metástase da crise e aprofundamento da reversão neocolonial - plinio sampaio jr

11
85 Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.1, n.3, Edição Especial - Dossiê: A crise atual do capitalismo, dez. 2011. ISSN: 2237-0579 METÁSTASE DA CRISE E APROFUNDAMENTO DA REVERSÃO NEOCOLONIAL Plínio de Arruda Sampaio Jr* A crise econômica mundial que se iniciou em meados de 2007, com o colapso da especulação imobiliária nos Estados Unidos, completa seu quarto aniversário, sem que qualquer vestígio de que estejam sendo superadas as contradições que a provocaram. A persistência de um gigantesco excedente absoluto de capital que não tem possibilidade de realimentar o circuito de valorização do capital pelo aumento da exploração do trabalho mantém em estado latente, como ameaça devastadora, a tendência à desvalorização violenta da riqueza que paira com um espectro sobre o sistema capitalista mundial. Nesse contexto, a surpreendente capacidade demonstrada pela economia brasileira de crescer em plena tormenta reascendeu em muitos o espírito ufanista, muito em voga na época da ditadura militar, de que “o Brasil seria maior do que a crise”. No entanto, hoje ainda mais do que ontem, não existe a possibilidade de desenvolvimento capitalista em um só país e menos ainda em uma economia que faz parte do elo fraco do sistema. O mercado mundial entrelaça todos os rincões do planeta. Na etapa superior do imperialismo a autonomia relativa do espaço econômico nacional é praticamente nula. A influência determinante do sistema capitalista mundial sobre a economia brasileira manifesta-se tanto nos momentos expansivos do capitalismo como nas conjunturas de contração e crise aberta, quando a queima de capitais obsoletos e a reorganização da economia mundial abrem novas frentes de expansão do capital e estabelecem novas condições para a exploração do trabalho e para a concorrência intercapitalista. Surfando na crise A compreensão dos efeitos de curto e longo prazo da crise sobre o Brasil * Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da UNICAMP.

Upload: jowfull

Post on 18-Dec-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

- Plinio Sampaio Jr

TRANSCRIPT

  • 85

    Crtica e Sociedade: revista de cultura poltica. v.1, n.3, Edio Especial -Dossi: A crise atual do capitalismo, dez. 2011. ISSN: 2237-0579

    METSTASE DA CRISE E APROFUNDAMENTO DA REVERSO NEOCOLONIAL

    Plnio de Arruda Sampaio Jr*

    A crise econmica mundial que se iniciou em meados de 2007, com o colapso

    da especulao imobiliria nos Estados Unidos, completa seu quarto aniversrio,

    sem que qualquer vestgio de que estejam sendo superadas as contradies que a

    provocaram. A persistncia de um gigantesco excedente absoluto de capital que

    no tem possibilidade de realimentar o circuito de valorizao do capital pelo

    aumento da explorao do trabalho mantm em estado latente, como ameaa

    devastadora, a tendncia desvalorizao violenta da riqueza que paira com um

    espectro sobre o sistema capitalista mundial. Nesse contexto, a surpreendente

    capacidade demonstrada pela economia brasileira de crescer em plena tormenta

    reascendeu em muitos o esprito ufanista, muito em voga na poca da ditadura

    militar, de que o Brasil seria maior do que a crise.

    No entanto, hoje ainda mais do que ontem, no existe a possibilidade de

    desenvolvimento capitalista em um s pas e menos ainda em uma economia que

    faz parte do elo fraco do sistema. O mercado mundial entrelaa todos os rinces

    do planeta. Na etapa superior do imperialismo a autonomia relativa do espao

    econmico nacional praticamente nula. A influncia determinante do sistema

    capitalista mundial sobre a economia brasileira manifesta-se tanto nos momentos

    expansivos do capitalismo como nas conjunturas de contrao e crise aberta,

    quando a queima de capitais obsoletos e a reorganizao da economia mundial

    abrem novas frentes de expanso do capital e estabelecem novas condies para a

    explorao do trabalho e para a concorrncia intercapitalista.

    Surfando na crise

    A compreenso dos efeitos de curto e longo prazo da crise sobre o Brasil

    * Plnio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da UNICAMP.

  • Plnio de Arruda Sampaio Jr

    R e

    v i

    s t a

    d

    e

    C u

    l t u

    r a

    P

    o l

    t i c

    a

    86

    passa, portanto, pelo entendimento do modo pelo qual o movimento da crise

    mundial influencia o desempenho da economia brasileira e condiciona o sentido

    das transformaes estruturais que definem a nova posio do Brasil na diviso

    internacional do trabalho. Em seus desdobramentos iniciais, diferenciam-se trs

    momentos.

    Os primeiros passos da crise, entre meados de 2007 e outubro de 2008,

    determinados pelo estouro da bolha especulativa do mercado imobilirio norte-

    americano e pela radical reverso das expectativas de investimento nas economias

    desenvolvidas, desencadearam uma tendncia recessiva nas economias centrais

    e, paradoxalmente, um estmulo acelerao do crescimento nas economias

    emergentes. A oportunidade de crescer no bojo da crise s foi possvel graas

    abundncia de liquidez no mercado financeiro internacional, ao grande afluxo

    de investimentos diretos e ao boom nos preos das commodities fenmenos

    determinados pelo movimento especulativo de fuga para frente das grandes massas

    de capitais excedentes que abandonavam os pases centrais em busca de negcios

    em outras praas. Impulsionado pelo expressivo aumento das exportaes,

    sobretudo de produtos primrios e minerais, o Brasil surfou na onda especulativa.

    Entre outubro de 2008 e maro de 2009, a economia mundial viveu beira

    do abismo. A violenta crise de crdito provocada pela falncia em cadeia de

    conglomerados financeiros que pareciam inabalveis transformou as dificuldades

    at ento localizadas rbita financeira de alguns pases em uma crise geral em

    escala global. O movimento da crise entrava em um segundo momento. A drstica

    contrao dos investimentos, o mergulho vertical do comrcio internacional, o

    colapso nas cotaes dos ativos financeiros e nos preos das commodities, a escalada

    do desemprego, a ameaa de desmoronamento do sistema financeiro internacional

    jogaram o mundo num mergulho recessivo sincronizado sem paralelo desde a

    crise de 1929. Desta feita, ningum passou inclume.

    O Brasil sentiu os efeitos da nova conjuntura internacional de maneira

    particularmente intensa. Os investimentos foram suspensos. O acesso ao mercado

    internacional de crdito interrompido. A entrada de capital estrangeiro paralisada.

    Da noite para o dia, o pas ficou sob a ameaa de um processo descontrolado de

    fuga de capitais. Os efeitos recessivos sobre o desempenho da economia foram

    imediatos e particularmente vigorosos, sobretudo na indstria.

    Contudo, apesar da virulncia das foras desagregadoras que se abatiam

  • C r t i c a e S o c i e d a d e

    87

    Metstase da crise e aprofundamento da reverso neocolonial

    sobre a economia do pas, no se concretizou a expectativa de que o Brasil voltaria

    a viver o suplcio da estagnao e dos programas de ajustes sem fim. A partir

    do segundo trimestre de 2009, a economia comeou a se recuperar. O retorno

    dos capitais internacionais, a elevao dos preos das commodities e dos ativos

    financeiros, a retomada do comrcio internacional, especialmente as exportaes

    para o mercado chins, afastaram o espectro da crise cambial e recompuseram

    paulatinamente as condies externas para o Brasil voltasse a crescer, no obstante

    as economias desenvolvidas, imersas em grandes incertezas, permanecessem

    prostradas.

    Antes de significar um descolamento da crise internacional, a

    surpreendente recuperao do crescimento reflete, na verdade, a forma especfica

    de articulao da economia brasileira com o movimento de metstase da crise o

    terceiro estgio da crise -, desencadeado pela poltica de socializao permanente

    dos prejuzos posta em prtica pelos governos das potncias capitalistas, sob a

    liderana dos Estados Unidos.

    Atuando sobre os efeitos e no sobre as causas dos problemas que travam

    o processo de acumulao, a poltica de administrao da crise no encaminha

    nenhuma soluo duradoura para as contradies que a determinam. Ao no

    desvalorizar os estoques de ativos txicos que comprometem a carteira das

    instituies financeiras, os desequilbrios patrimoniais que fragilizam o sistema

    financeiro continuam impedindo a normalizao das operaes de crdito.

    Ao no abrir novos horizontes para a acumulao de capital, as expectativas

    dos empresrios permanecem deprimidas, comprometendo a possibilidade

    de uma retomada sustentada dos investimentos. Por fim, ao protelar a tomada

    de providncias para regular o movimento de capitais e coordenar as polticas

    econmicas dos Estados nacionais, agravam-se as contradies estruturais que

    impulsionam as rivalidades nacionais, reforando a tendncia fragmentao das

    relaes internacionais.

    O estado de incerteza radical gerado pela ausncia de uma clara definio

    sobre as novas frentes de expanso do capitalismo obriga a massa de capital

    excedente, que foi impedida de se desvalorizar pela providencial interveno do

    Estado, a sair como um zumbi pelo mundo afora cata de negcios circunstanciais,

    levando ao paroxismo a lgica predatria e ultra-especulativa que preside o

    movimento do capital em tempos de crise.

  • Plnio de Arruda Sampaio Jr

    R e

    v i

    s t a

    d

    e

    C u

    l t u

    r a

    P

    o l

    t i c

    a

    88

    Nesse contexto, a relativa recuperao do comrcio internacional e a

    retomada do frenesi especulativo nos mercados de ativos, fenmenos que comeam

    a ganhar fora a partir do segundo trimestre de 2009, antes de significar um sintoma

    de normalizao dos negcios, representam, na verdade, um aprofundamento e

    uma generalizao das contradies responsveis pela situao crtica da economia

    mundial. A escalada dos preos dos ativos financeiros acentua o descompasso

    entre a acumulao fictcia e a produtiva. A macia transferncia de recursos

    pblicos para socorrer as empresas privadas leva expanso exponencial da dvida

    pblica, transformando o desequilbrio patrimonial dos grandes conglomerados

    capitalistas em desequilbrio patrimonial do setor pblico. O impacto desigual

    da crise sobre o sistema capitalista mundial agrava as assimetrias comerciais e

    financeiras entre as economias nacionais, desencadeando uma guerra, mais ou

    menos velada, de desvalorizaes competitivas. Generaliza-se, assim, o risco de

    crises cambiais decorrentes do aumento descontrolado da dvida externa e de

    movimentos especulativos de capitais.

    Em sua primeira manifestao, a metstase da crise avanou de maneira

    aparentemente paradoxal, combinando num mesmo movimento: estagnao

    sem perspectiva de recuperao, nas economias capitalistas mais desenvolvidas -

    Estados Unidos, Alemanha e Japo; severas crises fiscais e cambiais nas economias

    que fazem parte da periferia da zona do euro - Portugal, Itlia, Irlanda Espanha e,

    em especial, Grcia; e crescimento relativamente vigoroso nos pases emergentes

    - China, ndia, Rssia e Brasil regies que se beneficiam da recuperao do

    comrcio internacional, da elevao dos preos das commodities e do grande afluxo

    de capitais internacionais. Contudo, em tempos de crise, qualquer sobressalto

    pode recolocar o Brasil no olho do furaco.

    A soluo americana

    Contrariando os prognsticos apologticos, que asseguravam que a

    economia mundial se encontrava em lenta, mas franca recuperao a partir do

    segundo semestre de 2011, generalizaram-se os sintomas de recrudescimento da

    crise.

    A exausto dos efeitos anticclicos dos programas de gastos pblicos

  • C r t i c a e S o c i e d a d e

    89

    Metstase da crise e aprofundamento da reverso neocolonial

    realizados em 2009 e 2010 faz voltar tona a gravidade dos problemas de

    superproduo que paralisam a economia mundial. Puxada pela contrao dos

    mercados norte-americanos, europeu e japons, a inflexo do crescimento atinge

    todas as regies do globo. O elevado grau de endividamento das famlias e a

    depresso da massa salarial comprometem a capacidade de consumo das famlias.

    A ausncia de horizonte sobre as novas frentes de expanso do capitalismo no

    permite a retomada dos investimentos privados. O arrefecimento do crescimento

    da economia chinesa dissipa a iluso de que um vago, por maior que seja, possa

    puxar a locomotiva. Nesse contexto, as presses para que os Estados Unidos e a

    Unio Europia adotem rgidas polticas de ajuste fiscal reforam o risco de uma

    espiral recessiva.

    A explicitao de que grandes conglomerados financeiros norte-americanos

    e europeus continuam com graves desequilbrios patrimoniais faz reaparecer a

    ameaa de uma crise sistmica que coloca em xeque a integridade da arquitetura

    financeira internacional. O problema de fundo reside na impotncia das autoridades

    monetrias para sanear os ativos txicos dos grandes bancos. Na Unio Europia,

    a questo se confunde, em grande medida, com a crise de endividamento externo

    que contrape os bancos credores de capital alemo e francs aos governos das

    economias devedoras da zona do Euro, como a Grcia, Portugal, Irlanda e, mais

    recentemente, Itlia. A partir do ltimo trimestre de 2011, a drstica diminuio

    do crdito interbancrio recoloca a economia mundial diante a iminncia de uma

    crise de crdito global. O incio de uma nova rodada de desvalorizao de capital

    fictcio pe a nu a persistncia de uma forte discrepncia entre o valor nominal

    dos papis que representam ttulos de propriedade e as possibilidades reais de

    valorizao do capital.

    A crise da Unio Europia coloca em evidncia as fortes contradies

    que ameaam a coeso da ordem econmica internacional. A impossibilidade de

    conciliar os interesses da Alemanha e da Frana, em defesa de seus conglomerados

    financeiros e da estabilidade do Euro, com as necessidades dos pases da Europa

    enredados na armadilha da dvida externa apenas a ponta do iceberg dos

    terrveis conflitos polticos e rivalidades nacionais que fermentam na economia

    mundial. Obrigadas a arcar com o fardo de uma dvida externa impagvel e

    sem possibilidade de desvalorizar a moeda para defender a economia nacional,

    os pases que compem o elo fraco da Unio Europia esto sendo submetidos a

  • Plnio de Arruda Sampaio Jr

    R e

    v i

    s t a

    d

    e

    C u

    l t u

    r a

    P

    o l

    t i c

    a

    90

    draconianas polticas fiscais e de renda que implicam verdadeira traumatizao da

    vida econmica e social. Nesse contexto, o retorno da averso ao risco no mercado

    financeiro internacional pode desencadear um processo de fuga de capitais para o

    dlar, colocando novas regies do globo sob ameaa de estrangulamento cambial.

    Os problemas da economia mundial revelam os impasses da estratgia

    de administrao da crise e as contradies que precisam ser resolvidas para a

    recomposio da relao de unidade entre a produo, distribuio e circulao

    de capital em escala global. Enganaram-se os que imaginaram que a crise abriria

    brechas para reformas keynesianas. A deciso de lidar com a crise pela linha de

    menor resistncia, subordinando a poltica econmica aos interesses do grande

    capital e as relaes internacionais aos desgnios dos Estados Unidos, refora os

    aspectos mais perversos da ordem global. Diga-se de passagem, o fato no deveria

    causar surpresa. Estranho seria que, no momento de maior dificuldade, os grandes

    conglomerados no mobilizassem seu poderio econmico e poltico para avanar

    sobre seus concorrentes e os Estados Unidos no aproveitassem a sua absoluta

    supremacia na ordem econmica internacional para defender com unhas e dentes

    os interesses estratgicos de sua burguesia.

    Ao dobrar as apostas no liberalismo, lideradas pelos Estados Unidos, as

    oligarquias financeiras das potncias imperialistas aproveitam a situao para

    aumentar o controle sobre o mercado mundial e aprofundar ainda mais o seu controle

    sobre o Estado, agora definitiva e irreversivelmente transformado em quartel-

    general do capital financeiro. Submetendo a poltica econmica a um verdadeiro

    estado de exceo, a crise utilizada para atacar os direitos dos trabalhadores,

    investir sobre as polticas sociais e disciplinar as economias nacionais, reduzindo

    ainda mais a soberania dos Estados, especialmente nas regies que compem o elo

    fraco do sistema capitalista mundial.

    A transferncia incondicional de gigantescos montantes de recursos

    pblicos, a custo subsidiado, para financiar os desequilbrios patrimoniais dos

    grandes conglomerados financeiros, bloqueia a digesto do capital excedente,

    protelando para um futuro indeterminado a normalizao da vida econmica.

    O envolvimento direto do Estado no processo de concentrao e centralizao

    de capitais politiza a concorrncia intercapitalista. A sangria de recursos para

    socorrer os bancos provoca um crescimento exponencial da dvida pblica.

    Paradoxalmente, a expanso da dvida pblica aumenta a dependncia do

  • C r t i c a e S o c i e d a d e

    91

    Metstase da crise e aprofundamento da reverso neocolonial

    Estado em relao aos credores. A fuso entre capital financeiro e poder pblico

    compromete a capacidade do Estado de fazer polticas pblicas. Assim, a opo

    preferencial pelo capital financeiro tende a transformar a instabilidade econmica

    em instabilidade poltica, nacional e internacional.

    Em condies de livre mobilidade dos capitais, o excesso de excedentes

    ociosos sem perspectivas de valorizao nos mercados desenvolvidos fomenta um

    vigoroso processo de exportao de capitais. Os gigantescos lucros em especulao

    com carry-trade nos chamados mercados emergentes e a possibilidade de

    converter o capital excedente ameaado de desvalorizao em capital ativo nas

    fronteiras dinmicas do capitalismo tornam-se meios estratgicos no apenas

    de fomentar o ajuste patrimonial dos grandes blocos de capitais como tambm

    de aumentar o controle das empresas transnacionais sobre a economia mundial.

    Assim, a projeo internacional do processo de concentrao e centralizao de

    capitais vincula a redefinio da escala tcnica e financeira dos grandes blocos

    de capitais das economias desenvolvidas e seu reposicionamento no xadrez pelo

    controle do mercado mundial a processos de ajustes que expem todos os pases

    do globo, inclusive os mais desenvolvidos, a movimentos especulativos geradores

    de crises financeiras, fiscais e cambiais e, em seguida, aps o estouro das bolhas

    de especulao, a processos selvagens de internacionalizao e desnacionalizao

    das foras produtivas. A utilizao das crises de dvida soberana para impor novas

    rodadas de liberalizao, desregulamentao e privatizao, como est ocorrendo

    nos pases do sul da Europa, revela que a euforia gerada pela abundncia de

    capitais internacionais e o desespero provocado pelas crises de endividamento

    externo constituem dois momentos organicamente articulados de um movimento

    de conquista do controle das economias nacionais pelo capital internacional. A

    soluo encontrada para digerir o excedente absoluto de capitais passa, assim, por

    uma sucesso de ataques especulativos e ajustes liberais, verdadeiros arrastes,

    que aprofundam o processo de globalizao comandado pelo capital internacional.

    Apesar dos problemas que abalam a economia dos Estados Unidos, a

    importncia estratgica de seus ttulos pblicos como reserva internacional de

    valor permite que os dlares que inundam a economia mundial sejam reutilizados

    para financiar, a um elevadssimo custo econmico e social para o resto do mundo,

    seus gigantescos desequilbrios financeiros, internos e externos. Perpetua-se, assim,

    o imperialismo do dlar. O monoplio da emisso de moeda internacional d ao

  • Plnio de Arruda Sampaio Jr

    R e

    v i

    s t a

    d

    e

    C u

    l t u

    r a

    P

    o l

    t i c

    a

    92

    Estado norte-americano o poder de subordinar o sentido, o ritmo e a intensidade

    do ajuste da economia internacional s exigncias de seu capital financeiro e

    aos interesses de sua razo de Estado. Nessas condies, a burguesia americana

    encontra-se em situao bastante privilegiada para manobrar, a seu favor, as

    vicissitudes da conjuntura, despejando nas costas do resto do mundo, sobretudo

    de sua classe trabalhadora, a maior parte do nus da crise.

    O poder do dlar permite aos Estados Unidos combinar a guerra financeira

    com a guerra cambial. Em condies de livre comrcio, a expressiva desvalorizao

    do dlar tem o efeito paradoxal de acirrar a concorrncia internacional ao mesmo

    tempo em que defende o parque produtivo norte-americano de seus efeitos mais

    destrutivos. O ajuste s novas condies de equilbrio das moedas acentua o

    carter desigual e combinado do desenvolvimento capitalista, beneficiando tanto

    as economias com capacidade de inovao e como aquelas com competitividade

    espria, baseada na superexplorao do trabalho e na depredao do meio

    ambiente. As mudanas em curso tendem, em consequncia, a estreitar ainda mais

    a integrao comercial, econmica e financeira da Alemanha e da China com os

    Estados Unidos, ficando as demais economias do globo relegadas aos espaos

    secundrios e residuais da nova diviso internacional do trabalho.

    Sem autonomia monetria, financeira e econmica para impulsionar o

    desenvolvimento capitalista em bases autodeterminadas, o raio de manobra das

    economias nacionais para fazer frente aos ditames dos Estados Unidos bastante

    limitado. Ainda que o movimento da crise acirre as rivalidades nacionais, levando

    ao limite as tendncias fragmentao da ordem global, pouco provvel que

    as presses protecionistas encontrem sustentao poltica efetiva para se tornar

    realidade. Na etapa superior do imperialismo, os interesses das burguesias, ainda

    que bastante heterogneos, encontram-se inextricavelmente comprometidos com

    a ordem global. Sob o risco de uma forte contrao na produtividade do trabalho

    e de um processo cataclsmico de desvalorizao de capitais, o grau de integrao

    comercial, produtiva e financeira do capitalismo no permite volta atrs no

    processo de liberalizao. No toa, os organismos internacionais lanaram a

    consigna de que as adversidades devem ser enfrentadas com resilincia. As

    economias nacionais devem suportar os sacrifcios impostos pela crise sem

    questionar a ordem. Na ausncia de alternativa, a soluo americana afirma-se

    como fato consumado. Os pases que ousarem desafiar o liberalismo sero severa

  • C r t i c a e S o c i e d a d e

    93

    Metstase da crise e aprofundamento da reverso neocolonial

    e impiedosamente punidos.

    A estratgia de combate crise do liberalismo com mais liberalismo est

    conduzindo o mundo a um caminho to irracional e absurdo quanto seria combater

    a raiva mordendo o co que a transmite. A incontrolabilidade do capital em escala

    global leva ao paroxismo os efeitos perversos da crise. O aumento do desemprego

    estrutural e o aprofundamento da precarizao do trabalho acirram a crise social.

    A poltica de ajuste fiscal permanente compromete a capacidade do Estado de

    fazer poltica anticclica e de financiar o gasto social. Os efeitos destrutivos da

    crise suscitam rivalidades nacionais, mas a impotncia para enfrentar o capital

    financeiro e desafiar a ordem global obriga as burguesias dos diferentes pases

    a resignar-se aos ditames da soluo americana. Nessas condies, s resta s

    burguesias o recurso fora bruta como meio de enfrentar a convulso social e

    impor classe trabalhadora condies ainda mais draconianas de explorao.

    No impossvel que o desdobramento da crise fuja de controle e tenha

    um desfecho espetacular que comprometa os alicerces da ordem global, jogando o

    mundo num processo de disrupo de consequncias imprevisveis. No entanto,

    o mais provvel que o movimento da crise se arraste por tempo indefinido,

    alternando momentos de relativa tranquilidade com momentos beira do abismo.

    Nessas circunstncias, muito alm de eventuais rivalidades nacionais que, salvo

    casos excepcionais e perifricos, no tem como ganhar corpo e desdobrar-se em

    conflitos de maior envergadura e consequncia, a crise econmica tende a polarizar

    a luta de classes entre a soluo do capital que defende o aprofundamento da

    globalizao da barbrie e a soluo do trabalho que, na necessidade de deter o

    avano da barbrie, se ver obrigada a reinventar o caminho do socialismo.

    Crise permanente e reverso neocolonial

    difcil prever o impacto da nova conjuntura internacional sobre o

    crescimento da economia brasileira. O desempenho do nvel de atividade no ltimo

    semestre j reflete os efeitos da mudana na conjuntura internacional. No entanto,

    para quem examina o impacto da crise sobre o futuro do Brasil como sociedade

    nacional capaz de comandar o seu destino, a perspectiva no pode circunscrever-

    se ao desempenho quantitativo da economia. Na realidade, mesmo em momentos

  • Plnio de Arruda Sampaio Jr

    R e

    v i

    s t a

    d

    e

    C u

    l t u

    r a

    P

    o l

    t i c

    a

    94

    de expanso da economia, os desequilbrios macroeconmicos e as transformaes

    qualitativas desencadeadas pela crise aprofundam e aceleram a tendncia

    reverso neocolonial que agrava os antagonismos entre desenvolvimento

    capitalista, igualdade social e soberania nacional.

    A combinao perversa de dficits crescentes no balano de pagamentos em

    conta corrente com a entrada indiscriminada de capital internacional - sobretudo

    capitais volteis em busca de ganhos especulativos de curto prazo com operaes

    de carry trade e investimentos diretos no setor de servios e em atividades

    primrio-exportadoras - leva a um aumento exponencial do passivo externo e

    a um reforo do desequilbrio estrutural no hiato de recursos do setor externo.

    Assim, por mais paradoxal que possa parecer, as condies que impulsionam o

    crescimento da economia brasileira a abundncia de divisas - trazem inscritas

    contradies que aumentam perigosamente a vulnerabilidade do pas a crises de

    estrangulamento cambial.

    A absoluta subordinao do Estado brasileiro aos interesses dos rentistas

    - internos e externos - e do grande capital - nacional e internacional - compromete

    a poltica econmica ainda mais com medidas que implicam expanso perversa

    da dvida pblica. O elevado custo para o Tesouro do acmulo de gigantescos

    volumes de divisas internacionais, o aumento indiscriminado da renncia fiscal,

    na forma de grandes subsdios e isenes para o grande capital, e a magnitude

    descomunal das despesas com juros e amortizao da dvida pblica reforam a

    dinmica perversa de expanso do endividamento pblico. Nessas circunstncias,

    mesmo crescendo, a fragilidade fiscal do Estado brasileiro aumenta e o risco de

    uma grave crise financeira torna-se cada vez maior.

    Num contexto de grande desemprego e crescente precarizao das relaes

    de trabalho, o recurso expanso descontrolada do endividamento das famlias

    como forma de aumentar o gasto com consumo representa uma estratgia

    temerria de expanso do mercado interno medida que eleva perigosamente a

    exposio do sistema bancrio ao risco de insolvncia das famlias. A possibilidade

    de tal risco se transformar em crise bancria tornar-se- particularmente intensa

    no momento em que a reverso da conjuntura internacional interromper o ciclo

    de crescimento. A modernizao dos padres de consumo nunca foi to perversa

    para a sociedade brasileira.

    Por fim, a poltica de incentivar a entrada de indstrias sujas, que se

  • C r t i c a e S o c i e d a d e

    95

    Metstase da crise e aprofundamento da reverso neocolonial

    deslocam dos pases desenvolvidos para fugir do rigor da legislao ambiental,

    e a impotncia diante da guerra de desvalorizao cambial deflagrada pelos

    Estados Unidos aceleram e aprofundam o processo de regresso industrial e

    especializao regressiva que caracterizam a insero passiva da economia

    brasileira na globalizao dos negcios. A exposio da economia brasileira fria

    da concorrncia em tempos de crise simplifica ainda mais seu sistema produtivo,

    pois, sem competitividade dinmica para enfrentar as economias centrais e

    sem competitividade espria para fazer frente s economias asiticas, o nico

    caminho que lhe resta explorar as vantagens competitivas absolutas. Na diviso

    internacional do trabalho que se desenha, o Brasil tende a ser relegado a uma

    posio terciria de mero fornecedor de produtos primrios e semimanufaturados,

    de baixo contedo tecnolgico, alto consumo de energia e elevado impacto negativo

    sobre o meio ambiente.

    Recebido em: set/2011Aprovado em: dez/2011