microsoft word - parceria público-privada tese fernando vernalha
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i
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS JURDICAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
PARCERIA PBLICO-PRIVADA: CARACTERIZAO DOS TIPOS LEGAIS
E ASPECTOS NUCLEARES DE SEU REGIME JURDICO
Curitiba 2008
ii
FERNANDO VERNALHA GUIMARES
PARCERIA PBLICO-PRIVADA: CARACTERIZAO DOS TIPOS LEGAIS
E ASPECTOS NUCLEARES DE SEU REGIME JURDICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Direito, rea de concentrao em Direito do Estado, sub-rea: Direito Econmico.
Orientadora: Professora Doutora Angela Cassia Costaldello.
Co-Orientador: Professor Doutor Carlos Ari Sundfeld.
Curitiba, 2008
iii
FERNANDO VERNALHA GUIMARES
PARCERIA PBLICO-PRIVADA: CARACTERIZAO DOS TIPOS LEGAIS
E ASPECTOS NUCLEARES DE SEU REGIME JURDICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Direito, rea de concentrao em Direito do Estado, sub-rea: Direito Econmico.
De Acordo:
Professora Doutora Angela Cassia Costaldello
Curitiba, 06 de junho de 2008
iv
TERMO DE APROVAO
FERNANDO VERNALHA GUIMARES
PARCERIA PBLICO-PRIVADA: CARACTERIZAO DOS TIPOS LEGAIS E ASPECTOS NUCLEARES DE SEU REGIME JURDICO
Tese aprovada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito no Curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:
____________________________________________________________
Prof. Orientador:
____________________________________________________________
Prof. (Co-Orientador):
____________________________________________________________
Prof.
____________________________________________________________
Prof.
____________________________________________________________
Prof.
Curitiba
2008
v
SUMRIO
RESUMO............................................................................................................. xvi
INTRODUO.................................................................................................... 1
1. APRESENTAO DO TEMA ................................................................. 1
2. CONTEXTUALIZANDO AS PPPS........................................................... 2
3. AS TESES PROPOSTAS E SUA FISIOLOGIA ...................................... 5
4. A ESTRUTURAO DO TRABALHO: O PLANO ................................. 6
PARTE I: A ERA DAS PARCERIAS: POR UMA NOVA EXEGESE DO
CONTRATO ADMINISTRATIVO
1. INTRODUO.......................................................................................... 10
2. O DIAGNOSTICO: O FORJAMENTO DA TEORIA DO CONTRATO
ADMINISTRATIVO ..................................................................................
13
3. A EMERGNCIA DE NOVOS PARADIGMAS E A URGNCIA DE
UMA NOVA DOGMTICA .......................................................................
18
4. O ESTADO E A ECONOMIA: A COMPREENSO DE UMA
RACIONALIDADE ECONMICA DO ESTADO .....................................
25
5. A ECONOMIA E O DIREITO: POR UMA HERMENUTICA
FUNCIONALISTA DO CONTRATO ADMINISTRATIVO.........................
27
5.1 O CONTRATO E OS MERCADOS .......................................................... 29
5.2 O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DO DESENVOLVIMENTO: AS
PPPS COMO CONTRATOS DESENVOLVIMENTISTAS DE
SEGUNDA GERAO.............................................................................
32
PARTE II : A CARACTERIZAO DOS TIPOS CONCESSRIOS
CAPTULO I AS PPPS E O MODELO CONCESSRIO 36
1. INTRODUO ......................................................................................... 37
2. BREVE NOTA SOBRE TAXONOMIA: A BUSCA PELA NATUREZA
JURDICA DOS INSTITUTOS..................................................................
38
3. PARCERIA PBLICO-PRIVADA COMO ESPCIE DO GNERO
CONTRATO ADMINISTRATIVO .........................................................
40
3.1 CONTRATO ADMINISTRATIVO X CONTRATO JURDICO-PRIVADO
DA ADMINISTRAO...............................................................................
41
3.1.1 A Teorizao Francesa do Contrato Administrativo................................. 42
vi
3.1.2 A Penetrao da Teoria do Contrato Administrativo no Direito
Brasileiro...................................................................................................
48
3.1.3 A tese pela unificao dos contratos da Administrao
Pblica......................................................................................................
50
3.1.3.1 O Cabimento restritivo do exerccio de poderes especiais nos
contratos administrativos.......................................................................
53
3.1.3.2 Restrio constitucional quanto ao exerccio de poderes exorbitantes
por entes administrativos submetidos ao art. 173 da Constituio........
54
3.1.4 Sntese Conclusiva Acerca da Natureza das PPPs Como Contrato
Administrativo .........................................................................................
55
4. A PPP COMO ESPCIE DO GNERO PARCERIA .............................. 56
5. A PPP COMO ESPCIE DO GNERO PARCERIA PBLICO-
PRIVADA................................................................................................
58
6. A PPP COMO ESPCIE DO GNERO CONCESSO........................... 59
6.1 CARACTERSTICAS DA TCNICA CONCESSRIA ............................... 65
6.1.1 Uma Brevsssima Incurso Pelo Direito Comparado................................ 72
6.1.1.1 O Direito portugus................................................................................ 72
6.1.1.2 O Direito francs.................................................................................. 75
6.1.1.3 O Direito espanhol............................................................................... 81
6.1.1.4 O Direito europeu comunitrio............................................................. 85
6.1.2 A Constitucionalidade dos Modelos Concessrios Trazidos com a Lei
das PPPs................................................................................................
88
6.1.2.1 A Concesso administrativa uma concesso................................... 94
CAPTULO II A CONCESSO (COMUM) DE SERVIOS PBLICOS 99
1. INTRODUO......................................................................................... 100
2. A CONCESSO COMUM DE SERVIOS PBLICOS
(CARACTERIZAO).............................................................................
100
3. OBJETO DA CONCESSO COMUM DE SERVIO PBLICO: A
DELEGAO DA GESTO DE UM SERVIO PBLICO......................
101
3.1 O OBJETO DA DELEGAO: A GESTO DE UM SERVIO PBLICO 103
3.2 O SERVIO PBLICO COMO OBJETO DA GESTO DELEGADA........ 106
3.2.1. A Definio Jurdica de Servio Pblico no Direito Brasileiro................ 107
3.2.1.1. Os trs ngulos da caracterizao do servio pblico........................... 108
vii
3.1.1.1.1 O ngulo formal do servio pblico: a aplicao de um regime de
Direito Pblico.....................................................................................
108
3.1.1.1.2 O ngulo subjetivo: atividade desempenhada pelo Estado................ 113
3.2.1.1.3 O ngulo material: caracterizao da atividade de servio pblico..... 117
3.2.1.1.3.1 O Servio pblico como atividade administrativa de prestao........ 118
3.2.1.1.3.2 Servio pblico x funo pblica....................................................... 119
3.2.1.1.3.3 O Servio pblico x atividade econmica.......................................... 122
3.2.1.1.3.3.1 A Insuficincia da tese essencialista.............................................. 123
3.2.1.1.3.3.2 A Proximidade entre os essencialistas e os convencionalistas
legalistas......................................................................................
125
3.2.1.1.3.3.3 Ainda a singularizao do servio pblico relativamente
a outras atividades econmicas....................................................
127
3.2.1.1.3.3.4 A Insuficincia da tese da afetao do servio pblico a valores
fundamentais como trao que o autonomiza de outras atividades
econmicas.....................................................................................
128
3.2.1.1.3.3.5 A Discricionariedade legislativa na criao do servio pblico....... 130
3.2.2 Os Servios uti singuli e uti universi e a Aplicao do Modelo
Concessrio..............................................................................................
134
3.2.2.1 A Relatividade da distino servios uti singuli e servios uti universi 135
3.2.2.2 A Superao do carter compulsrio do servio como bice
aplicao da concesso........................................................................
138
3.3 Ainda o Objeto da Concesso Comum: os Arranjos Possveis 148
3.3.1 A concesso pura de servio pblico....................................................... 149
3.3.2 A concesso de servios pblico precedida da execuo de obra
pblica.......................................................................................................
150
3.3.3 A concesso de obra pblica.................................................................... 151
3.3.3.1 A acumulao (no objeto da concesso) de obras sem vocao
explorao econmica.............................................................................
154
3.3.3.2 A acumulao no objeto do contrato de mais de uma concesso de
obra ou de servio pblico......................................................................
157
4. A CONFIGURAO SUBJETIVA DA CONCESSO COMUM.............. 159
4.1 A AFIRMAO DA BILATERALIDADE DA CONCESSO E A
SITUAO JURDICA DOS USURIOS................................................
159
viii
5. O SISTEMA REMUNERATRIO............................................................. 165
5.1 A TARIFAO DO SERVIO PBLICO: SERVIOS PRESTADOS
EM REGIME DE MONOPLIO E SERVIOS PRESTADOS EM
REGIME DE CONCORRNCIA...............................................................
165
5.2 A NATUREZA DA TARIFA........................................................................ 169
5.3 ALGUNS CONCEITOS OPERACIONAIS: TARIFA TCNICA, TARIFA
MDICA E TARIFA RAZOVEL..............................................................
171
5.4 A TARIFA SOB UM NGULO FUNCIONAL............................................. 175
5.5 A FIXAO DO MONTANTE DA TARIFA AS FRMULAS
USUALMENTE ACOLHIDAS...................................................................
175
5.5.1 O Mtodo de Fixao pelo Custo do Servio: rate of return ou cost plus.. 176
5.5.2 O Mtodo de Tarifa Mxima ou price cap................................................... 178
5.5.3 A Tcnica Regulatria do yardstick competition....................................... 181
5.6 AINDA A FIXAO DA TARIFA OS DIVERSOS ASPECTOS A
CONSIDERAR..........................................................................................
182
5.6.1 A Instituio Legislativa de Polticas Tarifrias.......................................... 183
5.6.2 As Tarifas Diferenciadas............................................................................ 184
5.6.3 O Recurso Extrafiscalidade na Tarifao: a Tarifa Social...................... 185
5.6.4 A Tarifa Extrafiscal em sua Vertente Predominantemente Regulatria.... 189
5.7 A HIPTESE DE RECEITAS ALTERNATIVAS A COMPLEMENTAR A
REMUNERAO DO CONCESSIONRIO............................................
191
5.7.1 As Receitas Alternativas na Lei n. 8987/95................................................ 193
5.7.1.1 Receitas oriundas de empreendimentos com vnculo material com a
execuo da concesso em si................................................................
193
5.7.1.2 Receitas sem vinculao direta com a concesso.................................. 195
5.7.2 A Implementao de Receitas Alternativas: Dever Jurdico do Poder
Concedente? ...........................................................................................
197
5.7.3 A Implementao de Receitas Adicionais Durante a Execuo do
Contrato de Concesso............................................................................
198
5.7.4 A Implementao de Receitas Adicionais Durante a Execuo do
Contrato de Concesso Restrio da Hiptese via Consensual........
200
ix
5.7.5 Ainda Acerca da Integrao de Receitas Alternativas nos Contratos de
Concesso Acolhimento de Frmulas que Promovam a Repartio
dos Ganhos Excedentes...........................................................................
201
5.7.6 A Integrao de Fontes Alternativas de Custeio Como Via
Recomposio da Equao Econmico-Financeira da Concesso.........
204
5.7.7 Um Paralelo Com o Regramento Espanhol Sobre o Tema...................... 206
5.7.8 A Hiptese da Remunerao do Concessionrio Ser Integralizada
Exclusivamente por Receitas Alternativas................................................
208
5.8 A PARTICIPAO DO PODER PBLICO NO CUSTEIO DA
CONCESSO...........................................................................................
209
5.8.1 A Orientao Legislativa Superveniente.................................................... 212
5.8.2 A Hiptese da Promoo Excepcional de Contraprestao Pecuniria
Provida pela Administrao no mbito da Concesso Comum................
214
5.8.3 A Converso de Uma Concesso Comum em Concesso Patrocinada... 220
5.8.4 A Possibilidade da Integrao na Concesso Comum de
Contraprestaes No-Pecunirias Providas pela Administrao...........
221
5.8.5 Possvel a Adio de Contraprestao Pecuniria a Ajustes que No
se Amoldem s Exigncias de Prazo e Valor Mnimo Previstos Para a
Configurao de uma PPP? ....................................................................
223
CAPTULO III: A CONCESSO PATROCINADA.............................................. 225
1. INTRODUO.......................................................................................... 226
2. A CONTRAPRESTAO PECUNIRIA DA ADMINISTRAO
COMO ATRIBUTO DO TIPO LEGAL DA CONCESSO
PATROCINADA.......................................................................................
227
2.1. A NATUREZA JURDICA DA CONTRAPRESTAO (PECUNIRIA)
DA ADMINISTRAO..............................................................................
229
3. A FINALIDADE DO INSTITUTO DA CONCESSO PATROCINADA.... 236
3.1 A CONCESSO PATROCINADA COMO INSTRUMENTO DE
POLTICAS PBLICAS............................................................................
242
3.1.1 Uma Questo Pressuposta: a Distribuio do nus do Custeio do
Servio Pblico.........................................................................................
243
3.1.2 A Concesso Patrocinada como Instrumento de Financiamento da
Socializao do Servio Pblico...............................................................
246
x
3.1.2.1 O Subsdio internalizado na concesso............................................... 247
3.1.2.2 Fontes externas ( concesso) de financiamento do servio............... 254
4. O OBJETO DA CONCESSO PATROCINADA...................................... 257
5. CONFIGURAO SUBJETIVA DA CONCESSO PATROCINADA..... 257
5.1 O PARCEIRO PBLICO QUEM PODE CELEBRAR UMA PPP........... 259
5.1.1 PPP e Administrao Indireta.................................................................... 260
5.1.1.1 Parceiro pblico como autarquia............................................................ 265
5.1.1.2 Parceiro pblico e empresas estatais..................................................... 267
5.1.1.3 A Fundao como sujeito de PPP.......................................................... 273
5.1.1.4 As demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Unio,
Estados, Distrito Federal e Municpios como sujeitos de PPP...............
276
5.1.1.5 Os Fundos especiais como sujeitos de PPP.......................................... 277
5.1.2 Os Consrcios pblicos como sujeitos de PPP......................................... 278
5.1.3 O Parceiro Privado da PPP: Empresas Estatais Podero Figurar Como
Parceiro Privado em Ajustes de PPPs?...................................................
279
6. O SISTEMA REMUNERATRIO DA CONCESSO PATROCINADA... 282
6.1 AS FORMAS DE CONTRAPRESTAO DA ADMINISTRAO........... 284
6.1.1 As Formas de Remunerao Como Matria Reservada Competncia
da Unio para Legislar sobre Normas Gerais..........................................
284
6.1.2 O Elenco Legal das Formas de Contraprestao..................................... 286
6.1.2.1 A Ordem bancria.................................................................................. 286
6.1.2.2 A Cesso de crditos no tributrios..................................................... 287
6.1.2.3 Outorga de direitos em face da Administrao Pblica........................... 289
6.1.2.4 Outorga de direitos sobre bens pblicos dominicais............................... 290
6.2 AS MODALIDADES DE CONTRAPRESTAO COMO CLUSULA
ECONMICO-FINANCEIRA DO CONTRATO.......................................
292
6.3 AS CONFIGURAES FINANCEIRAS DA CONTRAPRESTAO
PECUNIRIA DA ADMINISTRAO.....................................................
293
6.3.1 A Remunerao Atrelada ao Desempenho do Concessionrio................ 295
6.3.2 A Contraprestao da Administrao Ser Obrigatoriamente Precedida
da Disponibilizao do Servio..................................................................
299
6.3.2.1 O que deve ser entendido como contraprestao para a interpretao
xi
do art. 7 da lei n. 11079/2204? ............................................................ 301
CAPTULO IV - A CONCESSO ADMINISTRATIVA........................................ 304
1. CARACTERIZAO................................................................................ 305
1.1 A CONCESSO ADMINISTRATIVA: UM TIPO CONCESSRIO............ 306
2. O OBJETO DA CONCESSO ADMINISTRATIVA................................. 308
2.1 CONCESSO ADMINISTRATIVA DE SERVIOS ADMINISTRATIVOS
...........(PRESTADOS DIRETAMENTE ADMINISTRAO)............................
310
2.1.1 Diferenciao entre a Concesso Administrativa de Servios
Administrativos e o Contrato de Prestao de Servios Regido pela Lei
n. 8666/93..................................................................................................
311
2.2 CONCESSO ADMINISTRATIVA PARA A DELEGAO DE
SERVIOS PBLICOS ECONMICOS (TOMADOS
INDIRETAMENTE PELA ADMINISTRAO)........................................
314
2.2.1 Concesso Administrativa para Delegao da Gesto de Servios
Sociais e Servios Pblicos No-Econmicos (Tomados Indiretamente
pela Administrao).................................................................................
316
2.2.1.1 A delegabilidade da gesto de servios sociais: em especial, a
delegao de servios de sade e educao.....................................
318
2.2.1.2 A possibilidade da transferncia de atividades-fim da Administrao.... 322
2.2.1.3 Ainda a concesso administrativa aplicada aos servios sociais: as
vantagens do modelo concessrio no controle social da prestao dos
servios sociais.......................................................................................
333
2.3 A COMPLEXIDADE DO OBJETO DA CONCESSO
ADMINISTRATIVA A VEDAO CONTIDA NO INCISO III DO 4.
DO ART. 2. DA LEI 11079/2004..............................................................
335
2.3.1 A Concesso Administrativa de Prestao de Servios............................ 337
2.3.2 Prestao de Servios Precedida da Construo de Obra Pblica.......... 340
2.3.3 Prestao de Servios Precedida do Fornecimento (e Instalao) de
Bens...........................................................................................................
341
3. A CONFIGURAO SUBJETIVA DA CONCESSO ADMINISTRATIVA 341
3.1 QUEM PODE CELEBRAR UMA CONCESSO ADMINISTRATIVA.......... 342
4. SISTEMA REMUNERATRIO DA CONCESSO ADMINISTRATIVA..... 343
4.1 O RISCO COMO ELEMENTO DO SISTEMA REMUNERATRIO DA
xii
CONCESSO ADMINISTRATIVA............................................................. 344
PARTE III: O REGIME JURDICO DA PPP
CAPTULO I AS DIRETRIZES APLICVEIS.................................................. 349
1. O REGIME JURDICO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO
ENQUADRAMENTO DO TEMA................................................................
350
2. AS DIRETRIZES APLICVEIS S PPPS................................................ 351
2.1. PRINCPIOS E DIRETRIZES.................................................................... 352
2.2. EFICINCIA NO CUMPRIMENTO DAS MISSES DO ESTADO E NO
EMPREGO DOS RECURSOS DA SOCIEDADE ....................................
358
2.2.1 O Contedo Jurdico da Eficincia............................................................ 365
2.1.2 O Valor Segurana Jurdica e os Custos de Transao........................... 367
2.1.3 Eficincia, Economicidade e Administrao de Resultados...................... 376
2.3 RESPEITO AOS INTERESSES E DIREITOS DOS DESTINATRIOS
DOS SERVIOS E DOS ENTES PRIVADOS INCUMBIDOS DA SUA
EXECUO..............................................................................................
380
2.4 INDELEGABILIDADE DAS FUNES DE REGULAO E
JURISDICIONAL, DO EXERCCIO DO PODER DE POLCIA E DE
OUTRAS ATIVIDADES EXCLUSIVAS DO ESTADO.............................
383
2.4.1 O Cabimento da Gesto Privada de Servios de Suporte ao
Desempenho de Competncias Estatais em Programas de Parcerias
Pblico-Privadas Aplicados a Estabelecimentos Prisionais.....................
390
2.5 RESPONSABILIDADE FISCAL NA CELEBRAO E
EXECUO DAS PARCERIAS..............................................................
399
2.5.1 A PPP Como Via Histrica a Contornar Limitaes Fiscais (a
Experincia Europia) ..............................................................................
401
2.5.2 As Ferramentas de Controle Fiscal das PPPs no Direito Brasileiro.......... 404
2.5.3 O tratamento normativo pela Portaria STN n. 614/2006: os critrios que
permitem determinar quando uma PPP impactar o endividamento.......
407
2.5.3.1 A Regulao do tema pela via infra-legal a validade dos
critrios acolhidos pela norma................................................................
410
2.5.4 O Contedo Meramente Declaratrio da Regra do art. 25 Matria
Reservada Lei Complementar...............................................................
413
2.5.5 Os Compromissos Financeiros do Parceiro Pblico No se
xiii
Constituem em Operaes de Crdito...................................................... 415
2.5.6 Os Compromissos Financeiros Como Despesas Continuadas................. 417
2.5.7 A Classificao da Despesa Pblica Gerada em uma PPP Como
Despesa Corrente ou Despesa de Capital e sua Impertinncia para o
Controle sobre o Estoque da Dvida.........................................................
419
2.5.8 A Prescrio do Artigo 22 da Lei n. 11079/2004...................................... 423
2.5.9 A Constitucionalidade do art. 22 Matria No Reservada ao
Legislador Complementar.........................................................................
424
2.5.10 Prescrio do Artigo 28 Lei n. 11079/2004: Inconstitucionalidade
por Invaso Competncia do Legislador Complementar.....................
425
2.5.11 Necessidade de Autorizao Legislativa Especfica para as
Concesses Patrocinadas em que Mais de 70% da Remunerao do
Parceiro Privado for Paga pela Administrao Pblica..........................
427
2.5.12 A Exigncia do 3 do art. 10 da Lei n. 11079/2004 Extensvel s
Concesses Administrativas? .................................................................
429
2.6 A DIRETRIZ DE TRANSPARNCIA DOS PROCEDIMENTOS E DAS
DECISES
435
2.7 A DIRETRIZ DA REPARTIO OBJETIVA DE RISCOS ENTRE
AS PARTES..............................................................................................
438
2.7.1 A Distribuio dos Riscos Imprevisveis e o Princpio Constitucional
da Manuteno da Equao Econmico-Financeira do Contrato..........
441
2.7.1.1 O Princpio constitucional da manuteno da equao econmico-
financeira nas concesses comuns inaplicabilidade do art. 65 da
Lei n. 8666/93; possibilidade de distribuio de riscos extraordinrios
445
2.7.1.2 A intangibilidade da equao econmico-financeira nas PPPs a
possibilidade quanto repartio objetiva de riscos...........................
450
2.8 A DIRETRIZ DA SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA E VANTAGENS
SOCIOECONMICAS DOS PROJETOS DE PARCERIA.......................
452
CAPTULO II - LIMITES NEGATIVOS CONFIGURAO DAS PPPS 456
1. INTRODUO.......................................................................................... 457
2. HIPTESE DO INCISO I DO 4. DO ART. 2. DA LEI GERAL DE
xiv
PPP: QUANDO O VALOR DO CONTRATO FOR INFERIOR A R$ 20
MILHES..................................................................................................
457
2.1 O CONTEDO JURDICO DAS NORMAS GERAIS.................................. 458
2.2 O INCISO I DO 4. DO ART. 2 CONFIGURA NORMA GERAL?........... 464
2.3 SNTESE DOS FUNDAMENTOS QUE CONDUZEM AO
RECONHECIMENTO REGRA DO INCISO I DO 4. DO ART. 2..........
476
2.4 O QUE SE DEVE ENTENDER POR VALOR DO CONTRATO NA
DICO DA REGRA DO INCISO I DO 4. DO ART. 2?......................
477
3. HIPTESE DO INCISO II DO 4. DO ART. 2. DA LEI GERAL DE
PPP: QUANDO O PERODO DE PRESTAO DO SERVIO FOR
INFERIOR A 5 ANOS...............................................................................
480
3.1 A DELIMITAO DO PRAZO DA PPP..................................................... 481
CAPTULO III O REGIME DAS GARANTIAS NAS PPPS.............................. 484
1. INTRODUO.......................................................................................... 485
2. AS GARANTIAS AO PARCEIRO PBLICO........................................... 485
3. AS GARANTIAS (AO PARCEIRO PRIVADO) DAS OBRIGAES
PECUNIRIAS CONTRADAS PELA ADMINISTRAO PBLICA......
489
3.1 A VIABILIDADE QUANTO AO OFERECIMENTO DE GARANTIAS
PELO PARCEIRO PBLICO AO CUMPRIMENTO DE
CONTRAPRESTAES NO-PECUNIRIAS..........................................
491
3.2 GARANTIAS PRESTVEIS PELO PARCEIRO PBLICO COMO
CLUSULA FACULTATIVA DO CONTRATO DE PPP..............................
492
3.3 EXAME DA CONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE GARANTIAS.. 493
3.3.1 Pressupostos Hermenuticos ao Exame da Constitucionalidade............. 494
3.3.2 A Constitucionalidade do art. 8 da Lei n. 11079/2004 Especialmente
de seus Incisos I, II e V.............................................................................
500
3.4 AS MODALIDADES DE GARANTIAS PRESTVEIS AO PARCEIRO
PRIVADO...................................................................................................
505
3.4.1 A Vinculao de Receitas.......................................................................... 508
3.4.2 Instituio ou Utilizao de Fundos Especiais Previstos em Lei............... 513
3.4.3 Contratao de Seguro-Garantia com as Companhias Seguradoras
que No Sejam Controladas pelo Poder Pblico......................................
514
3.4.4 Garantia Prestada por Organismos Internacionais ou Instituies
xv
Financeiras Que No Sejam Controladas pelo Poder Pblico................. 516
3.4.5 Garantias Prestadas por Fundo Garantidor ou Empresa Estatal Criada
para essa Finalidade.................................................................................
517
3.4.5.1 O Fundo garantidor: natureza jurdica.................................................... 519
3.4.5.2 A Natureza da atividade desempenhada pelo fundo garantidor............ 522
3.4.5.2.1 O Fundo garantidor como prestador de atividades de apoio
Administrao......................................................................................
522
3.4.5.2.2 Fundo garantidor como prestador de atividade econmica em
sentido estrito......................................................................................
524
3.4.5.3 A Constituio do patrimnio do fundo garantidor................................ 529
3.4.5.4 O Regime dos bens do fundo garantidor.............................................. 530
3.4.5.5 A Constitucionalidade do fundo garantidor de PPPs............................. 535
3.4.5.5.1 A primeira oposio: suposta exigncia de lei complementar para a
instituio de fundo garantidor.............................................................
536
3.4.5.5.2 A segunda oposio: suposta ofensa ao art. 100 da Constituio...... 539
3.4.5. 6 Anlise da hiptese luz da Lei de Responsabilidade Fiscal:
especificamente o problema da concesso de garantias.....................
552
TESES E CONCLUSES................................................................................... 556
REFERNCIAS................................................................................................... 577
xvi
RESUMO
O objeto deste trabalho oferecer duas abordagens centrais a propsito do
novssimo tema da parceria pblico-privada: (i) a afirmao do contedo jurdico do
tipo legal da parceria pblico-privada no Direito brasileiro (introduzida no
ordenamento nacional pela Lei n. 11079/2004); e a (ii) a construo de um suporte
terico dogmtico-hermenutico a trs aspectos nucleares do regime jurdico das
parcerias pblico-privadas: (a) as diretrizes aplicveis; (b) as hipteses de vedao
do uso do tipo legal da PPP; a (c) o sistema especial de garantias. Esses
enfrentamentos tm por pressuposto os novos mbitos de referncia leitura
hermenutica do instituto do contrato administrativo, propondo-se, neste domnio, o
acolhimento de uma hermenutica funcionalista, que o compreenda como um
instrumento vocacionado a produzir resultados econmicos eficientes ao interesse
coletivo. O primeiro enfoque prope uma anlise acerca da configurao jurdica do
modelo concessrio, seguindo a caracterizao mais especfica dos tipos
concessrios da concesso comum de servio pblico, da concesso patrocinada e
da concesso administrativa (estas, espcies de parceria pblico-privada),
examinados estruturalmente quanto ao objeto, sujeitos e sistema remuneratrio.
Neste objetivo sero fornecidos os ndices centrais de seus tipos, necessrios a
compor a hiptese de incidncia (antecedente) de seu regime jurdico
(conseqente). Explorar-se-, a par disso, a alterao do contedo jurdico do
modelo concessrio em face do advento da Lei n. 11079/2004, que no s lhe
introduziu duas novas espcies concessrias, como produziu modificao
substancial no tratamento jurdico da concesso comum, subtraindo de seu tipo legal
os arranjos (tipos fticos) que pressuponham a participao pecuniria do Poder
Pblico como fonte do custeio da concesso hiptese absorvida pela hiptese da
concesso patrocinada. O segundo enfoque pretende construir um suporte terico
para a afirmao de teses especficas relacionadas aos trs (referidos) aspectos
centrais do regime jurdico da PPP. Afirmar-se-o, assim, as teses da (i)
constitucionalidade das novas espcies concessrias; da (ii) compatibilidade da
repartio de riscos com o princpio constitucional da intangibilidade da equao
econmico-financeira do contrato administrativo; (iii) do carter de norma geral das
regras dos incisos I e II do 4. do art. 2. da Lei Geral de PPP; e (iv) da
constitucionalidade do sistema de garantias previsto pela Lei geral de PPP (inclusive
do instituto do fundo garantidor de parcerias pblico-privadas).
xvii
SUMMARY
The intent of this work is to offer two main broaches on the matter of the
newest public-private partnership theme: (i) the legal content assertion of a legal kind
of public-private partnership on the Brazilian law (inserted nationally by the Law no.
11079/2004); (ii) a construction of a dogmatical-hermeneutical theoretical support by
three nuclear aspects of the public-private partnership legal system: (a) the
applicable guidelines; (b) the prohibition hypothesis on the use of the PPP legal kind;
(c) the special warranties syste. These confrontments have new assumptions on
reading hermeneutical references from the administrative contract institute,
proposing, on this matter, the acceptance of a functional hermeneutical, that
understand it as an instrument intended to produce efficient economic results to
common interest. The first approach, analyses the legal constitution of the
concession model, following the most specific act of concession kinds, the common
concession of public services, sponsored concession and government concessions
(public-private partnership), the object structurally examined, matters and
recompense system. On this purpose the main index types will be supplied,
necessary to compound the incidence hypothesis (preceding) of your legal system
(resulting). The alteration on the content of the legal concession model will be
explored on Law n. 11079/2004, that not only introduced two new kinds of
concession as well as produced substantial modifications on the legal treatment of
the common concession, subtracting of its legal kind the arrangements (fact kinds)
that assumed Governments pecuniary share as source of the concession costs
absorbed by the sponsored concession hypothesis. The second approach intend to
built a theoretical support to the assumption of the specific related theses to the three
mentioned main aspects of the legal system of PPP. Asserting the theses of (i)
constitutionality of the new concession kind; (ii) compatibility of the divided risks with
the constitutional principle of the intangibility equation economic-financial of the
administrative contract; (iii) the character of general norm of the ruling on incesed I
and II of 4. from art. 2. of The General law of PPP; (iv) system constitutionality
warrants foreseen by this law (inclusive the Instituto do fundo garantidor of the
public-private partnership.
1
INTRODUO
1. APRESENTAO DO TEMA
Na era do expansionismo e do desenvolvimento, ultrapassado o tempo das
grandes privatizaes e o surto da descentralizao, num estgio em que j se
experimenta certo amadurecimento nas relaes de cooperao entre o Estado e os
particulares (contratualismo), os figurinos clssicos do contrato administrativo no
mais atendem s necessidades da Administrao Pblica. Postula-se a sofisticao
dos negcios administrativos como uma reivindicao da racionalidade econmica
do Estado. Sob os paradigmas emergentes, brota o interesse desta nova
Administrao Pblica pela recriao das tcnicas contratuais, que devem favorecer
a eficincia, a economicidade, o consensualismo e a gesto de resultados nesses
novos tempos do Direito Administrativo.
neste contexto que surgem as parcerias pblico-privadas como contratos
administrativos desenvolvimentistas de segunda gerao. Sua atualidade
compartilhada por diversos pases do mundo; especialmente os europeus. Surgido
em traos centrais no Direito anglo-saxo, o modelo das public-private-partnership
rapidamente se proliferou por outros ordenamentos, penetrando, mais recentemente
precisamente com o advento da Lei n. 11079/2004 -, o Direito nacional. A temtica
relaciona-se com a incapacidade dos Estados no financiamento de projetos
estruturantes, buscando-se no setor privado a partilha de riscos e dos investimentos
suficientes a permitir o incremento da infra-estrutura pblica.
No Direito brasileiro, a parceria pblico-privada nasce como uma espcie do
modelo concessrio. Suas duas tipologias -- concesso patrocinada e concesso
administrativa - servem, respectivamente, a integrar a participao do Estado no
custeio de projetos concessrios deficitrios, e a viabilizar a associao da tcnica
concessria ao custeio integral da execuo do contrato pelo Poder Pblico
(estendendo-se a lgica concessria a atividades que tradicionalmente no se
configuravam como passveis do sistema tarifrio). A compreenso desse modelo
pressupe todo um evolutivo processo de transformao das dimenses do Estado
evidenciado nos ltimos anos.
2
2. CONTEXTUALIZANDO AS PPPS
Muito j se debateu acerca das recentes transformaes sofridas pelo
Estado. H o reconhecimento do declnio do Estado-prestador e do ressurgimento
de um Estado modesto, mnimo ou, simplesmente, suficiente. Um dos pilares que
sustentou o movimento de reduo das dimenses do Estado foi a proposta para a
otimizao dos servios pblicos anelada superao da insuficincia do Estado no
custeio de uma prestao direta em obras e servios. Do processo de
desestatizao promovido em inmeros pases decorreram a venda de empresas
estatais e a transferncia da prestao de servios pblicos ao setor privado. Alm
disso, verificaram-se quebra de monoplios e desregulao do mercado,
introduzindo-se a concorrncia em determinados servios pblicos a partir da
atenuao de barreiras regulatrias.
O Brasil no ficou margem desse processo. O Estado brasileiro iniciou seu
movimento de privatizao ao final de 1979, a partir da criao do Programa
Nacional de Desburocratizao1. Embora esse processo no tenha apresentado
resultados expressivos, arrastando-se por mais de dez anos com um saldo de
apenas quarenta e seis empresas privatizadas, gerando valores inferiores a US$
800 milhes, a iniciativa foi retomada no incio da dcada de 90, com o lanamento
do Programa Nacional de Desestatizao (PND)2. Todavia, a ausncia de
planejamento (jurdico, sobretudo) adequado, aliado ao insucesso do plano de
estabilizao do governo federal (Plano Collor), impediu resultados satisfatrios do
Programa. Os valores resultantes somaram aproximadamente US$ 8,6 bilhes, pela
venda de trinta e trs empresas federais (com a transferncia para o setor privado
de US$ 3,3 bilhes em dvidas). Somente a partir de 19953, sob um suficiente
planejamento estatal, num movimento apoiado e seguido pela maioria dos Estados-
membros, com a criao inclusive de programas de desestatizao locais, iniciou-se
um efetivo e denso processo de privatizao de empresas do Estado e de
1 Criado pelo Decreto n. 83740/79. 2 Criado pela Lei n. 8031/90, seus principais objetivos foram o ordenamento estratgico da
economia, a reduo da dvida pblica, a retomada dos investimentos nas empresas privatizadas, a modernizao da indstria e o fortalecimento do mercado de capitais.
3 Em 1995, com a edio da MP n. 841/95, houve mudanas especficas na conduo do PND. Tambm a Lei n. 9491/97 redefiniu posteriormente o Programa.
3
transferncia da prestao direta de servios esfera privada, produzindo
resultados surpreendentes.4
Ressurgem da as concesses como um dos instrumentos largamente
utilizados pela recriao do Estado, promovendo-se a substituio de uma
responsabilidade de execuo no tocante s tarefas pblicas por uma
responsabilidade-garantia. O processo se faz acompanhar de um marco regulatrio,
em que entes independentes concentram poderes de tutela sobre setores
estratgicos. Os resultados positivos desse processo passam a ser considerados,
virando-se a pgina na histria do Estado para consolidar um amplo conjunto de
reformas estruturais.
Neste domnio, verifica-se, ainda, a busca do Estado pelo instrumentrio do
Direito privado. O progressivo recurso a formas de direito privado na atuao estatal,
caracterizando o que se batizou no passado de fuga para o direito privado5, introduz
o direito administrativo numa renovada esfera de relao com os privados. Do
clssico conceito de contrato administrativo evolui-se para novos instrumentos de
parcerizao entre o pbico e o privado.
Numa segunda etapa desse processo, o contraponto da ausncia de
suficiente fluxo de recursos pblicos necessidade de expanso e desenvolvimento
dos Estados, calcado primordialmente na execuo de obras e servios de infra-
estrutura, conduziu busca por novos instrumentos de financiamento do setor
pblico. Algumas iniciativas, como a do Reino Unido, desenvolveram projetos de
parcerizao entre o Estado e empresas privadas (Private Finance Initiative6),
4 Dados tirados das seguintes obras: GIAMBIAGI, de Fabio e ALM, Ana Clusia. Finanas
pblicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 383 e ss. PPP: unindo o pblico e o privado, in RAE, vol. 3, abril/2004. So Paulo: Fundao Getlio Vargas, 2004, p. 26 e 27. CASTRO, Lavnia Barros de. Privatizao, Abertura e Desindexao: a primeira metade dos anos 90, in Economia brasileira contempornea (1945-2004). Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 146 e ss.
5 A expresso no nova, remontando ao perodo ps Primeira Grande Guerra tendo sido usada por FRITZ FLEINER (die Flucht in das Privatrecht).
6 Regulamentada em 1993 e efetivamente implementada ao final de 1994, a Private Finance Initiative veio a suplantar a sistemtica das Ryrie Rules conjunto de regras que estabeleciam critrios para a participao de financiamento privados em empresas estatais. Na etapa inicial de sua implementao, a ausncia de suficiente coordenao, marcada pela ineficincia na tarefa de priorizao de alguns projetos (quando inmeros empreendimentos em PFI estavam se desenvolvendo de forma rpida e concomitante), levou a resultados indesejados. O governo ingls, j sob a gide do Labour Government, anunciou, em meados de 1997, a necessidade de proceder a uma profunda reviso nos projetos de PFI. Como resultado, produziu-se um detalhado Relatrio (Bates Report), onde constaram inmeras recomendaes para o aperfeioamento das PFI/PPP. A partir de sua edio, criou-se um departamento prprio de suporte dentro do Tesouro Ingls (Treasury Taskforce) com o objetivo de desempenhar funes de coordenao e superviso das
4
buscando-se solues ao dficit pblico limitador do desenvolvimento. Outros pases
europeus desenvolveram frmulas similares, ressentidos da perda da capacidade de
investimento (premidos pela necessidade de impor limites ao dficit pblico para
equacionar o oramento) gerada, sobretudo, pelo Pacto de Estabilidade e
Crescimento (PEC), surgido em 1997 no direito comunitrio. Planta-se, nesse
cenrio, a noo de uma frmula contratual universalmente batizada de Public
Private Partnership7.
No Brasil no foi diferente, tendo o Estado nacional de recorrer a esta
modalidade de contratao de molde a superar os bices a um crescimento
sustentado, cumprindo-se polticas desenvolvimentistas. Sob esse contexto,
nasceram inmeras leis estaduais e municipais e a Lei Federal n. 11079/2004, que
instituiu normas gerais (e federais) para licitao e contratao de parceria pblico-
privada.
O estudo do modelo apresenta, assim, no s uma dimenso jurdica, que
se evidencia na evoluo construtiva dos instrumentos de parcerizao entre setor
pblico e privado, mas tambm uma dimenso econmica, retratada na sua vocao
a configurar um certo modo de financiamento de infra-estrutura pblica, e outra
poltica, por significar a PPP uma tcnica afetada poltica desenvolvimentista.
Todos estes ngulos esto absorvidos na sua vocao jurdica e sero, em alguma
medida, tematizados nos enfrentamentos que seguem.
PFIs. Esse rgo foi posteriormente substitudo, em junho de 2000, a partir de uma segunda reviso levada a efeito pelo governo ingls acerca das PFI/PPP (realizada em julho de 1999 e presidida pelo mesmo signatrio do Relatrio de junho de 1997, Malcolm Bates), por uma organizao permanente at hoje em atividade: a Partnerships UK (trata-se de uma sociedade de capital misto, com composio majoritariamente privada, que detm funo de planejamento, negociao e implementao dos projetos de PPPs).
Num perodo de aproximadamente dez anos, foram assinados quinhentos e sessenta e oito projetos pela modalidade de PFI, correspondendo a um capital equivalente a trinta e seis bilhes e meio de libras (The Private Finance Initiative (PFI), GRAHAME ALLEN, Economic Policy and Statistics Section House of Communs Library. Londres, 27 de outubro de 2003). Houve significativos investimentos nas reas de sade, defesa, educao, trabalho, previdncia, presdios, meio ambiente e, principalmente, transportes setor que ocupou um tero do valor do total investido. Atualmente, investem-se valores da ordem de seis bilhes de dlares americanos anuais, sendo que cerca de setenta por cento do valor total dos contratos de responsabilidade do governo central. (A lista integral dos projetos de PFI assinados at 4 de abril de 2003 no Reino Unido pode ser encontrada no site do Office of Government Commerce (OGC): www.pfi.ogc.uk).
7 A noo no remete a um conceito unitrio de PPP. H ncleos de identidade nos regimes jurdicos dos Estados que a adotaram, no se podendo, no entanto e obviamente, aludir a um modelo comum.
5
3. AS TESES PROPOSTAS E SUA FISIOLOGIA
As abordagens que caracterizam o presente trabalho no pretendem compor
o que se poderia chamar de uma teoria geral das parcerias pblico-privadas. A
novidade do tema, certamente, est a reivindic-la. Mas este objetivo por demais
amplo e exigente, e transcende, em muito, os limites de uma tese de doutoramento.
At porque a construo de uma teoria desta natureza, supondo-se um tema ainda
em estado bruto, fruto de um processo evolutivo, que se consolida pela
contribuio paulatina e dialtica (no sentido hegeliano, mesmo) da doutrina8. O
propsito, aqui, mais tmido e mais especfico. Do vasto campo temtico associado
ao instituto da parceria pblico-privada, pretendo oferecer dois enfoques especficos,
propondo duas teses centrais a este trabalho (mediadas por outros enfrentamentos
de suporte):
(i) a afirmao do contedo jurdico do tipo legal da parceria pblico-privada
no Direito brasileiro, esforo que buscar extrair do ordenamento jurdico-positivo a
sua essncia jurdica (constitucional e legal), acomodando-a sistemicamente ao
regime jurdico do contrato administrativo identificando construtivamente as
refraes e modulaes produzidas pelo advento da Lei n. 11079/2004 no mbito do
regime do contrato administrativo, mais particularmente no mbito do regime
concessrio (que identifica um ncleo de tratamento comum s espcies da
concesso comum de servio pblico, concesso patrocinada e concesso
administrativa). Neste enfrentamento, ser afirmada, como tese especfica, a
constitucionalidade do modelo da parceria pblico-privada; e
(ii) a construo de um suporte terico a trs aspectos centrais do regime
jurdico das parcerias pblico-privadas: (a) as diretrizes aplicveis; (b) as hipteses
de vedao do uso do tipo legal da PPP; a (c) o sistema especial de garantias,
fazendo uso de (ii.1) uma interpretao funcionalista do contrato administrativo --
que o toma por uma tcnica de mediao entre uma racionalidade jurdico-formalista
e a racionalidade econmica que orienta as aes da Administrao Pblica --,
favorecida por uma renovada dogmtica do contrato administrativo.
8 Talvez se possa dizer que se oferecem com esta(s) tese(s) alguns fragmentos para semear
a fecundao de uma teoria geral das PPPs.
6
Na explorao analtica dos tpicos (a), (b) e (c), teses hermenuticas
especficas podem ser identificadas, como a que (a.1) advoga a constitucionalidade
da repartio objetiva de riscos nos contratos de PPP; a que (b.1) sustenta o carter
de norma geral da regra dos incisos I e II do 4. do art. 2. da Lei Geral de PPP art.
4.; a que (c.1) sustenta constitucionalidade do sistema de garantias.
A tese (i) est desenvolvida ao longo da Parte II. A tese (ii) utiliza de
algumas premissas fixadas na Parte I com vistas a favorecer os enfrentamentos
desenvolvidos na Parte III, especialmente (a), (b) e (c).
Em sntese, a partir dois enfoques propostos, identificar-se-o quatro teses
especficas: (1) afirmao da constitucionalidade do modelo da parceria pblico-
privada; (2) afirmao da compatibilidade da repartio objetiva de riscos com o
princpio constitucional da intangibilidade da equao econmico-financeira do
contrato administrativo; (3) afirmao do carter de norma geral das regras dos
incisos I e II do 4. do art. 2. da Lei Geral de PPP; e (4) afirmao da
constitucionalidade do sistema de garantias previsto pela Lei geral de PPP (inclusive
do instituto do fundo garantidor de parcerias pblico-privadas).
4. A ESTRUTURAO DO TRABALHO: O PLANO
A abordagem recebeu uma segmentao em trs grandes partes.
Numa primeira Parte a que denomino de A Era das Parcerias por uma
nova exegese dos contratos administrativos --, procurarei demonstrar que o advento
da parceria pblico-privada reclama o re-enquadramento da teoria do contrato
administrativo sob os paradigmas emergentes, evidenciando que a velha dogmtica
do contrato administrativo no mais adequada para explicar a verso ps-moderna
do instituto, muito menos o para acolher um contrato desenvolvimentista de
segunda gerao, como a parceria pblico-privada.
O reconhecimento desta proposta parte de um diagnstico acerca da
construo da teoria do contrato administrativo no Direito brasileiro atrelada a
postulados que informaram uma Administrao unilateral. A nova era do contrato
administrativo, trazida pelos ventos dos novos paradigmas em ascenso, reivindica
uma dogmtica que o considere como uma tcnica (instrumental) vocacionada
produzir eficientemente efeitos econmicos, facilitando os negcios do Estado.
7
fruto de um momento histrico em que o Estado, incomodado com a escassez,
incorpora uma racionalidade econmica, pragmtica, realista, aproximando-se dos
mercados para alcanar economia e eficincia em suas trocas. neste contexto, em
que conversam sistemicamente o Direito e a Economia, que deve brotar uma nova
teoria do contrato administrativo, cujos fragmentos podem ser colhidos ao longo da
primeira Parte desta tese.
Ainda nesta Parte I, afirmada a necessidade da consolidao de uma
dogmtica contempornea do contrato administrativo, pretendo avanar para
enquadrar a parceria pblico-privada como um instrumento jurdico-econmico que
serve ao Direito do desenvolvimento. Esse modelo inaugura assim um tipo jurdico
que se poderia batizar de contrato desenvolvimentista de segunda gerao,
vocacionado recuperao e expanso de infra-estrutura pblica, permitindo-se
alcanar a superao dos gargalos de logstica e preparar a rota desenvolvimentista
traada como programa de governo. Este tipo de contrato depende de uma forte
sintonia do Estado com o setor-privado parceiro. O contratado deixa de ser mero
colaborador do Poder Pblico (ao encarregar-se da prestao de atividades estatais)
para tornar-se, na configurao das parcerias, verdadeiro parceiro. Por isso,
reclama-se uma dogmtica desprendida dos velhos dogmas do direito
administrativo, com a condio de promover a reconciliao entre Poder Pblico-
contratante e mercado-contratado. Com as tcnicas jurdicas inerentes s parcerias
pblico-privadas, busca-se alcanar a dissipao de uma srie de frices que
dificultavam o relacionamento eficiente entre estes lados.
Em uma Segunda Parte Caracterizao dos Tipos Concessrios , inicio
propriamente um exame voltado a decifrar, de um prisma lgico-normativo, o
contedo jurdico da parceria pblico-privada. Compreende-se aqui o exame de
cada um dos tipos concessrios (a) concesso comum de servios pblicos; (b)
concesso patrocinada; e (c) concesso administrativa -, complementados e re-
organizados sistematicamente a partir do advento da Lei n. 11079/2004.
No objetivo de oferecer uma viso taxonmica e analtica da parceria
pblico-privada, a partir tambm do modelo concessrio que lhe serve de base,
dividi esta Parte em 4 Captulos. O Captulo I pretende examinar a verso
contempornea do modelo concessrio, j informado pelas alteraes jurdicas
prescritas pela Lei n. 11079/2004. Dedica-se busca pela raiz jurdica da PPP, que,
8
classificada pela lei como um tipo concessrio, mereceu a atrao de uma disciplina
especfica e abrangente dos contratos concessrios (classe-gnero dos contratos de
concesso). O Capitulo II, o Captulo III e o Captulo IV dedicam-se ao exame
jurdico dos tipos da concesso comum de servio pblico, da concesso
patrocinada e da concesso administrativa, respectivamente, cuja estrutura de
anlise foi decomposta em objeto, configurao subjetiva e remunerao. No
enfrentamento destes modelos, h uma ateno particular aos seus aspectos
remuneratrios aprofundando-se a anlise tarifria e aquela relativamente s
fontes de financiamento e custeio da execuo de servios pblico e servios ao
Estado -, uma vez que a configurao jurdico-normativa da PPP gira em funo das
novas tcnicas de financiamento quanto execuo de servios e empreendimentos
estruturantes.
J em uma Terceira Parte, h o exame de aspectos relevantes do regime
jurdico da parceria pblico-privada, sem os quais no seria possvel uma
compreenso adequada de seu contedo jurdico. Trata-se de examinar o catlogo
de diretrizes prescrito, as hipteses de vedao e o sistema especial de garantias. O
enfrentamento das diretrizes ser desdobrado em anlises especficas sobre alguns
aspectos temticos relevantes. Assim se passa com o Direito da Responsabilidade
Fiscal e com o Direito do Equilbrio Financeiro Contratual (envolvido na anlise da
diretriz que impe a repartio objetiva de riscos entre as partes).
Fecha-se o trabalho com a anotao das concluses sinteticamente
extradas dos raciocnios e das teses defendidas pontualmente em cada um dos
enfrentamentos relevantes que marcaram o seu desenvolvimento analtico.
9
PARTE I
A ERA DAS PARCERIAS: POR UMA NOVA
EXEGESE DO CONTRATO ADMINISTRATIVO
10
1. INTRODUO
A parceria pblico-privada inaugura um novo tempo da contratao
administrativa. Seu advento reivindica uma nova dogmtica do contrato
administrativo, que exige no s a renovao de alguns de seus clssicos
postulados, como a ampliao de seu mbito de abrangncia para abraar os
novssimos contratos administrativos de segunda gerao, que, muito alm de
corporificarem instrumentos da rotineira atividade administrativa, configuram tcnicas
de parcerizao entre o poder pblico e o setor privado, para a execuo de projetos
estruturantes e a realizao de polticas de desenvolvimento. So contratos de uma
nova era do Direito Administrativo; de um novo Direito do Contrato Administrativo.
O esforo em preencher de significao o contedo jurdico da parceria
pblico-privada no prescinde, portanto, da tarefa de harmoniz-la com a teoria do
contrato administrativo; no com uma teoria marcada pelo obsoletismo, fruto de
concepes j superadas e que sempre cresceu sombra da teoria do ato
administrativo -, mas de uma teoria remodelada luz dos paradigmas emergentes.
necessrio, ento, fixar suas razes tericas numa dogmtica capaz de traduzi-la, na
complexidade que lhe prpria, no apenas como um contrato administrativo
ordinrio, mas como uma tcnica manejada pelo direito do desenvolvimento que j
lhe justifica um tratamento jurdico peculiarmente distinto dos demais contratos
administrativos.
Esta misso supe, de um lado, a reviso daquilo que se poderia chamar de
parte geral da teoria do contrato administrativo, reconstruindo certos postulados
luz de tendncias paradigmticas da atualidade; e, de outro, o investimento na
edificao de uma parte especial da teoria do contrato administrativo, capaz de
acolher e explicar os contratos administrativos desenvolvimentistas (de segunda
gerao).
Estas abordagens pretendem fazer emergir uma hermenutica funcionalista
do contrato administrativo, que o compreenda como um instrumento vocacionado a
produzir resultados econmicos eficientes ao interesse coletivo. Debaixo desta
hermenutica, deve o contrato ser lido no apenas segundo uma racionalidade
exclusivamente jurdica (e excessivamente ritualstica), mas, tambm, a partir de
11
uma racionalidade econmica que guia as aes instrumentais estatais com vistas
ampliao dos benefcios coletivos e sociais.
preciso lembrar que o florescimento dos modelos contratuais que
prevaleceram historicamente no Direito brasileiro deu-se em poca marcada por um
contexto poltico, econmico e jurdico bastante diferente do que vivemos hoje.
Especialmente ao longo da segunda metade do sculo XX, quando se firma no
Direito Nacional uma teoria do contrato administrativo, no seria errado reconhecer o
prevalecimento de uma Administrao de perfil burocrtico e unilateral. Sob este
contexto desenvolveu-se a dogmtica do contrato administrativo, cujas bases
estendem-se at os dias atuais.
Uma leitura histrico-evolutiva do processo de acomodao da teoria do
contrato administrativo no direito nacional, assim como de suas sucessivas
recriaes para atender transformao formal do direito, demonstra sua dificuldade
em desgarrar-se dos dogmas e postulados de uma Administrao unilateral.
Testemunhamos ao longo do ltimo sculo o esforo em modelar o contrato no seio
de um regime jurdico configurado sobre premissas que fundaram uma
Administrao unilateral. Sua teoria, neste domnio, surge mais como um apndice
da teoria do ato administrativo que como a tentativa de substancializar a figura do
contrato administrativo. Empresta do direito das providncias unilaterais a essncia
de suas bases tericas.
Ou seja: o contrato administrativo vem sendo lido pelas lentes da teoria do
ato administrativo; a ele tem-se reconhecida a aplicao de postulados inconciliveis
com a racionalidade do contrato. Esse quadro tem inibido historicamente a tcnica
do contrato administrativo como um instrumento para a realizao eficiente de
operaes econmicas. O aprisionamento da vocao do contrato nas teias da
teoria do ato administrativo minimiza-lhe funes econmicas cruciais para o
desempenho instrumental de seu papel na economia do Estado9.
9 No se nega a suscetibilidade do contrato administrativo s interferncias de outras
disciplinas impostas atividade administrativa, como a disciplina das finanas pblicas, da processualidade administrativa etc, o que certamente impe-lhe condicionantes que afetam seu regime jurdico. Mas h aspectos do tratamento jurdico do contrato em si com referibilidade num regime jurdico edificado a atender uma Administrao unilateral, incompatveis com a sua vocao, que tm sufocado historicamente esta tcnica como uma via para instrumentalizar operaes econmicas (sob uma lgica de incentivos) com ganhos para as partes envolvidas.
12
Considerando, ento, esse diagnstico, este Captulo pretende oferecer
algumas propostas de superao do rano de unilateralidade que tem marcado a
compreenso de aspectos da dogmtica do contrato administrativo. Talvez seja este
um momento histrico para refundar a teoria do contrato administrativo, interativa
com as formas organizacionais dos mercados e sensibilizada pela dimenso
conseqencialista do Direito.
Estas propostas partem do reconhecimento da dupla face do contrato (como
operao econmica e como operao jurdica), considerada a partir da co-
existncia de uma racionalidade econmica e outra jurdica do Estado. A via jurdica
do contrato, neste contexto, deve der lida finalisticamente como uma tcnica para a
realizao (e facilitao) de operaes econmicas, que tem referibilidade, dado seu
carter instrumental, na racionalidade econmica do Estado.
Assim, em uma primeira parte a que intitulo de diagnstico , fornecerei
um breve exame histrico-evolutivo a propsito da penetrao da teoria do contrato
administrativo no Direito brasileiro, destacando-se os caminhos dogmticos
percorridos na construo terica do instituto do contrato administrativo no Direito
nacional. Os destaques, nesta exposio, ficaro para a dificuldade em se construir
um regime contratual de Direito pblico (fundado em premissas de uma
Administrao unilateral).
Em uma segunda parte, tentarei oferecer algumas propostas hermenuticas
ao contrato administrativo. Neste objetivo, o contrato administrativo dever ser re-
enquadrado (juridicamente) no mais como uma mera forma burocrtica de agir,
destituda de interao funcionalista com seus fins econmicos, mas como tcnica
instrumental de realizar eficientemente operaes econmicas, e que se auto-
alimenta tambm da experincia econmica, partir de uma dimenso
conseqencialista do raciocnio jurdico.
Em uma terceira parte, como mero complemento, explicarei a parceria
pblico-privada como um contrato desenvolvimentista de segunda gerao, que,
muito alm de retratar uma tcnica contratual ordinria que deve, sob a nova
perspectiva da teoria do contrato administrativo, perseguir resultados eficientes --,
materializa um instrumento para o desenvolvimento, prestando-se realizao de
um fim programtico da Constituio. Seu tratamento jurdico h ser peculiarmente
informado tambm por essa funcionalidade que lhe inerente.
13
Passo a tratar, brevemente, de um retrospecto histrico-dogmtico do
contrato administrativo no Direito nacional.
2. O DIAGNSTICO: O FORJAMENTO DA TEORIA DO CONTRATO
ADMINISTRATIVO
A construo de um regime do contrato administrativo no Direito brasileiro
esteve associada historicamente penetrao da teoria geral do contrato
administrativo (de inspirao francesa) na dogmtica dos contratos da
Administrao10. Sua evoluo dogmtica partiu de um esforo de enquadramento
do instituto no seio de um regime de direito administrativo edificado sobre bases
jurdico-pblicas (informada fundamentalmente pelo postulado da supremacia do
interesse pblico sobre o interesse do particular), o que exigiu a modulao de
certas caractersticas do contrato.
Pode-se apanhar que, nesse processo de adaptao-acomodao do
contrato no arcabouo terico do direito administrativo, certas caractersticas
jurdicas lhe foram amputadas, capturando-se na projeo das vinculaes jurdico-
pblicas e na fora jurdica do princpio vetor da supremacia do interesse pblico
sobre o interesse do particular a tutela da estabilizao dos efeitos do pacto. Isto :
o enquadramento do contrato no regime jurdico-administrativo significou a
referibilidade da estabilidade dos efeitos do contrato (da fora jurdica do avenado
pelas partes) tutela do interesse pblico, dinamizando-se o vnculo jurdico-
contratual.
Isso resultou em dotar o regime do contrato administrativo de uma regulao
singularizada daquela que condiciona o contrato de direito privado.
No tocante formao do contrato, o ambiente de negociabilidade prprio
da formao e configurao do pacto foi re-formatado a partir da imposio de
procedimentos conformadores da manifestao da vontade normativa da
Administrao. Reconduz-se a ampla latitude de negociao que marca a relao
pr-contratual entre os privados (resultado de uma relao de mera no-contradio
legal, como vertente do princpio da legalidade aplicado ao mundo privado) aos
estreitos lindes dos procedimentos formais, aprisionando-se a liberdade de
10
Ver itens 3.1.1 e 3.1.2 do Captulo I da Parte II.
14
negociao da Administrao. Assim, o contrato administrativo nasce como um
produto do processo administrativo de licitao (ou de contratao direta, mas, ainda
assim, procedimentalizada), sendo que suas clusulas, muito embora possam
indiretamente sofrer influncias externas (pelo efeito de audincias pblicas etc.),
so configuradas unilateralmente pela Administrao e postas disposio dos
interessados.
Um dos traos marcantes da heterogeneidade do contrato administrativo
refere validade. Tal como se passa com os atos administrativos, o regime de
validade dos contratos pblicos atrai a regulao de Direito Pblico, donde se deve
olhar para a competncia do ente, do rgo e do agente que o realiza. Alm disso,
h que se obedecer ao processo de formao do contrato em todo o seu
regramento, no sendo possvel que o contrato resulte em desconformidade com os
termos do Edital e/ou da proposta (salvo as hipteses permitidas pela legislao).
Tambm, os contratos administrativos, para serem vlidos, ho de cumprir com as
questes de formalizao e de fixao de contedo e prazo conforme a disposio
legal.11
J de um ponto de vista da relao jurdico-contratual (visto o contrato sob
um enfoque dinmico), o tratamento jurdico que lhe foi dispensado traduziu no s
o condicionamento da conduta administrativa acerca de uma srie de providncias
atinentes execuo contratual, como dotou a Administrao de poderes
exorbitantes (relativamente ao regime contratual do direito privado), retratados na
previso da legislao geral (art. 58 da Lei n. 866/93) das competncias
administrativas de alterao (inc. I), de resciso (inc. II), de fiscalizao (inc. III), de
aplicao de sanes (inc. IV) e de ocupao provisria de bens, na hiptese de
servios essenciais - quando se verificar a necessidade de acautelar apurao
administrativa e faltas contratuais pelo contratado, assim como na hiptese de
resciso do contrato administrativo (inc. V). Estas competncias exteriorizam-se e
produzem efeitos relativamente ao contratado independentemente de autorizao
judicial. Conformam, assim, atos auto-executrios.
Comparativamente ao contrato de direito privado, percebe-se ento que todo
esse excesso de regulao condicionante do contrato administrativo justificou-se, de
11 Conforme SUNDFELD, Carlos Ari. Licitao e Contratos Administrativos. 2. ed. So Paulo:
Malheiros, 1994, p. 217 a 225.
15
um lado, com vistas a constranger a vontade administrativa a tomar certos caminhos
procedimentais, evitando-se decises fundadas em escolhas livremente arbitradas
pelo administrador (reduzindo-se os riscos de desvios de tica etc.), e, de outro, no
propsito de evitar que o interesse pblico subjacente relao jurdico-contratual
reste refm da estabilidade (imutabilidade) do contrato (autorizando-se ento a sua
modificao ou resciso unilateral por razes de interesse pblico).
Toda esta disciplina floresceu originariamente em um estgio de
desenvolvimento poltico do Estado marcado por forte interveno e burocratizao,
tempo em que o direito administrativo se alimentava da contraposio entre
interesse pblico (autoridade) e interesse particular (submisso). Produziu-se, ento,
uma exegese tradicionalmente antiptica ao consenso e bilateralidade. Lembra-se,
com ROMEU BACELLAR FILHO, que o predomnio da autoridade, no Direito
Administrativo, fez com que a prpria palavra negcio (para ZANOBINI designava o
ato voluntrio da Administrao em analogia ao negcio privatstico) fosse expulsa
do vocabulrio administrativo. A imperatividade do ato administrativo correspondeu a
uma sacralizao do poder estatal que dificultava, e ainda dificulta, a compreenso
de uma Administrao inserida num panorama sob a bilateralidade e o consenso12.
interessante ver-se que conforme crescia o intervencionismo do Estado
(atingindo-se o seu apogeu no Estado-providncia), os instrumentos jurdicos de
controle eram intensificados, gerando-se a ampliao da burocracia. Neste domnio
prevaleceu por muito tempo (durante o sculo XX) o paradigma da bipolaridade
Estado-cidado: dois plos separados, nem convergentes, nem contrastantes, mas
em contraposio, a causa da superioridade de um sobre o outro; para compensar
tal superioridade, o mais forte est sujeito a regras e deveres, deve atuar de maneira
planificada imposta pela lei e pelo direito, enquanto o particular atua segundo seu
prprio interesse, livremente, salvo os limites externos impostos por lei13.
A teoria do ato administrativo se ergue, assim, num ambiente marcado por
estas tendncias e vem s lentamente se renovando. O contrato administrativo foi,
neste contexto, absorvido pelo direito a partir de premissas que sustentaram a teoria
do ato administrativo14, o que resultou em reconhecer-lhe certos postulados
12 Direito Administrativo e o Novo Cdigo Civil. Belo Horizonte: Frum, 2007, p. 192 13 CASSESE, Sabino. La Crisi dello Stato. Roma: Laterza, 2002, p. 77. 14 Como j referiu EBERHARD SCHMIDT-ASSMANN, ...no uma forma correta de construir o
Direito dos contratos administrativos a de aplicar aos contratos, onde seja possvel, as normas
16
hermenuticos revelados ao logo dos anos inconciliveis com a sua vocao de
tcnica negocial e econmica para a realizao de operaes econmicas
(sensveis ao mercado). Pode-se dizer que a matizao do contrato administrativo
por uma dogmtica comprometida com premissas justificadoras da Administrao
unilateral trouxe conseqncias como:
(a) a rejeio da negociabilidade e da dialeticidade como caracterstica do
contrato, em homenagem ao carter imaculado da funo pblica15. A Administrao
no poderia ver-se nivelada com interesses particulares, suscetvel dialtica
contratual. Suas solues sempre nasciam prontas, organicamente geridas no
ambiente fechado da Administrao interna. Temia-se a contaminao do manejo da
funo pblica pela influncia dos interesses do mercado, do contrato;
(b) a excessiva flexibilizao da estabilidade do contrato. Sob o fundamento
da supremacia do interesse pblico, materializado na afirmao de que o interesse
coletivo no poderia ficar refm da imutabilidade do contrato, a teoria do contrato
administrativo admitiu historicamente um amplo repertrio de poderes jurdicos
estatais de interferncia no contrato administrativo, como o ius variandi, a resciso
administrativa, o poder de aplicao de sanes e o poder de invalidao do
contrato. Muitos deles retratados em dispositivos legais. A sua exegese no evoluiu
exatamente para a afirmao restritiva destes poderes. Vige, at os dias de hoje,
majoritariamente uma leitura que assegura o amplo cabimento destas competncias
imperativas e auto-executrias no mbito dos contratos administrativos. Sua
manifestao mais radical como vejo est no acolhimento do poder da
Administrao de invalidar ex officio o contrato administrativo, mediante o exerccio
de competncia auto-executria. O acolhimento de todas estas competncias de
relativas aos atos administrativos. Regulaes e acordos oferecem diferentes possibilidades de configurao, que adquirem importncia se so complementares e no se se entendem como possibilidades de ao o mais prximo possvel uma da outra. As situaes de configurao contratual devem ser concebidas, por isso, autonomamente em suas possibilidades e perigos, e ser abordadas por normas jurdicas que sejam coerente com a dupla misso do Direito Administrativo, a de aportar limites mas tambm a de configurar procedimentos e tcnicas que permitam uma atuao eficaz. La Teora General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons. 2003, p. 329.
15 Bem apanha FERNO JUSTEN DE OLIVEIRA ser comum a negativa da interlocuo entre a Administrao e o agente privado sobre as regras de relacionamento, sob o pretexto de que isso a impediria de fazer suas prprias opes: Esta viso antiga prevaleceu por anos como forma de se assegurar que a Administrao no correria o risco de ceder aos interesses dos interlocutores. A regra garantiria que o interesse pblico ficasse imaculado, sem se subordinar de qualquer forma ao interesse particular. Parceria Pblico-Privada: Aspectos de Direito Pblico Econmico. Belo Horizonte: Frum, 2007, p. 75.
17
flexibilizao da pacta sunt servanda considerado aqui o uso prtico que lhe fez
historicamente a Administrao --, acarretou-lhe, enfim, uma instabilidade
comprometedora de um nvel mnimo de estabilidade necessrio ao favorecimento
de seus efeitos prprios (econmicos);
(c) a prevalncia de uma interpretao formalista do contrato em prejuzo de
sua interpretao funcionalista, tanto no que refere ao seu processo de formao
com no que tange sua execuo. A formao do contrato restou marcada por
excessiva burocracia, retratada nas minuciosas regras que orientam a licitao. A
leitura hermenutica desta disciplina desenvolveu-se apegada a um formalismo
muitas vezes destitudo de sentido (visto como um fim em si mesmo, desapegado de
sua funo meramente instrumental), justificado, de um lado, como fator inibidor dos
desvios de tica (pelo cumprimento estrito dos ritos estabelecidos pelo legislador) e,
de outro, como garante do direito dos interessados participao na licitao
(fundado tambm na aplicao do princpio da isonomia ao processo de licitao).
Na disciplina propriamente do contrato (contrato como execuo), acolheu-se
interpretao formalista e rgida, aniquilando-se, muitas vezes, a funo econmica
do contrato em homenagem ao cumprimento cego de regras e frmulas
ritualsticas16. Neste contexto, nasceu a desconfiana quanto s tcnicas de
estmulo eficincia, rejeitadas historicamente especialmente a partir da exegese
das regras da Lei n. 8666/93.
(d) a radicalizao da isonomia em detrimento da maior vantagem no uso da
tcnica contratual, desafiando-se a compreenso de que o contrato - muito embora
enquanto manifestao da ao administrativa jamais possa incorrer em desvios de
impessoalidade e ainda que deva seguir certos ritos marcados pela imposio de
tratamento isonmico -, como tcnica econmica que , pressupe escolhas
negociais, que s podem estar adstritas igualdade na medida na desigualdade dos
mercados. Enclausurado nos confins de uma burocracia modelada para a ao
unilateral e ensimesmada, a tcnica do contrato administrativo mostrou-se insensvel
dinmica dos mercados, olvidando muitas vezes o sistema de incentivos que os
move e a racionalidade econmica que os orienta. Desafiou-se a compreenso de
16 Regras como a que estabelece a necessidade de fixao do valor do contrato, por
exemplo, conduziam a entender-se pela inviabilidade da estipulao de contratos ad exitum ainda que em certos casos essa configurao possa revelar-se a soluo mais econmica e vantajosa Administrao.
18
que o contrato, considerado na sua instrumentalidade, deve ser uma tcnica apta a
propiciar economia aos cofres pblicos, e esse benefcio justifica fatores de
discrimem na estipulao de seus contedos, e, ainda, nos parmetros
configuradores dos processos de seleo dos parceiros da Administrao.
Todas estas distores decorreram da compreenso de aspectos do
contrato administrativo por uma teoria cujas premissas fundantes cravaram-se no
terreno do paradigma da bipolaridade para referir aluso de SABINO CASSESE.
Ocorre que os tempos atuais exigem o re-enquadramento do instituto do contrato
administrativo no mbito do direito administrativo (ou do regime jurdico-
administrativo), reconhecendo-lhe uma teoria autonomizada daquela que florescera
historicamente associada dogmtica do ato administrativo. necessrio e urgente
centrar esforos na construo de uma teoria do contrato administrativo,
especialmente com vistas re-calibrar as tenses que se verificam entre as
vinculaes jurdico-pblicas e a vocao econmica da tcnica do contrato,
acolhendo-o como uma tcnica realizao de negcios administrativos, submissa
a uma legalidade finalista que, antes a sufocar a sua lgica prpria, reconhece e
favorece a sua vocao em instrumentar eficientemente as trocas econmicas.
3. A EMERGNCIA DE NOVOS PARADIGMAS E A URGNCIA DE UMA NOVA
DOGMTICA
O diagnstico desenhado acima permite identificar alguns dogmas que
classicamente informaram a compreenso do contrato administrativo no Direito
brasileiro. A emergncia dos novos paradigmas que experimenta o Direito
Administrativo dever propiciar a superao daquelas concepes.
Na era da ps-modernidade, em que os fenmenos so idiossincraticamente
examinados em sua complexidade, com as lentes da imperfeio e da
desconstruo; do ps-positivismo17, em que a cincia do direito abre-se
17 A expresso no indicativa de um conjunto ordenado de concepes metdicas acerca
do direito - e de outras reas do conhecimento -, mas, tal como o ambiente em que nasce, revela mesmo a diversidade e a complexidade do conhecimento, caracterizando-se por referir a uma profuso de teorizaes originada como um contraponto aos dogmas positivistas. Talvez um aspecto comum s teorias do ps-positivismo esteja na compreenso de que o fechamento de sentido do direito, a sua completude e a sua auto-suficincia, so concepes falveis e que no do conta de resolver os anseios de uma sociedade plural e democratizada. A teoria constitucional do ps-
19
integrao com outros mbitos de referncia; e do neo-constitucionalismo18, em que
emergem os princpios como vetores que, aproximando a moral do Direito, trazem o
desafio de buscar a definio equilibrada dos papis dos atores do processo
democrtico (legislador x juiz x administrador), o direito administrativo experimenta,
positivismo assim baseada na tentativa de mediar o direito e a moral, o direito e a poltica, buscando uma metdica que promova a construo de discursos racionais de legitimao. LUS ROBERTO BARROSO, ao aludir ao ps-positivismo como o marco filosfico do novo direito constitucional, afirma que o debate acerca de sua caracterizao situa-se na confluncia das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual assinalada pela superao ou, talvez, sublimao dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idias, agrupadas sob o rtulo genrico de ps-positivismo. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do direito, In Revista de Direito Administrativo n. 240, abr/junho 2005, p. 4. CLUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO tambm anota que o pluralismo da sociedade contempornea, marcada por um profundo desacordo moral, exclui a possibilidade de justificaes metafsicas da ordem jurdica, recusando-se o jusnaturalismo. Mas inegvel, observa o autor, que os direitos naturais so hoje o embrio do catlogo de direitos humanos e dos direitos fundamentais. Teoria Constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condies para a cooperao na deliberao democrtica. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
18 O triunfo histrico do constitucionalismo trouxe notveis conseqncias no plano da compreenso e da operao da teoria jurdica. Trs aspectos so implicitamente identificveis neste processo de constitucionalizao do direito. Primariamente e sob um ngulo material, evidencia-se a recepo pelo sistema jurdico de exigncias morais, impregnando-o de forte carga axiolgica - que se verifica, sobretudo, subjacentemente ao acolhimento do catlogo de direitos fundamentais constitucionais. A reconciliao entre direito e moral est associada superao histrica do positivo jurdico, que deixou de oferecer o necessrio aporte terico-metodolgico ao enfrentamento das complexidades que derivam da rematerializao do direito para usar uma expresso de FIGUEROA. No seria excessiva a afirmao de que as concepes positivistas, que obtiveram grande prestgio no passado, no mais do conta de explicar a complexidade da realidade do Direito contemporneo. O confinamento da norma jurdica como objeto da cincia do direito, higienizada (pelas lentes do purismo) da implicao de fenmenos polticos, culturais, sociais etc., revelou-se um pressuposto metodolgico insensvel complexidade da sociedade enquanto consumidora-destinatria da ordem jurdica e realizao dos valores democrticos alados ao plano da Constituio. Persegue-se nos tempos atuais, no plano da metodologia jurdica, o resgate de uma razo prtica com o propsito de promover a reconciliao entre direito e moral. Sob um aspecto estrutural, observvel a emergncia dos princpios como uma tentativa de introduzir uma nova padronagem tipolgica das normas jurdico-constitucionais. Neste contexto evolutivo da teoria do direito constitucional, um dos principais ingredientes da nova interpretao jurdica est no reconhecimento da normatividade dos princpios. So os princpios normas distinguveis das regras pelo seu alto grau de abstrao e generalidade e pela sua vocao ponderao os vetores axiolgicos que visam a concretizar as aspiraes constitucionais, estas decorrentes de uma tenso dialtica entre foras sociais, cuja composio importa, alm do acolhimento do princpio majoritrio, a proteo ao direito de minorias. Mas um dos desafios acerca da concreo dos princpios reside justamente nos critrios e procedimentos eregidos sua manipulao diante dos casos concretos o que faz evidenciar um ngulo funcional do constitucionalismo. Inclusive pela necessidade de conceber critrios ao controle racional da discricionariedade judicial intrnseca ao Estado de Direito e ao Estado Democrtico , gerada pela indeterminao dos conceitos veiculados pelos princpios jurdicos. Como ento que, diante dos hard cases e no terreno da ponderao de valores, se possa impedir que o operador jurdico se afaste da vontade constitucional? Nesta misso, h um sem-nmero de teorizaes dedicadas ao enfrentamento de aspectos relevantes da problemtica. Uma preocupao central est na justificao racional da atuao do juiz enquanto operador dos valores constitucionais, que deve decidir amparado em padres de racionalidade legitimados atravs do processo de argumentao. Ver, entre outros, FIGUEIROA. La teora del derecho em tiempos de constitucionalismo, In Neoconstitucioalismo (Miguel Carbonell). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 213 e ss.
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em seu micro-cosmos, a eroso da imperatividade, da unilateralidade e da
hierarquia e o advento da consensualidade, da negociabilidade e da cooperao.
Estamos, ento, entrando em um novo tempo do Direito Administrativo, que,
no limite das inexorveis vinculaes jurdico-pblicas, usa do Direito Privado
quando este se mostra mais eficiente que as tcnicas juspublicistas; que, sem
desviar-se de postulados ticos, fala a lngua dos mercados quando isso lhe
favorece a economia e lhe traz benefcios; e que zela pela estabilidade e pela
confiana nas relaes com os administrados, inclusive naquelas desierarquizadas,
fruto de modelos cooperativos de gesto. Tudo visto e concebido pelas lentes do
realismo e do pragmatismo. este novo Direito Administrativo, tambm, que, na sua
dimenso constitucional, preza a equilibrada definio dos atores democrticos,
presumindo a constitucionalidade das leis administrativas (produzidas pelo
legislador) e assegurando ao administrador os espaos polticos (discricionrios em
sent