplos — realidade social, antropologia,

nhuma propriedade específica, tal como o arbitrário, necessita

no início da teoria e ao qual não mais se retornará ou, ainda, uma

 A tese da negatividade se dividia em duas subteses: uma con

cernia à análise do conceito de signo; a outra, à natureza das uni

dades linguísticas. Por comodidade, examinarei agora apenas a

segunda, deixando a primeira para depois. Que as unidades da

linguística não estejam dadas à intuição imediata é, no fundo, uma

questão fatalmente suscetível a um exame empírico, e não somen

te a definições nominais. Mas isso é dizer, ao mesmo tempo, que

as diferenças de princípios não estariam necessariamente em xeque

caso alguma teoria linguística, diferentemente do Cours, susten

tasse a imediaticidade das unidades.Porém, a situação é justamente esta: implicitamente ou não,

todas as gramáticas estruturalistas procederam efetivamente

como se as suas unidades devessem ser construídas. Para a gra

mática transformacional, pelo contrário, o conjunto de operações

obter os mesmos efeitos por vias totalmente distintas: exclusão

explícita de certos dados, “limitação de memória, distrações, des-

recaindo sobre tudo o que poderia figurar como coisa do mundo,

psicologia etc. A única diferença com relação ao Cours é que o

conceito de signo não é o suporte da operação; desse modo, ne-

caracterizá-lo — assim, basta uma espécie de protocolo enunciado

simples zona de silêncio circundando invisivelmente o domínio.

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Ft

de construção — estabelecimento das distribuições, das oposi

ções, dos paradigmas etc. — é inútil: as unidades estão dadas,

trata-se simplesmente de descrevê-las12. Sem dúvida isso acarretagrandes diferenças empíricas entre os dois tipos de teoria. Não

se pode acreditar, contudo, que elas impeçam a definição de um

núcleo comum.

Que o signo seja bifacial é algo que está contido na própria

noção de signo, mas também, de qualquer modo, a linguagem se

presta a ser representada assim. Para Saussure, e para muitos outros

antes dele, a possibilidade é evidente, mas, se supusermos que a

relação da linguagem com o signo possa ser rompida, faltará expli

car de onde é que vem essa sua força de evidência. Ela se sustenta

no fato de que não podemos pensar a linguagem a não ser empa

relhando uma vibração sonora e uma outra coisa, ausente — a ideia,

o sentido. E essa diferença pura — a qual consagra a linguagem

e a filosofia uma à outra, aliás — que o signo permite captar e fixara ponto de torná-la manejável. Sem dúvida a maneabilidade é es

sencial para a linguística e esta deve assegurar-se dela; ainda assim,

porém, não é evidente que o signo seja o único meio do qual ela

disponha. Consideremos mais uma vez a gramática transforma-

cional: a diferença pura é aqui situada e tornada perfeitamente

representável pela simples disposição de níveis na teoria — um

chamado de fonológico; o outro, de semântico. Suas presença e

definição aparecem, pois, como uma condição geral de boa cons

trução das teorias: no lugar de um conceito específico — o de

signo — é a forma da teoria que exprime, aqui, a diferença pura no

coração da linguagem.

Logo se vê em que sentido as mesmas propriedades cuja com

binação constitui o signo saussuriano podem ser mantidas na sua

iz Ao que se acrescenta, com certeza, que as unidades não são de mesma natu

reza: assim, em sintaxe transformacional a unidade é a frase, ao passo que

nas gramáticas estruturalistas ela jamais pode ter esse estatuto. A diferença

é mais antiga do que parece: ela já é mencionada, sob uma forma embrioná

ria, no Curso, pp. 111-3.

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essência, excetuando precisamente a sua conjunção. Resta a mais

singular delas: a negatividade entendida em seu sentido não em

pírico. Ao que parece, é aí que o laço da linguística com sua versão

estruturalista se faz mais estreito. Entretanto, ao reconduzi-la à sua

essência, a tese diz somente o seguinte: há discernívelna língua.

Ou, para retomar os termos de JLacan, há Um na língua. Em

Saussure, como vimos, o signo é a instância que permite esquadri

nhar o objeto em nome do discernimento que ele torna possível.

Em Chomsky opera uma instância semelhante, sob a forma de uma

afirmação: para cada nível da gramática há unidades mínimas (cf.

 Aspectos..., pp. 321-2). Nos dois casos trata-se exatamente da mes

ma coisa: tornar uma escrita possível.Para resumir: em primeiro lugar, longe de a teoria do signo não

ser de modo algum essencial à linguística, pode-se duvidar que essa

última tenha algum dia edificado uma. Em segundo lugar, anali

sando corretamente o conceito de signo, vemos que suas proprie

dades podem perfeitamente ser conservadas por outras vias, uma

 vez, pois, que o núcleo da linguística se compõe de três elementos

diversamente combinados conforme os modelos:

— a escolha de um modelo de ciência: o modelo pode variar,

mas não a exigência de que haja um. Isso implica, em todo caso,

que o objeto se torne representável, isto é, regular;

— a operação que trata o não-todo, na qual se exerce a vontade

de não saber e se realiza a regularização;

— a tese do discernível.

 Até agora nosso ponto de vista foi estritamente epistemológico:ordenação, classificação e distinção de conceitos. Uma empreitada

desse gênero carrega em si mesma o seu limite, como sempre, e nós

o atingimos — o ponto que o manifesta é precisamente a tese do

discernível.

Tal como a apresentamos, ela não se distingue do seguinte: a

linguística impõe as redes de discernimento que lhe convêm a um

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objeto que as ignora. Em outros termos: no início há um fluxo noqual são introduzidos cortes que não têm em si mesmos nenhuma

razão para ser considerados reais — tese nominalista corrente, im-

plicitamente ou não, entre os estruturalistas.Ora, não é disso que a linguística precisa. Uma apresentação

como essa poderia convir à história, à sociologia, às diversas disci

plinas hermenêuticas, mas, diferentemente destas, a linguística visaa um real — e é esse real que ela exige que seja marcado com odiscernível, com o Um. Não é sua escrita que, por convenção, ins

titui o Um — ao contrário, porém, é esse último que a torna pos

sível. Não é no nível do objeto da linguística, como tal, que o discernível é instituído, e sim no nível daquilo que o torna possível:não no nível da língua, mas no de lalíngua.

 Aqui se atinge a essência daquilo que, da linguística, interessaà psicanálise. Resumindo ao máximo, a tese freudiana poderia serdita assim: o fato de que haja língua tem a ver com o fato de que

haja inconsciente — com isso, os mecanismos da primeira repetemos do segundo (é a tese dos sentidos opostos nas palavras primiti

 vas) e vice-versa. Disso decorre, mais precisamente, que possa ser

definido um ponto em que a língua — ao mesmo tempo o fato de

que ela exista e o de que ela tenha tal forma — e o desejo inconsciente se articulem. Esse ponto, diferentemente de Freud, Lacannomeou: é lalíngua ou, ainda — o que é o mesmo conceito —, o

ser falante, o falasser [parlêtre].O que a linguística atesta, simplesmente pelo fato de ela serpossível, é que esse ponto em que língua e desejo corrompem um

ao outro não é para figurar como um fluxo, mas consiste numa

articulação significante. É por aí somente que sua escrita toca umreal. Nesse sentido, aliás, a linguística não diz mais do que o lapsoe o chiste — dos quais, no entanto, ela se esquiva com todas as suas

forças —, visto que eles também supõem lalíngua e o Um.Desse modo, não é a forma de linguística que importa paraLacan, e nem, antes dele, para Freud — a estruturalista mais que a

transformacional, a sincrônica mais que a diacrônica. O que im-

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que, no tocante à língua, algo da ordemOISÍvel,Para Freud bastava a gramática com-

1quanto duvidosa de Abel; Lacan tem mais exi-

ftS,no fundo, são poucas mais — nem mesmo lhe é ne-0 que a linguística, se ela existe para sua própria satisfação,

seja clara a respeito de seus próprios métodos.

Mas, afinal, é assim tão crucial para a psicanálise que a linguística, no sentido estrito, seja possível e subsista em si mesma? Pois,examinando-a bem, a tese do discernível não distingue em nada alinguística, como tal, da gramática — no que as duas disciplinas

divergem é no tratamento do não-todo e na referência à ciência.

Mas é justamente o que pouco importa à psicanálise: só o “há Umem lalíngua” tem valor para ela. E desde a aurora dos tempos, desde o instante em que pela primeira vez um homem disse "isto estácerto”, é o que a gramática tem suposto.

Lalíngua não é um fluxo ao qual, por meio de cortes, impõe-seo Um. E a língua, por sua vez, não se restringe a uma territoriali-

zaçáo efetuada para fins de conhecimento. Ora, o chiste, o lapso e

as associações — numa só palavra, a pura possibilidade da escutaanalítica — atestam justamente isso. Trata-se, então, no fim das

contas, daquilo através do qual a gramática e a linguística se autorizam. Dizer isso, no entanto, não significa que elas tenham a vercom lalíngua, mas, sim, com alguma coisa que só é possível devidoà sua existência. Além do mais, elas nem sequer têm a ver propriamente com os significantes, visto que ignoram o sujeito que estes

representam; entretanto, as baterias que elas constroem, escreven

do um real, estão incessantemente prestes a resvalar em cadeiassignificantes. Basta, para isso, que se as relacione com sua causa: oUm estruturando lalíngua.

 A psicanálise sustenta-se, portanto, naquilo que a linguística ea gramática supõem e naquilo que elas garantem através de seusêxitos. Todavia, a linguística poderia desaparecer enquanto ciênciasem que o apoio que a psicanálise dela obtém viesse a desaparecer — afinal, esse apoio não depende em nada do quesito de in-

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tegração à ciência: é só a pura possibilidade de uma escrita que

importa.

Essa mera possibilidade não tem nada de trivial: no que tange

à linguagem, nenhuma filosofia a havia evocado. O passo dado pelogramático e rematado pelo linguista é, a esse respeito, de uma en

 vergadura singular — para dizer a verdade, tudo na experiência

cotidiana vai na contramão da ideia de que, para objetos tão inti

mamente ligados à realidade como as palavras, seja possível cons

truir uma escrita que justamente não deva nada a essa realidade.

 Além do mais, a instância do Um assume então uma forma nova:

a filosofia vinha desde sempre a reconhecendo na natureza, enquanto lugar dos stoicheia*, até somar estes últimos na figura do

mundo e o seu saber integral na figura de Deus. Todavia, a partir

da gramática e de sua íntersecção com a ciência, a linguística, o Um

surgirá não só como externo à natureza, mas naquilo mesmo que

teríamos definido como sendo essa exterioridade. As letrinhas de

Galileu revelam-se poder soletrar outra coisa que não nphysis —

mais exatamente, o outro daphysis. Abre-se uma fissura na noçãode mundo, portanto, uma vez que ela poderia almejar ser coexten-

siva ao reino do Um: um novo modo de ser emerge, o de um Um

não físico, que Saussure se esgotou na tentativa de abarcar — e,

depois dele, os estruturalistas.

O passo da psicanálise, e talvez ele não tivesse sido possível sem

a construção da escrita linguística (mesmo que fosse sob a forma

ainda velada da gramática comparada), é ter reconhecido, nesse

modo de ser inédito, o feitio dos processos inconscientes*13. Nesse

sentido bem preciso podemos continuar garantindo à linguística

um privilégio que seu decurso tem por propriedade fazer com que

ela negligencie.

* Do grego, plural detrroi dov (stoichéion): “elemento”. (N. do T.)

13 Esse é o verdadeiro alcance do texto — tão desconhecido pelos maiores —

sobre o sentido antitético nas palavras primitivas: ele atesta que o próprio

Freud, tão levado como foi a só reconhecer como Um o Um físico, tinha se

deparado com outra coisa.

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DESVIO PELAS CHICANAS DO TODO

Não se diz tudo” pode ser entendido em diversos sentidos. Pri-neiramente, trata-se da proposição que dá forma ao real com o

piai o linguista se depara, passível de ser traduzida por: “alguma

ocução, marcada como incorreta, é vedada” Mas que não se diga

udo é também aquilo que designa um outro real com o qual o

inguista, enquanto tai, não tem o que fazer: as palavras estão sem-

>reem falta com alguma coisa — ou, ainda: há impossível de dizer.

 Jma vez acopladas, como no caso da própria língua portuguesa

 jrançaise], essas duas leituras se embaralham: para o ser falante, o

pie é lugar de impossível é também lugar de uma proibição.

Não que a língua seja o único testemunho disso. Muito pelo

:ontrário, ela só faz aqui repetir o sexo — impossível, a relação

exual está, pela mesma razão, envolta em proibições. Disso decor-

e uma pergunta: a proibição, de modo geral, é conivente com ompossível? E a proibição que recai sobre as locuções, e através da

piai o linguista se autoriza, tem relação com a falta das palavras ?

Todavia, estamos nomeando esse todo que, em mais de um sen-

ido, não teria como se dizer. A língua propõe, para essa finalidade,

ignificantes que não vemos problema algum em utilizar. E daí,

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aliás» que obtemos essas proposições universalizantes que, ao apresentarem num ponto de seu decurso uma marca do significante doTodo, distinguem-se e valem de algum jeito para algum todo. Ora,então estaríamos sustentando que, desses significantes do Todo, a

interpretação seja unívoca? Estaríamos então nos assegurando deque as proposições universalizantes sempre sejam lícitas, sem outracondição além da sua boa formação?

É em todos os sentidos, portanto, que a articulação do todocom o dizer interessa à linguística: — na medida em que ela especifica seu objeto em função do fato de que não se diga tudo; — namedida em que, em função desse mesmo ponto, ela constitui umtodo, concluindo, a partir do fato de que não se diga tudo, o todo

daquilo que se diz; enfim, — na medida em que ela julga dizer tudodesse todo mediante proposições universalizantes. Resumindo: alinguística, em sua relação com o dizer, demanda o Todo — e emtodos os sentidos, isto é, em sentidos contraditórios e capciosos.Nascem daí suas antinomias e sua sofística, que fazem um com suasutileza e seus subterfúgios. E nenhuma esperança de desembaraçá-

los, a não ser que confrontemos o todo visado no que se diz que se

diz com o tudo do qual se diz que não se diz. A gramática e a linguística emitem proposições universalizantes sobre a língua. Não que todas sejam universais no sentido corrente — não é difícil citar algumas que sejam particulares ou atémesmo singulares. Mas mesmo essas que enunciam alguma exceçãoirredutível são supostas válidas em toda circunstância regular, paratodo sujeito falante definido segundo critérios admitidos. De fato,

é justamente isso que a operação que delineia a língua sobre o fun

do de lalíngua e dele a isola deve autorizar: um uso incessantemente lícito do operador universal em qualquer ponto das proposiçõesemitidas sobre a língua.

Com isso vemos o quanto a operação da língua e a da linguagemsão aparentadas. A única diferença que as separa é aquela entre ocoletivo e o distributivo: o ponto de vista da linguagem chega naturalmente ao universal por extensão e pelo emprego de propriedades

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comuns às diversas línguas, reunindo-as coletivamente emum todo;a língua, pelo contrário, supõe o universal distribuído em cada uma,de tal modo que proposições universalizantes sejam possíveis parauma língua entre outras, como se ela fosse a única no mundo. Tanto um ponto de vista quanto o outro, ainda que se possa distinguiro que os incita, consistem, pois, em conjugar incessantementeum operador do Todo aos retalhos de real que se oferecem —quer seja o todo das classes de palavras, o da regra, ou, no mínimo,o do suposto suporte universalizável da língua: o sujeito falante.

É esse Todo, sem dúvida alguma, que, em grande parte, autorizaa linguística a se reclamar como ciência, visto que esta, desde Aristóteles, é conivente com o Todo — afinal, a epistême não é umconjunto de proposições tal que, de um objeto, ele próprio bemdefinido como um todo, elas digam tudo, em termos válidos paratodos em todas as circunstâncias ? Disso Galileu parece mudarpouca coisa, tendo em vista que a ciência que ele funda consolida-

se como moderna ao dar forma de Universo ao seu objeto e ao validar uma única técnica onipotente. Da mesma forma, o essencialdas metodologias consiste num só ponto: reconstituir os modosde construção possíveis de uma proposição universalizante — emuma palavra: mostrar como o Todo chega aos retalhos. Aqui asopiniões divergem, mas isso conta pouco se comparado à preocupação que as reúne. Ora, é bem visível que elas podem fracassar

em atingir o essencial da ciência, pois, apesar das aparências, esta,por si só, não tem nada a ver com o Todo. Ela se efetua apenas pormeio de construções de escrita e o Universo que ela é suposta adescrever ou reger é sua remuneração imaginária: a vã esperançade que as escritas se combinem e, por fim, tenham significado para

alguém — sujeito universal ou Humanidade. Mas os epistemólo-gos não se resignam e cada um deles teima em perseguir, por vias

diversas, as cauções de um Todo que é considerado a única garantia plausível da cientificidade.

Seria de maior serventia, porém, que nos interrogássemos afundo e questionássemos as condições que fazem com que esse

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Todo — que sempre requeremos, e que, por causa disso, sempre

supomos lícito — seja efetivamente lícito na ordem do signifi-

cante: dito de outro modo, emite-se daí uma proposição que, uni

 versal ou particular, universaliza-se ao afirmar um Todo nalgumlugar — quer no seu objeto, quer no tipo de sua validação. Não

parece que já nos tenhamos interrogado bastante a esse respeito,

estando por demais ocupados com a verificação das vias de acesso

ao universal, para que chegássemos a suspeitar do próprio univer

sal e vislumbrássemos a possibilidade de que esse ponto — que

seria o caso de alcançar — talvez não fosse sempre passível de ser

instituído. Não parece, dito de outro modo, que se tenha percebi

do que, universais ou particulares, determinadas proposiçõesaliam-se através da suposição de que “é possível falar em algum

Todo”. Reconheceu-se menos ainda que essa suposição requer, ela

própria, uma sustentação que lhe pode ser recusada.

Isso é justamente o que não escapou a Lacan, que deu à luz, em

“O aturdito”1, a hipótese cardinal do Todo: para que se possa falar

em um Todo, é preciso um limite que, suspendendo-o, o garanta

enquanto Todo passível de ser instituído de maneira determinada.

De praxe esse limite é proposto como uma existência — pelo menos uma —, ela mesma passível de ser construída, que “diga não”

à propriedade que define o Todo. Supondo, pois, que se simbolize

todo uso do Todo sob a forma canônica yx . <Dx, esse retalho de

escrita só se sustenta através de um outro, cuja possibilidade inces

sante ele reivindica: t j x . õx, existe umx tal que, para ele, o Todo

esteja em suspenso — limite ou exceção, isto é, confirmação.

Trata-se aí do real da escrita: que umarealidade corresponda

ou não à existência assim construída não é, pois, essencial — o queimporta é que eia possa ser construída. Suponhamos, em contra

partida, não que se esteja negando o fato de que uma realidade

responda à existência construída como limite, e sim que essa exis-

I Cf. J. Lacan [1971], “O aturdito”, in Outros escritos Trad. V. Ribeiro. Rio de

 Janeiro, Jorge Zahar, 1003, pp. 448-97. (N. do T.)

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tência náo possa ser construída efetivamente — o que se escreve

gx. <Px, “não existex que diga que não a ®x”. O Todo, então, não

é mais, por sua vez, passível de ser construído. A partir daí, nenhumlimite o suspende, nem tampouco atesta seu domínio: do “todo”

\ tout\  de universo ele deságua no “tudo” \ tout\  de fora do univer

so, que não se teria como dizer integralmente — e o operador que

o nota, ao ser afetado por uma barra de negação, pode muito bem

ser chamado de não-todo: yx. 3>x.

O exercício dessa chicana do Todo — mascarado pelo uso do

significante “touf, em francês, que vale tanto para o todo do uni verso quanto para o outro* —, em si mesmo, é sem limites: toda

estrutura em que a inscrição de um Todo interessa está sujeita a

isso, inclusive a universal através da qual a chicana se profere1.

Sabe-se que Lacan define, com isso, os modos de inscrição dos

sexos — basta que ®x seja entendido como a função fálica. Tudo

 vai decorrer disso, então: homem, mulher, castração e o fato de

haver dois sexos. Pois as escritas do Todo valem também para cada*2

* “Todo”, bem como “tudo” (N. do T.)

 2.  As chicanas do Todo estão sobremaneira em evidência nestes nomes que a

tradição nos lega: o Mundo, o Universo e Deus. No caso do Mundo, sabe-se

que ele é inscrito sem ambiguidade no lado do Todo, já que Deus — ainda

que fosse apenas enquanto criador — é justamente o limite que o suspende.

Todavia, basta substituir o Mundo pelo Universo e o nó está dado, visto que

não está logicamente fora de questão que, aí, Deus esteja sendo considerado:

o Universo, doravante infinito, não se opõe a isso. Da mesma forma que o

Universo se cinde do Mundo, Deus vai se repartir.

Seria fácil mostrar que o Deus dos filósofos e dos cientistas é estex que faz

limite ao Universo e, portanto, o constitui como Todo, acessível a proposi

ções universalizantes. Se sua existência é passível de construção, pouco im

porta que essex seja ou nlo realidade: por isso o deísmo e o ateísmo podem

se equivaler (e vemos, fazendo um parêntese, que o ateísmo de Freud com

bina necessariamente com o que Lacan chama de suatodothominia [touthom- mie]). Em contrapartida, basta que, pelo viés da onipotência, nenhumx que

escape a Ox possa ser construído, ou que, pelo viés da Encarnação, Deus

faça-se, ele próprio, valer da função: assim, o Todo não é mais passível de ser

construído. O suporte desse não-todo é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, da

7 Î

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«frJUâtl» oomideradodistributivamente e, por conta de eles se

'•KUttUirem como umTodo em relação a um <t>x, pode-se concluir

qUOC&daum deles tem de se inscrever como sujeito, de um lado ou

dc outro.

Mas pensemos na língua e aventemos as seguintes proposições:

nada existe a não ser na medida em que seja nomeável em seu ser

e nada é nomeável a não ser por meio de uma articulação de lalín-

gua. Para a segunda proposição sempre se poderá dar um sentido,

de modo que ninguém possa recusá-la; quanto à primeira, ela

não é nada além de um axioma cuja refutação é, contudo, impos

sível — pois, se existisse algum elemento que fizesse objeção a ela,

seria impossível nomeá-lo. Jogo lógico, sem dúvida, mas do qual

deriva uma consequência: se efetivamente não existe limite nomeá

 vel a lalíngua, ela não teria de maneira alguma como ser inscrita

no lado do Todo — nem o conjunto dos elementos que a compo

riam assumiria a forma de universo, nem as proposições que se

emitiriam sobre ela seriam universalizáveis. Em contraste, a língua

e a linguagem aparecem como inscrições do Todo, reprodutíveis

como lugares, em lalíngua, do universal. Disso decorre, reciproca

mente, que toda proposição universalizante no tocante a lalíngua

só se emita da língua ou da linguagem — derivando disso, também,

mesma forma que o Mistério de Jesus — Deus onipotente, visto que é capazde milagres, encarnado e também escondido, na medida em que não se teriacomo dizê-lo integralmente. Que se leia Pascal, a respeito disso tudo, mastambém Newton.Se Deus não está mais em posição de limite, é a outro significante que cabesalvaguardar o Todo do Universo-, desse modo, ou esse momento distinto que

seria a sua origem ou, ainda, a inserção, na série dos fenômenos, daquiloque a renega •— a liberdade. Reconhece-se aquilo que anima as antinomiaskantianas, bem como a resolução que a razão prática propõe para elas — masnão menos que os desvios das cosmologias modernas.Leiam F.Regnauít, “Le sujet de laScience etle fantasme du monde”, que está

para ser publicado [cf. Ornicar. Bulletin Périodique du Champ Freudien, na 5. Paris, Lyse,1985 (N. do T.)]

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o fato de que a língua e a linguagem só possam se sustentar num

ponto 5jx. que as garanta como Todo.

Esse ponto tem diversos nomes, mas é sempre localizável. Paraa gramática, é com a diferença das categorias, com a estratificação

do elemento no grupo que o inclui, enfim, com a divisão do som

e do sentido que ela esquadrinha a língua e a imerge no espaço dos

todos: cada categoria, cada estrato limita o outro — o som sus

pende o sentido e vice-versa. Essenão constantemente propagado

de um ponto a outro é o que Saussure chamou de diferença. Na

língua, tal como ele a definiu, da mesma forma (embora mais secretamente) que em toda gramática, cada elemento é limite e sus

pensão para o outro. Assim, a língua — na qual, como se sabe, só

há diferenças — só é feita de todos. A isso se acrescenta o todo que

ela própria é para si mesma: Saussure o constrói através dodualis-

mo. Sendo a língua um conjunto de signos — dito de outro modo,

sendo Ox entendido a partir de então como signo —, a coisa é isso

que, não sendo signo, permite escrever ao mesmo tempo -jx. 3>x

e yx.<í>x. Hoje, após ampla renúncia ao recurso do signo, os lin

guistas contentam-se em admitir um extralinguístko cuja nature

za e cujo nome pouco importam, visto que se trata de um puro

limite ao qual talvez nenhuma realidade responda e do qual nos

restringimos a exigir que seja totalmente passível de construção.

 Além do mais, a divisão do som e do sentido, a estratificação eo dualismo, essas funções que garantem o Todo pela suspensão que

asseguram, são elas mesmas inscritíveis na esfera da universalidade:

há efetivamente na língua categorias que as suspendem. Pois é fácil

mostrar3que elementos singulares — digamos, resumindo, os pro

nomes pessoais — renegam ao mesmo tempo a estratificação (a

definição em menção do pronome exige seu uso), a divisão do som

3 Ver J.-C. Milner, “Réflexions sur l’arbitraire du signe”,Ornicar , na 5, pp. 73-85.

O raciocínio é aí conduzido para os pronomes pessoais, mas também para

os performativos e os delocutivos — o que não encerra, de forma alguma,

a lista.

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e do sentido (o sentidoàceuí  o proferimento do signiíicante “eu”),

o dualismo (a coisa designada poreu não tem outra consistência

para além de um determinado uso da palavra, para além da própria

palavra). Sem dúvida, para que então as funções renegadas sejam

simultaneamente garantidas como Todo, é preciso aceitar que os

elementos singulares estejam inscritos em posição de limite — é

para isso que serve o conceito deshijier. Não é de duvidar nem um

pouco que, na operação, algo do real se perca, mas as exigências do

Todo saem a esse preço.

Os lógicos devem proceder por outras vias, evidentemence. Sem

dúvida eles se empenham em salvaguardar o Todo de cada lingua

gem lógica, mas, diferentemente dos linguistas, não dispõem de

um universo de realidades de onde haurir, à sua vontade, um -qx.

$x. O limite requerido só lhes pode vir da estrutura das próprias

linguagens lógicas — é a isso que se presta o conceito de metalin-

guagem, que não é outro a não ser o de que, qualquer que seja a

interpretação ou a potência de uma linguagem lógica, sempre exis

te ao menos uma entidade que lhe escapa: a própria linguagem4.

Forçar esse ponto de suspensão — querer que a linguagem tome a

si mesma como objeto — é, então, necessariamente reinscrevê-la

do lado do não-todo, cuja forma palpável é o paradoxo. Vê-se, re

ciprocamente, que a proposição lacaniana segundo a qual “não há

metalinguagem” deixa-se imediatamente traduzir por “há algo da

linguagem que se inscreve como não-todo” — e que ela consiste

apenas na afirmação de que, na linguagem, existe lalíngua.

Tendo em vista lalíngua, essas operações igualmente produtoras

do Todo não são, apesar disso, equivalentes. Pois é a partir de la-

4 A proposição central da hermenêutica, de que “sempre há algo que escapa

à linguagem”, é de uma ordem comparável. Ela consiste em colocar um li

mite — Deus ou o Sentido — que confirma a linguagem como Todo.

Compreende-se, com isso, que a hermenêutica, desde o seu nascimento, seja

conivente com a filologia.

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língua mesma, por pouco que se ateste sua existência, que os lógicos — e os mais perspicazes não fazem disso um segredo — pro

duzem o limite que totaliza as linguagens lógicas. Para isso, bastaque seja encontrado um nome capaz de fxá-la em sua posição —língua cotidiana de Tarski, língua U de Curry5. Mas o linguistanão teria como se contentar com isso, pois é sobre a própria línguacotidiana que ele deve fazer valer sua intervenção — bem longe depoder funcionar como limite, ela mesma devería, em seu próprio

curso, apresentar um limite interior. É o que, ao que tudo indica,

a partição entre o correto e o incorreto permite.Mas aqui foi dado um giro suplementar, pois essa partição não

constitui limite. O não que ela articula não é suspensão, mas proibição. Disso decorre que a língua, inscrita como Todo, substanti-fique-se numa rede de obrigações e interditos — o impossível na

5 Consultemos J.-A. Miller, “ Théorie de lalangue”,Ornuar, n-1, pp. 27- 9 [“ Te-

oría d’alíngua (rudimento)”, in Maternas I. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro.

 Jorge Zahar, 1996, pp. 65-7], e “U”, Ornicar, Da 2. O artigo de Tarski é dc1933: “Le concept de vérité dans les langages formal is és”, Logique, sémantique, métamathématique. Paris, A. Colin, 1972; 1.1, pp-159-269 [“O conceito de

 verdade nas linguagens formalizadas”, in A concepção semântica da verdade. Trad. C. A. Mortari. São Paulo, Editora Unesp» 2006]. H. B. Curry retomou

muitas vezes sua análise da língua U; talvez a apresentação mais clara de leresteja em “A Theory of Formal D educibility” {Notre-DameMathematical 

 Lectures, na 6,1957), na qual encontraremos estas linhas: “Tudo o que fazemos apoia-se na língua U [...] podemos emitir asserções sobre a língua U na

língua U. Disso decorre o fato de que não existe metalíngua IT  (idem, op.

cit., p. 12; grifo nosso). As últimas proposições do Tractatus de Wittgenstein são, por via negativa,

equivalentes: “aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” enuncia, evidentemente, um limite que constitui, por retroação, o

Tractatus como Todo —

homólogo do Todo do Mundo introduzido na primeira proposição da obra.

Mas, em contrapartida, o fato de que um impossível deva dar lugar a uma

proibição explícita prova que existe ao menos um lugar onde se fala daquilo

que não se pode falar: esse lugar é Ialíngua.

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língua, que a institui como real, escreve-se na cifra da proibição. Aí está o enigma: quem vai negar, afinal, que alocução interditadatambém seja de língua? Se assim não fosse, ela seria simplesmenteesse limite em que a língua se suspende e se confirma como Todo,

não havendo necessidade, então, de regra que a qualificasse comoexcluída — se bem concebida, a função da língua lhe seria o bas

tante. Porém, é sempre preciso um julgamento explícito, pois nadaalém da locução incorreta a anunciaria como tal. É por estar, emcertos aspectos,na língua que ela reclama ser dela descartada. Mastenhamos cautela aqui, afinal, essa é justamente a estrutura de todaproibição e, desse ponto de vista, a proibição de língua não se distingue daquela que recai sobre o sexo.

Mas isso só pode ser apreendido ao assinalarmos bem a incidência das escritas do Todo sobre o sexual. Suponhamos que umser falante se inscreva como sujeito num dos dois sistemas de es

crita6: desse modo, contanto que a>x seja minimamente entendidocomo a função fálica, encontra-se articulado para esse ser, na ordemsimbólica, o real de seu desejo enquanto sexual. Mas não é menos

 verdadeiro dizer que, com isso, engendra-se a linhagem das suasidentificações imaginárias e, singularmente, o sistema de nomeações sexuadas — “o homem” e “a mulher” — no qual se encontracapturado, na realidade, o real que marca os seres falantes: umaincessante carência de conjunção. Assim o Héteros absoluto queinsiste no real escreve-se na disparidade das escritas do Todo e seprefigura na bipartição das representações advindas dos corpos:por conta de estar inscrito como sujeito de um lado ou de outrode <í>x, o ser falante vai se assumir como “eu” \mot\  na metade ho

mem ou na metade mulher.Sem dúvida, no fato de que a determinado ramo de escritas seemparelhe um determinado nome de metade, naturalmente veremos contingência. No entanto, aqui pouco importa: para nós,

6 Sobre tudo isso, cf. “O aturdito” e a lição VII de Mais, ainda.

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ocidentais, as refrações imaginárias do Todo e do não-todo deixam-

se resumir nos respectivos nomes “homem” e “mulher” Aprende

mos nos tempos modernos, quando muito, que nada do corpo

compele o ser falante a se inscrever nem como sujeito, nem como

"eu”, numa vertente ou noutra dos contrastes — Todo ou não-todo,

homem ou mulher.

 Vamos supor, então, um ser falante que se inscreva como Todo.

Ele, apesar disso, não deixa de saber nem por um instante que há

seres falantes que se inscrevem como não-todo. Porém, no que lhe

diz respeito, só pode assimilá-los a partir do Todo que determina

a sua posição e o seu espaço. Isso tem a seguinte consequência: os

seres falantes, enquanto todos, não cessam de se deparar com al

guns outros que eles imputam ao mesmo Todo, mas que, todavia,

lhes concedem as provas da sua inscrição no não-todo. Ora, essa

inscrição se propõe a eles nos moldes de uma proibição — afinal,

se o limite não puder ser instaurado, o Todo não terá mais como

se dizer. Esse impossível adquire para todo ser falante, então, o

estatuto de um mandamento: “não dirás tudo”. Pelo nó entre a

menção e o uso* passa nessas palavras um veto — o mesmo veto

com o qual a Razão se assegura desde Kant: “não falarás do Todo”.

Simultaneamente, a negação que afeta o operador “y ” na escrita

lacaniana permite ser compreendida, por pleno direito, como o

“füf” de proibição mediante o qual Aristóteles vedava a negativa

de incidir sobre o universal. Afirmar que pode ser que o Todo nãoseja passível de construção tem, pois, como sinônimo, o fato de

que, no que diz respeito ao não-todo, haja proibição.

Ora, o que vale para as escritas vale também para os seus supor

tes. Logo, os suportes do não-todo comparecerão nos suportes do

Todo, também eles, à guisa de proibição. Assim, para cada ser fa

lante que se inscreva como Todo — o que a doutrina qualifica como

posição de homem —, o não-todo vai se atestar na proposição

* “Não dirás tudo” e “Não dirástodo". (N. do T.)

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“algum ser falante é proibido”. O suporte dessa proibição será umser falante inscrito como não-todo, ou seja, alguma mulher — geralmente qualificada como mãe. O domínio da proibição seráaquele em que as duas inscrições se confrontam: a relação dos sexos

enquanto o que deveria dar lugar a escrita*. Disso decorre o Edipo:para o homem, uma mulher — sua mãe — é proibida no que serefere à relação sexual.

Uma mulher é proibida não na medida em que marcaria o limite do gênero humano (Jocasta não é a esfinge), mas, pelo contrário, na medida em que pertence a ele e que, devido a essa pertinência, sustenta o que há de impossível de dizer do Todo do ser

falante. Aí se ata o paradoxo pelo qual aquilo que é impossível para

o ser falante — digamos, a relação sexual — deva, ainda por cima,dar lugar à proibição*7. É de um modo perfeitamente comparável

que aquilo que advém da língua se articula. Como Todo, esta nãocessa de se deparar com a possibilidade que ela é feita para renegar:o não-todo de lalíngua, que, de modo elementar, dimensiona-se

pelo fato de que, do extralinguístico — por meio do qual se deveria garantir o Todo da língua —, não subsiste nada que não sejaatravés dos nomes que dele se profere. O impossível de, na língua,

dizer tudo de lalíngua vai se propagar sobre o Todo nos moldes de

* Sobre as acepções do termo “relação”, no que diz respeito à possibilidade deescrita — rapport{V erhältnis)-, relation {Beziehung) —, cf.J. Lacan, Lesémi- naire, LivreXXI  -- Les non dupes errent [inédito], 20 de novembro de 1973.

(N.doT.)7 Que para o ser falante o que é impossível deva também ser proibido trata-se

de uma estrutura que não cessa de operar, caso as leis da fala estejam emcausa. A filosofia crítica proíbe procurar conhecer a Coisa em si, porque

conhecê-la é justamente impossível. Há coisas das quais é impossível falar,diz Wittgenstein — sendo assim, é também proibido fazê-lo. Se confiamosem Leo Strauss, Maimônides sustenta ao mesmo tempo que a divulgaçãodos segredos da Torá é impossível por natureza e é proibida por lei (L. Strauss,

 Persecution and the Art ofWriting. The Free Press,1952,p. 59). Abelardo sepriva de Heloísa muito mais severamente ao ser castrado: questão de votose de lógica.

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um impedimento, o que pode ser igualmente dito da seguinte ma

neira: “alguma locução de lalíngua é proibida”. O domínio dessa

proibição será aquele em que a língua e lalíngua se confrontam: oproferimento. Disso decorre uma proposição — que não passa de

um Edipo linguístico —: “do ponto de vista da língua alguma lo

cução é proibida, ao passo que ela poderia ser proferida”

Mais uma vez, não se trata de limite: a locução proibida não

tem nada que suspenda as características da língua — e isso a pon

to de até mesmo, por vezes, bastarem alguns subterfúgios para

incluí-la aí8. Mas, apesar da irrisão de seu material, ela atesta distributivamente na língua, restituída como lugar do universal, o

não-todo: a saber, lalíngua — que, na medida em que não existe

nada que lhe constitua limite, não pode ser dita toda. Vê-se, então,

por que a asserção do real da língua é homônima ao axioma com

o qual Lacan adianta que o dizer é da ordem do não-todo: “não se

pode dizer tudo”. A borda de real que a linguística se empenha em

representar como a cisão entre o correto e o incorreto não tem

outra substância que não lalíngua mesma — ela garante, em sua

forma de borda, o ilimitado que desfaz toda universalidade. Porém,

é nisso que, mediante um esforço surpreendente, a linguística deve

se fiar, a fim de transferir para a cota do universal aquilo mesmo

que dele atesta o impossível de dizer.

8 O mais usual é a citação. Se a frase P é incorreta, é sempre permitido escrever

a frase P’t “é incorreto dizer que P”. Há outros procedimentos menos gros

seiros. Cf. Chomsky, Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra, Arménio Ama

do, 1978, p. 2.49.

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UM LINGUISTA DESEJANTE

O que é essencial à linguística pode ser introduzido ou não sob a

forma do signo. Isso não significa dizer que a escolha deixe de ter

consequências, pelo menos quando ela é pensada. Muito pelo con-trário, de longe o signo tem, para Saussure, um peso essencial — e

não apenas no Cours, mas em tudo o mais: estudos mitológicos,

análise dos anagramas etc. E isso aponto de chegarmos a desconfiar

que se trate, aí, de um investimento ainda mais considerável: não

simplesmente dos fundamentos de uma ciência, mas da demarcação

de um modo de ser que era, até então, inédito.

Desse modo, não devemos ter receio de exagerar nos lances: ostextos saussurianos atestam o caráter propriamente desesperado

das aporias em que o signo se inscreve. Tudo se restringe a uma

questão: como é possível que haja discernível? O que equivale a:

como é possível que se possa pensar a repetição e a não repetição?

Saussure não poderia ignorar a resposta comum — de que, para

discernir, basta nomear —, mas ela só fazia acentuar a aporia, ao

passo que para ele se tratava precisamente de introduzir o discer-nimento nisto com o que se nomeia: digamos, para simplificar, a

linguagem. Disso advêm as indagações célebres — variações sobre

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a faca dc Jeannot* —: qual é a identidade de uma peça de xadrez,

dc um conjunto de peças, uma vez que todos os seus elementos

materiais podem ser modificados ? Ou, para retomar um texto me

nos conhecido:

[...] a runa Y é um “símbolo” Sua IDENTIDADE [...] consiste nisto:

ela tem a forma Y; ela se lê Z; ela é a oitava letra do alfabeto: ela é misti-

camente chamada zann; enfim, às vezes ela é citada como a primeira da

palavra.

No fim de algum tempo:... ela é a 10ado alfabeto... mas aqui ELA já

começa a supor uma unidade [...].

O nde está agora a identidade ?'

Dito de outra forma, cada um dos predicados que analisaasubs

tância pode mudar independentemente dos outros, de modo que

a identidade, caso queiramos demarcá-la, vai ter de se encontrar

noutro lugar: não na substância, mas na forma — isto é, como

 vimos, a rede de diferenças. Eaí que o conceito de signo intervém

de modo crucial. Diferentemente do signo dos filósofos, o signo

saussuriano não representa: ele representapara os outros signos.

Mas, diferentemente do significante de Lacan, ninguém jamais

pôde dizer o que é que ele representava: de fato, ele só representa

a si mesmo, isto é, um puro entrecruzamento, um nada, do qual

nem sequer podemos dizer que é um.*i

* Referência a uma expressão utilizada para dizer de algo que, apesar de conservar o mesmo nome, há tempos não consiste mais no que era antes. A“faca de Jeannot” remete à história de uma personagem cômica que dizpossuir o utensílio há muitos anos, do qual ele substitui ora a lâmina, ora ocabo — mas, apesar disso, segue acreditando que se trata sempre da mesmafaca. (N. do T.)

i F.de Saussure apud J. Starobinski [1971], Les mots sous les mots,pp. 15-6 [J.

Starobinski, As palavras sob as palavras. Trad. C. Vogt. São Paulo, Perspec

tiva, 1974, p. 13. Asreferências a esse livro terão por base essa edição.].

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Logo, este é o paradoxo: o próprio elemento que deve asseguraro discernimento é atravessado pela multiplicidade das oposições

em que está preso — ele não tem subsistência que assegure a instância do Um. É que o signo se ajusta a um silêncio: ele é construído de forma que o sujeito seja forcluído, sujeito cuja insistência e cujo repetido fracasso demarcam o Um de cada um dos

significantes em sua relação com outro e conferem a todos o Um-por-Um que os estrutura em cadeia. Dentre as propriedades do

signo, o diferencial garante a sutura desejada: a identidade sus-tenta-se apenas na ausência de todo e qualquer Si para o signo.

Com isso se erige, como queapriori, a figura de um retorno do

forcluído: para Saussure, ele só podia suceder mediante o ressur

gimento de um Si das unidades da língua — e que fosse atribuívela um sujeito de desejo. E o bastante mencionar as pesquisas sobre

os anagramas.Os textos acessíveis1foram reunidos por J. Starobinski, ao qual

eu definitivamente remeto. Eles foram comentados de diversas

maneiras e há quem já se tenha baseado neles para fundamentarabordagens positivas da poesia. Não obstante, seu alcance jamais

foi exatamente dimensionado — e é por isso que assumirei o encargo de restituir brevemente o que está em causa.

Tudo começa, ao que parece, com um problema de filologia: oque é o verso saturnino?

Saussure, aplicando o método clássico de exame dos textos,descobre um primeiro princípio, que se pode chamar de princípiodo par:

num verso saturnino os fonemas de cada tipo são sempre em

número par.

1 Lembro que apenas alguns textos foram publicados. Os restantes vêm sendo velados pelos genebrinos responsáveis pelos papéis de Saussure.

85

L

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Com esse princípio, então, só o número de fonemas é restrin

gido, mas não sua natureza. Uma apreciação mais acurada revela

que é preciso acrescentar um princípio que governe a escolha dos

fonemas emparelhados — é o princípio do anagrama:

num verso saturnino os fonemas são escolhidos a partir de um

nome, ligado de maneira crucial ao sentido narrativo do verso.

Como esses princípios, uma vez reconhecidos, não podem ser

imputados ao aleatório — e como, além do mais, eles são não ne

cessários — é preciso supor-lhes uma causa específica: um saber, 

explícito e consciente, cuja ausência de todo e qualquer rastro deveser atribuída a um segredo.

Formulada assim, a hipótese não tem nada de inverossímil, no

que se refere ao método filológico. Tudo o que se pode dizer é que

ela não está provada. A prova deveria ter a seguinte forma: estabe

lecer (i) que há textos sem anagramas; (i) que todos os anagramas

constatados são efeito de uma técnica específica. Foi nisso, porém,

que Saussure falhou. Uma vez definidos, os anagramas apareceram,

indubitáveis, por toda parte: fora do verso saturnino, em todos ostipos de versos latinos, qualquer que fosse a época — e até mesmo

nos versos modernos, cujo autor, consultado, não fez questão de

responder. Saussure estava, a partir de então, na presença de um

real incontornável, mas com o qual a filologia nada podia fazer:

não havia mais princípios não necessários, mas, sim, uma pro

priedade sempre identificável nos textos — não mais o saber obli

terado de especialistas desaparecidos, e sim o saber inconsciente

da própria língua.Disso tudo não há nada que concirna à forclusão e, para dizer

a verdade, estabelecer o que verdadeiramente está em jogo nos ana

gramas é mais difícil do que parece.

 A primeira coisa a ser observada é que o anagrama, a bem dizer,

renega o signo saussuriano:

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— o anagrama não é diferencial: cada um dos anagramas re

pousa sobre um determinado nome cujos fonemas ele redistribui.

Mas está claro que esse nome (próprio ou comum), ainda que sejauma unidade linguística, não é tratado a partir daquilo que ele tem

de diferencial: ele tem uma identidade própria, um Si, que não éextraído da rede de oposições na qual a linguística iria apreendê-lo;

— o anagrama não é contingente nem arbitrário: sua funçãoconsiste em impor uma necessidade aos fonemas do verso, livran-

do-os do acaso que marca as unidades lexicais;

— o nome em anagrama funciona como um “sentido” e nãocomo um significado. É enquanto coisa do mundo — e não comoelemento de uma língua — que ele é a designação global de todo

o verso. Nesse sentido, o anagrama transgride o dualismo: a ordemdos signos e a das coisas se confundem e a segunda funciona como

causa no que se refere à primeira;— de modo ainda mais geral, o anagrama afronta o próprio

princípio de todas as descrições linguísticas ou gramaticais: quaisquer que sejam seus métodos, estes supõem o terceiro excluído —

duas unidades ou são totalmente distintas, ou se imiscuem totalmente; uma unidade ou está presente em uma sequência, ou estáausente. Ora, consideremos a sequência Cicuresque, anagrama deCirce(exemplo de Saussure in Starobinski, p. 105), oudespotique,anagrama de désespoir  (exemplo de Jakobson*): perguntar se as

formas emparelhadas são distintas umas das outras não tem maissentido, propriamente, já que o anagrama é suposto subsistir real- mente na forma explícita; da mesma maneira, Circeoudésespoir  não podem ser ditos univocamente presentes ou ausentes. O anagrama enquanto tal determina um lugar em que tais questões —

embora essenciais a uma descrição — não se aplicam.

* Cf. R. Jakobson [1967], “Uma microscopia do último "spleen” em Fleurs du mat, in Poética em ação. São Paulo, Perspectiva, 1990, pp. 139-54. (N. do T.)

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O lugar do verso em que os fonemas do nome crucial se encon

tram concentrados é nomeado por Saussure como locus princeps 

(Starobinski, p. 37): lugar soberano. Seu atributo essencial é que

ele enreda nos fonemas do verso umadiscrepância que os governa:é na medida em que ele é diferente dos elementos do texto explí

cito que o nome anagramatizado pode ser seu princípio de orga

nização. D ito de outro modo: (1) na medida em que ele encarna

uma diferença e (2) na medida em queé um. A isso o locus princeps 

acrescenta que esse princípio se amalgama no verso como uma de

suas partes.

Poderíamos sustentar facilmente que o nome anagramati

zado não passa do próprio verso, considerado como sequênciade fonemas, concentrado num só ponto: o Um do nome encar

nando o Um que governa o verso, enquanto um verso e enquan

to divisível em elementos discerníveis, um aum. Nesse sentido,

o locus princeps, ou lugar soberano, cinge muito propriamente o

significante-mestre — o significante Um do “há Um na cadeia

significante”.

 A distância com relação ao Cours é, então, máxima: lá tudo

estava regrado pelo diferencial, de tal modo que era impossívelinstituir o menor representante imaginário que reunisse em si o

conjunto dos intervalos e diferenças que governam a língua. Aqui,

pelo contrário, o diferencial é desfeito e o que dele subsiste assume

a forma totalmente positiva de um lugar soberano, de um lugar de

direito identificável em todo verso.

Em segundo lugar, é preciso dizer bem declaradamente que os

anagramas não têm nada de ilusório. Muito pelo contrário, eles

tangenciam um real: o da homofonia. Tudo repousa, conforme asarticulações de Saussure, no fato de que uma série de fonemas sem

pre pode ecoar uma outra e, por isso, significá-la criptograficamen-

te. Ora, nem é preciso dizer que é assim necessariamente. Uma

observação levemente acurada já é o bastante: abra ao acaso o tex

to que for — Meillet fez essa experiência — e os anagramas irrom

perão, impossíveis de sufocar.

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Com esse real da homofonia, condição do lapso e do chiste, a

linguística simplesmente não tem o que fazer. Ela o afasta, redu

zindo-o à contingência. E a isso o signo saussuriano se presta facilmente: se é contingente que um certo significante fônico se ate

a um determinado significado, ocorrerá a fortiori o mesmo, caso

dois significantes fônicos atados a significados diferentes venham

a se assemelhar. Há venturas na ordem das coisas pelas quais a or

dem do signo não teria como ser afetada.

Não que a linguística sempre se recuse a abordar o real da homo

fonia, mas ela fará isso reconduzindo-o ao seu núcleo de contingência e submetendo-o ao terceiro excluído da distinção. Assim, a

gramática comparada está inteiramente fundada sobre a observação

de que, numa dada língua — e, sobretudo, de língua a língua —,

há ecos. Mas bem se sabe que sua causa é enunciável como um

conjunto linguístico de estatuto regular — por exemplo, o indo-

europeu —, governado, por sua vez, pelos princípios ordinários.

Da mesma forma, e por uma extensão natural, Saussure, confrontado com outra homofonia, tenta integrá-la ao campo da filologia,

relacionando-a com uma causa totalmente contingente: um nome,

unidade lexical ordinária, escolhido por um perito para fins de

codificação — e que subsiste, distinto, como chave criptográfica.

O anagrama revela-se, portanto, ambíguo: por um lado, ele diz

da pertença da homofonia à língua como sendo objeto da linguís

tica, mas, por outro, diz do seu inassimilável. Por isso o anagramasó pode restituir a contingência requerida renegando as proprie

dades regulares do signo: ele representa, num sistema filológico da

língua, aquilo que nela sinaliza a sua dependência com relação a

um real ao qual ela não teria como se adequar.

 Assim, o anagrama representa, incluído na rede de impossível

da língua, um “a mais” que dela se destaca. Por um lado, ele é com

pletamente formulável em termos de fonemas e supõe uma análisefundamentada no princípio que contingência a homofonia — de

tal modo que esta só vai adquirir um estatuto através de um sistema

que promova sua desvalorização. Por outro, ele designa um real

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que excede toda fonologia possível: dessa forma, pelo incontorná-

 vel de seu real, ele extrapola a língua, quer a consideremos em si

mesma, quer em sua representação calculável — essa função de

excesso é o que nós chamamos de lalíngua.Entretanto, talvez o essencial ainda não tenha sido atingido.Isso porque a ambiguidade do anagrama faz com que ele sirva mui

to facilmente a uma ciência humana qualquer e, através dele, o realda homofonia pode dar lugar, como qualquer outro, a discerni

mento e notação, É, aliás, o que se observa, visto que, graças a Jakobson, aquilo que era fracasso aos olhos da filologia tornou-se

mensurável com sucesso aos olhos da linguística estrutural, me

diante a Poética. Ao mesmo tempo, a língua como rede de impossível recobra seu império e recua seus limites — o que poderia

parecer excedê-la não é mais atribuível a um efeito de real, mas auma figura imaginária: o gênio poético. Como frequentemente

acontece, o inassimilável às representações calculáveis resvalou para

o domínio da cultura humanista: o anagrama saussuriano torna-se

a figura moderna do tropo, meio do comentário, por uma transação

que concilia a poesia e a ciência da língua uma com a outra.

Mas deveria estar claro que Saussure tinha em vista, na verdade,uma outra coisa. D iferentemente de Jakobson, a poesia poucolhe interessava e ele não teria se contentado com encontrar ummeio de falar verossimilmente dela — ele entendia ter de se haver

com a verdade, no único modo que contava para ele: a conjecturasobre o indo-europeu. E, através dessa conjectura, pouco lhe im

portava ter um acesso a mais às formas culturais da tradição huma

nista — o que ele buscava era um saber.

Os anagramas devem soletrar o saber iniciático, secreto e esquecido, dos poetas indo-europeus e, se for impossível considerá-

los assim, então melhor negligenciá-los, pois não teriam valor algum: uma vez que falta a prova decisiva, Saussure também calará

a esse respeito. E por isso que ele escandaliza tanto os simpatizan

tes, Jakobson ou Starobinski — um saber? certamente não —,quanto os cientistas ortodoxos — estes chegando talvez mais per

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to daquilo que está em jogo, quando falam de loucura. Pois é bem

o que se murmura e que, sem dúvida, explica o embargo feito em

Genebra aos manuscritos.

Como se explica que o saber seja, a esse propósito, tão cho

cante? A razão é simples: é impossível abordar o real dos anagra-

mas, tecido integralmente em língua, fazendo como se a linguís

tica não existisse. E, como é sabido, essa última não quer saber

nada daquilo que os garante. Mas o que isso implica não é que ela

queira ignorar: é, antes mesmo, querer que nenhum saber seja

aqui enunciável. Ao que se pode, com certeza, redarguir de duasmaneiras: uma consiste em fazer como se nada fosse — é a condu

ta corrente —; a outra, em se fiar no amor dos poetas. Mas Saus-

sure resiste: ele está partícularmente interessado em articular um

saber e, como só pode concebê-lo de uma única forma, extenua-se

para lhe supor um sujeito.

Tal é, sem dúvida, o lugar da loucura, no qual Saussure vai ao

encontro do que podemos imaginar da loucura de Cantor: que,do coração da ciência, um sujeito reconheça, no real que ele en

contra, os contornos de um saber — e que ele se empenhe em

subjetivar esse último. Esse sujeito suposto ao saber dos conjuntos

Cantor chamava de “Deus”3, fazendo da matemática uma serva da

teologia — Saussure vai chamá-lo de vate, fazendo da linguística

uma serva da lenda4.

O fundamental, então, é que Saussure tenha formulado em termos de saber subjetivável o ponto em que lalíngua se vincula à

língua. Saber imaginário, sem dúvida, já que não faz mais do que

encobrir o passo instransponível que separa uma da outra. Mas

pelo menos Saussure não se prestou a tomar esse último habitável

3  Cf. G. Cantor, Abhandlungen mathematischen u. Philosophischen Inhalts. Olms,1966.Carta ao cardeal Franzelin, de2,2de janeiro de1886,pp.399-400;

e carta ao professor Eulenburg, de28de fevereiro de1886,pp. 400-7.

4  Cf. J. Starobinski, p.27,assim como a equaçãoda p. 28: “paraque o deus oua lei poética ficassem satisfeitos”.

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por meio de um recurso ao cultural. Muito pelo contrário, che

gando bem perto dele, beirou o delírio — releiam a esse respeito

as descrições (Starobinski, pp. 2,9-30) em que Saussure coloca em

cena o vate contando os fonemas pertinentes com a ajuda de varetas, realizando, pois, aquilo mesmo que o filólogo se encontra re

troativamente a dever repetir. Saussure, então, torna-se propria

mente o ponto de subjetividade que ele supunha ao saber — e a

pesquisa dos anagramas vira a extenuante e vã colocação em ato de

uma cena primitiva em que, na sucessão de um relato e na subjeti-

 vação do locus princeps, encobre-se a distância entre a língua e o

que a excede.

Quanto àquilo que dá azo à função de excesso, que seja a ho-

mofonia e não outra coisa, isso decorre diretamente do conceito

de signo. Através desse último, a língua vinha sendo pensada como

calculável em razão do que ela tem de diferencial — o forcluído

não podia retornar, então, a não ser na forma daquilo que desfaz

o diferencial: o eco contingente.

 A esse respeito, Chomsky estabelece uma espécie de contrapro

 va: para ele, diferentemente de Saussure, o discernível na línguanão cria problemas e não reclama conceito próprio — ele está dado

e se pode constatá-lo5. Portanto, o diferencial e o signo não têm

nenhum papel perceptível na instauração de uma noção gramatical.

Como consequência natural, a homofonia não teria mais como

exercer efeito de desconstruçao: ela está simplesmente de fora, não

tendo a existência ou a inexistência dos anagramas, ou da poesia,

nenhuma pertinência para a forma da teoria gramatical. Isso não

5 Indico, de passagem, que o caráter dado do discernível equivale a constituir

o sujeito falante como texto a ser decifrado: através do conceito de compe-tência é dito que a teoria gramatical já está escrita no sujeito pelo simples

fato de que ele pode falar a língua (cf. Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra,

 Arménio Amado, pp. 108-9). Não é banal, então, que alguns dos represen

tantes mais marcantes da gramática transformacional sejam de formação

 judaica, treinados para soletrar o Talmude.

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significa dizer, entretanto, que o sujeito forcluído não retornará,

mas somente que ele não despontará nos mesmos lugares.

Como era de esperar, na mesma medida em que a integração

da linguística ao campo das ciências é mais completamente reali

zada em Chomsky, esse retorno opera, como para todos os cien

tistas, sob a forma de uma ética de igualdade e de liberdade. Assim,

aquele que restringiu os seres falantes ao estatuto de ponto calcu

lável empenha-se por lhes tornar sua condição suportável, mi

litando em favor da sua liberação política. Mas aqui, como se

 vê, nada mais distingue o linguista de qualquer outro sujeito da

ciência: a singularidade de Saussure se apaga, na medida em quea extração da língua de lalíngua pode ser considerada mais e mais

como algo assente.

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DA LÍNGUA 

Ser é ser nomeável. Ora, mas daí não se subentende, uma vez que

só há nome falável, que um ser tenha falado? Isso significa dizer

que, do ser ao falar, o círculo não se detém. Que um ser seja quali

ficado como falante não se faz sem problemas: não é possível que oser seja aqui um substrato nu, ao qual venha se agregar, ainda que

como atributo essencial, a propriedade “falante”. O ser falante é,

antes mesmo, aquele cujo próprio ser não deixa de ser afetado pelo

fato de que ele fala — já que o nome falável que o suscita a ser

supõe que, pelo menos em parte, tenha havido falar.

 Ainda que existisse um único ser falante — fosse ele Deus ou

não —, ele seria falasser: nele o ser e o falar não se desatam e secorrompem um ao outro. Mas, enfim, o que é que esse ser falante

fala? O que é preciso para que seu ser possa e deva nele se inscrever

em suspenso?

E claro que não pode se tratar da língua dos linguistas: uma

representação matematizável não teria de modo algum como afetar

o ser que a sustenta e, além do mais, a língua como objeto de ciên

cia ampara-se justamente no fato de não ser falada por ninguém

cujo ser seja especificável. Também não pode se tratar da lingua-

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gem: atributo essencial do gênero humano, ela supõe um ser prévio,para cuja especificação como Homem ela mesma contribui —como a própria filosofia, de onde deriva, ela repete a disjunção do

ser com as suas propriedades.O ser falante supõe um nome, mas o nome supõe o ser falante.Por si só o enunciado do círculo suscita o simulacro de sua resolu-ção: o nome que convoca o falasser a ser — de fato, o próprio nome

“falasser” — só pode subsistir como uma falta, já que, no tempoque precede o proferimento do nome, falta o falasser que o profira.Logo, o conjunto de locuções em que o nome do falasser deveria

advir será sempre estruturalmente faltante; o operadortodo jamais

será lícito no que diga respeito a ele. Resumindo, esse conjunto énão todo: o falasser só teria como se especificar por meio daquiloque nomeia o não-todo das nomeações — lalíngua.

É nesse registro, de resto, que soa o próprio Witz "falasser”,indicação suficiente da relação: lalíngua, éaquilo através do qual um ser pode ser dito falante. Os dois conceitos são um só, distinguindo-se conforme o ponto de vista. Com isso, toda questão so

bre lalíngua pode ser traduzida numa questão sobre o ser falante ese encontra na pendência, em último caso, da seguinte pergunta:o que é um ser falante ?

Para introduzir o fato de que isso seja possível, Lacan se valehabitualmente de um estilo clássico: é, diz ele, porque dois seres

não podem se conjugar que eles falam. Tese de aspecto totalmentefilosófico, cuja apresentação mais nua e crua se encontra no Dis- cours physique de la parole, de Géraud de Cordemoy* — mas a

tradição tem visivelmente origem anterior. Geralmente a tese adquire sentido mediante a construção do caso hipotético contrário,

* Géraud de Cordemoy (16x6-1684) foi, após a morte de Descartes, um dosmais pródigos representantes do seu legado. Seus dois trabalhos mais impor

tantes são Le discernement du corps et de l’âme[O discernimento do corpoe daalma] (F. Lambert, 1666) e. Discoursphysique de la parole[Discurso físico

da palavra] (F. Lambert, 1668). (N. do T.)

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ou seja: o de puros espíritos — os anjos, por exemplo. Nesse caso,

nada obstaculiza sua conjunção. Assim, conhecendo de imediato

tudo uns dos outros, eles não têm nenhuma necessidade de lingua

gem. Nisso está implicado: i) que a relação crucial entre dois seres

é o conhecimento que eles podem adquirir um do outro; z) que,

sendo a alma o lugar do conhecimento, o obstáculo crucial é cons

tituído pelo corpo.

Pode-se facilmente conjecturar que isso não é o que interessa a

Lacan: o ponto que dá valor à tese clássica, entretanto, é que ela

liga a possibilidade da linguagem à existência de um certo impos

sível, marcando uma certa relação. Para o filósofo, os termos darelação são sujeitos de representação dotados de uma alma e de um

corpo, o segundo representando a primeira; a relação é de conhe

cimento por intermédio de uma representação — dito de outro

modo, uma comunicação1—; o impossível é sustentado pelo cor

po. Não sobra nada disso em Lacan, exceto o modelo: os termos

são sujeitos desejantes; a relação é a relação sexual; os suportes do

impossível são os corpos, não na medida em que representam osmovimentos da alma, mas na medida em que são recortados pelo

desejo. Portanto, da mesma forma que a linguagem do filósofo é

lugar do impossível do conhecimento mútuo, lalíngua é lugar do

impossível da relação sexual.

 Vê-se de onde o modelo da comunicação tira suas forças quan

do se trata de representar a linguagem. E que ele é talhado exa

tamente nas dimensões do real cuja fantasmagoria \ fantasme\  é alinguagem: o par de locutores que o modelo une é a imagem

fiel — e, por isso, a máscara mais apropriada — da impossível con

 junção de sujeitos desejantes. Ora, como vimos, toda linguísticai

i Por “comunicação” não se deve entender, evidentemente, o conceito mate

mático, mas o conceito dos filósofos: a relação de conhecimento mútuo

entre dois sujeitos considerados no espaço da representação — isto é, dota

dos de uma alma e de um corpo.

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se baseia num modelo da comunicação (ou num equivalente1).

Nesse sentido, ela escora sua coerência interna num recurso ao

fantasmático: a representação do ato de linguagem, supostamente

condição da língua, vira imitação caricata do real em que lalíngua

é instituída.

Dois sujeitos que não podem se conjugar: aí está o nó de la

língua. Dito de outro modo, dois seres falantes são real e neces

sariamente distintos e sob nenhum ponto de vista sua diferença

pode ser encoberta — nem mesmo pelo conceito —: eles não ces

sam de se escrever como discerníveis e não pode existir nenhum

real em que eles se simetrizem. E por isso que o modelo da comu

nicação — o de Saussure, por exemplo —, funcionando como representação, funciona também como máscara: sua propriedade

essencial consiste, de fato, em aplicar o princípio da simetria e do

indiscernível à relação de conjunção impossível — de tal modo

que dois sujeitos falantes, no sentido da linguística, só são consi

derados, por definição, em razão dos traços que os igualam um ao

outro. Desse modo a não conjunção é mantida na encenação, mas

de uma maneira que é sempre possível renegá-la e supri-la com a

igualdade e a simetria dos termos. Para dizer a verdade, a linguagem, como conceito, e a língua, como suporte de um real, não

passam da própria suplência. Elas encobrem a hiância da não con

 junção, convertendo magicamente os efeitos desta em várias mar

cas contrárias: a topologia da não conjunção torna-se espaço da

comunicação; o heterogêneo dos falasseres é contado como ho

mogeneidade dos parceiros de troca; a migalha de locução vira

mensagem.

 z   Por exemplo, Chomsky renega explicitamente qualquer importância à função de comunicação para a teoria da linguagem. No entanto, ele encontraseu equivalente ao projetá-la sobre um único sujeito: em vez do conhecimento mútuo, a linguagem tem como função desembaraçar para o sujeitosuas próprias representações. Reconhece-se o movimento pelo qual Chomskyprojeta o par locutor-ouvinte num único sujeito falante. Há aí variações deestilo, apenas.

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O que se revela, então, é uma relação singular da língua como amor, pois o amor também deve suprir uma conjunção impossí

 vel — concentrada por Lacan sob a forma: “não há relação sexual” Aliás, experimentem tomar qualquer esquema de comunicação eintroduzir, no lugar de sujeitos falantes integralmente calculáveis,sujeitos barrados pelo desejo: isso é obter a forma de um amor. Adiferença, é claro, fulgura no modo de insistência do desejo, mastalvez ela conte menos que a homologia: no amor, assim como nalíngua, trata-se de evacuar o discernível, de fazer com que ele cessede se escrever, de fazer com que o dois — por um encobrimentofantasmático do inconjugável — faça-se um. Além do mais, a operação toma emprestadas as mesmas vias: as do signo. Como bemdiz Cordemoy, a relação linguageira se instaura pelo fato de umsujeito falante conjecturar que o ser que lhe faz face não é apenasum semelhante, mas um mesmo — isto é, assim como ele, um su

 jeito falante. É preciso simplesmente que, em certos movimentos

físicos, ele reconheça signos e que, consequentemente, neles suponha um sujeito emissor. E isso, diz Lacan, da mesma maneira queum sujeito desejante supõe a um gesto, a uma palavra \parole\  —em suma, a uma frase articulada —, um sujeito que ele amaria enquanto mesmo aos olhos do desejo.

Então, como é que vamos nos espantar com o fato de estarmosrevertendo, tal como testemunham todas as formas de preciosismo,

amor em língua? Que estejamos conjugando a tal ponto um aooutro que “amor da língua” e “ilusões de amor” — longe de seremconsiderados combinações de palavras — atestam a unicidade deum recurso comum: a “mesmidade” que supre a conjunção impossível? Todos os dois se enraízam em lalíngua, portanto, na medidaem que ela é o lugar desse impossível.

Uma diferença, porém: lá onde o amor é tecido em desejo e re

nega a necessidade de lalíngua, a língua faz como se não existissedesejo — e é com lalíngua que ela constrói seu material. Tambémé só da língua que se deve esperar um acesso a lalíngua, mas a homologia com o amor pode auxiliar. Que lalíngua efetivamente exis-

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te equivale a dizer, como vimos, que o amor é possível, que o indício

\signe\ de um sujeito pode causar o desejo, que um sujeito de dese

 jo pode dar indício \fairesigne] numa cadeia. Êpor isso que lalíngua

excede a língua e nela imprime a marca pela qual se a reconhece.

Seja uma sequência de língua. Basta que nela um sujeito de

desejo dê indício num ponto para que, num só golpe, tudo desan

de: a calculabilidade sintática cessa, a representação gramatical

sucumbe e os elementos articulados viram significantes. Esse pro

cesso — que, conforme J.-A. Miller, recuperando um termo de

Lacan, chamarei de “subjetivação” — pode operar em qualquer

lugar, bastam uma cadeia e um ponto que dela se destaque. O su

 jeito, nesse sentido, tem liberdade de indiferença e todos os lugares

podem ser habitados por seu desejo.

Suponhamos a língua, como rede de impossível e como objeto

de um saber, submetida ao processo. Imediatamente a função de

excesso — queélalíngua — aí se descreve: é o conjunto de todas

as cadeias possíveis, as que a ciência representa (etimologia, para

digmas diversos, derivações, transformações etc.) e as que ela re

cusa (homofonias, homossemias, palíndromos, anagramas, tropos

e todas as figuras imagináveis da associação). Lalíngua é, então,uma massa de arborescêndas pululantes nas quais o sujeito enga

ta o seu desejo, podendo qualquer nó ser eleito por ele para que

dê, aí, indício. O ponto de subjetivação é sempre um entre outros

e a cadeia da qual ele se destaca é tão parcamente delimitada, que

brotam milhares de cadeias análogas — em forma de enxame,

diz Lacan. Qualquer cadeia de língua, na medida em que um su

 jeito possa aí dar indício: esta poderia ser, então, uma definição

de lalíngua. Mas ela só opera verdadeiramente a partir do instanteem que um sujeito de desejo tenha subjetivado, na cadeia, um pon

to — dito de outro modo, quando ele tiver dito seu desejo. Nesse

sentido, na proliferação de suas associações, lalíngua é também o

conjunto virtual de dizeres de desejo. Ela oferece suas vias a esse

dizer, das quais ele vai se servir de um jeito ou de outro — inclu

sive em sua dimensão inconsciente.

ioo

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 A esse respeito, o passo característico da linguística e da gramá

tica resume-se em construir uma representação das cadeias de as

sociação — a noção fundamental torna-se, então, a de paradigma,mediante a qual as cadeias são convertidas em quadros enunciáveise regulares. Compreende-se a singularidade do lugar que, em Saus-sure, a teoria do paradigmático ocupa: é o ponto crítico no qual a

língua é arrancada de lalíngua e são retidas somente determinadasassociações — ao passo que as outras, a partir de então, são conde

nadas a exceder o representável e a subsistir como recalcadas na

forma de um saber inconsciente.Mas o ser falante geralmente não se satisfaz com essa abordagem

enumerativa: é preciso algo que represente lalíngua sem adulterá-la, uma imagem disso que excede a representação. O itinerário énecessariamente imaginário, nem que fosse só pelo fato de ele serreflexivo: trata-se, para o ser falante, de retornar àquilo que o fazser falante e lastreá-lo com uma totalidade e com uma permanên

cia imagináveis. Aqui se abre uma galeria de figurações bem conhecidas, dentre as quais a principal é a língua materna — que não é

lalíngua, mas uma imagem assente de sua função de excesso aos

olhos das gramáticas e das teorias. É preciso acrescentar aí todasas línguas ideais: a de Brisset*, mas também a língua fundamental

de Schreber e a língua de Wolfson** — obtida a partir da adição

* Confeiteiro, militar, professor de idiomas, inventor, gramático, linguista eescritor visionário, Jean-Pierre Brisset (1837-1919) é conhecido como um

louco literato. Segundo ele, a genealogia das línguas nos leva ao grande coaxo inicial da rã — tanto que se dedicou ao estudo da comunicação dos ba-tráquios e ao desvendamento dos mistérios da criação c da origem das línguas. Proclamava-se o sétimo anjo do Apocalipse. Suas teorias encontram-seresumidas na obra Les origines humaines [As origens humanas] (Rroz, 2001),publicada no ano de 1913. Cf. M. Décimo, Jean-Pierre Brisset — Prince des 

penseurs, grammairien, inventeur et prophète. Dijon, Les Presses du Réel,1001. (N. do T.)

** Cf, respectivamente, D. P. Schreber [ 1903], Memórias de um doente dos nervos. Trad. M. Carone. Rio de Janeiro, Edições Graal, 19 84, e L. Wolfson, Le schizo et les langues. Paris, Gallimard, 1970, (N. do T.)

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de todas as línguas não maternas. Trata-se aqui de totalidades

definíveis em extensão, mas há também onde a definição seja in-

tensional: assim é a mais-pureza \plus-de-pureté\  de Mallarmé. Em

todos os casos se obtém, inclusive nas línguas possíveis, um termoque — como lugar-tenente de representação da própria função de

excesso — excede elas todas.

Com isso bem se vê a função dos anagramas, mas talvez fosse

preciso levar a análise mais adiante. Por várias vezes evocamos,

dentre as cadeias de associação, a etimologia — e especialmente as

que o indo-europeu permite3. Até hoje esse último foi considerado

apenas objeto de ciência e figura de um saber no qual Saussure

almejava escrever integralmente os anagramas. Todavia, quandose sabe do rumor que os próprios indo-europeístas passam de boca

em boca, surge uma suspeita: a de que a disciplina deles tangencia

invariavelmente a loucura. A suspeita aumenta ainda mais quando

nos apercebemos do caráter fatalmente singular do tipo de ciência

linguística que a gramática comparada perfaz e do tipo de dado

que a suscita.

Consideremos as coisas do princípio, efetivamente: desde sem

pre se têm observado, de língua a língua, ecos fônicos — especialmente entre o grego e o latim. Seria preciso atribuir esse dado à

contingência ou a uma necessidade geral da articulação fônica ou,

por fim, das homofonias ? Seria preciso chegar à conclusão de uma

causa específica? O problema podia receber uma formulação pre

cisa e, de fato, exemplo raro, ele foi integralmente resolvido: a

partir de 1880 se sabia no que se agarrar.

; Não é o caso, aqui, de distinguir os diversos tipos de etimologia possíveis.

Digamos simplesmente que a etimologia indo-europeia tem pouca relação

com a etimologia ilustrada em Bloch-Wartburg: a primeira tem a ver com

procedências relativas e provas estruturalistas; a segunda, com datações ab

solutas e provas documentais. Enfim, essas duas disciplinas, pertencendo à

ciência, distinguem-se da etimologia antiga — a de Varrão ou de Isidoro de

Scvilha —, que é propriamente uma parte da retórica.

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 As homofonias consideradas não são nem absolutamente con

tingentes, nem absolutamente necessárias: elas têm uma causa

particular que se deixa descrever como uma comunidade de ori

gens. E esse o conceito do indo-europeu e, como se vê, ele com

preende duas partes: a) as semelhanças fonéticas têm uma causa;

b) essa causa é uma língua. Dito de outro modo, o indo-europeu

é a língua que causa as homofonias de língua a língua. Ser indo-

europeísta é, pois: a) construir uma língua, a língua da causa;

b) conectar cada forma das línguas observadas a uma forma da

língua-causa (é o que nomeamos etimologia). Imediatamente se

 vê a estranheza da noção de indo-europeu: uma língua de estatuto

pleno, comparável em todos os aspectos a toda língua conhecida,

mas que jamais será atestada como falada por sujeitos. De fato, se

por ventura descrevêssemos traços observáveis, eles só poderiam

ser considerados como elementos de uma língua-efeito, uma vez

que a língua-causa pesquisada continuaria se furtando4.

Resumindo, o indo-europeu não é simplesmente uma línguamorta, semelhante ao latim — que não é mais falado, mas que é

sempre possível de atribuir a sujeitos —: o indo-europeu nunca

está em posição de poder ser suposto língua materna para sujeitos,

ainda que desaparecidos. Tem-se aqui, à primeira vista, uma língua

que é inteiramente elucubração de saber.

Isso quer dizer que seria preciso tratá-la como se fosse um tipo

de esperanto, arquitetado para fins racionais, em vista de eliminartodas as marcas de um excesso onde um sujeito teria dado indício?

O contrário é que é a verdade: cada forma indo-europeia é, em si

mesma, um nó de associação — num só tempo a origem e o eco de

um conjunto de formas observadas, que se encontram assim reu

nidas numa série de entrecruzamentos indefinidos. O dicionário

4 A história da gramática comparada é, nesse ponto, exemplar: várias línguas

reais puderam fazer sucessivamente o papel de língua-causa encarnada: assim

o sânscrito e, bem mais tarde, o hitita. Em cada um desses momentos a disci

plina desenvolveu-se por tratá-las, cada qual por sua vez, como línguas-efeito.

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etimológico se propõe, de fato, como uma arborescência com in

cessantes ramificações, oferecendo-se para que um sujeito aí se

inscreva. Diferentemente, sem dúvida, do que se encontra em

Bloch-Wartburg, por exemplo, a lei das séries* não é atestada pordocumento nenhum: tudo é questão de reconstrução de saber. Mas

esse saber está, ele próprio, todo contaminado por um desejo: o do

indo-europeísta. Pois, no fim das contas, o que pode incitar a re

construção de uma língua — da qual ninguém jamais perceberá o

menor elemento — a não ser um desejo ? Daí, aliás, o risível que,

para as mentes sensatas, caracteriza a gramática comparada: toda

forma que ela produz apresenta esse misto de paixão e de frivoli

dade que atesta um mais-gozar \plus-de-jouir ].Para o indo-europeísta — no entanto é preciso sê-lo, ao menos

por um instante, para que se dê conta disto — , o indo-europeu,

explanado sob a forma de uma língua, é o conjunto de todas as

arborescências de línguas particulares, a matriz e a escrita de to

dos os equívocos5. Nesse sentido, ele concentra em si mesmo e

encarna os pontos que, em cada língua particular, atestariam uma

* Paul Kammerer {1880-1926), biólogo austríaco interessado na ocorrência de

coincidências, publicou no ano de 1919 o livro Das Gesetz der Serie [A lei

das séries], no qual postula o que chamou delei da serialidade — que gover

naria os acontecimentos que guardam afinidades entre si, a despeito de qual

quer atribuição de causa comum. Seus estudos chamaram a atenção de alguns

de seus contemporâneos, como Einstein e Freud; este último acabaria por

citar sua obra em O estranho (1919). Relida por Jung, a teoria de Kammerer

 vai contribuir para a formulação doprincípio da sincronicida.de (cf. C. G.

 Jung, Sincronicidade: um princípio de conexões acausais. Petrópolis, Vozes,

1984). (N. doT.)

5 A esse respeito, o indo-europeu não deixa de ter relação com a estrutura

profundados transformacionalistas. Mas com duas diferenças: 1) a estrutu

ra profunda define-se como não podendo, por si só, representar uma língua,

enquanto o conjunto de formas indo-europeias é uma língua de estatuto

pleno; 2) a escrita do indo-europeu não pertence à lógica.

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instância que a excede — são esses mesmos pontos que questionam

o indo-europeísta e suscitam seu desejo com relação à língua. Po

de-se dizer esse desejo da seguinte maneira: escrever o próprio

excesso, escrever lalíngua.

Descreve-se com isso um nó em que se entrecruzam e coincidem

o saber, a escrita e lalíngua como lugar dos equívocos. Pois o indo-

europeu nota as arborescências por meio de uma escrita regrada e

constrita — pelas leis fonéticas — e, em contrapartida, permite

reintroduzir o discernível em cada uma das línguas. Além do mais,

é ele que supostamente sustenta o que há de Um em cada línguaindo-europeia. Aquilo com o que nos deparamos, então, é o con

ceito de significante-mestre, significante do fato de que há Um em

toda ordem significante e para cada significante dessa ordem. Nes

se sentido, o indo-europeu é o significante-mestre encarnado para

cada língua particular.

Mas aí está um fato geral, verdade de todas as línguas ideais, e

que atinge a própria essência das línguas. No fim das contas, quese possa desvelar um núcleo de desconhecimento em todas as gra

máticas e linguísticas talvez conte menos do que o simples fato de

que elas sejam possíveis. Ora, isso supõe uma coisa que nada tem

de trivial: as línguas são transcritíveis de tal maneira que, aí, tudo

seja discernível de tudo — dito de outro modo, elas manifestam

que há Um. Daí a questão: de onde vem o Um das línguas ?Do

significante-mestre, dirão. Mas isso implica, ao mesmo tempo, aconstante possibilidade de que a existência do discernível seja atri

buída a um significante posto em posição de agente: o agente do

discernível, isto é, precisamente o Mestre.

Eis o que explica o que havíamos notado anteriormente: que a

linguagem da soberaniaé literalmente obcecante quando se trata

de fundar o discernível na língua. A lei, a regra, o arbitrário, todos

esses nomes variados convergem na direção de um único foco: osignificante do Um, colocado em posição de agir sobre a língua.

Sem dúvida os linguistas e gramáticos podem se arranjar com

isso de diversas maneiras: há aqueles que falam abertamente ao

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mestre — e ninguém ignora, desde Richelieu*, a ligação que a re

gulação da linguagem mantém com a reordenação dos povos (que

os comparatistas tenham tido mais gosto pelo nazismo do que pe

las democracias parlamentares e que os linguistas formalistas sejam

geralmente liberais e modernistas só introduz, aqui, variações ane

dóticas). Há aqueles que obturam por inteiro a questão da origem

do Um — como Chomsky, sujeitando-se a pagar a operação com

um retorno da figura do Mestre sob a forma explícita do militan-

tismo político*6. Há, por fim, aqueles mais raros que, tendo reco

nhecido a questão, carregam sobre si o peso de sua solução: sub

 jetivam neles próprios a posição de agente do Um, fazendo-se os

suportes disso que, na língua, introduz o discernível. Tal é, acre

dito eu, a chave de Saussure enquanto sujeito: sua loucura, na ver

dade, não começa nos anagramas, ela já está no Cours— é o mesmo

movimento que o conduz a querer sustentar, através do diferencial,

o Um no seio dos equívocos sonoros do verso latino e no seio

* O Cardeal de Richelieu (1585-1641) fundou, em 1635, sob o reinado de Luís

XIII, a Academia Francesa.O artigoXXIV de seu estatuto diz que “a princi

pal função da Academia será de trabalhar com todo cuidado e diligência

possíveis para ditar à nossa língua as devidas regras e para torná-la pura,

eloquente e capaz de cultivar as artes e as ciências”. A instituição, nas palavras

de Marc Fumaroli, foi criada para “garantir à unidade do reino forjado pela

política uma língua e um estilo que a simbolizem e a consolidem” (<www. 

academie-francaise.fr>). (N. do T.)

6 Acrescentemos a isso os heróis atípicos. Assim é Pierre Guiraud, que, lin

guista no sentido pleno do termo, não mantém menos escancarada a falha

que todos nós nos esforçamos para encobrir: leiam seusStructures étymolo-giques du lexique français [Larousse, 1967], seus dois Villon [Lejargon de Villon — Le gai savoir de la Coquille. Paris, Gallimard, 1968; Le testament de Villon —Le gai savoir de la Basoche. Paris, Gallimard, 1970] e verão a gaia

ciência da homofonia operando aí, paramentada, em boa hora, com os ou

ropéis do Carnaval. Quanto à figura do significante Um, ela se delineia aqui

sem rodeios: Guiraud não anuncia um tratado do vocabulário sexual?

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de toda língua possível. O Cours, reconhecido pelos universitá

rios, e as folhas de poética, ignoradas por eles, proferem a mesma

frase — aquela que, sem dúvida, articulava o desejo de Saussure —■:

o Um que marca as línguas vem de outro lugar.

Pois é justamente isto que está em causa: nada nas línguas per

mite pensar que elas sejam transcritíveis em significances — há aí

um poder que as excede. Quem poderia dar conta disso a não ser

um legislador? — divino ou não, individuado ou não, histórico ou

não, subjetivado ou não, mas em todo caso um mestre. E precisa

mente a isso que Lacan se recusa: se o significante-mestre é encarnado, não é num agente, e sim em lalíngua, na medida em que

todas as figurações de agente são efeitos seus. Deparamo-nos, aí,

com a seguinte proposição: se há Um nas línguas — se a linguísti

ca é, então, possível —, é porque há lalíngua — é porque, enquan

to tais, os seres falantes não se conjugam.

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DO LINGUISTA 

 Até aqui a abordagem privilegiada esteve do lado da linguística —

nisso, no fim das contas, pouco nos distinguimos dos epistemólo-

gos. Em contrapartida, permanece em aberto uma questão — e nadapermite articulada, a não ser a existência do discurso analítico —:

o que dizer do linguista?

 A proposição fundamental, a esse respeito, é a seguinte: a lin

guística por si só não faz laço social, ela só chega a isso na e pela

Universidade — nesse sentido, não há discurso linguístico, mas

somente uma especificação do discurso universitário. Atualmente,

sem dúvida, poderíamos dizer a mesma coisa da maioria das disciplinas que se dizem ciência, mas sabemos também que a ligação

dessa última com a Universidade não é substancial: ela nem sempre

existiu e seria fácil designar pontos de ruptura até mesmo hoje,

quando ela prevalece na realidade — o cientista, enquanto tal, não

é um professor. Mas as ciências chamadas de humanas constituem

exceção: a psicologia, a sociologia etc. e a linguística só são possí

 veis devido ao movimento que pode produzir matéria de um saber

a partir de qualquer segmento de realidade discernível. Porém, esse

movimento só é propriamente possível em função do posiciona-

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mento do saber como agente — dito de outro modo, em função

da constituição de um discurso universitário definido pelo saber

agente, pela produção indefinida de sujeitos hiantes e por um mes

tre, verdade do dispositivo.

Que a linguística acabe se defrontando com um real pelo cami

nho, ao passo que as outras ficam no fantasmático, não é significa

tivo no momento — a linguística não é responsável por nada disso,

somente o seu objeto. Há aqui um nó surpreendente: a linguística,

e podemos acrescentar aí a gramática, só encontra o real que a

governa ao conferir a ele determinadas propriedades que o tornam

representável — permanência, univocidade, regularidade —, ou

seja, um determinado número de cunhos que se devem ao simplesfato de que um real retorna sempre ao mesmo lugar. Ora, essas

propriedades mostram-se ser igualmente aquilo pelo qual a língua

é não apenas ensinável, mas também o veículo de todo ensinamen

to possível.

Pois a Universidade, bem como toda forma de Escola — em

que o discurso universitário não teria emergido —, supõe não ape

nas seres falantes e lalíngua, mas também que essa última os ho

mogeneíze para sempre. Portanto, que ela esteja submetida aoprincípio do mesmo e do repetível — logo, que ela seja interpre-

tável como uma língua. Atinge-se, aqui, o âmago comum a um

núcleo de real e a uma instituição fantasmática: dizer que não há

gramática a não ser pela e para a língua é dizer, ao mesmo tempo,

que não há gramática a não ser para a escola, que não há escola a

não ser pela gramática1. A linguística não muda em nada essa es

trutura, apenas o fato de ela supor a conjunção da ciência com o i

i Que se consulte D ante: “A í está o pensar que moveu os inventores da arte

gramatical. A gramática, de fato, não passa de uma certa identidade de lin

guagem que em nada se altera devido à diversidade de tempos e lugares [...].

Eles se tornaram inventores, portanto, a fim de que os rebuliços da língua,

flexível conforme o bel-prazer de cada um, não nos privassem de todos os

meios [...] de ter acesso aos ditos das autoridades filosóficas e aos relatos das

antigas gestas...” {Devulgari eloquentia, i, ix, II, Plêiade, pp. 568-9).

no

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ensino. Ela tem um nascimento situável, então, diferentemente da

gramática — e a gramática comparada das línguas clássicas, por

sua vez, sequer poderia surgir noutro lugar que não fosse a Univer

sidade alemã, onde a conjunção crucial se realizara.

Uma consequência anexa, mas perpetuamente constatável, é a

seguinte: não se pode esperar outro uso do saber sobre a língua,

ainda que ele estivesse inscrito na ciência, a não ser uma raciona

lização da pedagogia. Por menos interesse que o pesquisador tenha

por ela, a Escola fica a tiracolo lhe pedindo satisfação.

O correlato de um saber sobre a língua não teria, pois, como

ser outra coisa que não o sujeito produzido pela estrutura na qual

o saber é agente. O linguista, por definição, estuda e ensina — daí

a importância que o reconhecimento acadêmico tem para ele. Até

mesmo o real com o qual ele tem a ver só se impõe como tal por

meio de um suporte contínuo: aquele que ele assegura enquanto

sujeito, mas que não procede sem a garantia oferecida pelos seme

lhantes, produzidos, assim como ele, pela ação do saber. Dissodecorre que um linguista desconhecido seja uma contradição nos

termos, pois, assim sendo, o real de seu objeto se dissiparia diante

dos seus olhos e, feito ator sem público, nada mais chegaria a con

firmar o seu ser — da mesma forma que para Nietzsche, filólogo

ignorado por seus pares, não restaria mais nada além de atuar com

máscaras e equilibrar-se sobre cordas.

Disso resulta nada menos que o fato de o linguista ter diretamente a ver com lalíngua: nisso comparável ao analista — do qual,

de resto, tudo o separa — e distinto dos outros praticantes das

ciências humanas — dos quais tudo o aproxima. Aqui jaz a sutile

za com a qual Lacan credita seu caso: resta ver em que sentido.

Recordamos duas teses que articulam o objeto da linguística:

— a língua sustenta o não-todo de lalíngua;

— a língua é um todo.Lalíngua é marcada pelo não-todo, uma vez que ela sempre

falta com a verdade. Esse não-todo se manifesta como uma série

de pontos de impossível: pensar a língua é assumir que esses pon

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tos constituem rede e que essa rede é representável. É pensar, além

disso, que essa rede é representável como um todo e é obtida pela

conjunção contraditória das duas proposições iniciais: a língua é

o todo do não-todo.Com isso, a relação da linguística com Ialíngua é necessária-

mente uma relação sutil com o não-todo. Sem dúvida, o real como qual ela tem a ver só é apreendido por ela a partir do Todo. Masesse real, em si mesmo, só se efetiva através do não-todo: ele só

marca Ialíngua na medida em que ela é, estruturalmente, aquilo

que torna impossível que a verdade se diga toda. As falhas que nãodeixamos passar em branco na língua, no que diz respeito a Ialín

gua, só fazem passar adiante na representação a incessante debilidade de Ialíngua mesma com relação à verdade.

Para que o conjunto deduzido de Ialíngua seja pensado comoum Todo é preciso, então, que a função que a consagra ao não-todo seja elidida: a verdade torna-se o limite, autorizando, pormeio de sua própria exclusão, proposições universalizantes. É em

função de colocar sua instância entre parênteses que a linguística

circunscreve seu objeto e, se necessário, ela é perfeitamente capazde dizer isso abertamente. Alcançamos, aqui, o efeito derradeirodo dualismo no qual se viu que ela se sustentava: se a ordem daspalavras e a das coisas devem ser mantidas disjuntas é menos pordescartar as visões do mundo do que pelo fato de as coisas serem,aqui, representantes do lugar da verdade.

Retomemos uma vez mais, portanto, os termos saussurianos.O signo cessa de ser definido por sua associação a uma coisa — por

coisa épreciso entender tanto as ideias das coisas (os “conceitos“)quanto as coisas materiais, ou seja, a classe de tudo aquilo a que

um signo pode estar associado. E isso que está em causa: não sãoas coisas como tais, mas a própria relação de associação. Ao mesmotempo aparece o alvo: a verdade, na medida em que pensada comoo próprio conceito da associação adequada (de uma ideia e de umacoisa, de uma palavra e de uma coisa, de uma ideia e de uma pala

 vra). Pelo dualismo, Saussure — e, depois dele, todo linguista —

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elide qualquer instância mediante a qual um valor dito, justamen-te, de verdade poderia aproximar-se das sequências de língua.

É, então, porque a verdade é a classe das relações de adequações

e porque todo x que entrasse numa relação dessas com um elementode língua ganharia forma de verdade que é preciso, necessariamente, que não haja nada a que a língua possa se dizer adequada. Maso nó dessa necessidade é que é preciso que não haja verdade paraque a língua possa ser considerada um todo que em nada falta.

Dito isso, a verdade não deixa de existir — em conformidadecom o fato de que lalíngua não cessa de se exercer na língua e de

lhe desfazer o conjunto. A linguística, tendo um todo como objeto, está sob o jugo da lei do todo: ela deve percorrê-lo como tal,condenada à exaustividade, quanto a sua extensão e à consistência,quanto a sua intensão. Mas, ao mesmo tempo, ela tem de reconhecer pontos em que o não-todo imprime sua marca e introduz suaestranheza inquietante* nas cadeias de regularidade. Com isso aconsistência é afetada, de modo que dois imperativos se contradi

gam — não teria como haver exaustividade sem inconsistência,nem consistência sem inexaustividade.

Mas as operações de lalíngua também são sempre de um jeitoque se pode recobri-las, e são possíveis subterfúgios: ao encontrarum ponto crítico, a linguística deve notá-lo, caso se pretenda exaustiva — e isso de uma maneira que não crie inconsistência para oresto da notação. Daí a invenção de símbolos de duplo sentido

notando, recobrindo e atestando num só tempo a presença dospontos falhos. Alguns exemplos:

 Inquiétante étrangeté é o título da tradução francesa de Das Unheimliche(Oestranho, 1919), de Sigmund Freud. (N. do T.)

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— O próprio conceito de língua: por um lado, ele descreve uma

totalidade abstrata e enumerável, condenada, uma vez que se a re

presente, ao estatuto de fantasia — é a língua-realidade, quer a

interpretemos como instituição, quer como competência, bandei

ra, conjunto de práticas etc. Mas, por outro lado, e sem que seja

possível separar os fios da trama, a língua sustenta a barra de im

possível que marca lalíngua em sua relação com a verdade — e que

é justamente impossível de totalizar. Aí está, muito evidentemen

te, o duplo sentido primitivo, do qual todos os outros são, de algum

modo, a cunhagem.

— As categorias (nome, verbo, adjetivo etc.): por um lado, elas

constituem pontos de referência para a enumeração da língua e se

incorporam à sua representação1; por outro, encarnam o Um em

lalíngua, e, em função de sua mera possibilidade, efetuam aí a ope

ração do significante-mestre.

— O sujeito da enunciação: temos aqui, numa primeira leitura,

um conceito positivo da linguística, que, para fins de pura descri

ção, deve distingui-lo do sujeito do enunciado**3*5. No mais raso dos

 z  Assim como as categorias de Aristóteles determinam os modos segundo os

quais um objeto em geral pode ser representado ao conhecimento num juí

zo, as categorias gramaticais também o fazem para uma língua em geral —

logo, é legítimo que o mesmo termo seja usual nos dois casos.

3 Um exemplo simples: o verbo saber  é, em português \ jrançais\ , seguido de

dois tipos de completivos: um em que, o outro em se. Seríamos tentados a

dizer que a separação é sintática: queaparece quandosaber éafirmado; se, nos demais casos — quandosaber  é negado ou interrogado. Daí o paradigma:

(a) A sabe que B vem.

(b) A não sabe se B vem.

(c) A sabe se B vem?

Mas o princípio é imediatamente refutado, já que podemos ter:

(d) A não sabe que B vem.

(e) A sabe que B vem?

Tampouco basta recorrer ao sujeito do enunciado: o saber do sujeito A é o

mesmo em (b) - (c) e em (d) - (e). Tanto que, aos exemplos de queseguido

de não assertivas, podemos acrescentar exemplos deseseguido de assertivas:

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fenômenos, ainda que fosse apenas para pensar a possibilidade doeu \je], é preciso admitir que todo enunciado pode ser relacionadoa um ponto do qual nada se supõe, exceto que ele enuncia. Mas um

conceito assim se oferece imediatamente a uma outra leitura: oponto ao qual o enunciado está relacionado é, simultaneamente,admitido como um sujeito, e resta a possibilidade de que ele sub

 jetive o enunciado de uma maneira que escapa à representação. Éo que atesta o famigerado nechamado de expletivo: resquício dosujeito da enunciação, não na medida em que subsiste sempre como

ponto ao qual reportar todo enunciado, mas, pelo contrário, namedida em que desaparece em toda enunciação — não uma permanência sem dimensão, mas a dimensão de um desvanecimento.

(f) A sabe (com certeza) se B vem.De fato, a chave do paradigma reside no sujeito da enunciação: tudo depende de seu saber. Em (a) ele sabe, e em (f) ele ignora que B vem — o saber dosujeito do enunciado podendo ser, nos dois casos, o mesmo. E é assim, mu- 

tatis mutandis, em todos os pares (b) / (d), (c) / (e): queimplica saber ese, não saber — para o sujeito da enunciação, qualquer que seja o sujeito do

enunciado. Assim se explicam as irregularidades de distribuição no momento em que osujeito do enunciado e o da enunciação coincidem na primeira pessoa: nãoo temos em face de (f):(g) * eu sei se A vemnem diante de (d):

(h) * eu não sei que A vem.Com efeito, dadas as propriedades da primeira pessoa, do presente e do

 verbo saber, não pode haver aqui a diferença entre o saber do sujeito daenunciação e o do sujeito do enunciado que permitiria queem contextonegativo eseem contexto positivo.

Se, em contrapartida, introduz-se, conservando a primeira pessoa, uma variação temporal que permita separar novamente o saber dos dois sujeitos,

teremos:

(i) já naquele momento eu sabia se A viria.

(j) eu não sabia que A viria.Nesse exemplo percebemos o quanto o sujeito da enunciação permite des

crever uma regularidade, mas também vemos que nada lhe é suposto alémde sua existência. Não há nada para saber daquilo que, dessa existência, fazum sujeito.

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Entretanto, esse sujeito ao qual se atribui o voto inconsciente

doneexpletivo e aquele que lastreia com sua permanência os enun

ciados e afere o conjunto enumerável dosshijterssão justamente

a mesma existência. Ela está simplesmente aberta, nos dois senti

dos: é sempre permitido à linguística, para satisfazer a exaustivi-

dade, fixá-la em categorias — por exemplo, a dosshijters—; mas,

ao fazê-lo, ela introduz um heterogêneo em sua notação, de onde

eventualmente lhe virá a inconsistência — constatar, por exemplo,

que o sujeito da enunciação pode desaparecer nalgum lugar das

sequências e infectá-las com sua vacilação indefinida.

São múltiplos os exemplos semelhantes; podemos encontrá-los

na teoria dos tempos, dos modos, na gramática dos insultos, na das

interrogações e das réplicas dialogadas — mas todos, no fim das con

tas, dão no mesmo. Disso decorre que, uma vez que a linguística é

inteiramente percorrida pelo duplo sentido, cada sujeito diz alguma

coisa de si ao optar por uma leitura. Pelo menos devido a isso ela

merece ser chamada de piloto, já que devolve para cada um o desvio

que ele preferiu — a tese sobre o ser falante que ele quis ouvir.

Mas isso se aplica genuinamente ao próprio linguista: cabe a

ele escolher seu próprio entendimento dos símbolos que manejae, em tais circunstâncias, não querer ignorar lalíngua — da qual

seu objeto é extraído —, nem o não-todo que marca incessante

mente as suas totalidades. Sem dúvida, e este é o caso geral, umas

doses de ânimo já seriam o bastante: linguistas durante a semana,

lemos os poetas nos dias de folga. Mas há, por vezes, aqueles que

não se contentam: em cada ponto ao longo da construção eles ve

rificam o retorno do não todo que, tal qual o fantasma do rei, vem

assombrar a ordem que seu apagamento permitiu seriar.Isso só pode significar uma coisa: restitui-se à língua a dimensão

da verdade que faz com que ela fique em falta — não mais sob a

forma de um valor que dá a medida de uma adequação, e sim por

ela atestar a articulação do desejo. Então, as representações de lín

gua descrevem um outro contorno e se tornam indício de um su

 jeito desejante. Esse último pode ser designado pelo linguista de

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diversas maneiras: que seja uma figuração de Deus, ou até ele pró

prio na medida em que deseja, isso pouco importa — ele terá,

enquanto linguista, desejado.

Nesse sentido, o que dizíamos no princípio sobre o amor da

língua revela-se demasiado parcial: não são somente os puristas

que, renegando ao real todo estatuto de representável, constroem-

na como objeto (a). Para todo linguista, no próprio seio da repre-

sentabilidade, está permitido o acesso a uma via análoga: reconhe

cer que um sujeito dá indícios em seu objeto e que ele pode — sem

ser preciso figurá-lo demais —, com esse indício, causar seu desejo.Sobre esse momento nenhuma comunidade acadêmica tem

nada a saber: nele todo linguista é desconhecido — e, quando vá

rios se encontram, tomam bastante cuidado ao conversar, cada um

duvidando bastante de que o outro atribua os mesmos traços e a

mesma consistência a ele. E, aliás, trata-se justamente de outra coi

sa que não o que os faz linguistas uns para os outros: antes mesmo,

talvez, trata-se disso que os faz homens — esses seres que, por serevelarem semelhantes, encontram-se não unidos, mas separados.

Daí, sem dúvida, o caráter de pastiche que todo conglomerado

de linguistas suscita aos olhos da comunidade científica: para que

o requerido silêncio atinente ao ponto noturno da contração* seja

* Numa carta a K. J. H. Windischmann, em 27 de maio de 1810, G. W. F.

Hegel escreve: “cada homem conheceu um ponto crítico assim em sua vida,

0ponto noturno da contração de seu ser, forçado a perfazer uma passagem

estreita na direção de fortificar e confirmar sua certeza de si, rumo à certeza

da vida cotidiana habitual — e, se ele já se tornou incapaz de se preencher

com essa última, rumo à certeza de uma existência interior mais nobre” [“je

der Mensch hat wohl überhaupt einen solchen Wendungspunkt im Leben,

den nächtlichen Punkt der Kontraktion seines Wesens, durch dessen Enge er

hindurchgezwängt und zur Sicherheit seiner selbst befestigt und vergewissertwird, zur Sicherheit des gewöhnlichen Alltagslebens, und wenn er sich be

reits unfähig gemacht hat, von demselben ausgefüllt zu werden, zur Si

cherheit einer innern edlern Existenz” (Hegel: Briefe I. Hamburgo, Felix

Meiner Verlag, 195z, p. 314, grifo meu)]. (N. do T.)

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assegurado, afinal, o jeito é agarrar-se às formas mais assentes da

demonstração e da notação formalizante. Mas quem pode ignorar

que, a todo instante, do próprio seio do objeto definido, o espectro

da verdade pode se erguer, testemunha da incompletude e do di-

laceramento dos quais dependem tanto o gestuário das teorias

quanto a permanência das qualificações acadêmicas ?

n8

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Hoje a linguística praticamente não desperta mais nenhum inte

resse — e, até mesmo, entedia. Talvez sempre tenha sido assim comdisciplinas que dizem respeito à língua, salvo no tempo em que,

quando a palavra-mestra tinha a efígie do Todo, o estruturalismo

encontrava sua prova e seus recursos junto àqueles que pareciam

ter estabelecido tão fortemente a influência do Todo sobre a língua.

Mas nos dias de hoje o Todo já não é mais atraente e as inscrições

que ele permite passam habitualmente por opressivas. A linguís

tica cai nesse descrédito, depositária da ordem monótona que ela

conservaria nas almas e na sociedade. Ademais, ela se pretende

ciência e, mesmo não dando lugar a nenhuma técnica efetivamen

te garantida (enxergamos pouco além da pedagogia para a qual ela

serve de validação), ela não passa disso e só subsiste mediante as

escritas que a qualificam. Ora, bem se sabe que as escritas da ciên

cia, uma vez que são instauradas pelo Um, suscitam um tédio que,

de ordinário, a serventia das técnicas dissimula e compensa. Mas,

nesse caso, onde é que está a serventia?

 A linguística, além do mais, importuna — sem que se deva ficar

surpreso com isso, aliás. Basta que nos lembremos de Freud e da-

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quilo que ele enunciava a respeito do narcisismo ferido: a astronomia copernicana e a psicanálise, dizia ele, têm em comum o fatode atentarem contra o narcisismo — a primeira, desalojando ohomem do centro do universo; a segunda, subtraindo-lhe o co

mando de seu psiquismo. Não é difícil perceber que acontece omesmo com o ponto de vista gramatical ou linguístico: entregar-seà língua como tal — reconhecer aí as facetas de um real — é,no que se refere à experiência das pessoas, dizer aos sujeitos falantes que há, na língua e em toda locução, alguma coisa da qual não

são nem mestres, tampouco responsáveis. Ora, isso é difícil de apessoa suportar; afinal, de onde ela tira as insígnias de sua respon

sabilidade, a não ser do fato de ser falante? Acaso o movimentopelo qual o ser falante se afirma como gênero humano, ponto dedomínio imaginário no universo, consiste noutra coisa que não emconsiderar lalíngua uma determinada propriedade distintivaque alguns seres não apresentariam? — seres que, em função dessacarência, estariam livres do ônus de agentes responsáveis. Só é possível constituir os seres falantes como conjunto de mestres, portanto, ao se inscrever correlativamente lalíngua como Todo.

É justamente o que a linguística faz — paradoxalmente, contudo, uma vez que ela instala no coração desse Todo a instânciaque despoja o ser falante de toda responsabilidade, disso que o fazhomem e mestre do Universo. Tal é, sem dúvida, a razão pela qual,dentre as ciências chamadas de humanas, a linguística é a única quenão se presta diretamente aos condicionamentos requeridos pelomestre moderno e, consequentemente, a única que não rende nada,a não ser para alguns charlatões. Desfazer o homem pelo ponto em

que ele se constitui, ferir a pessoa lá onde ela se reconforta é, portanto, a ofensa máxima — é facilmente concebível que os próprios

linguistas não a suportem com constância. Também vemos queeles correm desesperadamente para longe daquilo que os autorizae se apressam para tratar, de uma maneira ou de outra, as feridasinfligidas. Hoje são duas as vias habituais: as significações — o serfalante não é minimamente responsável por aquilo que ele quer

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dizer, não obstante os limites que incidem sobre o que ele diz? —

e a sociedade — o ser falante não se inscreve como cidadão, responsável por suas declarações, na medida em que elas afetam seudestino e o destino dos outros? Se necessário, aliás, as duas viaspodem se confundir: basta fazer referência à ideologia e decifrar,

tanto nos enunciados (considerados como práticas de língua)quanto nas operações que os analisam, as escolhas sociais veiculadas pelas significações.

 Assim se desenvolve incessantemente uma antilinguística, destinada, sobretudo, a ajudar os linguistas a suportarem a si próprios:

sociolinguística; semântica, gerativa ou não; inquéritos ideológicos — pouco importam os nomes, visto que sempre se trata derestabelecer, na plenitude de seus direitos e de seus deveres, um

sujeito mestre de si mesmo ou minimamente responsável por suasescolhas. O Universo pode, então, dançar conforme a música dasesferas, na palma da mão do gênero humano, curado da inqualificável ferida que poderia constituir a suposição de que a língua, oualguma coisa dela, lhe escapa.

Não era para essa deriva ser surpreendente, no fim das contas —afinal, ela não é observável em todo discurso que tangencia as insígnias da soberania, inclusive a psicanálise ? Talvez nesse caso ela

só seja mais constante em função do fato de que não há um sólinguista que não caia nisso um dia — seja pelo seu próprio movimento, seja pelo terrorismo do consenso universal. É fato que a

linguística, na medida em que pertence à ciência, não constituilaço social a não ser através da Universidade: presos na rede acadêmica, os linguistas devem formar comunidade e, tanto quantopossível, almejam-se permutáveis. Isso interdita que algum delespossa, enquanto sujeito, articular a palavra \parole\  que merececrédito e que tem efeito de verdade — então, nada além de umaética secreta e mal coletivizável pode, para alguns, fazer barreira às

demandas de responsabilidade.Entretanto, se o linguista quer chegar a algum gozo, não há

outra via a não ser o dissabor para os outros e para si próprio. Pois,

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assim como todos os cientistas — diferentemente, sem dúvida, doanalista —, ele merece um: o júbilo singular que o deciframentoproporciona. Quem melhor que o linguista pode, efetivamente,nas entranhas de uma rede de real, lançar-se sobre o fulgor de umsentido que não vem embotar nenhuma significação ? Quem melhor do que ele, já que a substância daquilo que ele manipula éfeita apenas dessas cintilações ?

Sem dúvida, tão logo aflorado, o sentido encontra-se atribuídoàs significações da ordem e da regularidade, visto que esses são ostraços aos quais a linguística reconhece a influência do Todo quea preocupa. Sem dúvida, dessas regularidades alinhadas numa escrita forçada só pode brotar — uma vez extinta a paixão (e quementende melhor de extingui-la do que o estilo universitário ?) — otédio. Mas não se enganem: na duração repetitiva construída pelasimetria de regras e paradigmas destaca-se o instante do sentido,que a regra significa e apaga simultaneamente.

Nesse instante singular não é mais o linguista que sabe, e simlalíngua que sabe por ele — pois esta é a verdade de sua competência: não o domínio, e sim o assujeitamento e a descoberta de que

lalíngua sabe. Pouco importa, então, que ele tenha de soletrar imediatamente esse saber numa escrita científica. É o tempo de umlampejo. Nada distingue do mais ínfimo jogo de palavras — Witz ou lapso — aquilo que dentro em breve terá forma de regra: trata-se, pela mesma razão, de um pesponto do sentido ao longo das viasdo significante1. E muito precisamente o mesmo júbilo que surge,só que ainda mais precioso, tendo em vista que atinge no linguistabem aquilo que o faz ser falante.

Todavia, é uma felicidade caso este consiga transmiti-lo, aindaque sejam preservadas as exigências do estilo. Afora a comunicação

x No sentido inverso, toda jocosidade que recai sobre a língua é a inscrição,através do sujeito, de um saber de lalíngua. Cf. J. Milner, “Langage et langue — Ou: de quoi rient les locuteurs ?”, Change, n- 29, pp. 185-98, e na 31,

pp. 131-62.

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acadêmica — que, como se sabe, é indispensável ao linguista —,

essa é a única justificativa um pouco digna que ele pode encontrar

para escrever. Mas isso implicaria um esforço inédito de sua parte:constituir uma escrita de tal modo que o instante de surgimento

do sentido nela não se dissipe, mas também de tal modo que não

resista a se acomodar, se for o caso, numa ordenação de tabelas e

de regras. Portanto, uma escrita que não ousa dizer seu nome e

locuções com duplo sentido. Aliás, para quem lê um linguista, não

há nada mais fácil do que nem reparar nessa brecha imperceptível

na qual algo de um gozo quiçá se transcreva, pois ela se apresentacom os mesmos traços da certeza demonstrativa. Mais do que isso:

se a transcrição é feliz, o instante em que o sentido surge não de-

 veria estar em nenhum outro lugar que não no momento em que

o linguista conduziu a evidência ao ponto de concluir — é nessa

mesma evidência, que autoriza a conclusão e reclama o assentimen-

to, que se deve observar, para quem sabe ler, o umbigo do gozo1.

Que "lalíngua sabe” é a suposição do linguista. Ao soletrar essesaber na escrita da ciência, ele funda um gozo e, através desse gozo,

por meio de suas transcrições, incita os seres falantes. Não está

garantido, porém, que eles parem por aí. Isso porque, no que se

refere aos nós do gozo e de lalíngua, há outra via aberta: como

esclarecer melhor do que por meio de uma homologia entre lalín-

gua e a mulher? — homologia que a escrita lacaniana produz e que

a doutrina interpreta.

1 Seria pertinente recensear as figurações da evidência e erigir uma tipologia

dos momentos de concluir. Temos aqui alguns elementos. Trubetskoy: a

complementaridade, pela qual dois seres serão identificados por não terem

nenhum predicado em comum; Benveniste: a diferença pura que separa, no

que diz respeito a um sistema de relações, dois seres cujos predicados empí-

ricos são todos os mesmos; Jakobson: dispor em termos de simetria e de

antissimetria elementos disjuntos; Chomsky: deduzir a série mais errática a

partir de algumas escritas mínimas. Um grande linguista não é, então, aque-

le que triunfa em fazer com que todos aceitem uma figuração nova da evi-

dência, isto é, ao mesmo instante, um vestígio inédito de seu gozo?

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Tudo está ligado a isto: o sexual — no qual a mulher, como tal,

intervém — tira sua consistência do fato de haver lalíngua. Para os

seres falantes, é na medida em que estão presos em lalíngua que a

inscrição deles, relativamente ao seu desejo, assume a forma dramática dos sexos. Uma vez que o desejo e lalíngua se corrompem

mutuamente, uma relação que se instaure entre tais seres não se

escreveria toda — o que se diz “não há relação sexual” ou, ainda,

só há referência e comunicação imaginárias. Constrói-se um siste

ma de duplo acesso no qual leremos, conforme a linha escolhida,

tanto o dejeto do objeto na articulação do desejo quanto a debili

dade locutória do sujeito — sustentado, hipoteticamente, pelo

indivíduo falante — : em cada ponto comprova-se o mesmo impossível, do qual lalíngua e a mulher são apenas dois modelos.

Disso decorre o que se observa: lalíngua não autoriza nenhuma

universalidade. A língua não existe, mas somente o “várias”, no qual

Mallarmé constatava a sua falta. Apesar das totaiizações compar

timentadas que permitem as célebres partes do discurso e os estra

tos, tampouco existem locução ou A palavra \mot\. é o reino dos

conjuntos abertos, que, no entanto, nós contamos — pensemosno mille e trede Don Juan*. Sobre a homologia, aliás, as próprias

palavras testemunham: efetivamente, da mesma maneira que a

mulher só se inscreve na relação sexualquoad matrem, o mesmo se

* No primeiro ato da ópera IIdissolutopunito ossia ilDon Giovanni [O liber

tino punido, ou Don Giovanni], de Mozart — com libreto de Lorenzo Da

Ponte —, o servo Leporello narra as façanhas amorosas de seu amo a DonaElvira, uma nobre que Don Giovanni havia seduzido e abandonado: “Se

nhorinha, o catálogo é este / das tais belas que o patrão amara: / um catálo

go que eu preparara; / note e leia comigo uma vez. / Na Itália seiscento e

quarenta, / na Alemanha duzento e trint e uma, / cem na França; em Turquia,

novente uma, / mas na Espanha são já mil e três” [“Madamina, il catalogo è

questo / Delle belle che amò il padron mio; / un catalogo egli è che ho fatt’io;

/ Osservate, leggete con me. / In Italia seicento e quaranta; / In Alemagna

duecento e trentuna; / Cento in Francia, in Turchia novantuna; / Ma in

Ispagna son già mille e tre”]. (N. do T.)

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dá com lalíngua no que se refere à comunicação — ela só está nis

so como língua materna3, excedendo as necessidades da referência.Não é difícil multiplicar as anedotas que cunham o núcleo da

homologia. Porém, mais vale ir ao essencial, isto é: para alguns, oOutro pode se representar tanto em forma de língua quanto emforma de mulher. É o caso de Dante, para quem Beatriz e a língua

italiana estão em posição idêntica — e isso a ponto de ser precisoaceitar que, para Dante, se Beatriz goza, a língua também goza.

Furtar-se a servi-la é, então, propriamente sodomia4 — ao passoque, inversamente, Virgílio propõe o modelo do amante perfeito:

aquele que serve assiduamente como instrumento de gozo parauma língua-mestra.

“Lalíngua goza” é a estranha suposição que se emite aqui. Menosestranha, entretanto, do que poderíamos acreditar de início, já queisso é mesmo preciso para animar com uma sombra de sentido oscálculos de não sentido dos quais Jakobson, seguindo os passos deSaussure, fez-se explorador. Pois, apesar do fato de que o fizeram,

não deveríamos reconhecer a menor demanda de ordem e de simetria nas discriminações de fonemas ou de metros. Em vez disso,

3 Se lalíngua não pode representar-se como materna, algum deslocamento seopera. E o que, dentre outros, Wolfson — o já célebre esquizofrênico —atesta. Por não poder ter acesso a lalíngua do lado marcado pela mãe, ele aprocura do lado de um somatório indefinido de línguas diversas — o não-todo se assinala, então, pela impossibilidade na qual Wolfson se encontra de

fechar os todos de palavras ou de fonemas. A lógica do todo que aí reconhecia Deleuze pouco tempo atrás (Leschizo et les langues. Paris, Gallimard,1970, p. 10) é, pois, consubstanciai à inscrição sexual da qual então ele faziaa regra da psicose, (idem, op. cit., p. 13).

4 Brunetto Latini, italiano que escrevia em francês e elogiava essa língua,está consequentemente condenado, junto com os sodomitas, à danação dofogo — sobre essa sodomia “espiritual” consultar A. Pezard, Dante sous la pluie de feu. Paris, Vrin, 1950, pp. 194-312. A superposição da figura da mulhere de lalíngua podia se impor a Dante através dos trovadores. Para estes, o

amor cortês tem relação com o hermetismo: para compensar a ausência derelação, fingir, por opção, obstaculizá-la — tanto do lado da inacessível Damaquanto mediante uma referência obscurecida.

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trata-se de colocar constantemente os elementos assujeitados ao

Um a serviço constante de um Outro que é suposto a gozar. Gozooutro, para além do gozo, sustentado também pela mulher ou porDeus — aqui, todavia, por lalíngua, fazendo com que nesse ponto

infinito se cruzem o enamorado, o místico e o poeta. Aí está a possibilidade da qual o linguista, como tal, não tem

nada a saber: tudo o afasta de supor o menor gozo a lalíngua, quesó poderia desvalorizar o seu próprio. As vezes, sem dúvida, ele en

contra um poeta e o escuta, mas que a hagiografia não nos iluda:quem lesse um dos raros testemunhos de que dispomos sobreesse ponto — a saber, o obituário dedicado por Jakobson a Maia-

kovski* —, como poderia não decifrar nele uma confissão ?É jun

to ao silêncio daqueles que serviram a lalíngua e ao seu gozo que opropósito do linguista se instala. Através de um movimento queconhecemos — do Todo que, por si só, o autoriza — é preciso,

ainda que laureando, banir o ser que, como falante, estaria fadadoao não-todo.

 A esse preço a linguística pode se fazer ouvir: entediante, às

 vezes, em relação a essa Outra via a que ela se fecha; inoportuna,frequentemente, por se sustentar no vértice de um impossível; mas

não infeliz — se, ao menos, ela não fracassar na escrita de suas

decifrações. Operação difícil, sem dúvida, mas que conheceu sucessos: raros, incomensuráveis uns aos outros, inimitáveis, depen

dendo da pura sorte... eles são, contudo, testemunhas. Ainda é

preciso, para que eles sejam reconhecidos, que o ser falante, con vocado pelo linguista a se admitir como tal, aceite o mínimo: queninguém é mestre de lalíngua; que nela insiste um real; que, por

fim, lalíngua sabe. Então, por pouco que o linguista não falhe empossuir um certo tato, poderá realizar-se nalgum ponto das escritascientíficas a feliz coincidência da regra e do Witz.

* R. Jakobson, A geração que esbanjou seus poetas. Trad. de Sônia R. M. Gonçalves. São Paulo, Cosac Naify, 1006. (N. do T.)

12.6

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Título O amor da língua

 Autor  Jean -C laude M iln er

Tradução e notas Paulo Sérgio de Souza Jr.

Revisão técnica Cláu dia Thereza Guimarães de Lemos

Maria Rita Salzano Moraes

 Assistente técnico de direção

Coordenado r editorial

Secretária editorial

Secretário gráfico

Preparação dos originais

Revisão

Editoraç ão eletrônica

Ilustração de capa

Design de capa

Formato

 José Emílio Maiorin o

Ricardo Lima

Eva Maria Maschio

Ednilson Tristão

 Ju lia na Bôa

Luís Dolhnikoff 

Silvia Eldena P. C. Gonçalves

Luciana Fujii

 Adr iana Ga rcia

1 4 x 2 1 cm