michael franz schmidlehner , francisco raimundo ... - unicamp
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DOI: 10.20396/etd.v22i1.8653751
© ETD- Educação Temática Digital Campinas, SP v.22 n.1 p.181-201 jan./mar.2020
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ARTIGO
O AVESSO DA APRENDIZAGEM
UM ENSAIO SOBRE EDUCAÇÃO, PSICANÁLISE E CAPITALISMO
THE REVESE SIDE OF LEARNING
AN ESSAY ON EDUCATION, PSYCHOANALISIS AND CAPITALISM
EL REVERSO DEL APRENDIZAJE
UN ENSAYO SOBRE EDUCACIÓN, PSICANÁLISIS Y CAPITALISMO
Michael Franz Schmidlehner1, Francisco Raimundo Alves Neto2
RESUMO O presente texto visa, baseado nas teorias de Jacques Lacan e autores neo-lacanianos, descrever e analisar como, ao longo da tradição pedagógica ocidental, a genuína aprendizagem está sendo inibida por meio da implementação de discursos de dominação social. Por meio de pesquisa bibliográfica, o trabalho abordará, primeiramente, o conceito de subversão do sujeito em Lacan e, em seguida, sua teoria dos quatro discursos, evidenciando que o processo de genuína aprendizagem assim como a cura psicanalítica pressupõem a admissão da condição subvertida do sujeito. Em seguida, o texto discute a presença de elementos discursivos descritos por Lacan nas obras de Platão, mostrando como nelas se inicia a constituição de um sujeito de conhecimento com a negação de sua condição subvertida. As seções seguintes descrevem o aproveitamento das descobertas da psicanálise pelo sistema capitalista e a consequente alteração de processos de subjetivação a partir da segunda metade do século XX, analisando estes processos por meio de um quinto discurso, introduzido mais tarde por Lacan, como discurso do capitalista. Finalmente, é demonstrado como a manifesta repressão pelo discurso do mestre hoje dá lugar para o anonimato de uma hegemonia do conhecimento e pela autocomodificação de sujeitos. O texto conclui que a relação interpessoal que viabiliza genuína aprendizagem, a despeito da sistemática repressão pelo sistema educacional, pode ser estabelecida, dependendo da prontidão do educador ou da educadora em admitir sua condição de sujeito subvertido.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise. Educação. Capitalismo. Quatro discursos.
ABSTRACT
Based on the theories of Jacques Lacan and neo-lacanian authors, this text aims to describe and analyze how, throughout the western pedagogical tradition, genuine learning is being inhibited through the implementation of discourses of social domination. By means of bibliographical research, the work will first address the concept of subversion of the subject in Lacan and then his theory of the four discourses, evidencing that the process of genuine learning as well as psychoanalytic healing presuppose the admission of the subject´s subverted state. Next, the text discusses the presence of discursive elements described by Lacan in the works of Plato, showing how his philosophy constitutes a subject of knowledge, negating its subverted condition. The following sections describe the employment of psychoanalysis’ discoveries by the capitalist system and the consequent alteration of subjectivation processes since the second half of the twentieth century, analyzing these processes through a fifth discourse, later introduced by Lacan as the Capitalist Discourse. Finally, it is shown how the manifest repression by the master's discourse today gives way to the anonymity of a hegemony of knowledge and the self-commodification of subjects. The text concludes that the interpersonal relationship that enables genuine learning, despite systematic repression by the educational system, can be established, depending on the educator’s readiness to admit his or her subverted subject status.
KEYWORDS: Psychoanalysis. Education. Capitalism. Four discourses.
1 Mestre em Filosofia - Vienna University - Viena, Áustria. Docente - Instituto Federal do Acre (IFAC) - Sena Madureira, AC - Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Doutor em Educação - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte, MG - Brasil. Docente - Universidade Federal do Acre (UFAC) - Rio Branco, AC - Brasil. E-mail: [email protected]. Submetido em: 01/11/2018 - Aceito em: 18/10/2019
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RESUMEN El presente texto, basado en las teorías de Jacques Lacan y autores neo-lacanianos, pretende describir y analizar cómo a lo largo de la tradición pedagógica occidental, genuino aprendizaje está siendo inhibido por medio de la implementación de discursos de dominación social. A través de investigación bibliográfica, el trabajo abordará primero el concepto de la subversión del sujeto en Lacan y, a continuación, su teoría de los cuatro discursos, evidenciando que el proceso de genuino aprendizaje, así como la cura psicoanalítica presuponen la admisión de la condición subvertida del sujeto. En seguida, el texto discute la presencia de elementos discursivos descritos por Lacan en las obras de Platón, mostrando cómo en ellas se inicia la constitución de un sujeto de conocimiento con la negación de su condición subvertida. Las siguientes secciones describen el aprovechamiento de los descubrimientos del psicoanálisis por el sistema capitalista y la consiguiente alteración de procesos de subjetivación a partir de la segunda mitad del siglo XX, analizando estos procesos por medio de un quinto discurso, introducido más tarde por Lacan como Discurso del Capitalista. Finalmente se muestra, como la manifiesta represión por el discurso del maestro hoy da lugar al anonimato de una hegemonía del conocimiento y por la auto-comodificación de sujetos. El texto concluye, que la relación interpersonal que viabiliza genuino aprendizaje, a pesar de la sistemática represión por el sistema educativo, puede ser establecida, dependiendo de la prontitud del educador o de la educadora en admitir su condición de sujeto subvertido.
PALAVRAS-CLAVE: Psicoanálisis. Educación. Capitalismo. Cuatro discursos.
1 INTRODUÇÃO: A POSIÇÃO DO SUJEITO EM DESCARTES, FREUD E LACAN
A questão central do presente texto é a ambivalência do conceito de educação, que ao longo da história do ocidente oscila entre um processo interpessoal e transformador e dominação social. Esta questão só pode ser compreendida em sua profundidade, se contextualizada com as diferentes concepções de sujeito e de conhecimento que a acompanham. Faz-se necessário, antes de tudo, introduzir a teoria de sujeito de Lacan e diferenciá-la das visões cartesiana e freudiana para em seções seguintes, a partir desta, analisar os impactos específicos da epistemologia platônica e do capitalismo sobre conceito e prática da educação.
É comumente reconhecido que a descoberta científica do inconsciente por Sigmund Freud representa uma ruptura com a autocompreensão do homem moderno. Desde Descartes, a ideia de um sujeito consciente, racional e “senhor de si” configurava como eixo central do projeto de progresso e civilização modernos. Ao mostrar que nossos pensamentos, palavras e ações em grande parte são motivados por processos que ocorrem fora do nosso controle consciente, ou seja, ao mostrar que nosso eu não é “senhor na sua própria casa”, os estudos psicanalíticos de Freud rompem com esta autocompreensão e abalam profundamente os pressupostos do projeto da modernidade.
Entretanto, mesmo reconhecendo os impactos da teoria freudiana, é oportuno
questionar a “descoberta” do inconsciente pela psicanálise. Encontramos linhas de
pensamento filosóficas anteriores, entre outros em Espinoza, Schopenhauer e Nietzsche, que
apontam para essa mesma noção. De fato, a filosofia teve desde a antiguidade uma ideia de
conteúdos ocultos em nossa alma (psyché). Não seriam o socrático “sei que nada sei” e a
teoria platônica de anamnesis (a teoria de um conhecimento contido e ao mesmo tempo
“esquecido” em nossa alma) já concepções de um inconsciente humano?
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Nesta perspectiva, então, seria mais adequado falar, ao invés da “invenção do
inconsciente”, da “invenção do consciente” pela filosofia moderna: com Descartes e outros
pensadores dos séculos XVI e XVII consolida-se a ideia de um sujeito que, por ter sua
existência definida como ser pensante, seria pura consciência. Nesse contexto, a ciência se
revela como o genuíno discurso do sujeito moderno: só por se reconhecer como pura, não
subvertida consciência, este sujeito pode se considerar capaz de produzir conhecimento puro,
não subvertido, objetivo, ou seja, “científico” sobre o mundo.
Como se situam, então, as descobertas de Freud nesse contexto? Freud conseguiu
proclamar a noção do inconsciente, justamente porque a situou dentro do discurso científico.
Num ato de equilíbrio entre referências da ciência biológica (i.e. a existência de pulsões
primárias desde nascença) e da literatura (i.e. o mito de Édipo como eixo fundamental para
as explicações psicanalíticas), a teoria freudiana se constrói de maneira ambivalente fora e
dentro do “científico”. Se de um lado a psicanálise freudiana subverte o sujeito cartesiano, do
outro lado ela – por ser um avanço científico – o reafirma. Se de um lado Freud afirma que
não somos “senhores na própria casa” (FREUD 1926, p. 295, tradução nossa), do outro lado
ele define o objetivo do processo psicanalítico como: “onde estava id deve advir eu” (FREUD
1932, p. 86, tradução nossa). Ou seja, onde prevaleceram pulsões inconscientes em nós deve
se restabelecer a soberania do sujeito predominantemente consciente. Essa ambivalência
diferencia a teoria freudiana da lacaniana, sendo a última aquela em que podemos enxergar,
nesse contexto, como sendo o passo consequente na superação do paradigma cartesiano pela
psicanálise.
“O inconsciente é, em seu fundo, estruturado, tramado, encadeado, tecido de
linguagem”. Por que Lacan (1985a, p. 139) diz isso? Influenciado pela teoria linguística
estruturalista, ele entende que o significante (a imagem acústica de um signo) não possui
“naturalmente” um significado. O laço entre significante e significado de forma alguma é
necessário ou essencial, mas, ao contrário, é arbitrário. Por exemplo, não existe laço
necessário entre a imagem acústica “livro” e a ideia de livro. Esse fato se torna evidente pela
existência de outras imagens acústicas como “book”, em inglês, que dispõem de um mesmo
significado. O significante é então uma forma vazia, a princípio desconectada, barrada de um
significado. O significado é aquela outra parte do signo que está sempre ausente na língua.
Desta forma, a linguagem se apresenta a princípio como uma estrutura meramente de
significantes, que se organizam por meio das diferenças entre si (e não por possuir um valor
positivo). Essa ordem linguística corresponde a uma ordem sociocultural. O processo de
subjetivação para Lacan nada mais é do que o sempre inacabado entretecer do indivíduo
nessa estrutura de significantes. Neste sentido, para Lacan (1998, p. 260), “o inconsciente é a
parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para
restabelecer a continuidade de seu discurso consciente."
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Assim como os significantes carecem de sentido, o sujeito possui, como diz Lacan
(1985, p. 281), uma estrutural “falta de ser”. O indivíduo não sabe “quem ele é”, é barrado da
sua “essência”, do seu significado. Sempre quando ele fala ou escreve (quando justapõe
palavras com a intenção de preenchê-las com sentido, portanto), busca nesse mesmo ato
compensar sua falta de ser, estabelecer o significado de si mesmo, vir a ser. O sujeito, na visão
lacaniana, é um efeito da linguagem.
Essa noção de um sujeito barrado de si mesmo e dividido entre ser e não ser está na
base da teoria lacaniana e a diferencia fundamentalmente da freudiana. Mesmo que Freud já
tenha entendido sua psicanálise como uma ferida narcisista do homem moderno, sua obra
ainda não reflete os impactos dessa ferida na sua profundidade. Levando ao extremo a
comparação entre os dois pensadores, podemos dizer que “Freud escreveu Freud”, mas
“Freud não leu Freud”. Aquele que realmente “leu Freud”, que já fala e escreve a partir da
compreensão de um sujeito ferido, não soberano, é Lacan. Para Lacan, a fantasia de um
sujeito que supostamente possui conhecimento pleno faz parte do imaginário do sujeito
moderno. Lacan chama essa ilusão, que tendencialmente projetamos em nosso psicanalista,
no cientista, em nosso professor etc., o sujeito suposto saber (em francês sujet supposé
savoir).
Mas como, afinal, se constitui de forma concreta um sujeito na vida de um ser
humano? Como se estrutura o processo de subjetivação na teoria de Lacan? Mesmo que não
será possível dar uma introdução compreensiva, faz-se necessário esclarecer alguns pontos
principais para poder atingir os objetivos do presente artigo.
Para Lacan, o sujeito é duplamente alienado. O primeiro estágio dessa alienação, a
primeira divisão, ocorre quando a criança cria uma imagem de si mesma, quando imagina
como ela é nos olhos da mãe. Se reconhecendo no espelho, a criança imagina ser o objeto de
desejo da mãe: “este é o menino /a menina que a mamãe ama”. Nessa fase, o desejo começa
se constituir através do desejo do outro, em primeiro momento por meio do desejo da mãe.
A partir daí, a criança situa-se de forma reflexiva, projetando livremente seu “ego ideal”. O
segundo estágio é a imersão da criança na linguagem, ou seja, na estrutura social. Ao mesmo
tempo em que ela aprende a ordem linguística, em que cada significante tem que ter seu
lugar, a criança é obrigada a aceitar seu lugar dentro da ordem familiar. Ela passa a entender
que ela não pode ser o objeto de desejo da mãe. O legítimo objeto de desejo da mãe é aquilo
que o pai possui: o falo. Nesta fase edipiana, a livre imaginação da criança é barrada, castrada
pela lei paternal, que é ao mesmo tempo a lei da linguagem, da ordem do simbólico. A
consolidação do sujeito depende da subordinação do imaginário “ego ideal” à ordem do
simbólico e do surgimento de um “ideal do ego”, que resulta da internalização dessa ordem.
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Dessa forma duplamente alienado, o sujeito terá que viver um desejo
fundamentalmente irrealizável. Sua imaginação criará objetos de desejo que não podem
satisfazê-lo e consequentemente causam desejo. Neste sentido, Lacan fala do “objeto causa
do desejo”. Este objeto – por Lacan designado com a letra a minúscula (em francês, outro é
iniciado por a, em autre) – é ao mesmo tempo aquilo que sempre falta, um “objeto causa da
angústia”, a manifestação da irreduzível falta de ser do sujeito.
2 OS QUATRO DISCURSOS DE LACAN
Em 1969 Lacan realizou seu décimo sétimo seminário sob o título “O Avesso da
Psicanálise”. Motivado pelas revoltas estudantis nesta mesma época em Paris, o psicanalista
desenvolve uma teoria em que situa a universidade, o capitalismo e a psicanálise no contexto
de uma economia de desejo e conhecimento, que ele descreve por meio de quatro diferentes
discursos. Com isso, ele problematiza e discute aquilo que interessa os estudantes naquele
momento (de fato, o seminário foi várias vezes interrompido por estudantes que desafiavam
a autoridade de Lacan ou davam avisos sobre prisões de seus colegas pela polícia): a
possibilidade de lutar contra estruturas de dominação, a possibilidade de revolução ou
transformação social.
Vamos, nos próximos parágrafos introduzir alguns elementos principais desta teoria.3
O ponto de partida de Lacan (1992, p. 158) é a fala de Sigmund Freud sobre as três profissões
que seriam as mais complexas, porque nelas nunca se pode alcançar as expectativas que se
tem com elas: governar, educar e analisar (curar). Em referência a essas três profissões, Lacan
descreve os discursos do mestre, da universidade e do analista. Além disso, ele ainda
acrescenta um quarto item, “fazer desejar”, instituindo o discurso da histérica.
Que Lacan quer dizer com “discurso”? Não se trata de uma situação concreta como
uma fala. O discurso aqui é entendido como uma forma que condiciona um certo modo de
comunicação entre pessoas e/ou instituições. Carolina Marra S. Coelho (2006, p. 108) explica:
O discurso é um modo de relacionamento social representado por uma estrutura sem palavras. Lacan propõe os discursos como sendo modos de uso da linguagem como vínculo social, pois é na estrutura significante que o discurso se funda.
Para expor a estrutura de cada um dos discursos, Lacan usa símbolos e esquemas
parecidos com fórmulas algébricas, que ele chama “matemas”. O esquema geral, o campo do
discurso em geral, possui quatro lugares, que, segundo Laquieze-Waniek (2013, p. 189,
tradução nossa) são as seguintes:
3 Para uma introdução mais compreensiva dos quatro discursos recomendamos a leitura dos textos de Eric
Ferdinando Kanai Passone (2013) e Carolina Marra S. Coelho (2006).
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Figura 1. Esquema geral do discurso.
Fonte: Adaptação de Laquieze-Waniek (2013) e Lacan (1992)
Os lugares no nível superior (por cima da barra) marcam a parte explícita da
comunicação: agente e outro. No nível inferior se encontram elementos ocultos: a verdade
recalcada pelo agente e em que essa comunicação de fato resulta. Os quatros elementos que
ocupam estes lugares em cada um dos quatro discursos são: o Significante Mestre S1, o Saber
S2, o Sujeito barrado $ e o Objeto Causa de Desejo a.
O discurso do mestre é concebido por Lacan através da dialética hegeliana de senhor
e escravo, e, com isso, a matriz e o ponto de partida para os outros três discursos:
Figura 2. Discurso do mestre
Fonte: Adaptação de Laquieze-Waniek (2013) e Lacan (1992)
O agente, neste caso, é o Significante mestre. Evans (2006, p. 109, tradução nossa)
explica: “o significante mestre é aquele que representa um sujeito para todos os outros
significantes; o discurso do mestre é, portanto, uma tentativa de totalização.” O discurso é
articulado em nome do senhor (S1), um dono de escravo ou outra figura autoritária que se
apresenta como identidade inquestionável. A verdade latente, ou escondida, é que o senhor
é um sujeito barrado e incompleto ($), em busca de um objeto de desejo. O outro, a quem o
senhor dirige os discursos – o escravo – não é percebido como sujeito pelo senhor. O senhor
se dirige a um saber (S2) que o escravo possui para realizar um determinado trabalho: saber
limpar, saber carregar, construir algo etc. O resultado do discurso é o trabalho ordenado pelo
senhor e realizado pelo escravo, ou seja, a produção (a).
O discurso da universidade é articulado em nome de um saber (S2), no caso da própria
universidade, em nome de um conhecimento acadêmico. Entretanto, este discurso não é
restrito às instituições acadêmicas. Outras instituições ou também governos podem ser
reprodutores deste discurso. Diz Lacan (1992, p. 195): “pois o que reina no que é chamado
comumente de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é a Universidade.”
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Figura 3. Discurso da Universidade:
Fonte: Adaptação de Laquieze-Waniek (2013) e Lacan (1992)
O agente (a universidade), se dirige à um outro (a), (e.g. um estudante), desejando
que este adira a ela. A verdade escondida neste discurso é, que seu objetivo não é a aquisição
de saber. Neste contexto é importante compreender a diferença entre saber e conhecimento,
como explica Passone (2013, p.411).
Lacan enfatiza o saber como uma operação resultante do sujeito do inconsciente, enquanto o conhecimento pode ser pensado por sua dimensão instrumental, racional, como o conhecimento produzido e acumulado pela ciência e pela Universidade.
O que se espera neste discurso, é que a instituição fornece para o outro um
Significante Mestre (S1), aquilo que a instituição representa na sociedade, o nome ou renome
da instituição que pode ser associado com o outro, por exemplo por meio de um título
acadêmico. O resultado deste discurso é a produção de sujeitos barrados ($) e incompletos
que não adquirem saber.
No caso do discurso do analista, o agente não é necessariamente um psicanalista ou
terapeuta, mas pode ser qualquer pessoa que se dispõe a ocupar a posição de um “espelho”,
uma “tela vazia”, para onde o outro pode projetar livremente, ou, como descreve Cristina
Coelho (2006, p. 115):
A posição do analista é feita substancialmente do objeto “a”, causa de desejo, a
partir do qual é possível a associação livre; assim, “o analista se faz causa do desejo
do analisante” (LACAN, 1992, p. 36). O saber inconsciente (S2) ocupa, no discurso
do analista, o lugar da verdade.
Figura 4. Discurso do Analista:
Fonte: Adaptação de Laquieze-Waniek (2013) e Lacan (1992)
O discurso do analista se dirige ao sujeito barrado e suas ansiedades ($). Ele o leva a
produzir um Significante Mestre (S1). O paciente vai descobrir que a verdade de seu desejo
não reside no analista (no Sujeito Suposto Saber), mas se revela no Significante Mestre que
ele mesmo cria. É importante ressaltar aqui, que o saber do analista (S2) está posicionado no
nível inferior, ou seja, é um saber que move o discurso inconscientemente, sem saber de si.
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É de observar, que nesta formação, os quatro elementos estão em lugares exatamente
opostos aos lugares que ocupavam no discurso do mestre. O sujeito barrado, que era a
verdade recalcada do mestre, agora está na posição explícita (no nível superior) do
analisando. O Significante Mestre que antes se impunha como identidade inquestionável do
mestre, agora constrói-se – por meio da cura pela fala – dentro do inconsciente do analisando,
ao passo que este vem se deparando com seu próprio desejo (a, na figura do analista) e
consegue conciliá-lo com a ordem simbólica. Neste sentido, o discurso do analista é o avesso
do discurso do mestre e vice-versa. Esta é mensagem central de Lacan nesse seminário: não
se trata de derrubar o mestre (como é a intenção dos estudantes naquele momento), mas de
promover um discurso que inverta o discurso dominante e que subverta seu poder.
A civilização ocidental é erguida sobre o discurso do mestre. Uma revolução nas ruas,
na visão de Lacan, não será capaz de abalar estruturas de dominação. A superação do
paradigma senhor-escravo – se possível4 – se daria primeiramente pela subversão analítica.
A quarta forma de comunicação é o discurso da histérica. Foi através do tratamento
de mulheres diagnosticadas como histéricas que Freud desenvolveu a técnica da associação
livre. Para Lacan, a estrutura fundamental do desejo vem à luz na histeria. “A estrutura do
desejo, como desejo do outro, é mostrada mais claramente na histeria do que em qualquer
outra estrutura clínica; a histérica é precisamente alguém que se apropria do desejo do outro,
identificando-se com ele.” (EVANS, 2006, p. 80, tradução nossa). Por isso a histeria ocupa um
lugar central na teoria de Lacan (1992, 31): “o que o analista institui como experiência
analítica pode-se dizer simplesmente que é a histerização do discurso. Em outras palavras, é
a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica [...]”.
Neste sentido, o discurso da histérica é chave no processo da cura psicanalítica, como
esclarece Coelho (2006, p. 114): “assim, podemos entender o porquê da importância da
histerização do discurso no percurso analítico: o sujeito precisa se confrontar com sua falta
de saber e demandar: ‘quem sou eu? ’ e ‘qual é o meu desejo?’”.
Figura 5. Discurso da Histérica
Fonte: Adaptação de Laquieze-Waniek (2013) e Lacan (1992)
4 Lacan não se mostra como otimista a respeito da solução da problemática. Logo no início do seminário, ele
declara “Não esperem, portanto de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a solução”
(LACAN, 1992, p. 66)
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O discurso da histérica não é restrito à situação analítica ou terapêutica. Trata-se de
uma forma de comunicação que ocorre quando um agente assume abertamente sua condição
de sujeito dividido ($) e questiona um outro que se apresenta na posição de senhor (S1). Essa
situação discursiva é a única que produz saber (S2). Aqui realmente ocorre aprendizagem.
Qualquer pessoa que admite sua falta de saber e questiona um sujeito suposto saber – por
exemplo, um jornalista que entrevista um político ou um aluno interessado que questiona
seu professor – estabelece essa comunicação.
É de observar que tanto no discurso do analista quanto no da histérica o sujeito
barrado está posicionado no nível superior, na parte explícita do discurso, enquanto nos dois
outros discursos esse sujeito barrado se encontra no nível inferior, na parte recalcada do
discurso. Nisso reside a diferença: enquanto essa condição fundamental – nossa falta de ser,
nosso não saber – é recalcada, o discurso reproduz coerção ou hegemonia. Apenas a livre
admissão desta condição permite que ocorram a cura da alma e a aprendizagem.
3 DE GENUÍNA APRENDIZAGEM PARA O DISCURSO DO MESTRE
Para Lacan, o discurso do mestre é estreitamente associado à filosofia. Diz ele: “quem
pode negar que a filosofia tenha sido sempre um empreendimento fascinatório em benefício
do senhor?” (LACAN, 1992, p. 21). Analisando a etimologia da palavra grega episteme
(conhecimento) e da alemã verstehen (conhecer ou entender), ele traça a consolidação do
discurso do mestre na epistemologia de Platão:
Está aí todo o esforço de deslindamento do que se chama episteme. É uma palavra engraçada, não sei se vocês alguma vez refletiram bem sobre ela – colocar-se em boa posição é em suma a mesma palavra que verstehen. Trata-se de encontrar a posição que permita que o saber se torne um saber de senhor. A função da episteme especificada como saber transmissível — remetam-se aos diálogos de Platão — é sempre tomada por inteiro das técnicas artesanais, quer dizer, dos servos. O que está em questão é extrair sua essência para que esse saber se torne um saber de senhor. [...] A filosofia, em sua função histórica, é essa extração, essa traição, eu quase diria, do saber do escravo, para obter sua transmutação em saber de senhor. (LACAN 1992, p. 19).
Lacan se refere aqui ao diálogo Menon. Nesta conversa entre Sócrates e Menon, um
escravo é utilizado para comprovar que conhecimento só poderia ser recordação (no grego
anamnesis): mesmo sem nunca ter tido aulas de matemática ou geometria, ele consegue, por
meio de perguntas direcionadas a ele, resolver uma tarefa geométrica. Confirma-se, aqui, a
estrutura do discurso do mestre: o senhor (S1) se dirige não a um sujeito, mas ao saber (S2)
do escravo, visando uma produção (a), que, nesse caso, é a comprovação da teoria de
anamnesis, ou seja, um saber do senhor extraído do saber do escravo.
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Olhando desse lado para Platão, enxergamos nele o início de um projeto político-
pedagógico ocidental que visa reprodução das estruturas de dominação por meio do
conhecimento. Em Platão surge a concepção essencialista de um conhecimento justificado
por causas e nesse sentido plenamente demonstrável e transmissível. Esta concepção de
conhecimento é, desde a Academia (escola fundada por Platão), a base para o ensino
institucionalizado. O aspecto político-repressivo desse projeto acadêmico se torna mais
evidente nas obras tardias de Platão, como As Leis e A República:
Enquanto não forem ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia [...] não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano [...] (PLATÃO 2005, p. 473)
Porém, encontramos também outros elementos de comunicação nas obras de Platão,
principalmente na Apologia de Sócrates, que parecem corresponder aos discursos da histérica
e do analista. Não se pode determinar, nas obras platônicas, o lugar em que termina a filosofia
de Sócrates e o lugar em que começa a de Platão. Mesmo assim, propomos, para os fins deste
artigo, uma distinção entre um modo discursivo platônico e um modo discursivo socrático.
Esta distinção vai de encontro com o pensamento de Werner Jaeger (1995, p. 509), que
descreve Platão como “um pensador que forja teorias: teorias que nos seus diálogos transfere
para Sócrates, com liberdade de artista”. Nesse sentido, podemos dizer que Platão
transformou o saber prático de Sócrates em teoria. Enquanto Platão promove a ideia da
episteme, um saber transmissível, como base da sua pedagogia, a prática socrática se baseia
na postura de justamente não possuir conhecimento transmissível:
Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. [...] Porém os que tratam comigo, suposto que alguns, no começo, pareçam de todo ignorantes, com a continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravelmente [...]. O que é fora de dúvida é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. (PLATÂO 2001, p. 47)
Nesse trecho do diálogo Teeto, podemos reconhecer tanto a presença do discurso da
histérica quanto do discurso do analista na prática socrática. Podemos entender a primeira
parte do método dialético socrático – a refutação – como sendo a implementação do discurso
da histérica por Sócrates. Nesse momento, Sócrates questiona o Significante Mestre no outro.
A segunda fase – a maiêutica – se inicia, quando este Significante Mestre foi desconstruído
no interlocutor e esse, agora como agente, admite sua condição subvertida. Agora a posição
de Sócrates é apenas a de uma tela cinza que viabiliza o surgimento do saber.
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Mas onde começou esta histerização de Sócrates? Na Apologia, ele narra como
recebeu sua missão do oráculo de Delfos, quando este tinha declarado que não teria homem
mais sábio do que Sócrates, e ele, em seguida começava a interrogar os sujeitos suposto saber
da sua época. Podemos, nesse contexto, reconhecer o discurso do analista também no
oráculo. Suas falas revelam a verdade apenas de forma enigmática por meio de um semidizer,
forçando o outro a buscar dentro de si, remetendo-o a seu processo psíquico. Lacan (aqui se
referindo à esfinge de Tebas) diz sobre o enigma:
A verdade — digo — só poderia ser enunciada por um semidizer, e seu modelo, mostrei-o a vocês no enigma. Pois é justamente assim que ela sempre se apresenta a nós, e não certamente em estado de pergunta. O enigma é algo que nos força a responder, na qualidade de perigo mortal. (LACAN 1992, p. 96).
A famosa frase gnōthi seautón (“conhece ti a ti mesmo”), que teria sido inscrita na
porta da entrada do templo de Delfos, poderia ser considerada como lema da psicanálise, se
levamos em consideração, também, a outra frase que a pessoa supostamente teve que
pronunciar ao consultar o oráculo: eî (“tu és”) (VOLKER 2007, p. 115). Essa afirmação –
direcionada ao Deus Apolo, a quem o templo foi dedicado – vai ao encontro da compreensão
psicanalítica, de que o processo de autoconhecimento do homem se dá necessariamente por
meio do outro. Por ser necessariamente interpessoal, o autoconhecimento só pode ser
compreendido como um processo interminável, que nunca pode se encerrar no indivíduo, no
sentido de “agora me encontrei, agora sei quem eu sou”. Nesse processo, o outro serve como
espelho no qual o processo psíquico pode ser externalizado. Sócrates tem esta mesma
compreensão quando diz no Primeiro Alcibíades: “logo, se o olho quiser ver a si mesmo,
precisará contemplar outro olho, [...]” (PLATÃO,1975b, p. 133)
Mantendo a hipótese de trabalho formulada acima, podemos concluir que Platão, ao
escrever sobre Sócrates, assimila e inverte os discursos do analista e da histérica, presentes
no modo de comunicação socrático. A obra platônica transforma a maiêutica em
epistemologia, a interminável busca de saber em conhecimento transmissível. A escrita de
Platão domestica, assimila e aproveita a experiência socrática para fundar um projeto de
hegemonia de conhecimento que justamente inviabiliza esse tipo de experiência. Baseado no
discurso do mestre, Platão introduz o discurso da universidade. Neste ponto é importante
observar, que assim como o discurso do mestre é o inverso do discurso do analista, o discurso
da universidade é o inverso do discurso da histérica, ou seja o avesso da aprendizagem.
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4 O MAL-ESTAR PÓS-MODERNO
Baseado nas teorias de Lacan e de Slavoy Žižek, o filósofo alemão Dominik Finkelde
(2014, p. 97f, tradução nossa) afirma que: “[...] o chamado ‘sujeito pós-moderno’ no início do
século XXI - um momento em que os apelos parecem menos normativos do que talvez no
momento das grandes ideologias do século XX -, no entanto, é confrontado com um novo
mal-estar na cultura”.
Quando Freud (2013) escreveu em 1930 sua teoria sobre o mal-estar na cultura, ele
se referiu à repressão e culpabilização das pulsões dos indivíduos pelas normas culturais de
uma sociedade. Na sua época – fins do século XIX e início do século XX – instituições como a
igreja, os militares, o estado, ainda tinham grande força formativa. Os apelos ideológicos, as
interpelações dessas instituições impuseram autoridade e obediência. O mal-estar se deu
pela internalização desses apelos, o gozo do sujeito ficou impossibilitado pelas proibições do
seu próprio superego, daquilo que ele mesmo entendeu como sua “consciência moral”.
Lacan, em sua releitura de Freud, descreve esse mesmo processo de subjetivação e
socialização no contexto da sua concepção linguística de sujeito. Existe um significante, que
representa e centraliza em si toda ordem simbólica. Lacan chama este significante o Grande
Outro (designado com a letra maiúscula A). No conflito edipiano, o Grande Outro se apresenta
como Nome do Pai, aquela alteridade radical, a lei, que proíbe, que barra a união imaginada
e desejada com a mãe. O Grande Outro é aquela instância através da qual o sujeito cria seu
ideal do ego. Ele diz para o sujeito como este supostamente pode superar sua falta de ser,
quais regras ele deve seguir para – ao invés de ser ninguém – ser alguém.
A pós-modernidade é frequentemente entendida como se fosse uma era pós-
ideológica, por nela terem sido desacreditadas as grandes narrativas que antes formaram
uma matriz unificadora para a subjetivação dos indivíduos de uma sociedade. Ideologia, nesse
contexto, ainda é entendida como uma “consciência falsa”, algo que alienaria o indivíduo do
seu “verdadeiro ser”. Žižek (1992 p.25), levando adiante o pensamento de Louis Althusser e
aprofundando-o na teoria lacaniana, discorda desse conceito de ideologia. Como mostrou
Lacan, sempre somos alienados de nós mesmos. A subjetivação – o tecer linguístico de um
indivíduo para dentro da matriz simbólica de uma sociedade – significa necessariamente a
internalização de uma ideologia. Ideologia é, para Žižek, a condição fundamental do ser
humano. Nesse sentido, o Grande Outro apenas se tornou menos visível na pós-modernidade,
o discurso que se apresenta como pós-ideológico ou anti-ideológico apenas ofusca a
existência do Grande Outro. Quais são então os apelos do Grande Outro na pós-
modernidade? Por que eles aparecem como não ideológicas?
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Para responder estas questões, faz-se necessário uma explicação do conceito de gozo
(no francês jouissance) em Lacan. Ao proibir o gozo, a lei do Grande Outro produz a ilusão de
que seria possível – se não fosse proibido – um pleno gozo que satisfaria o desejo, que
preencheria completamente o ser do indivíduo. Entretanto, na visão lacaniana, a falta de ser
e a condição dividida do indivíduo são fundamentais. O gozo é sempre parcial, incompleto,
deixando um resto. Esse resto é justamente o objeto de desejo (a), que Lacan chama
consequentemente também o mais-gozar ou mais-de-gozar (no francês plus-de-jouir). Um
excesso de gozo, que viola as proibições do Grande Outro – como é vivido em certos sintomas
da neurose ou da perversão – também é sofrido. O gozo, ao final, é sempre sofrido e nunca é
prazeroso. Para Lacan existe um princípio do prazer que limita o gozo, que distancia o sujeito
do objeto do desejo (a) e, assim, previne o colapso da ordem simbólica no sujeito. A proibição
que barra o gozo e sustenta a fantasia de um gozo pleno e prazeroso, ao final, protege o
sujeito deste colapso (EVANS 2006, p. 150).
Lacan (1992) aponta, repetidamente, para uma conexão entre esta dinâmica de
produção de falta do indivíduo – o mais-de-gozar – e a mais-valia descrita por Marx. A mais-
valia é justamente aquele resto que nunca pode se esgotar, que em última consequência não
pode ser “gozado”. Em primeiro lugar, o capitalista priva o trabalhador desse gozo. Em
segundo lugar, ele também priva a si mesmo desse gozo, na medida em que necessita sempre
(re)investir no seu empreendimento para não ser eliminado pela concorrência. Dessa forma,
o insaturável crescimento do capital é impulsionado pela mais-valia da mesma forma como o
interminável desejo do sujeito pelo mais-de-gozar. É justamente essa homologia, essa
capacidade do capitalismo em “mimicar” a estrutura do desejo, que facilita a assimilação dos
processos de subjetivação pela dinâmica de acumulação do capital.
O que ocorre na pós-modernidade é uma inversão dos apelos ideológicos. Enquanto
até meados do século XX os apelos ainda eram proibitivos, ou seja, o imperativo do Grande
Outro ainda era uma espécie de “não goze” ou “goze menos”, o imperativo internalizado pelo
sujeito pós-moderno é “goze!”. Os apelos lançados pelo capitalismo tardio são do tipo: “curta
a vida!”, “satisfaça sua sede!”, “seja feliz!”. Eles são percebidos em primeiro momento como
mensagens de liberdade e como não ideológicas. Mas, vista a fundamental impossibilidade
do gozo pleno, esses apelos aumentam a angústia no/do sujeito. A não realização do gozo
fantasiado – antes atribuível à proibição – agora se apresenta como culpa do indivíduo: o gozo
pleno não acontece “por causa da minha falta” (porque eu sou gordo demais ou magro
demais ou por causa da minha falta de disposição, de juventude, ou de potência sexual).
Em nosso universo capitalista tardio, o sujeito não é culpado quando infrinja uma proibição. É muito mais provável que ele se sinta culpado quando (ou, pelo contrário, porque) ele não está feliz – o comando para ser feliz é talvez a última injunção do superego. (ZIZEK, 2013, p. 253, tradução nossa)
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O mal-estar na cultura pós-moderna mencionado por Finkelde aumenta na medida
em que o Grande Outro perde seu caráter normativo, de alteridade radical, de barreira, e
emite apelos neurotizantes decretando um gozo impossível. A ameaça que esses apelos
representam para a economia psíquica do sujeito tende a se traduzir novamente em consumo
(mercadorias que poderiam compensar minha incapacidade, como remédios para emagrecer,
ficar feliz, ficar potente, ou roupas de marca, acessórios etc.). Dessa forma, o capitalismo
tardio, que aprendeu operar o inconsciente, consegue intensificar a acumulação de capital
por meio da angustiada mobilização da falta de ser no homem.
5 A PRODUÇÃO DO SUJEITO CONSUMIDOR
Como, então, o capitalismo aprendeu operar o inconsciente? A descoberta freudiana
de mecanismos inconscientes que orientam o comportamento humano foi quase
imediatamente reconhecida e aproveitada pelo interesse capitalista. Como mostra o
documentarista Adam Curtis (2002), entre outros, foi o próprio sobrinho de Freud, Edward
Bernays, que teve grande importância nesse processo de aproveitamento do conhecimento
psicanalítico pela economia. Bernays (1928, p. 52, tradução nossa) escreve:
São principalmente os psicólogos da escola de Freud que apontaram que muitos dos pensamentos e ações do homem são substitutos compensatórios dos desejos que ele foi obrigado a suprimir. Uma coisa pode ser desejada não por seu valor intrínseco ou utilidade, mas porque ele inconscientemente chegou a ver nele um símbolo de outra coisa, o desejo que ele teve vergonha de admitir diante si mesmo. Um homem que compra um carro pode pensar que ele quer isso para fins de locomoção, enquanto o fato é que ele realmente preferiria não se sobrecarregar com ele, e prefere andar a pé pelo bem de sua saúde. Ele pode realmente querer isso porque é um símbolo da posição social, uma evidência de seu sucesso nos negócios, ou um meio de agradar sua esposa.
Alinhado com os interesses dominantes da sua época, na grande euforia do
crescimento econômico dos anos 1920 nos EUA, Bernays entendeu bem que o acelerado
crescimento econômico só poderia ser sustentado se o valor de troca fosse dominar sobre o
valor de uso de mercadorias. Para aumentar o valor de troca (e com isso a mais-valia e o
crescimento do capital), é necessário que haja escassez, falta, e essa falta podia ser
encontrada e mobilizada no inconsciente. O desejo que desliza de objeto para objeto, sempre
causando mais desejo, ou seja, a falta de ser do sujeito, pode ser acessado, manipulado e
aproveitado como combustível praticamente inesgotável para o crescimento econômico. Na
visão de Bernays (1928, p. 52, tradução nossa), “os desejos humanos são o vapor que faz a
máquina social funcionar. Somente ao compreendê-los, o propagandista pode controlar esse
mecanismo vasto e solto que é a sociedade moderna. ”
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O projeto idealizado por Bernays foi reconhecido e sustentado pela elite financeira –
industriais e banqueiros – dos EUA. No mesmo ano da publicação de Propaganda, o banqueiro
americano Paul Mazur (1928, tradução nossa), um dos sócios de Lehman Brothers, resume
essa nova visão de uma engenharia social do desejo:
A comunidade que pode ser treinada para desejar [...] querer novas coisas antes mesmo que as antigas sejam inteiramente consumidas, representa um mercado a ser medido mais por desejos do que por necessidades. E os desejos do homem podem ser desenvolvidos para ofuscar grandemente suas necessidades.
Divergindo do lema da psicanálise formulado por seu tio “onde estava id deve advir
eu” (FREUD 1932, p. 86, tradução nossa), Bernays sustenta que as forças irracionais do id
devem prevalecer na maior parte da sociedade. Na sua visão, as massas populares são um
“rebanho desorientado”5. Seus desejos devem ser controlados externamente por uma elite
(e não internamente pelo eu) e aproveitados para conservar a ordem do estado capitalista.
Bernays resumiu seu conjunto de técnicas de comunicação social e psicanalíticas mais
tarde, quando, após a Segunda Guerra Mundial, o termo “propaganda” passou a ter
conotações negativas, sob o título Relações Públicas. A partir daí, tais técnicas foram
sistematicamente aprimoradas, destacando-se nesse contexto as teorias do psicólogo Ernest
Dichter. Baseado na teoria de Freud, Dichter cria, a partir da década 1940, nos EUA, um
trabalho com grupos analíticos, que mais tarde serão chamados de “grupos focais”. Nesses
grupos, são pesquisados sentimentos que pessoas têm em relação a determinados produtos,
serviços, embalagens ou propagandas. Conhecendo os desejos e medos que possam ser
associados com o produto ou serviço, este pode ser melhor posicionado no mercado.
Talvez, o produto mais emblemático gerado por Dichter, a partir do trabalho com tais
grupos é a boneca Barbie. Esse brinquedo exemplifica a reprogramação do sujeito que
acontece no capitalismo tardio. Se antes as bonecas ainda eram representações de bebês, a
Barbie agora representa uma mulher sexualmente madura. Antes, o apelo ideológico lançado
para a menina era do tipo “se quiser ser alguém na vida, seja uma boa mãe, que cuida dos
filhos”. Nesse processo de formação do ideal do ego da menina, o imperativo do Grande
Outro barrava o gozo. O pleno gozo aparecia impossível por causa do dever. O apelo
ideológico lançado por meio da identificação com a Barbie é do tipo “se quiser ser alguém na
vida, tenha um corpo atrativo e sexy e se cerque de objetos de luxo”. Agora o Grande Outro
não barra, mas ordena o gozo. O gozo aparece como se fosse possível. Entretanto, o corpo da
Barbie é concebido como um “corpo ideal”, que uma mulher real jamais pode ter. A
impossibilidade do gozo será necessariamente atribuída pela mulher como deficiência dela.
5 Este termo, em inglês “bewildered herd” foi cunhado pelo jornalista Walter Lipman, cujos teorias
conservadoras e elitistas influenciaram o pensamento de Bernays.
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Essa sensação neurotizante de insuperável deficiência, como um duplo vínculo entre desejo
e culpa, produz um aumento do mais-de-gozar que tende a se traduzir em mais consumo.
Para sustentar a ordem do estado capitalista é necessário manter nos indivíduos as
ideias de sua liberdade e soberania racional (uma consciência cartesiana instrumentalizada)
e vincular o consumismo ideologicamente com democracia e cidadania. Nessa lógica, a
doutrina da “soberania do consumidor” foi formulada, na década de 1930, pelo economista
britânico William Harold Hutt. Nela, o consumidor se configura como “rei do mercado”, cujas
demandas, preferências e decisões, supostamente, controlam a oferta de mercadorias.
A soberania dos eleitores e a soberania dos consumidores em instituições democráticas são complementares. A autonomia do indivíduo é expressa dentro dos limites impostos por ambos. Eles não podem ser considerados separados. Mostramos que, como a soberania ideal dos consumidores tem o mesmo tipo de validade que a decisão da urna, que é justificada na medida em que a liberdade e a tolerância podem ser consideradas como princípios eticamente superiores (HUTT, 1936, p. 311, tradução nossa).
Vimos que a sede do capital por crescimento manipula e mobiliza o desejo do sujeito.
Para isso, ele precisa manter no sujeito justamente a ideia inversa: a de que o consumidor
define a demanda e o mercado atende a ela. Encontramos essa engenhosa inversão bem
exemplificada em um slogan da Coca Cola: “sua sede move a nossa”.
6 O DISCURSO DO CAPITALISTA
Qual é então, na teoria lacaniana de discurso, a formação discursiva que contempla a
esta inversão, a esta “falsa elevação” do sujeito consumidor? Em uma conferência em 1972,
quebrando a simetria dos quatro discursos apresentados, três anos antes, Lacan expõe mais
uma quinta formação para designar o discurso do capitalista. Trata-se de uma variação do
discurso do mestre, apenas com os lugares de Significante Mestre e Sujeito Barrado trocados.
Figura 6. Discurso do Capitalista
Fonte: Adaptação de Coelho (2006)
Nesta formação, a lógica do capital (S1 no lugar da verdade) controla os sujeitos
barrados, mantendo neles a ilusão de que seriam autores do discurso ($ no lugar do agente).
Eric Ferdinando Kanai Passone (2013, p.417) descreve este aspecto dessa forma:
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Assim, como agente, o sujeito dividido acredita comandar a produção e o consumo. No entanto, esse sujeito passa a ser determinado pelos novos objetos de consumo, que seduz o sujeito e cria a fantasia de encontrar no real o objeto de desejo. No lugar da verdade, surge o poder do capital, enquanto significante-mestre (S1), que força o sujeito ($) a consumir os objetos (a), os gadgets produzidos pelo saber científico e/ou tecnológico (S2).
A principal diferença do discurso do capitalista em comparação com os quatro
discursos descritos, anteriormente, é que ele não estabelece relação interpessoal. “No
discurso capitalista o laço social inexiste, e é totalmente solipsista, puro gozo equiparável ao
livre curso da pulsão de morte” (PASSONE 2013, p.418). O discurso do capitalista pode ser
entendido justamente como o colapso das relações interpessoais ao passo que estas estão
sendo por ele mercantilizadas ou substituídas pela relação com objetos de consumo. Trata-
se do discurso reproduzido de forma compulsória pelo sujeito consumidor, que tem seu
desejo programado pela lógica do capital e vive atormentado pelos imperativos do gozo.
Nesse aspecto, a formação apresentada por Lacan, em 1972, parece retratar bem o
discurso dominante na sociedade capitalista contemporânea. Entretanto, esta interpretação
não condiz com o seminário 17, em que Lacan (1992, p. 29) apresenta o discurso da
universidade como discurso “do senhor moderno, que se chama capitalista”. No discurso da
universidade, o significante mestre ocupa – assim como na formação apresentada em 1972 –
a posição da verdade oculta, mas o lugar de agente é ocupado pelo saber (S2). No seminário
17, Lacan (1992, p. 99) afirma em relação ao discurso da universidade: “não pensem que o
mestre está sempre aí. O que permanece é o mandamento, o imperativo categórico. Continua
a saber. Não há mais necessidade de que ali haja alguém”.
Como podemos então entender as diferenças e/ou possíveis relações entre esses dois
discursos? Enquanto o discurso do capitalista, contaminando o superego do sujeito com o
imperativo do “goze!”, eleva esse ao lugar do agente, o discurso da universidade enfatiza o
imperativo “saiba!” ou “continua a saber!”. Nele, o saber se apresenta como elemento que
condiciona o gozo: “se você não consegue gozar, é porque você não sabe”. Esse imperativo
não se restringe ao saber acadêmico. Cria-se no sujeito consumidor um ideal paradoxo de um
“gozo consciente” que podemos reconhecer nas propagandas, por exemplo, para café sem
cafeína, cerveja sem álcool, produtos light, etc..
No sistema educacional, o discurso da universidade – destituindo o mestre e
produzindo sujeitos barrados – resulta na mercantilização da educação:
Os desenvolvimentos subsequentes revelaram um aspecto adicional dessa integração total do sistema educacional na reprodução do capitalismo. A privatização das universidades resultou na proliferação de empréstimos estudantis, que imediatamente transformaram o processo educacional em produção de sujeitos endividados. Nesta perspectiva, a universidade tornou-se o microcosmo da tendência capitalista mais geral de fundar a economia em endividamento. (TOMŠIČ 2015, p. 213, tradução nossa).
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A etapa seguinte neste processo consiste na autocomodificação desses sujeitos
barrados (e em grande parte endividados) por meio do discurso do capitalista. Nesse sentido,
Passone (2013, p. 419-423) descreve o “discurso capitalista no campo educacional”, em que
os sujeitos configuram como capital humano e o produto do discurso é a política educacional.
A política educacional, como mais-de-gozar do capitalismo, pode ser lida como investimento para produção de mais capital humano, que por sua vez, retorna como mais-valia para o capitalista. Nesse caso, o resultado é a produção de aumento do individualismo e da competitividade para o sujeito, que se cobra cada vez mais para produzir os objetos de consumo para seu gozo. (PASSONE 2013, p. 420)
Nossa tentativa de relacionar os dois discursos (o da universidade e o do capitalista)
leva ao entendimento de que o desnudamento do discurso do mestre (LACAN, 1992, p.139)
e a produção de sujeitos barrados ($ como produto) por meio do discurso da universidade
criam as condições para que o novo mestre, o capital, possa no discurso do capitalista – agora
encarnado nos sujeitos consumidores – dominar plenamente. Esse novo mestre não
configura mais como um comandante (tipo senhor de escravo), nem como conhecimento
hegemônico (tipo universidade), mas se reproduz naqueles mesmos sujeitos que o discurso
da universidade gerou. O discurso do capitalista seria neste sentido uma progressão, ou seja,
a última consequência do discurso da universidade, o estado final da decomposição dos laços
sociais, quando todas as relações interpessoais estiverem assimiladas pela lógica do capital.
Resta esclarecer a associação do discurso da universidade tanto com o capitalismo,
quanto com o regime stalinista (citamos Lacan, nesse sentido, em seção anterior), o que à
primeira vista pode parecer contraditória. Para reconhecer o discurso da universidade, nas
duas formas políticas, temos que recordar qual é a concepção de conhecimento que as
subsidia. Tanto a planificação econômica socialista quanto a livre concorrência dos
especialistas, no capitalismo tardio, baseiam-se no ideal de um conhecimento científico,
conhecimento de mestre, que não se questiona e que por isso pode mandar, ou seja, o
conhecimento cartesiano:
O conhecimento universitário se conhece como conhecimento e reivindica que é nada além do conhecimento: o capitalismo ocidental e o comunismo soviético desenvolveram dois sistemas simultâneos de dominação por conhecimento, um aparelho de conhecimento, no qual o burocrata estalinista, o especialista capitalista e o Eurocrat de hoje, atrás da aparência de neutralidade, incorporam o mestre [...] (TOMŠIČ 2015, p. 219, tradução nossa)
Hoje, após a falência dos regimes socialistas, os pressupostos da economia política
neoliberal se naturalizaram e se tornaram condições de enquadramento para qualquer
produção de conhecimento e para o desenho das relações humanas. No capitalismo tardio, a
posição do sujeito é comparável com a situação de estar em um labirinto, sofrendo
desorientação e isolação: a ação invisibilizada do Grande Outro priva o sujeito da alteridade
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necessária para sua orientação e ao mesmo tempo isola-o numa busca autocentrada de gozo
e acumulação de conhecimento.
7 CONCLUSÕES
Ao longo do texto, buscamos evidenciar o antagonismo existente no pensamento
ocidental entre genuína aprendizagem – o processo interpessoal que se dá a partir admissão
da condição subvertida do sujeito – de um lado, e o projeto epistemológico-pedagógico
opressor que opera com a ideia de um sujeito não subvertido, do outro lado. Vimos que desde
os gregos antigos até o capitalismo tardio, esse projeto de dominação prevalece. Nesse
sentido, nossas conclusões, a princípio, não podem ser outras senão pessimistas. Chegamos
a discordar com Freud, quando ele afirma que as três profissões impossíveis seriam governar,
educar e analisar (curar). Desde a escravocracia até o capitalismo, a educação, ao reproduzir
estruturas de dominação, funciona como governo. Deste ponto de vista, governar e educar
(entendidos como implementação dos discursos do mestre e da universidade) parecem fáceis
comparados com o desafio de encontrar uma folga nas estruturas da dominação, permitindo
relacionamentos que escapam do paradigma senhor-escravo e viabilizam cura da alma
(discurso do analista) e genuína aprendizagem (discurso da histérica).
Mostramos que, em certos momentos históricos quando essa folga ou brecha se abre,
os mecanismos de dominação, ao fechá-la, se renovam: assim como Platão transformou a
sabedoria do não saber socrático em “saber de senhor”, o capitalismo, prontamente,
aproveitou as descobertas de Freud – capazes de articular a subversão do sujeito – para seu
revigoramento.
Ao mesmo tempo, as teorias freudiana e lacaniana nos permitem – e nisso ainda reside
seu grande valor – subverter os discursos da dominação e, assim, abrem uma perspectiva de
transformação social. A histerização do discurso, como praticada por Sócrates e pelo analista
lacaniano, é possível em diversos contextos, incluindo o da educação institucional,
dependendo, nesse caso, da prontidão do educando em admitir sua condição de sujeito
subvertido. Essa admissão significa o estabelecimento de um laço interpessoal que escapa do
paradigma senhor-escravo. Por sua natureza, esse ato não pode ser explicitado em forma de
uma teoria científica pedagógica ou uma metodologia didática. Qualquer tentativa de
sistematização ou padronização desse processo – a tentativa de traduzi-lo em conhecimento
transmissível – recairia no paradigma da epistemologia, da ciência cartesiana, do “saber de
senhor”. Talvez seja este o paradoxo fundamental de qualquer abordagem pedagógica
científica.
Ao retomar a metáfora do labirinto, podemos vislumbrar uma possível solução do
dilema da educação na sabedoria grega “pré-platônica”, ou seja, no semidizer do mito. O mito
grego conta do sacrifício de jovens que foram largados num labirinto na ilha de Creta, no qual
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se perderam e foram devorados pelo monstro Minotauro. O herói Teseu teria posto um fim
a essa maldição. O que permitiu que Teseu saísse vitorioso, foi – além de sua própria coragem
e força – o laço amoroso que possuía com a princesa Ariadne, manifestado em um fio que ela
tinha dado para ele de presente. Segurando a ponta deste fio enquanto vagava pelo labirinto,
ele foi capaz de, após ter derrotado monstro, encontrar o caminho de volta para a saída. De
maneira comparável, nossos jovens, desorientados e isolados nos labirínticos discursos da
contemporaneidade, estão prestes a serem sacrificados como “material humano” para o
devorador regime do capital. O estabelecimento de um laço interpessoal, por parte do
educador, baseado na histerização do discurso, como exemplificada por Sócrates e pela
prática psicanalítica, pode servir como fio condutor nos processos de subjetivação destes
jovens e permitir que eles resistam à dominação e instrumentalização de seu desejo.
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DOI: 10.20396/etd.v22i1.8653751
© ETD- Educação Temática Digital Campinas, SP v.22 n.1 p.181-201 jan./mar.2020
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Revisão gramatical realizada por: Jacqueline Rodrigues Paiva. E-mail: [email protected].