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MESTRADO EM LETRAS Marileda Inês de Borba O CRIME EM DEFESA DA HONRA E A NARRATIVA LITERÁRIA: UM ENTRECRUZAR DE CAMINHOS DA LITERATURA E DO PENSAMENTO JURÍDICO Santa Cruz do Sul, abril de 2007.

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MESTRADO EM LETRAS

Marileda Inês de Borba

O CRIME EM DEFESA DA HONRA E A NARRATIVA LITERÁRIA: UM

ENTRECRUZAR DE CAMINHOS DA LITERATURA E DO PENSAMEN TO

JURÍDICO

Santa Cruz do Sul, abril de 2007.

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Marileda Inês de Borba

O CRIME EM DEFESA DA HONRA E A NARRATIVA LITERÁRIA: UM

ENTRECRUZAR DE CAMINHOS DA LITERATURA E DO PENSAMEN TO

JURÍDICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras – Mestrado, Área de

Concentração em Leitura e Cognição,

Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,

como requisito parcial para obtenção do título de

Mestre em Letras.

Orientadora: Prof ª. Dr. Eunice Piazza Gai

Santa Cruz do Sul, abril de 2007.

COMISSÃO EXAMINADORA

Titulares

Prof.ª. Dr. Eunice Piazza Gai – Orientadora - UNISC

Profª. Dr. Sandra Regina Martini Vial – UNISINOS / UNISC

Prof. Dr. Norberto Perkoski - UNISC

Prof. Dr. Rui Portanova – Desembargador do TJRS

“Ela demorou apenas o tempo necessário para dizer o nome.

Buscou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e

tantos nomes confundíveis deste mundo e do outro, e o deixou

cravado na parede com seu dardo certeiro, como a uma borboleta

indefesa cuja sentença estava escrita desde sempre.

– Santiago Nasar – disse”.

(GARCÍA MÁRQUEZ, G. Crônica de uma morte anunciada)

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é produto de muito estudo e de pesquisa, mas também é o

resultado de solidariedade e de amizade. Assim, agradeço a todos que, de uma

forma ou de outra, contribuíram para sua realização: aos meus professores, aos

colegas, aos meus amigos e à minha família. Sou grata, de maneira especial, à

minha orientadora e ao meu pai.

RESUMO

Este estudo analisa o romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel

García Márquez, cujo enredo gira em torno de um crime em defesa da honra.

Investigam-se, primeiramente, as diversas noções de honra apresentadas nos

domínios da filosofia, da antropologia e da sociologia. A seguir, são discutidos

conceitos ligados ao pensamento jurídico e mais especificamente sobre uma figura

denominada legítima defesa da honra. A análise composicional e a interpretação

ocorrem via estudo dos elementos que constituem a obra, ou seja, das categorias

narrativas. Essas são relacionadas ao tema central, bem como a outros que a ele se

referem, como o amor, a vingança, o preconceito, a violência, a obrigação social e o

costume. Apresentam-se, por fim, reflexões sobre os saberes proporcionados pelo

texto literário e como esses se entrecruzam aos conhecimentos adquiridos sobre

honra, fundamentados no pensamento jurídico e demais áreas pesquisadas. O

romance de Gabriel García Márquez caracteriza-se por ambivalência e dialogismo.

É um texto ficcional que interroga valores humanos e busca subverter,

principalmente, no que tange à conduta padrão, dogmas sociais, procedimentos

jurídicos e concepções de justiça.

Palavras-chave: honra, crime, ficção, ambivalência, narrativa.

RESUMEN

Este estudio analiza el romance Crónica de una muerte anunciada, del

escritor Gabriel García Márquez, cuyo enredo gira alrededor de un crimen en

defensa de la honradez. Investigase, primeramente, las diversas nociones de

honradez presentadas en los dominios de la filosofía, de la antropología y de la

sociología. En seguida, son discutidos conceptos ligados al pensamiento jurídico y

más específicamente sobre una figura denominada legítima defensa de la

honradez. El análisis composicional y la interpretación ocurren vía estudio de los

elementos que constituyen la obra, o sea, de las categorías narrativas. Esas son

relacionadas al tema central, bien como a otros que germinan en torno de este,

como el amor, la venganza, el prejuicio, la violencia, la obligación social y la

costumbre. Presentase, al fin, reflexiones sobre los saberes proporcionados por el

texto literario y como esos se entrecruzan a los conocimientos adquiridos sobre

honradez, fundamentados en el pensamiento jurídico y demasiadas áreas

pesquisadas. El romance de Gabriel García Márquez se caracteriza por su

ambivalencia y dialogismo. El texto ficcional interroga valores humanos y busca

subvertir, principalmente, en que se refiere a la conducta normalizada, dogmas

sociales, procedimientos jurídicos y concepciones de justicia.

Palabras maestras : honradez, crimen, ficción, ambivalencia, narrativa.

SUMÁRIO

COMISSÃO EXAMINADORA.............................................................................................2RESUMO....................................................................................................................................5RESUMEN..................................................................................................................................6INTRODUÇÃO...........................................................................................................................9

1 NOÇÕES E CONCEITOS DE HONRA..............................................................................12

1.1 A Honra Sob o Enfoque Filosófico.....................................................................................131.1.1 A Concepção Aristotélica e o Pensamento de André Comte-Sponville ..........................141.1.2 A Filosofia Espinosiana: Honra e Noções do Bem e do Mal...........................................161.1.3 Honra e Costume: A Perspectiva de Francisco Bacon, Baltasar Gracián e de Michel deMontaigne .................................................................................................................................181.1.4 A Visão Irônica de La Rochefoucauld, Matias Aires e Fernando Pessoa........................201.1.5 Arthur Schopenhauer e A arte de se fazer respeitar ou tratado sobre a honra..................241.2 As Relações Intersubjetivas e a Legítima Defesa da Honra sob um Enfoque Sociojurídicoe Antropológico.........................................................................................................................331.2.1 A Honra e as Relações Sociais de Gênero........................................................................341.2.2 Noção de Honra e Diferenças de Classes ........................................................................381.2.3 A Legítima Defesa da Honra: Em Que Consiste e Origem..............................................421.3 O Tema da Honra Religando Os Saberes Filosófico, Sociojurídico e Antropológico........432 O ROMANCE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA: COMPOSIÇÃO EINTERPRETAÇÃO..................................................................................................................47 2.1 A Estrutura do Romance : O Tempo e A Crônica.............................................................492.2 O Enredo: Verossimilhança e Produção de Sentidos.........................................................572. 3 O Espaço na Narrativa.......................................................................................................632.3.1 Espaço Físico e Contexto Geográfico..............................................................................652.3.2 Espaço Social e Contexto Histórico.................................................................................672.4 O Foco Narrativo ...............................................................................................................712.4.1 O Narrador-Relator e os Múltiplos Pontos de Vista .......................................................722.4.2 A Perspectiva Dialógica e o Tema da Honra....................................................................772.5 As Personagens: Construção e Perfil...................................................................................802.5.1 A Vítima...........................................................................................................................812.5.2 A Personagem Pivô do Crime..........................................................................................822.5.3 Um Forasteiro: O Noivo...................................................................................................862.5.4 Os Assassinos: Pedro e Pablo Vicário..............................................................................893 AMBIVALÊNCIA E SUBVERSÃO NO ROMANCE CRÔNICA DE UMA MORTEANUNCIADA ..........................................................................................................................94O escritor Gabriel García Márquez apresenta uma discussão sobre o tema da honra que, dentreoutros, é considerado uma de suas obsessões. Segundo consta no site de literatura hispano-

americana “Centro Virtual Cervantes”, em matéria que se intitula Gabriel García Márquez,obsesiones del autor, o escritor colombiano fundamenta sua escritura em assuntos quediscutem o universo das relações humanas:..............................................................................94García Márquez chega a ser contemporâneo da eternidade ao apoderar-se do tempo, uma desuas obsessões, como o amor e a morte ou a honra e a vingança, elementos com que cria umaparticular mitologia. Sua literatura mistura anedotas familiares que se somam à história, aosrelatos cosmogônicos, a contos populares de sua terra, enfim, há todo um fluir de lembrançase de saberes que acabam por se projetar em sua ficção e se apresentam como entidadessobrenaturais questionando nossa noção do real.(http://CVC.Cervantes.es/ACTCULT/garcía_márquez/ obsesiones del autor; acesso em 17/12/06; tradução da autora)..............................................................................................................943.1 A Honra e a Concepção de Justiça em Crônica de uma morte anunciada...........................943.2 Ironia e Crítica à Ciência Jurídica: O Juiz, Amante da Literatura e O Processo, UmEnigma.......................................................................................................................................993.3 Literatura e Pensamento Jurídico: Uma Relação Histórica .............................................1053.3.1 As Origens......................................................................................................................1073.3.2 A Honra: das Narrativas Fundadoras à Obra de García Márquez..................................110CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................113Os conhecimentos proporcionados pela ficção literária permeiam a vida e as relaçõeshumanas, agregando-se a outros e, assim, o presente trabalho, com o intuito de discutir eaprofundar esses saberes explorados na Literatura, analisa o romance Crônica de uma morteanunciada, de Gabriel García Márquez, estudando o tema da narrativa: o crime em defesa dahonra. ......................................................................................................................................113REFERÊNCIAS......................................................................................................................118

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa busca estabelecer relações entre literatura e pensamento

jurídico a partir da análise do texto literário Crônica de uma morte anunciada, de

Gabriel García Márquez, cuja história se constrói em torno de um crime cometido em

defesa da honra, tema da referida obra. Para tanto, investiga primeiramente as

diferentes noções de honra veiculadas nos contextos literário, antropológico,

sociojurídico e filosófico. Posteriormente, por meio da análise da estrutura ficcional,

estabelece uma discussão sobre o tema da honra, buscando alcançar as noções já

apresentadas nas áreas do conhecimento filosófico, da antropologia, da sociologia e

do pensamento jurídico.

O trabalho propõe uma análise do texto literário a partir dos elementos da

estrutura ficcional com vistas a explicar os motivos que induzem ao cometimento de

um crime dessa natureza. É a arte debruçando o seu olhar sobre a vida, os

costumes, as convicções, o que revela a existência de uma fusão entre valor estético

e valor cognoscitivo da obra literária.

Autores como García Márquez, com um olhar agudo e perspicaz sobre o

mundo, identificam um material bruto, originado pela natureza das paixões humanas,

do qual podem extrair o tema e construir sua ficção, transformando, dessa forma, o

texto literário – o discurso ficcional – em portador de uma certa visão profunda da

realidade humana, como bem diz o crítico Anatol Rosenfeld (ROSENFELD, 2002, p.

21).

A literatura, como se sabe, proporciona maneiras específicas de conceber a

realidade. O saber proporcionado pela ficção literária conjuga-se a outros

conhecimentos, que são propiciados por experiências cotidianas e ligados a

contextos diversos. Tem-se, então, com este trabalho, a intenção de unir saberes,

conforme a proposta de Edgar Morin, pois, segundo o autor: “Os saberes são

empilhados porque não são reunidos e ligados uns aos outros” (MORIN, 2001, p.

270).

Através da pesquisa, busca-se descobrir as diversas noções de honra

existentes. A honra é o foco do primeiro capítulo e, com ele, pretende-se apresentar

uma visão nutrida por diversas perspectivas do que seja a honra e verificar de que

propriamente se alimenta esse sentimento.

Em um segundo capítulo, são analisadas a estrutura e a construção da

narrativa em estudo. Os elementos do texto que servem como objetos de análise

são as personagens, o enredo e o tema, o tempo e o espaço, e a focalização.

Verifica-se a construção do enredo baseado no crime em defesa da honra. Investiga-

se a constituição das personagens: a vítima, os assassinos, a personagem pivô do

crime, e a figura do noivo, que também protagoniza, de certa forma, a intriga.

Explora-se, assim, a perspectiva dialógica, que se efetiva, no romance, por meio das

vozes das personagens e do próprio narrador. Essas vozes são percepções e visões

dos fatos, na narrativa, que ora coincidem, ora divergem entre si.

Também, neste capítulo, trabalha-se o tema, relacionando-o a categorias de

espaço e de tempo. Procura-se, especificamente, enfocar questões que envolvem o

espaço social dentro do contexto histórico-geográfico latino-americano, uma vez que

a obra analisada nele se insere e expressa, através do mundo das personagens,

esse contexto. Analisa-se, também, a categoria de tempo sendo que, no texto de

Gabriel García Márquez, esse é um elemento importante na definição da forma de

construção do enredo.

Em um terceiro e último capítulo, verifica-se, então, como estão entrelaçados,

dentro da narrativa literária analisada, os aspectos estudados e apresentados nos

dois primeiros capítulos desta pesquisa: o tema honra e a trama construída no

enredo a partir da ação das personagens. Procura-se estabelecer, dessa forma,

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relações entre um tema jusfilosófico – o crime e a honra – e o imaginário produzido

na ficção literária.

Basarab Nicolescu (1999) entende que “[...] o real é uma dobra do imaginário

e o imaginário é uma dobra do real. Os antigos tinham razão: existe mesmo uma

imaginatio vera, um imaginário fundador, verdadeiro, criador, visionário”

(NICOLESCU, 1999, p. 79). Logo, no mundo do possível, apresentado em narrativas

literárias, o imaginário atua como um nível de realidade, atravessando a fronteira do

conhecimento literário, dialogando com outro nível de realidade, ao interagir com o

conhecimento antropológico, sociojurídico e filosófico.

Esta pesquisa busca um olhar que parte do texto ficcional, estende-se e se

debruça sobre realidade e imaginário; assim, são produzidos conhecimentos que se

aproximam, mantendo suas especificidades e singularidades, e se complementam

através da cooperação mútua, pois necessitam um do outro. Enfim, este trabalho

apresenta uma dimensão cognitiva, porque busca entender como a noção de honra

é apreendida, determinando visões de mundo, comportamentos, atitudes e, até

mesmo, conduzindo destinos. A interação de saberes é também foco deste estudo,

que parte da investigação de como a honra se configura na filosofia e nas demais

áreas pesquisadas, bem como na literatura.

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1 NOÇÕES E CONCEITOS DE HONRA

De acordo com Abrahão Koogan e Antônio Houaiss (1993), define-se “honra”

como “um sentimento de dignidade e honestidade moral; glória e estima que

acompanham a virtude e o talento; homenagem e motivo de admiração”. São várias

as perspectivas sob as quais o conceito de honra pode ser entendido: filosófica,

antropológica, jurídica, sociológica. As concepções sobre a honra podem sofrer

modificações em suas perspectivas e enfoques, porém ultrapassam o tempo, épocas

e alcançam os mais diferentes territórios.

A filosofia permite olhares múltiplos sobre o tema, mas esses estão sempre

ligados a sentimentos, valores ou princípios éticos e virtudes. A antropologia tece

considerações sobre as diferenças de gênero ou classe social e a sociologia enfoca

o tema da honra sob uma perspectiva fundada nas diferenças ou desigualdades que

se estabelecem nas relações sociais. A ciência jurídica institui que a honra insere-se

entre os bens jurídicos a serem tutelados, como vida, liberdade, propriedade, entre

outros, e por bem jurídico entende-se a noção apresentada por Lênio Streck (1994).

Segundo o jurista:

O conceito de bem jurídico seria, assim, a categoria jurídica utilizada paraexplicitar os valores sociais protegidos pelo Direito Penal. O delito passa aser entendido, então, como a ofensa ou ameaça a um daqueles valoressociais, ou seja, a ofensa ou ameaça a um bem jurídico penalmentetutelado. Resumidamente, bem jurídico, no sentido atribuído pela dogmáticapenal, é tudo aquilo que satisfaz uma necessidade do homem, seja esta denatureza material ou imaterial. O bem ou interesse jurídico constitui o objetoda proteção outorgada pela norma penal [...]. (STRECK, 1984, p. 43)

A honra é apresentada ora como um valor externo, adquirido e atribuído, e

percebida como sinônimo de fama e glória, ora outras percepções e conceitos

estabelecem que está ligada à virtude, à dignidade e retidão de caráter, ou seja, é

construída pelo indivíduo através de suas próprias ações, de seu comportamento, e

cabe tão-somente a ele preservá-la através de suas atitudes. É um elemento de

relevância na conduta do ser humano, tanto em relação ao indivíduo consigo

mesmo, isto é, sua auto-imagem e identidade, quanto nas relações intersubjetivas e

comportamento social. O significado do sentimento de honra, por ser complexo, é

investigado, então, por diversas áreas do conhecimento ligadas às ciências

humanas e sociais.

É, sobretudo, a complexidade humana que traz à discussão temas como a

honra, e esse, historicamente, comprova-se como um elemento que interfere nas

relações entre sujeitos, podendo, assim, constituir determinado padrão de

comportamento social. Uma interrogação que se tem apresentado diz respeito ao

fato de a honra ser um elemento meramente cultural e, portanto, aprendido e

adquirido, constituindo-se, assim, um aspecto sociocognitivo.

Dessa forma, este trabalho traz, no primeiro capítulo, conceitos, noções e

princípios filosóficos, antropológicos e sociojurídicos que possam responder a esse

tipo de interrogação. A seleção dos textos teóricos e dos autores que exploram o

tema da honra na tradição filosófica, e nas demais áreas pesquisadas, ocorre a partir

do estudo da obra literária, isto é, foram privilegiados os textos que apresentavam a

honra ligada a sentimentos e convicções também presentes no contexto do

romance.

1.1 A Honra Sob o Enfoque Filosófico

Diferentes filósofos, ao longo dos tempos, têm explorado o tema da honra em

seus estudos. Apresenta-se, a seguir, um recorte das noções filosóficas que têm

repercussão no pensamento ocidental. Sendo assim, aqui, foram elencadas

algumas concepções sobre honra que se aproximam do tema apresentado na obra

literária Crônica de uma morte anunciada e, que, também, à semelhança do

romance, discutem outros sentimentos ligados à honra. O sentimento de honra é um

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tema importante no pensamento filosófico, portanto, alguns pensadores dedicaram-

se a ele e o estudaram com profundidade. A filosofia reflete, então, sobre diversos

aspectos que envolvem o sentimento de honra e que se evidenciam no

comportamento humano, quer seja coletivo ou individual.

1.1.1 A Concepção Aristotélica e o Pensamento de André Comte-Sponville

As primeiras noções e o conceito de honra foram apresentados por

Aristóteles, já na Antigüidade, nas obras Arte Retórica e Ética a Nicômaco. O filósofo

define a honra “como a boa opinião que os outros fazem de nós, sendo ela o maior

dos bens exteriores” (ARISTÓTELES, 1984, p. 107). Configura-se, então, como uma

qualidade a ser desejada e é condição sine qua non para que um indivíduo possa

ser considerado virtuoso, ou, segundo Aristóteles, “magnânimo”. Sendo assim, há

um entendimento de que ser honrado depende da opinião alheia, porém a retidão de

caráter precede a isso.

Aristóteles, ao discorrer sobre a boa e a má conduta humana, entende que

virtudes são disposições de caráter, e que os vícios e as paixões humanas são, em

si mesmos, ruins e não dependem sequer de seu excesso ou ausência. Na filosofia

contemporânea, André Comte-Sponville entende virtude como: “uma força que age e

pode agir. [...] a virtude de um ser é o que constitui o seu valor [...]: a boa faca é a

que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata bem”

(SPONVILLE, 1995, p. 7-8).

Aristóteles postula como um meio-termo entre honra e desonra “o justo

orgulho”. O excesso de sentimento de honra qualifica-se como uma espécie de

vaidade, e a deficiência desse sentimento é entendida como uma humildade

indevida. À honra aliam-se outras virtudes como a coragem e a bravura e, para o

filósofo antigo, sobretudo, deve aliar-se o equilíbrio e temperança ou, conforme as

suas próprias palavras, “a justa medida” (ARISTÓTELES, 1984, p. 74). Segundo

Aristóteles: “O homem magnânimo é bom e a honra é o prêmio de suas virtudes”

(ARISTÓTELES, 1984, p. 108).

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Na definição aristotélica, tem-se a honra como um bem exterior ligado à

opinião alheia, mas o controle das emoções e o equilíbrio são fundamentais para

que, no homem, o sentimento de honra seja uma virtude e esteja ligado à grandeza

da alma. A honra, enquanto virtude, segundo a filosofia antiga, é necessária e deve

ser almejada. A vaidade, porém, é o excesso e, portanto, um vício. De acordo com

Aristóteles, “o vaidoso excede em relação aos seus méritos próprios”

(ARISTÓTELES, 1984, p. 93). E, ainda, segundo o entendimento da filosofia

aristotélica, o homem magnânimo deseja honras, mas esse desejo é moderado e ele

deve usar de temperança frente a riquezas, poder e prazeres, sendo essas as mais

conhecidas dentre as paixões humanas.

O homem magnânimo, conforme Aristóteles, também usará de prudência “a

toda boa ou má fortuna que lhe advenha e não exultará com a boa fortuna e nem se

abaterá com a má [...], nem para com a própria honra ele se conduz como se fosse

uma coisa extraordinária” (ARISTÓTELES, 1984, p. 108). Nesse sentido, entende-se

fortuna enquanto sorte, desígnios do destino. A magnanimidade e a retidão de

caráter são, segundo o filósofo grego, virtudes essenciais para que um indivíduo

tenha honra; ele afirma, em sua obra Ética a Nicômaco, que: “só merece ser

honrado o homem bom” (ARISTÓTELES, 1984, p. 108).

Para André Comte-Sponville, toda virtude, na filosofia aristotélica, representa

“uma cumeada entre dois abismos. [...] Assim o é no caso da magnanimidade, esta é

a grandeza da alma: quem se afasta por deficiência cai na baixeza da alma”

(SPONVILLE, 1995, p.155). O desprezo e a desestima ou, ainda, de acordo com

Baruch de Espinosa, a abjectio consiste na ausência de virtudes, e segundo Bernard

Pautrat, citado por Sponville (1995), a “baixeza” se traduz em fazer de si menos caso

do que seria justo ou adequado. Sendo assim, concordam os filósofos que o meio-

termo, o equilíbrio, é razão fundamental para que um homem seja considerado bom,

magnânimo e honrado. O apreço por si próprio em excesso é vaidade, e a

humildade exagerada denota desprezo e ausência de virtudes.

Para Aristóteles, também a honra é objeto de desejo de todo homem bom, mas

ele a deseja sempre de acordo com seus méritos. Honra e magnanimidade são

virtudes irmãs e não coexistem com a vaidade que, por ser excesso, é um vício e

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uma tolice, e o homem virtuoso não é um tolo. Por outro lado, a ausência de estima,

de sentimento de honra e de dignidade também se constitui um vício; é uma

“baixeza da alma”.

[...] diz-se que é magnânimo o homem que com razão se considera digno degrandes coisas; pois aquele que se arroga uma dignidade a que não faz jusé um tolo, e nenhum homem virtuoso é tolo ou ridículo. Por outro lado, o quese julga digno de grandes coisas sem possuir tais qualidades é vaidoso [...].(ARISTÓTELES, 1984, p. 107)

É preciso, no entanto, distinguir a desestima e o desprezo por si, isto é, a

micropscuchia aristotélica, da humildade e simplicidade. Sendo essas últimas

consideradas como virtudes. Sponville, afirma em sua obra, Pequeno tratado das

grandes virtudes, que, também para Fénelon, “a simplicidade é uma retidão da alma

que corta qualquer volta inútil sobre si mesma e sobre suas ações. Ela é

despreocupada, [...]: ela se ocupa do real, não de si. É o contrário do amor-próprio”

(FÉNELON, apud SPONVILLE, 1995, p 168). Para Sponville (1985), o amor-próprio

assemelha-se à vaidade, é o excesso e, portanto, não é uma virtude. E assim,

sentimentos diferentes como vaidade, humildade e amor-próprio estão ligados ao

sentimento de honra e são entendidos, por alguns filósofos, como vício e, por outros,

virtude desde que na justa medida aristotélica.

1.1.2 A Filosofia Espinosiana: Honra e Noções do Bem e do Mal

A honra e os sentimentos que a ela estão associados como vaidade, inveja e

o amor-próprio, que ora figuram como virtude, ora como vício, de acordo com

diferentes concepções filosóficas, também aparecem no pensamento de Baruch de

Espinosa, em Tratado da correção do intelecto (1983), obra em que reflete sobre o

“supremo bem”, ou seja, o bem verdadeiro, em contraponto às facilidades do

cotidiano adquiridas através da honra e das riquezas. Ele postula que, para obter a

honra, enquanto fama e glória, o homem acaba por submeter e escravizar sua

conduta à opinião alheia e, então, os homens, em sua maioria, acabam almejando o

que vulgarmente todos buscam.

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Nesse sentido, para Espinosa, a busca da honra distancia o homem da busca

do “supremo bem”. Para o filósofo, os homens costumam fugir do que todos fogem:

da verdade, da natureza e essência das coisas, e passam a desejar o que o senso

comum determina: honra, fama, glória, concupiscência e riquezas. Assim se

manifesta o pensador acerca do tema:

[...] as coisas que ocorrem mais na vida e são tidas pelos homens como osupremo bem resumem-se, ao que se pode depreender de suas obras,nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência. Por elas a mente sevê tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outrobem.[...] Também procurando as honras e a riqueza, não pouco a mente sedistrai, mormente quando são buscadas por si mesmas, porque então serãotidas como o sumo bem. Pela honra, porém, muito mais fica distraída amente, pois sempre se supõe ser um bem em si e como que o fim último aoqual tudo se dirige. [...] a honra representa um grande impedimento pelo fatode precisarmos adaptar nossa vida à opinião dos outros, a saber, fugindo doque os homens em geral fogem e buscando o que vulgarmente procuram.(ESPINOSA, 1983, p. 43-44)

A idéia espinosiana de “supremo bem” apresenta-se de acordo com a

concepção que Espinosa tem do que é o bem e do que é o mal. Segundo o filósofo:

“[...] o bem e o mal não se dizem senão relativamente, [...] uma coisa pode ser

chamada boa ou má conforme as diversas relações assim como se dá com o

perfeito e o imperfeito” (ESPINOSA, 1983, p. 45). Ainda sobre reflexões referentes

às noções do bem e do mal, manifesta-se da seguinte forma:

Nada, com efeito, considerado em sua natureza, será dito perfeito ouimperfeito; principalmente depois de sabermos que tudo o que é feitoacontece segundo uma ordem eterna e conforme as leis da Natureza. [...]porém, a fraqueza humana não alcança aquela ordem pelo seuconhecimento e, entretanto, o homem concebe alguma natureza muito maisfirme que a sua, vendo, ao mesmo tempo, que nada obsta a que adquira talnatureza, sente-se incitado a procurar os meios que o conduzam a talperfeição: e tudo que pode ser meio para chegar a isso chama-se overdadeiro bem. O sumo bem, contudo, é chegar ao ponto de gozar comoutros indivíduos, se possível, dessa natureza. (ESPINOSA, 1983, p. 45grifo do autor)

A honra, enquanto fama e reputação, a riqueza e os prazeres sensuais,

tornam-se prejudiciais à medida que são procurados como fins únicos, isto é,

enquanto objetivo final e não como um meio para a realização de objetivos maiores.

Segundo Espinosa, “toda felicidade ou infelicidade consiste somente numa coisa, a

saber, na qualidade do objeto ao qual aderimos pelo amor” (ESPINOSA, 1983, p.

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44). Sendo assim, a escolha do objeto de amor torna-se fundamental para a auto-

realização e a busca do “supremo bem”.

1.1.3 Honra e Costume: A Perspectiva de Francisco Bacon, Baltasar Gracián e de

Michel de Montaigne

Francisco Bacon, em sua obra Ensaios (1992), denomina o amor-próprio

como o “lisonjeiro-mor”. Ele postula que a vaidade e a vanglória assentam-se em

comparações e se refere ao comportamento humano como sendo semelhante a um

verso, no qual todas as sílabas devem ser medidas. Para Bacon, assim como em

Aristóteles, a vaidade é uma grande tolice humana, uma vez que: “Os vaidosos são

o escárnio dos homens sábios, a admiração dos tolos, os ídolos dos parentes, os

escravos das suas próprias jactâncias” (BACON, 1992, p. 182). Para esse pensador,

a busca do prazer, lucro ou sentimento de honra, é que conduz o homem pelos

caminhos do mal. A vingança e o mal em si são apenas conseqüências dessa busca

e da necessidade humana de prazer, honra e lucro.

Em sua filosofia, Bacon concebe a honra como semelhante à reputação,

sendo que, por vezes, pode revelar virtudes e valores do homem. Para ele, assim

como para outros pensadores, anteriormente citados, depende de cada sujeito

manter, ou não, a boa opinião alheia. A inveja é um sentimento que, em sua filosofia,

aparece ligada à honra, uma vez que a boa reputação pode despertar esse

sentimento. No entanto, não é honrado o homem que, por qualquer que seja o

motivo, sente inveja de seu semelhante. A inveja, nas palavras desse humanista é:

[...] o cancro da honra e é facilmente aniquilada quando o homem de honradeclara que o seu próprio móbil é antes alcançar o mérito do que criar fama,e, ainda quando atribui os seus sucessos mais à providência divina e àfortuna do que às suas habilidades. (BACON, 1992, p. 23)

Francisco Bacon reforça o poder do hábito e do costume sobre a conduta

humana, quer seja essa manifesta em coletividade, ou não, apresentando-se o

hábito, assim, como um elemento preponderante que interfere e se manifesta,

18

sobretudo, em cada sujeito. O pensador utiliza-se da expressão “reino e tirania do

costume” para referir-se a hábitos e crenças assimiladas e postula que:

Os pensamentos dos homens são muito concordantes com suasinclinações; as suas palavras e os seus discursos concordam com as suasopiniões infusas e aprendidas; mas as ações resultam daquilo a que estãoacostumados. [...] nem a natureza nem as promessas verbais são tão fortescomo o hábito. [...] a predominância do costume é por toda parte visível.(BACON, 1992, p. 144)

O escritor espanhol Baltasar Gracián manifesta-se, em sua obra A arte da

prudência, dizendo que: “Um sábio reduziu a sabedoria à moderação em tudo. O

certo levado às últimas conseqüências pode gerar injustiça [...]” (GRACIÁN, 2006, p.

38). Para ele, “Ou tudo é bom ou tudo é mau, dependendo do nosso enfoque. O que

alguns perseguem, outros evitam. É um tolo insuportável aquele que quer regular

tudo segundo seu próprio conceito. As perfeições não dependem de um único gosto”

(GRACIÁN, 2001, p. 62). Considera que a boa reputação e a honra são as que,

substancialmente, conservam seu valor e resultam de valores perenes e não são

frutos de ilusões, e que a grande virtude humana, portanto, concentra-se no

equilíbrio e na prudência.

Gracián, sintonizado com o pensamento de Francisco Bacon, entende que o

costume e o hábito são influentes e determinam os sentimentos e conduta humana,

sendo possível, assim, a honra ligar-se a costumes e a experiências vividas por

determinados grupos. São fundamentais, portanto, os valores e crenças que o

sujeito assimila em grupo e que adquirem a dimensão de costume. No que respeita

aos costumes, ele postula que: “É preciso assemelhar-se a um rei em mérito,

mesmo não sendo, pois a verdadeira soberania está na integridade dos costumes”

(GRACIÁN, 2001, p. 63).

Podem, então, o bem e o mal, a virtude e o vício serem forjados a partir do

hábito e do costume? Ou, ao contrário, a prática constante do bem ou do mal

estabeleceria o costume e, sendo assim, as noções de bem e de mal seriam

geradas a partir dessa prática e, dessa forma, legitimariam condutas? Como, de fato,

tornar absolutas respostas a questões que envolvem virtudes e paixões humanas,

como a vaidade, dignidade, humildade, inveja ou generosidade, e honra, dentre

19

outros sentimentos, uma vez que esses se referem à complexidade humana e

envolvem questões maiores, como bem e mal, certo e errado, ético e não-ético?

Michel de Montaigne também interroga acerca dessas questões humanas

maiores, na obra Ensaios (2004), e reflete sobre a força dos costumes e do hábito.

Ele considera que, independentemente das possíveis diferenças individuais ou

sociais, é a organização política e familiar, através de crenças aprendidas e

vivenciadas, que conduz a sociedade. De acordo com Montaigne:

[...] todos veneram interiormente as opiniões e os usos aprovados e aceitospela sua sociedade; a eles não desobedecem sem remorso, e em osadotando recebem aplausos. [...] o principal efeito da força do hábito resideem que se apodera de nós a tal ponto que já quase não está em nósrecuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade,como ingerimos com o primeiro leite hábitos e costumes, e o mundo nosaparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos não termos nascido senão com a condição de nos submetermostambém aos costumes; e imaginamos que as idéias aceitas em torno denós, e infundidas em nós por nossos pais, são absolutas ditadas pelanatureza. Daí pensarmos que o que se dá fora dos costumes estáigualmente fora da razão [...]. (MONTAIGNE, 2004, p. 122)

Nesse sentido, o pensador francês entende que o costume impõe-se, na

maioria das vezes, ao bom senso e à reflexão dessa ou daquela prática e do

comportamento cotidiano. Os homens seguem os costumes que lhes são impostos e

os impõem aos outros, passando, dessa forma, a ter uma certa identificação com o

que lhes é determinado via costume.

1.1.4 A Visão Irônica de La Rochefoucauld, Matias Aires e Fernando Pessoa

Matias Aires, em sua obra Reflexões sobre a vaidade dos homens (1955),

considera o sentimento de honra fruto da vaidade. Para esse filósofo português,

influenciado por La Rochefoucauld, pensador francês do século XVII, todas as boas

ações derivam do sentimento de vaidade. É essa que permite várias ações humanas

ligadas ao bem, ou seja, eis que fazer o bem e ter uma conduta reta faz o homem

sentir-se melhor, isto é, superior aos demais. Portanto, o que desencadeia o bem, o

sentimento de honra e de dignidade, por ironia, nada mais é do que a vaidade,

20

sentimento que o homem, normalmente, tenta ocultar, uma vez que é considerado

vício.

Para Aires, é por vaidade que o homem é bom, sendo a vaidade um vício que,

entretanto, muitas vezes, serve de moderador para outros. O Duque de La

Rochefoucauld, acerca do mesmo tema, virtude, vício e vaidade, na obra Reflexões

morais (1970), postula que:

O que tomamos por virtudes não passa muitas vezes de um conjunto devárias ações e interesses que a fortuna ou o nosso engenho sabemarranjar; e nem sempre é por valor e castidade que os homens são valentese as mulheres castas. [...] A hipocrisia é uma homenagem que o vício prestaà virtude. (LA ROCHEFOUCAULD, 1970, p. 145-148)

Desprezar a boa opinião alheia, ironicamente, constitui-se, então, um crime,

pois a reputação é também uma crença humana. Sob essa perspectiva, entende-se

que o sentimento de honra é tão-somente algo extensivo do sentimento de vaidade,

isto é, o homem almeja ser honrado para que os outros o estimem e o admirem. O

sentimento de desonra, ou seja, a ofensa à dignidade pessoal – honra subjetiva –,

ou à reputação – honra objetiva – é tanto mais intensa quanto mais for conhecida

pelos outros, bem como o contrário é verdadeiro: é mais honrado o homem que é

admirado em sua virtude e caráter pelos seus semelhantes. De acordo com Matias

Aires:

Os agravos ocultos calam-se, não só porque em serem ocultos perdemmuito da qualidade de agravos; mas também porque a queixa não publiqueo atrevimento da ofensa; a vaidade não sente as coisas pelo que são, maspelo que só há de se dizer delas: mil vinganças há que se suprimem só peloperigo de que se não perceba o desacato, pela vingança. [...] há umaespécie de arte em disfarçar a injúria de que não há prova. [...] tudo se fazpelo estímulo da vaidade, por isso se julga perdida uma façanha, que nãotem quem a divulgue; como se um ato generoso consistisse mais em sesaber do que se obrar. A vaidade que nos move, não é pela substância davirtude, mas pela glória dela. (AIRES, 1955, p. 86-87)

Ainda segundo esse pensador, a maior injúria é o desprezo, e isso somente

porque o desprezo muito ofende à vaidade. Nesse sentido, a perda da honra tem

maior significado do que a perda de riquezas ou até da vida, pois são inúmeras as

situações em que o homem valoriza a honra mais que a vida. A honra se compõe de

21

vaidade que é para o homem, talvez, o sentimento mais significativo. Nas palavras

de Aires:

Poucas vezes se expõe a honra por amor da vida, e quase sempre sesacrifica a vida por amor da honra. Com a honra, que adquire, se consola oque perde a vida; porém, o que perde a honra, não lhe serve de alívio avida, que conserva: como se os homens mais nascessem para ter honra,que para ter vida ou fossem formados menos para existirem no ser, quepara durarem na vaidade. Justo fora, que amassem com excesso a honra,se esta não fosse quase sempre um desvario, que se sustenta na estimaçãodos homens, e só vive da opinião deles. (AIRES, 1955, p. 37, grifo nosso)

Os sentimentos de honra e de dignidade, entendidos como resultado da

vaidade humana, põem a virtude e o vício na qualidade de sentimentos próximos e,

dessa forma, reiteram a idéia de dualidade humana. Não são, portanto, virtude e

vício sentimentos contraditórios. La Rochefoucauld entende o vício como um

elemento que faz parte da virtude; para o pensador francês: “Nossas virtudes não

são mais do que vícios disfarçados” (LA ROCHEFOUCAULD, 1970, p. 145).

No pensamento de Matias Aires, a honra, independentemente do sentido que

adquire, é produto da vaidade e, portanto, vício. Entretanto, isso não exclui a

possibilidade de, mesmo sendo causa de muitos males, a vaidade ser o princípio de

algum bem. Sob essa perspectiva, sentimentos necessariamente diferentes como a

nobreza de caráter, a justiça, a generosidade, a inveja e a tirania podem ser obras

da vaidade humana. Para Aires: “[...] nossa maldade não é o que toca a cada um de

nós, mas pelo que respeita aos outros; somos perversos por comparação; [...] a

vaidade sempre foi origem de nossos males” (AIRES, 1955, p. 60).

A natureza humana é perversa, e o ser humano, para Matias Aires, é

propenso ao mal. Já as virtudes, essas são adquiridas e aprendidas. O exercício da

generosidade, da justiça, da honestidade moral, entre outras, pode colaborar para

que, ao praticá-las constantemente, o homem venha a descobrir-se e se torne cada

vez mais generoso, honrado ou justo. Sendo assim, o homem pode-se tornar cada

vez mais virtuoso à medida que exercita as virtudes aprendidas, apresentando,

então, uma maior retidão de caráter. A ironia, entretanto, consiste no fato de que o

exercício das virtudes no ser humano, mesmo com a mais pura intenção, é algo

22

praticamente impossível, porque o homem cultiva aparências e é motivado por

interesses diversos quando busca o bem. Segundo Matias Aires:

O aplauso é o ídolo da vaidade, por isso as ações heróicas não se fazemem segredo, e por meio delas procuramos que os homens formem de nós omesmo conceito, que nós temos de nós mesmos. Raras vezes fomosgenerosos, só pela generosidade ou valorosos só pelo valor. [...] por isso hámuita diferença de um homem, a ele mesmo [...]. Nunca mostramos o quesomos, senão quando entendemos que ninguém nos vê e isto porque nãoexercitamos as virtudes pela excelência delas, mas pela honra do exercício,nem deixamos de ser maus por aversão ao mal, mas pelo que se segue e oser. O vício pratica-se ocultamente, porque cremos que a ignominia (sic) sóconsiste em se saber; de sorte que se somos bons, é por causa dos maishomens e não por nossa causa. (AIRES, 1955, p. 85-86)

Para La Rochefoucauld (1970, p. 145), “o amor-próprio é o maior de todos os

aduladores”, e Matias Aires (1955, p. 87), na esteira do pensamento do filósofo

francês, diz que: “a estimação dos homens é o objeto maior da vaidade; objeto vago,

que não tem figura própria em que possa ver-se”. A imagem que cada homem faz

de si mesmo, ou a imagem que faz a partir de como os outros o vêem, não

configura, de fato, sua essência, ou seja, não necessariamente o homem é o que

pensa ser, ou como os outros o vêem.

O poeta português Fernando Pessoa, no Livro do desassossego (2006),

interroga sobre o incognoscível da alma, reflete acerca da existência e ironiza

valores humanos, questionando a medida das aparências e das vaidades. Para ele:

Toda vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos numlusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos e com o quesupomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa.Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo; porvezes por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário.Todo mundo é confuso como vozes na noite. (PESSOA, 2006 p. 94, grifonosso)

Conforme esse escritor, a vaidade também é um sentimento que está muito

presente nas atitudes humanas; é ela, inclusive, que desencadeia sentimentos,

como o egocentrismo, a arrogância, entre outros. Segundo Pessoa: “Cada um tem

sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com

alma igual”. (PESSOA, 2006, p. 95). Vale lembrar, aqui, um aforismo de La

Rochefoucauld: “Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos como dos outros”

(LA ROCHEFOUCAULD, 1970, p. 147).

23

Entende-se que o homem desconhece a natureza de seus sentimentos e,

portanto, na maioria das vezes, a real motivação de sua conduta. Eis daí que a

vaidade tem um poder eqüitativo: iguala os homens. O bem e o mal seriam, dessa

forma, produtos diferentes de sentimentos que, em sua origem, são iguais; é a

vaidade, então, que inspira tanto as boas quanto as más ações.

Matias Aires também entende que a vaidade é, dentre todas as paixões e

vícios, a que mais facilmente se oculta e se disfarça. A visão irônica desse pensador

aí se revela, mostrando que, em relação aos mistérios da vida e à ambigüidade dos

sentimentos humanos, as certezas são vãs e que a compreensão pode-se dar via

interrogação do que parecem ser sentimentos opostos.

Podem, então, até as mais sublimes ações humanas advirem do sentimento

de vaidade, de satisfação própria. O sentimento de honra, nascido da vaidade, é,

para Matias Aires, apenas uma forma de o homem satisfazer a si próprio, e a

conquista da boa reputação é, tão-somente, o resultado desse sentimento. De

acordo com o pensador:

O homem não vem ao mundo mostrar o que é, mas o que parece ser; nãovem feito, vem fazer-se; finalmente não vem ser homem, vem ser umhomem graduado, ilustrado, inspirado; de sorte que os atributos, com que avaidade veste ao homem, são substituídos no lugar do mesmo homem; eeste fica sendo como um acidente superficial, e estranho: a máscara, queencobre, fica identificada, e consubstancial à coisa encoberta; o véu queesconde, fica unido intimamente à coisa escondida; e assim não olhamospara o homem; olhamos para aquilo que o cobre, e que o cinge [...]. (AIRES,1955, p. 58; 107-108)

1.1.5 Arthur Schopenhauer e A arte de se fazer respeitar ou tratado sobre a honra

Schopenhauer apresenta seu pensamento sobre respeitabilidade e honra em

uma obra que se torna um pequeno manual de máximas e na qual o filósofo traz

suas definições e entendimento sobre o tema. Na verdade, o conteúdo desse tratado

sobre a honra encontra-se, originalmente, em uma obra que se denomina

Adversaria, publicada em 1828. No texto original, o tratado intitula-se Esboço de um

24

tratado sobre a honra; entretanto, o próprio Schopenhauer denominava-o Tratado

sobre a honra.

O intuito do pensador é de apresentar noções úteis e questões práticas

relativas à honra, isto é, fazer constar, no pequeno manual, máximas e conceitos

norteadores de conduta, e procedimentos a serem adotados em questões de honra.

A intenção é, segundo Franco Volpi – em introdução e prefácio da obra traduzida

para o português –, não só refletir sobre o tema da honra e da respeitabilidade, mas

defini-la em suas espécies e apontar situações concretas nas quais é possível e

aconselhável preservar a dignidade e respeitabilidade.

A obra apresenta um caráter prático-empírico que ultrapassa a perspectiva

filosófica, sugerindo, através de máximas, conduta de respeitabilidade. Em

Schopenhauer, são encontradas noções complexas sobre questões de honra, isso

porque ele se dedicou a uma investigação minuciosa sobre esse tema que muito o

intrigava. De acordo com Volpi (2003), fora impelido a discutir o tema devido à sua

pronunciada sensibilidade em relação a questões que envolviam a honra, bem como

em função de experiências pessoais, ou influenciado por situações mencionadas na

imprensa da época e que serviram de subsídio para suas reflexões.

O pequeno manual Tratado sobre honra e respeitabilidade divide-se,

basicamente, em dois capítulos; o primeiro aborda a honra e suas espécies, bem

como princípios éticos ligados a cada tipo de honra e a seus subtipos. No segundo

capítulo, passa a discorrer sobre a honra cavalheiresca e o chamado código de

honra dos cavalheiros. Essa obra é uma das mais completas já que discute com

profundidade questões referentes a esse tema.

A honra está ligada ao que cada sujeito é, ou aparenta ser, envolvendo valor

e dignidade conforme opinião alheia. Segundo Schopenhauer, o reconhecimento

social é um sentimento que se encontra em todas as épocas e sociedades, e à

noção de honra existem conceitos contíguos como glória e fama. Franco Volpi

apresenta, igualmente, na introdução ao livro de Schopenhauer (2003), um histórico

do sentimento de honra e suas diferentes perspectivas dentro do pensamento

filosófico e também no pensamento jurídico ao longo das épocas.

25

O poema épico Ilíada, de Homero, e a tragédia Ajax, de Sófocles,

documentam a idéia e valor da honra inseridos, já na Antigüidade, na sociedade

ocidental. Com a visão aristotélica, como já citado no início do capítulo, tem-se a

primeira noção e conceito de honra, que está na base da vida política das cidades e

é o prêmio da virtude. Cícero traduz em latim a idéia do filósofo grego de

respeitabilidade e honra como prêmio da virtude. A expressão praemium virtutis, isto

é, a honra como prêmio da virtude, conforme Volpi, seria retomada na Suma

Teológica, de São Tomás de Aquino.

Para São Tomás de Aquino, a honra estaria, então, ligada à ordem das

coisas espirituais e interiores, uma vez que só é honrado o homem bom e virtuoso,

e o louvor e a glória estariam, à diferença da honra, ligados a bem exteriores. Na

tradição jurídica romana, a honra vem a ser definida de forma precisa, e são

estabelecidos, então, critérios de punibilidade em ofensa à honra. É na Idade

Média, no entanto, que adquire fundamental importância, sobretudo no sistema

feudal, no qual os valores preponderantes são coragem, força, lealdade e

respeitabilidade. A literatura dessa época documenta a relevância da honra na visão

do mundo aristocrático europeu. De acordo com Franco Volpi, em introdução à obra

de Schopenhauer (2003):

Os testemunhos literários da época documentam em termos eloqüentesessa importância da honra, que se torna um tema central na chamadaliteratura dos “espelhos do príncipe” – difusora dos modelos para aeducação e a formação da alta aristocracia nobiliária – e que mais tardeentrou para a coletânea de moralismos e tratados da “conversação civil”.(VOLPI apud SCHOPENHAUER, 2003, grifo do autor)

As obras de Castiglione, Giovanni Della Casa, Stefano Guazzo, entre outros,

difundem noções e conceitos de honra e respeitabilidade no campo da filosofia.

Outros autores, da Idade Moderna, como Hobbes, no Leviatã, Berkeley, Mandeville,

Hume, Descartes, Montesquieu e Rosseau, bem como Kant, com suas distinções

terminológicas, também apresentam noções sobre honra e respeitabilidade.

Segundo Franco Volpi, todas eram do conhecimento de Schopenhauer, entretanto,

mesmo considerando relevantes as noções e conceitos apresentados pela tradição

filosófica, ele não trabalha com tais perspectivas em seu Tratado sobre a honra.

26

Schopenhauer, em sua obra, prefere um exame prático e faz uma avaliação

mais detalhada das questões que envolvem o tema e apresenta, em um plano

filosófico-conceitual, o tema da honra sob dois aspectos que são mantidos em

separado. Em primeiro lugar, aparece a honra como a opinião que os outros fazem

de nós e como um princípio básico nas relações sociais. Esse tipo é dividido em

subespécies que são examinadas uma a uma. E, em segundo, ele aborda,

minuciosamente, a suposta honra cavalheiresca.

A honra apresenta sempre um caráter negativo enquanto entendida como

respeitabilidade e dignidade. Isso se dá, sobretudo, pelo fato de que a honra não

consiste meramente em qualidades especiais que são acrescentadas ao sujeito,

mas, sim, trata-se das que, via de regra, espera-se que não lhe faltem. Já em

relação à fama e glória, essas apresentam um caráter positivo, pois o sujeito as

conquista através de demonstração de suas qualidades, e segundo o filósofo:

A honra diz respeito somente a qualidades que cada semelhante nossodeve ter e que compreendem por si mesmas: a honra de um indivíduo é aconvicção geral dos outros de que não lhe faltam tais qualidades e,portanto, a partir desse ponto de vista, de que ele não é nenhuma exceçãoà regra. [...] O caráter da honra é negativo, muito embora ativo em alto grau.Em outras palavras, ela se origina do sujeito honrado e não de algo foradele. Nossa honra vem de dentro e não de fora, caso em que seria passiva.Tem sua raiz em nós, ainda que floresça no exterior. Apóia-se em nossocomportamento, e não naquilo que nos sucede, vindo de fora; [...] ela está[ entre as coisas que dependem de nós ]1. Ninguém pode dá-la ou tirá-la denós senão nós mesmos, excetuando-se o caso de difamação. Eis por queseria o caso dizer que cada um é o artífice da própria honra e da própriafelicidade [...]. Não há meio mais seguro para a conservação da honra doque sermos dignos dela, ou seja, mantermo-nos fiéis nas palavras e ações àverdadeira retidão. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 12-16)

Na tradição filosófica, a honra, de uma forma geral, é entendida como retidão

de caráter e relaciona-se à opinião alheia. A palavra character, em língua inglesa,

tem o significado de boa reputação, bom nome. A perda da honra, para

Schopenhauer, está ligada somente à difamação, sendo que, nesse caso, se houver

retidão de caráter, é uma perda aparente e se deve a um engano, e pode ser

anulada mediante desmascaramento desse engano.

1 Entre colchetes, de acordo com Franco Volpi, consta tradução de um trecho de autor clássico citadopor Schopenhauer na língua original.

27

A honra, enquanto caráter, tem a idéia de que a opinião geral dos outros se

fundamenta, primeiramente, na suposição de que o homem não muda. Permanece

como é e, portanto, será sempre como se mostrou. Sejam quais forem as

adversidades a serem enfrentadas, sua reação será de acordo com a manifestação

de seu caráter, pois, para Schopenhauer: “não obstante subsista fora de nós, isto é,

na mente alheia, costumamos considerá-la sempre como uma parte de nossa

personalidade” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 16).

Para o filósofo, há diferentes espécies de honra que advêm de relações

intersubjetivas, bem como da opinião alheia. Os aspectos mais importantes dessas

espécies, então, seriam: “o que é meu e o que é teu, o ato de assumir

compromissos, a relação sexual” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 20). Sendo assim,

surgem a honra privada em sentido estrito, a honra pública e a honra sexual, cada

uma delas com subtipos.

A honra privada consiste que, na opinião dos outros, o homem é reto em seu

caráter, isto é, probo. Ele se respeita, bem como respeita os direitos alheios e

cumpre com seus deveres. São espécies particulares da honra privada: a honra do

comerciante, a honra da empresa e a honra específica de toda profissão e de todo

ofício. Segundo Schopenhauer, o homem de caráter reto:

[...] nunca se utilizará de meios injustos ou ilícitos para a aquisição depropriedades e outras vantagens, [...] manterá a palavra dada e cumprirá oscompromissos assumidos; finalmente, como cidadão, demonstrará, acimade tudo respeito pela lei. Ele perderá sua honra assim que se tornar públicoque agiu contra esses princípios, mesmo que num único caso [...] bastaqualquer condenação penal para privá-lo da honra. A difamação e a calúnialesam-na; por isso, a lei assegura-a em tais casos por meio de leis contra adifamação, os escritos anônimos caluniosos e a injúria. Se a honra lhe formuito cara, ele mesmo remediará tais acusações por meio de contraditóriosjudiciais ou extrajudiciais, solicitando um inquérito sobre seu procedimento.Em tais casos, a salvação de sua honra consiste propriamente nocontraditório formal e não no castigo de quem o desonrou [...].(SCHOPENHAUER, 2003, p. 20-22)

Uma segunda espécie é a honra pública, que significa o respeito devido por

todos os cidadãos ao cargo público. É a opinião geral dos outros sobre a capacidade

e as qualidades necessárias de um funcionário público para ocupar determinado

cargo. É o princípio fundamental dessa espécie é o respeito do funcionário pelo

28

próprio cargo e o cumprimento de seu dever e pontualidade para com suas

obrigações.

A honra sexual, por sua vez, uma outra espécie, divide-se em honra feminina

e honra masculina. Essa espécie de honra distingue-se muito das anteriores. Pode

ser entendida apenas a partir das relações de gênero e peculiaridades de

relacionamento entre os sexos. Schopenhauer explica a relação entre os sexos e as

convenções sociais de gênero existentes. No entanto, o filósofo, apesar de respeitar

os costumes de sua época e de não se opor às diferenças consideradas entre

homem e mulher, diz que “o princípio da honra feminina não deve ter valor absoluto

que ultrapasse a vida e que se adquira ao preço desta” (SCHOPENHAUER, 2003, p.

30).

Segundo Schopenhauer, a honra masculina é suscitada através do respeito a

um pacto que se estabelece via aceitação da mulher, mediante o casamento, ao

controle masculino. Isso é o que ele denomina de espirit de corps, isto é, são as

convenções de gênero, ou seja, os papéis estabelecidos para cada sexo. O sexo

feminino exige e espera que o masculino tome providências e lhe dê a sustentação

necessária; enquanto que o sexo masculino espera somente uma coisa em troca da

aceitação de cuidar de tudo: a posse exclusiva da mulher. Conforme o filósofo:

Esse é o objetivo da máxima de honra de todo sexo feminino, segundo oqual deve ser negado ao masculino todo concúbito extraconjugal econcedido, porém, o conjugal [...]. Somente pela observância geral desseprocedimento, ou seja, pelo casamento, é que o sexo feminino poderáalcançar o sustento que lhe é necessário. Por tal razão ele próprio cuidadesse espirit de corps entre seus membros. Por isso também, toda moçaque comete, por meio de uma relação extraconjugal, uma traição contratodo o seu sexo – cujo bem-estar cairia por terra com a generalização dessemodo de conduta –, logo é banida e coberta de vergonha, isto é, perde suahonra. Nenhuma mulher pode mais ter contato com ela, e a opinião geral lhenega todo o seu valor. Ela passa a ser evitada [...]. O mesmo destinoencontra a adúltera, uma vez que não respeitou a contratada capitulação dohomem em que repousa a salvação do sexo feminino [...]. Por fim, devido àsua grosseira falta de palavra e ao engano perpetrado na sua conduta, aadúltera perde, além da honra sexual, a privada [...]. (SCHOPENHAUER,2003, p. 28-30)

Em relação à honra sexual masculina, a opinião é de que um marido, ao

saber do adultério de sua mulher, deve puni-la, se possível, e separar-se dela. A

questão da igualdade de gêneros não entra, então, em discussão. O filósofo apenas

29

aceita e reproduz a idéia de dependência do feminino ao masculino, porque assim

se instituíam as relações de gênero em sua época.

A desonra masculina não estaria relacionada propriamente ao adultério, à

traição feminina em si, mas diretamente ligada à tolerância e à aceitação desse

adultério, uma vez que isso é que envergonha o marido e ofende o espirit de corps

masculino, porque, nesse caso, de acordo com Schopenhauer, “a vergonha do

homem não é diretamente o adultério da mulher, mas a tolerância dele”

(SCHOPENHAUER, 2003, p. 33).

Ele entende, contudo, que nenhuma punição ao adultério pode sobrepor-se à

vida e reitera a reflexão da sexta máxima, contida no Tratado, que diz ser “nossa

honra firmada e fundada apenas em nosso próprio fazer e omitir, não na injustiça

que um outro comete contra nós” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 32). Não deve haver,

portanto, o sacrifício de outros bens como liberdade e, principalmente, da vida em

função de princípios aprendidos em sociedade, como os de honra. A

respeitabilidade, assim, é apenas um meio de tornar a vida digna, de valorizá-la, não

podendo, então, sobrepor-se a ela.

Outra espécie, mencionada no Tratado sobre a honra, é a honra nacional, que

é a honra de um povo. Essa possui os mesmos princípios da honra civil e apenas

alguns da honra cavalheiresca. A honra da humanidade, espécie também estudada

pelo filósofo, é assim por ele definida:

Por honra da humanidade entende-se a opinião que os atos de cadaindivíduo deveriam despertar aos olhos de um observador imaginário sobreos homens em sua totalidade. Tem a única desvantagem de que, enquantoas máculas de toda honra individual são lavadas com a morte, as dahumanidade permanecem: tais como a condenação de Sócrates, acrucificação de Cristo, o assassinato de Henrique IV, a Inquisição e ocomércio de escravos. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 34)

A honra cavalheiresca, conforme Schopenhauer, é uma espécie particular de

honra e se fundamenta não na razão, mas na animalidade e brutalidade; é a

denominada pseudo-honra. Eram bastante comuns, em sua época, os duelos

envolvendo questões de honra. A honra cavalheiresca, ou point d’honneur, é uma

30

espécie que se restringia à Europa Cristã e contrariava, na opinião do filósofo, os

princípios fundamentais de honra.

A honra universalmente válida é a honra como dignidade e qualidade

essencial a cada homem e vige em todos os povos e por todos os tempos; já a

honra cavalheiresca tem seus princípios e códigos próprios, instituídos por um

determinado grupo e, como diz Schopenhauer, reduz-se “a algumas poucas classes,

portanto, a uma minoria relativamente pequena da humanidade”

(SCHOPENHAUER, 2003, p. 38). Seu ponto máximo é a vingança que, se

necessária, efetiva-se através da morte. Trata-se de um assassinato legitimado entre

os cavalheiros.

Esse tipo de honra não tem origem somente na opinião alheia; a sua natureza

é, na verdade, a exteriorização dessa opinião; encontra-se, conforme palavras de

Schopenhauer, “na mão, ou melhor, na ponta da língua desse indivíduo”

(SCHOPENHAUER, 2003, p. 41). Pode, então, o ofendido, conforme o códex da

honra cavalheiresca, reconquistar sua honra à custa de qualquer outro bem, quer

seja esse a vida, quer seja a liberdade. Normalmente, a honra perdida deve ser

reconquistada via duelo.

Há, no entanto, uma medida paliativa de restituição da honra, conforme o

código de honra cavalheiresca, e que pode evitar o confronto mortal do duelo, é o

avantage. Esse se constitui em devolver a desonra com uma ofensa ainda maior.

Para Schopenhauer, todo o código de honra cavalheiresca é, no mínimo, insano, e o

princípio desse tipo de honra seria proveniente de uma época em “que os punhos

eram mais utilizados do que o juízo” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 65).

Esse filósofo considera que revidar a ofensa à honra com insultos, grosserias,

vingança ou, em caso da honra cavalheiresca, mediante duelo, não faz sentido. A

honra de alguém não pode ser atingida por conduta alheia, pois, para o filósofo, tudo

o que alguém faz ou diz só tem influência sobre sua própria honra, e não sobre o

outro. Muitos conflitos e dissabores poderiam ser evitados à medida que essa

cultura do revide desaparecesse. A honra e a dignidade podem, então, ser

encaradas à luz de uma determinada razão, isto é, para ser digno e honrado, basta

31

sê-lo, seguindo princípios e valores que fundamentam a retidão de caráter. De

acordo com o filósofo:

[...] se não fôssemos mais educados na ilusão de que um insulto é umaofensa à honra, esse insulto não provocaria mais suscetibilidade, masrecairia imediatamente sobre quem o empregou e só ofenderia a ele próprio.[...] a honra de alguém só estaria nas suas próprias mãos, como é natural eracional [...]. [...] muitas vezes por ano, vêem-se pessoas, geralmentesensatas e capazes, cometerem seriamente a estupidez de enfrentarem-se,para servirem de alvo umas às outras, e isso porque alguém lhes fezacreditar que a honra o exige [...]? (SCHOPENHAUER, 2003, p. 69-76)

Nesse sentido, é interessante que se reflita sobre a perspectiva de que o

sentimento de honra e a necessidade de revidar a uma ofensa também estão

ligados, necessariamente, à crença e ao aprendizado de que, para restabelecer o

sentimento de dignidade, aparentemente perdido mediante o insulto, faz-se

necessário devolver a ofensa na mesma medida ou através de vingança, da qual,

possivelmente, resulte a morte. Ensina-se e se aprende que não é possível conviver

com a opinião alheia quando essa é desfavorável. Valoriza-se, então, a aparência

das coisas e ignora-se a essência; disso tudo resulta que nas relações humanas

torna-se complicado conviver com as diferenças e, sobretudo, aceitá-las. Para

Schopenhauer:

Em suma, em se tratando de injúrias ou insultos, seja por palavras ou atos,assevero que esses podem irritar e aborrecer um homem sensato, mas demodo algum tocam a sua honra, porque esta consiste na opinião que setem sobre ele e que não pode alterar-se por coisas que lhe são exteriores[...]. Um homem sensato pode, por conseguinte, extravasar sua irritação ouseu desgosto por meio de uma reação proporcional ao fato, mas isso deveser mais tolerado como fraqueza humana do que como um dever que lhe éexigido para salvar sua honra. E, portanto, se contrariamente ele pensa osuficiente para não se importar, sua honra, em vez de sofrer asconseqüências, poderá até mesmo ganhar com isso. (SCHOPENHAUER,2003, p. 80-81)

Para Aristóteles, a honra é o prêmio da virtude e a exteriorização dessa

virtude é a boa opinião dos outros. Segundo Schopenhauer, a honra também é

qualidade essencial, porém não é perdida ou adquirida através da opinião dos

outros, porque a opinião alheia é somente o reconhecimento de tal virtude; é o

resultado de qualidades que fundamentam a retidão de caráter. A filosofia, de uma

forma geral, embora com enfoques que se diferenciam em um ou outro aspecto, vê a

32

honra como qualidade essencial à pessoa e sobre a qual recaem a confiança e

admiração alheias.

Entende-se que, mesmo sendo as perspectivas um tanto quanto

diferenciadas, em resumo, o sentimento de honra é percebido, na tradição filosófica,

como uma virtude ética de fundamental importância nas relações humanas. Faz-se

necessário, assim, que os sentimentos humanos, nas relações intersubjetivas, sejam

condecorados com a temperança e o equilíbrio. Nesse sentido, diversas discussões

são suscitadas e eis por que o sentimento de honra, enquanto dignidade e

respeitabilidade, inerente ao ser humano e fundamental no convívio entre os seres,

tem sido objeto de reflexão e de interrogação das ciências sociais.

1.2 As Relações Intersubjetivas e a Legítima Defesa da Honra sob um Enfoque

Sociojurídico e Antropológico

A intenção do presente item é carrear diversos conceitos sobre honra sob a

perspectiva de estudos de antropologia e sociologia jurídicas, propiciando um

entendimento das relações sociais, de gênero e de classe, que se estabelecem a

partir do que os sujeitos compreendem por honra. Aliada à concepção de honra,

presente nas relações intersubjetivas, procura-se averiguar como se dá a

compreensão, tão difundida ao longo do tempo e em diversas sociedades, da idéia

de que o ofendido pode, ou deve restituir sua honra provocando a morte do

agressor.

Tem-se, na obra de Schopenhauer, uma discussão mais específica sobre o

conceito de honra e suas diferentes espécies. Considera-se relevante retomar as

espécies de honra masculina e feminina, mencionada por ele. O entendimento do

filósofo acerca dessas espécies, respeitadas diferenças de contexto histórico-

cultural, aproxima-se, em alguns aspectos, dos estudos de antropologia e sociologia

jurídicas realizados, ainda hoje, sobre o tema da honra, tendo em vista as relações

sociais estabelecidas entre os gêneros.

33

Dessa forma, a perspectiva de que o conceito de honra está intimamente

ligado a questões de diferenças de gênero e de classe, que se estabelecem nas

sociedades, é aqui abordada. Discute-se, também, como e por quê, de acordo com

estudos antropológicos e sociológicos, é instituída e socialmente aceita a figura da

legítima defesa da honra, uma vez que essa que não consta como instituto jurídico.

1.2.1 A Honra e as Relações Sociais de Gênero

Era comum, nas denominadas sociedades patriarcais, o masculino ser o

guardião e provedor das necessidades femininas, isto é, a mulher era mantida numa

situação de tutela e submetida às decisões familiares. Hodiernamente, essa

construção está se modificando e, em algumas sociedades, esse tipo de

organização familiar tem desaparecido. As modernas constituições dos países

ocidentais buscam desenvolver e aprimorar direitos de igualdade dentro da

perspectiva dos Direitos Humanos. Com essa evolução, tem-se a garantia, não só

dos direitos do homem enquanto ser genérico e, sim, de um ser humano específico;

são especificados direitos como o da mulher, do indígena, do idoso, da criança,

entre outros direitos sociais. Segundo Norberto Bobbio, na obra A Era dos Direitos

(2004):

[...] o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ouhomem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade dasuas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente,etc. [...] a passagem ocorreu do homem genérico – do homem enquantohomem – para o homem específico, ou tomado na diversidade de seusdiversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (osexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferençasespecíficas, que não permitem igual tratamento e igual proteção. [...] esseprocesso de multiplicação por especificação ocorreu principalmente noâmbito dos direitos sociais. (BOBBIO, 2004, p. 83-84)

Embora muito se tenha caminhado rumo a uma evolução relativa à igualdade,

ainda inquietam os casos de assassinatos que ocorrem em defesa de uma honra

ligada essencialmente à idéia da posse e do controle mantido pelo sexo masculino

da sexualidade feminina, dentro da família ou na relação conjugal. Mariza Corrêa,

professora na UNICAMP, comenta que a origem do argumento de que é legítimo

34

matar para defender a honra provém dos chamados “crimes da paixão” (CORRÊA,

1981, p. 15-16).

Tanto a honra masculina quanto a feminina repousam sobre um aspecto

simbólico, que se torna relevante nos crimes de paixão. Na verdade, a questão da

honra envolve o que se pode denominar de papéis sexuais, isto é, o papel do

masculino e o do feminino na sociedade, e esse aspecto simbólico é considerado

fundamental no contexto de crimes passionais. Nesse sentido é que o trabalho figura

como um requisito, isto é, um atributo essencial da honra masculina, já o atributo

essencial da honra feminina é a fidelidade.

A idéia de fidelidade feminina também passa por questões de identidade da

mulher como boa mãe e dona de casa, ou seja, a fidelidade não é só em relação à

sexualidade, mas também ao papel designado à mulher dentro da sociedade. O

trabalho, como honra masculina, e a fidelidade, como sinônimo de honra feminina

são, na verdade, metáforas dos papéis definidos dentro da sociedade para cada

sexo.

O crime passional, enquanto uma figura jurídica utilizada como argumento de

defesa, é recente. No entanto, a punição ao adultério feminino é muito antiga, tendo

intenção de assegurar e legitimar a instituição da família na sociedade, perpassando

essa idéia por questões de herança legítima, ou seja, do chamado “direito à

sucessão legítima”. Mariza Corrêa, nas obras Os crimes da paixão (1981) e Morte

em família (1983), apresenta estudos sobre os crimes passionais fazendo uma

abordagem histórica e política de procedimentos jurídicos relativos a esse tipo de

crime. De acordo com Corrêa (1981):

[...] Se a punição do adultério feminino é tão antiga quanto o direito romanoe visou sempre assegurar a legitimidade da reprodução dentro da família, ocrime passional é uma criação relativamente recente. Os juristas quediscutem esta figura vão atribuir ao romantismo, com sua ênfase no amor ena paixão, a sua invenção – chamando Sthendal e Alexandre Dumas Filhode os grandes cúmplices dos criminosos passionais de sua época, porapresentá-los sempre sob uma luz favorável em seus romances. [...] Ocrime passional, como o crime supostamente cometido na legítima defesada honra, que o sucedeu como argumento no júri, é um crime basicamentemasculino. [...] A fundamentação histórica de sua existência apoiar-se-ia natradição de um patriarcalismo [...] onde a honra sempre foi lavada com

35

sangue – não apenas a honra dos maridos traídos, mas também a de pais aquem os filhos foram desleais [...]. (CORRÊA, 1981, p. 15-18)

A pesquisadora, ao fazer sua análise, diz que se tornam irrelevantes, ao longo

do processo legal, as questões de contexto relativas ao fato em si – o crime –, que

situariam e esclareceriam os casos. Na verdade, o que adquire importância é o

papel desempenhado, na sociedade, pela vítima e pelo assassino ou assassina. E é

aí que entra a honra como um valor definido em sociedade, importando, então, os

aspectos simbólicos que determinam o que é uma mulher honrada e o que é um

homem honrado. Segundo Corrêa (1983):

[...] Se o crime é um questionamento, uma quebra de determinada regrajurídica, ele servirá ao mesmo tempo como pretexto para o escrutínio daadequação ou não do acusado (e da vítima) a outras normas de convíviosocial e ao seu reforço ou enfraquecimento. Se sob certas circunstâncias ocrime pode ser redefinido como não-crime, ser legitimado, caberá aosjulgadores desse ato, basicamente, decidir se a pessoa a quem julgam agiucorretamente. Essa correção será estabelecida nos termos de quem julga ea partir dos termos de quem processa. Por isso, a discussão aqui não serádos atos (embora seu registro às vezes indique claramente caminhosopostos aos seguidos) mas dos autos. Todos os protagonistas dos casosaqui estudados cometeram a quebra da norma “não matar”, mas é aquebra de outras normas que vai determinar a sua absolvição ou agradação de sua pena. (CORRÊA, 1983, p. 24-25)

De acordo com a pesquisadora, em depoimento ao jornal da Unicamp, na

página virtual da mesma universidade, os casos mais freqüentes ainda são de

assassinatos de mulheres, e são cometidos por maridos e companheiros em nome

da honra. Ela enfatiza que esses crimes ocorrem em grande número na América

Latina e no Oriente Médio. Durante o Encontro Internacional na Unicamp, em

setembro de 2004, que discutia “crimes de honra” contra mulheres na América

Latina e Oriente Médio, conforme o periódico, a professora Mariza Corrêa afirmou

que:

[...] São formas de sociabilidade muito arraigadas nos costumes delocalidades pequenas e pobres, onde o controle de uns sobre os outros éexercido face a face. As punições precisam ter a aprovação dos líderesreligiosos locais e, aparentemente, existe um forte movimento daslideranças de vários países islâmicos para deixar claro que o Alcorão nãoendossa esse tipo de assassinato. [...] tanto em países de tradição católicacomo em países de tradição muçulmana, a questão de honra encobreoutras questões, sendo objeto de usos políticos. A constatação comum éque, se o estado de direito for fraco, em qualquer latitude vai imperar a leido mais forte. (JORNAL DA UNICAMP, disponível na página(http://www.unicamp.br/)

36

Na verdade, o que a sociedade pune, em crimes em defesa da honra, é a

conduta social de homens e mulheres e não o crime cometido, pois o que se vai

delineando e tomando importância é o comportamento adequado para cada gênero,

de acordo com os costumes estabelecidos por um grupo social. A idéia, nesse caso,

é, sobretudo, a defesa e preservação dos costumes, sendo a honra familiar um

costume aceito e, portanto, padrão de comportamento a ser seguido.

O adultério feminino e a relação íntima de uma jovem ocasionando a perda da

virgindade que, em algumas sociedades, é um valor também defendido na questão

da honra familiar, passam a ser delito, e a punição é a vingança que decreta a pena

de morte. A sociedade, através da rigidez de seus costumes, considera a

possibilidade de punir a conduta de homens e mulheres, quando essa é considerada

socialmente inadequada e uma afronta aos costumes. As conveniências sociais e os

papéis sexuais do masculino e feminino, determinados em sociedade de acordo com

o contexto histórico-cultural, ficam assim preservados em nome de uma honra que

mantém a instituição social da família.

A crença no valor de uma honra ligada ao bom nome, à nobreza e a

aparências, à família ou à figura masculina, fundamenta-se, na verdade, em

costumes das classes dominantes, mas acaba por se instituir, também, como um

valor assimilado e defendido por classes menos favorecidas. Dessa forma, ser

chamado de ignorante, mentiroso, trapaceiro, ou qualquer outro pejorativo, não

ofende tanto quanto ser intitulado como “chifrudo” e “corno”, ou por outros desses

termos vulgarmente conhecidos.

Independentemente da classe social, esses valores de família e de bom

nome, quando ensinados e aceitos no seio de uma sociedade, tornam impossível

deixar de revidar, até com a morte, a quem os ferir. Vale aqui lembrar uma ironia

expressa na seguinte frase de Schopenhauer: “Pois o que não se consegue colocar

na cabeça do ser humano, contanto que se faça isso desde cedo!”

(SCOPENHAUER, 2003, p. 76).

A honra, um valor socialmente aceito, ao ser entendida como reputação e

dependente da opinião alheia, é preferida ao conceito de honra enquanto atributo

37

pessoal. A pesquisadora, em seus estudos sobre os crimes da paixão, na obra de

mesmo nome (1981), comenta que nas raras decisões em que o Tribunal de Justiça

manifestava-se contra a argumentação de legítima defesa da honra, sempre o fazia

apoiado na idéia schopenhaureana de que a honra é, na verdade, um atributo

pessoal.

1.2.2 Noção de Honra e Diferenças de Classes

O conceito de identidade, através do sentimento de honra, é entendido sob

dois aspectos considerados fundamentais nas relações entre os grupos. O primeiro

resulta do sentimento individual e do orgulho pessoal, ou seja, segundo Cláudia

Fonseca (2000), é “o esforço de enobrecer a própria imagem de acordo com as

normas socialmente aceitas e estabelecidas”; outro aspecto refere-se a um código

de honra que, conforme Fonseca, “sublinha um código social de interação, onde o

prestígio pessoal é negociado como bem simbólico fundamental de troca”

(FONSECA, 2000, p. 15). A isso equivale dizer que o sentimento de honra é um

elemento que define a identidade do indivíduo em seu grupo.

A honra atua, nas relações intersubjetivas, em diferentes classes sociais.

Estabelece entre os sujeitos a maneira adequada de comportamento dentro do

grupo, ou seja, torna-se um mecanismo de controle. Além de ser considerada

atributo pessoal, determina padrões de conduta por meio de códigos criados via

costume. A autora, referindo-se à importância do sentimento de honra, diz que: “em

uma favela, a honra figura como um elemento-simbólico chave que regula

comportamentos e define identidades entre os membros do grupo” (FONSECA,

2000, p. 15).

A noção de defesa da honra, enquanto preservação da imagem individual por

meio um código estabelecido entre o grupo, permite, também, a defesa da imagem

social do mesmo. Essa idéia, à moda da honra cavalheiresca, característica do

pensamento medieval, persiste através dos tempos, ultrapassa fronteiras e se insere

em diferentes classes sociais, respeitando, é claro, especificidades de cada grupo,

38

época ou lugar. Na verdade, a noção de honra pessoal, familiar e do bom nome a

ser preservado que se institui, historicamente, entre grupos está, de certa forma,

ligada a questões de poder. Para Roland Barthes, “a honra é geralmente uma sobra

do poder [...]” (BARTHES, 1997, p. 9).

Não se trata somente de um poder econômico e, sim, o fato de que a noção

de honra está fortemente relacionada ao poder de uma ideologia. Segundo Cláudia

Fonseca, a crença na importância da defesa da honra é comumente associada à

vida de reis e de aristocratas, ou seja, é comum às elites, porém, é um sentimento

ideologicamente assimilado por classes menos favorecidas. Em sua obra Família,

fofoca e honra (2000), em que apresenta pesquisas sobre o tema, ela aborda as

considerações de Pitt-Rivers, pioneiro no estudo sobre a honra nas regiões

mediterrâneas. De acordo com as palavras da antropóloga:

Essa aplicação da noção de honra pode chocar os leitores acostumados aassociá-la à vida de reis e aristocratas, mas foi o próprio Pitt-Rivers, [...] queabriu o caminho, quando sugeriu que o senso de honra é realçado entre osbandidos, assim como entre aristocratas, lá onde as pessoas estão fora enão necessariamente acima de uma lei central. Assim, adotamos o conceitode honra desse autor: “um nexo entre os ideais da sociedade e areprodução destes ideais no indivíduo através de sua aspiração de ospersonificar”. (FONSECA, 2000, p. 15, grifo nosso)

A noção de honra, percebida em comunidades menos favorecidas, introduz

reflexões sobre questões que abordam uma lógica alternativa e a coerência interna

no funcionamento desses grupos. Quando são analisados aspectos relativos à

disciplina e normas, percebe-se que existem algumas posturas diferenciadas nos

grupos menos favorecidos no que tange a leis instituídas, de uma forma geral.

Ainda que a noção fundamental de honra derive de uma ideologia dominante,

mesmo assim, no que tange a esse sentimento, também existem percepções

diferentes em relação à ideologia das classes dominantes.

De acordo com estudos socioantropológicos, alguns comportamentos e

crenças nascem realmente é da prática cotidiana dos grupos. Em outras palavras,

cada grupo social cria seu próprio código de honra que difere, sob certos aspectos,

da ideologia dominante, bem como de normas e regras jurídicas gerais, mas, no

convívio do grupo é esse código interno que prevalece. O sentimento de honra – e

39

isso é inquietante – institui-se, entretanto, socialmente, de uma forma quase que

totalizada em um imaginário social, respeitadas, é claro, a heterogeneidade e

diversidade próprias da cultura de cada grupo, bem como contexto histórico e

espaço-ambiente vivenciados.

Um outro aspecto da noção de honra, apresentado por Cláudia Fonseca

(2000), em seus estudos antropológicos, é a percepção do trabalho assalariado

como diminuição do amor-próprio e do orgulho pessoal. Pode-se dizer que esse é

um código de honra que se estabelece no próprio grupo e que reproduz as

diferenças sociais. Disso resulta constrangimento e sentimento de inferioridade por

parte daqueles que, nessas comunidades, sobrevivem do trabalho assalariado. Esse

é um comportamento muito freqüente em diferentes lugares do mundo e de acordo

com Cláudia Fonseca:

Os moradores da vila são perfeitamente conscientes de que podem aspirarsomente aos trabalhos manuais mais baixos na escala convencional doprestígio. Ser assalariado equivale a “quebrar as costas” e ser comandadopor um chefe, freqüentemente mais jovem e menos experimentado, masquase sempre pertencente a uma classe social superior. Viver de oito a dezhoras por dia na evocação constante de sua inferioridade em nada contribuipara enaltecer a própria imagem, e o salário, realmente irrisório, nãocompensa a falta de satisfação pessoal. A resposta coletiva a essa situaçãoé de denegrir os empregos denegridores e valorizar qualquer ganha-pão,desde que não apóie a hierarquia social convencional subordinando ummembro da vila a alguém das classes dominantes. [...] Opta-se, então, pelasatividades de papeleiro ou mendigo. Não se vive melhor que o trabalhadorassalariado não qualificado, mas nem tampouco pior. Os poucosassalariados tendem a acionar mecanismos para compensar a possívelperda de prestígio ocasionada pelo seu emprego [...]. (FONSECA, 2000, p.20, grifos da autora)

A diminuição da auto-imagem, mediante o exercício do trabalho assalariado,

produz uma espécie de “vingança simbólica” em relação à classe mais favorecida,

que aparece em discursos nos quais, através da malandragem, do engano ao

patrão, ao juiz ou ao psiquiatra, o amor-próprio é restituído. Também como parte de

um código de honra próprio, o trabalho assalariado desperta o desprezo por parte

daqueles que a ele não se sujeitam e que se traduz em piadas e indiferença para

com os trabalhadores assalariados pertencentes ao grupo.

Há um código de comportamento instituído, que determina as relações sociais

e garante a coerência de valores, mas isso não é um indicador de que todos os

40

membros do grupo, necessariamente, tenham valores iguais, pois, contrariamente a

isso, existem diferenças, principalmente, no que respeita à moralidade. Algumas

pessoas do grupo, por exemplo, mesmo em um cotidiano de miséria, jamais

admitiriam roubar.

Segundo Fonseca, o contexto histórico-cultural latino-americano dá ênfase,

nas relações intersubjetivas, à questão da honra sexual que se fundamenta na

castidade das mulheres. Essa, no entanto, não é uma percepção preponderante em

todas as comunidades latinas de baixa renda, pois, para algumas, o que mais

importa é o cumprimento do papel feminino como boa mãe e boa esposa.

Em relação ao prestígio pessoal, os critérios variam conforme o sexo, o status

econômico e condição civil de cada sujeito. O resultado obtido, na pesquisa de

Fonseca (2000), sobre a honra dos jovens é a idéia de que o prestígio pessoal é

projetado a partir de uma imagem que se apóia na coragem, virilidade e na

generosidade que se revela, por exemplo, na relação com as crianças e com os

idosos da comunidade.

A honra familiar entre os homens casados, segundo Fonseca (2000, p. 27),

pode ser expressa através “de uma variedade de símbolos”, dentre os quais está a

virilidade ligada à procriação. Além disso, para um homem de família, a bravura e a

coragem são características necessárias à proteção da mulher e dos filhos, e o

homem deve ser, além de protetor, o provedor do sustento da família, não

interessando a origem desse sustento material. Segundo Cláudia Fonseca: “A

proteção da mulher desliza sub-repticiamente para o controle de sua sexualidade.

[...] O homem tem de sustentar materialmente a mulher e os filhos. Como ele faz

isso, não interessa a ninguém” (FONSECA, p. 28-30).

Quanto à noção de honra feminina, não há, nesses grupos, uma noção

específica ligada à moça solteira, pois a honra da mulher está ligada muito mais à

identidade do feminino como mãe e dona de casa. A virgindade e a castidade não

são valores essenciais; a fidelidade, sim. As moças solteiras ou as descasadas,

conforme dados da pesquisa, mostram-se ansiosas para obter um marido ou

companheiro, pois há um discurso hegemônico entre os membros dessas

41

comunidades em relação à honra das mulheres sozinhas: “[...] a mulher sem marido

perturba a paz da comunidade; ela desafia a virilidade dos homens e atiça o ciúme

das mulheres. A presença de um marido como tutor da sexualidade feminina resolve

o problema” (FONSECA, 2000, p. 32).

A noção de honra é entendida, sob certos aspectos, diferentemente entre os

grupos mais e os menos favorecidos. No entanto, é a eles comum a idéia de que a

dignidade pessoal repousa no olhar do outro. Isso, de certa forma, regula

comportamentos e pode fazer com que os sujeitos vejam a si próprios somente a

partir desse olhar alheio. Muitos conflitos, e o próprio crime em defesa da honra,

nascem dessa perspectiva de ver a própria dignidade através de um olhar externo,

bem como de colocar a própria honra como conseqüência da conduta do outro.

1.2.3 A Legítima Defesa da Honra: Em Que Consiste e Origem

A legítima defesa da honra é uma figura argüida para justificar, em regra

geral, os crimes cometidos no âmbito de uma relação conjugal. Isso, porém, não

inviabiliza o seu uso como argumento de defesa também em crimes cometidos por

membros da família, como pais, irmãos, tios. Na maioria dos casos, a mulher é a

vítima. É o marido ou companheiro, pai, irmão, ou qualquer outra figura masculina da

família que se arroga o direito de defender a sexualidade feminina. Muitos

pesquisadores, hoje, segundo a antropóloga Mariza Corrêa, preferem utilizar o termo

“femicídio”, substituindo a expressão legítima defesa da honra em função,

justamente, de que a maioria das vítimas são mulheres.

Durante muito tempo, nos países latino-americanos, inclusive no Brasil,

aproximadamente até a década de 70, a legítima defesa da honra, sobretudo em

crimes passionais, poderia ser utilizada como argumento de defesa apesar de não

constar em estatuto legal. Entretanto, é necessário pontuar que a honra, como um

bem juridicamente protegido, e o instituto da legítima defesa se fazem constar, até

hoje, nos códigos e legislações desses países, segundo o que demonstram os

estudos de Altayr Venzon, em sua obra Excessos na legítima defesa (1989).

42

Dessa correlação entre honra, juridicamente protegida, e o instituto da

legítima defesa é que adveio, então, e foi socialmente aceito, o entendimento de que

seria possível estender o benefício legal da legítima defesa a quem matasse para

defender a honra. Assim, durante muito tempo e em diversos locais, legitimou-se

socialmente o crime em defesa da honra. Nesse sentido, é preciso considerar como

se dão as relações sociais entre gêneros e o contexto histórico-cultural que abriga a

crença em um sentimento de necessária defesa da honra.

A partir das concepções existentes sobre honra masculina e honra feminina,

por muito tempo, foram decididas absolvições e condenações de crimes passionais,

conforme mostram pesquisas realizadas por Mariza Corrêa (1981). Os casos de

violência explícita, que acabavam causando a morte, e também os de violência sutil,

principalmente, contra as mulheres foram pesquisados, no universo da cidade de

Campinas, já na década de 70.

Mariza Corrêa (1981) relata em sua obra que, em São Paulo, no ano de 1958,

ao discutir as decisões do Tribunal de Justiça, relativas aos crimes, cujo argumento

era a defesa da honra, o jurista Célio de Almada considerou que a jurisprudência

firmada negava a este argumento qualquer estatuto legal. Isso reforça a idéia de que

a legítima defesa da honra não é um instituto jurídico e, portanto, não está codificado

e não tem força de lei. Sabe-se, no entanto, que fez e que, possivelmente, ainda

faça parte de usos e costumes.

1.3 O Tema da Honra Religando Os Saberes Filosófico, Sociojurídico e

Antropológico

O tema da honra traz à luz uma série de discussões acerca das relações

sociais, como a relação entre os gêneros, mostrando um histórico das desigualdades

que nelas existem. Perpassa, também, crenças religiosas e diferenças entre classes

sociais, e põe em confronto as relações de família. Assim, o conceito de honra como

um valor cultural é socialmente aceito e torna-se parte do costume dos grupos

sociais, sendo percebido e assimilado de diferentes formas.

43

As noções da filosofia sobre o tema ultrapassam as fronteiras do pensamento

filosófico e se encontram presentes também nas pesquisas e estudos da

antropologia e sociologia. À semelhança do pensamento schopenhaureano surgem,

por exemplo, freqüentemente, constatações e reflexões, em pesquisas da

antropologia, que discutem a presença do sentimento de honra, suas espécies e

subespécies nas relações que se estabelecem nos grupos.

O sentimento de honra, independentemente da época ou do lugar, está ligado

à relação com o outro e, por isso, faz-se necessário retomar a noção primeira de

honra, já constante no pensamento da Antigüidade. Todavia, a idéia aristotélica de

que o homem honrado é bom e que, primeiramente, é preciso ser bom e virtuoso

para depois ser honrado, não alcança o pensamento das sociedades de igual forma

como a idéia de que o importante é manter a reputação, conforme critérios

estabelecidos dentro de costumes e hábitos determinados pelo grupo social. A

percepção, nesse caso, é inversa à visão aristotélica.

O costume de defender a honra e privilegiá-la em detrimento da vida, ou da

liberdade, tem sido assimilado pelos grupos, e causa certa perplexidade, não só pela

força que tal hábito possui junto a diferentes grupos sociais em tempo-espaço

diverso, mas também em função das razões que o fundamentam. A

supervalorização da honra difere, sob certos aspectos, entre os grupos sociais, mas

mantém um aspecto em comum: o olhar do outro sobre o que o sujeito é ou

aparenta ser.

A necessidade de defender a honra, dessa forma, é fruto de um costume

muito arraigado – a supervalorização do olhar do outro – sendo esse um hábito difícil

de perceber e de compreender o seu real fundamento. Pode-se, então, revisitar o

conceito de Montaigne sobre a força social do costume e do hábito: “Tudo pode

sobre os nossos juízos e crenças. [...] Não há o que o costume não faça ou não

possa fazer” (MONTAIGNE, 2004, p. 121).

Montaigne, apropriadamente, faz uma irônica análise dos fundamentos de

usos e costumes, uma vez que quem os defende nem sempre com eles concorda

ou, até mesmo, nem os compreende. De acordo com o pensador, manter a crença

44

na validade de costumes instituídos, evitando, assim, colocá-los em discussão, é

cômodo e conveniente:

[...] Tendo precisado outrora justificar alguns de nossos costumes, aceitoscomo certos entre nós e nas regiões circunvizinhas, e não desejandoapenas invocar a força das leis e dos exemplos, fui às origens deles e lhesdescobri fundamentos tão fracos, que mal me contive para não medesgostar e nem ter de os refutar em lugar de convencer os outros de suavalia. (MONTAIGNE, 2004, p. 122, grifo nosso)

Ao ser considerada a perspectiva filosófica de Montaigne, que interage com

os estudos antropológicos realizados sobre honra – entendida como elemento-chave

para manter o prestígio junto ao grupo – percebe-se que é por força do hábito e do

costume que o ser humano desconsidera a honra como característica e qualidade

que deve ser por ele unicamente garantida e a transfere para o olhar do outro. Esse

olhar alheio, então, pode definir o homem mais ou menos honrado, muito ou nada

digno. Disso têm resultado, ao longo dos tempos, muitas desigualdades, injustiças e,

sobretudo, preconceitos, que anulam autonomias e identidades e se traduzem,

assim, em conflitos e desprezo à vida.

A partir da interação entre tais conhecimentos, ou seja, do que a filosofia

entende por honra masculina, feminina e honra familiar, e também de como o tema é

analisado sob o enfoque da sociologia e da antropologia, torna-se viável perceber a

demasiada influência que tal sentimento exerce nas relações do sujeito para consigo

mesmo e, principalmente, a importância que adquire nas relações interpessoais.

Na verdade, princípios como os de honra deveriam servir apenas para facilitar

a convivência e tornar as relações mais confiáveis. Entretanto, a honra mascara, por

vezes, sentimentos como vaidade, inveja, e, sobretudo, delega ao outro a

construção de uma auto-imagem. Em função disso, o homem fica à mercê de como

os outros o vêem, aprende a ver-se a partir desse olhar e busca, então, manter

comportamentos que satisfaçam muito mais aos ideais e padrões estabelecidos do

que a suas próprias convicções.

O sentimento de honra é ambivalente, pois ser honrado é ser digno e ter a

confiança dos outros; por outro lado, a honra pode-se disfarçar e revestir-se de

45

orgulho, fazendo, então, com que ao homem se torne mais importante manter a sua

reputação aos olhos dos outros do que o respeito por si próprio. A grande questão é:

em que o ser humano realmente acredita, pois, a partir disso, é que ele constrói seus

valores, tanto individuais como coletivos.

Os valores culturais e morais podem diferir no tempo e no espaço, entretanto

impõem determinadas crenças que, ao serem absorvidas, tornam-se

comportamentos que integram usos e costumes das sociedades. Disso resulta que,

freqüentemente, costumes passam a ter força de norma e lei, mesmo quando não

codificados. Ao serem assimilados socialmente, os costumes passam a se impor e,

quando desrespeitados, geram sanções, quer seja na forma legal, ou via desprezo e

indiferença do grupo, o que se traduz, geralmente, em preconceito.

A apresentação dos diferentes enfoques sobre o tema, trazidos em cada área

do conhecimento, e aqui expostos, tem a intenção de preservar a especificidade de

cada saber. Ao reuni-los, percebe-se que se torna possível uma visão macroscópica

do sentimento de honra. Este trabalho deteve-se em investigar, especificamente, a

honra pessoal e familiar, uma vez que essas direcionam o foco do trabalho de

análise literária no capítulo que segue.

46

2 O ROMANCE CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA: COMPOSI ÇÃO E

INTERPRETAÇÃO

Em sua obra As vozes do romance (1983), Oscar Tacca comenta sobre “o

processo de construção de uma obra de arte”. O crítico cita, então, as palavras de

Jean Rousset: “[...] a arte reside nessa solidariedade entre um universo mental e

uma construção sensível, entre uma visão e uma forma” (ROUSSET apud TACCA,

1983, p. 13). Nesse sentido, a obra literária, ao deixar de ser processo, ou seja, ao

edificar-se, transforma-se no reflexo de idéias e de saberes sobre o homem e sobre

o mundo.

O romance não se constrói fundamentando-se somente no próprio texto, isto

é, em suas entidades e elementos constitutivos. Na verdade, segundo a crítica

moderna, o romance adquire força por todas as suas possibilidades de sentido, e

pelo universo que compõe através de seu dizer e do querer dizer.

Neste capítulo, são analisados processos de construção do romance Crônica

de uma morte anunciada, enfocando no enredo as visões de mundo que se

apresentam por meio dos diferentes olhares das personagens sobre o fato que as

envolve: um crime em defesa da honra. O enfoque dado ao tema honra combina-se

à análise dos elementos estruturais que compõem o romance em estudo.

Para o exame do texto de Gabriel García Márquez, adota-se o método de

análise de categorias que compõem a estrutura do texto, como o enredo.

Inicialmente é feita uma apresentação da obra e das características que determinam

o estilo cronístico presente em sua estrutura. São estudados, posteriormente,

aspectos a respeito de outras categorias estruturais como tempo, espaço e foco

narrativo. O estudo das personagens é realizado sob a perspectiva do dialogismo,

na esteira do pensamento de M. Bakhtin (1981).

Busca-se, a partir da análise da estrutura da narrativa em conjugação ao

tema, uma compreensão do universo do romance de Gabriel García Márquez, obra

que não se limita ao mundo da ficção, uma vez que se combina com a realidade

referencial. O autor narra fatos que realmente aconteceram em um povoado onde

morou e que envolveram pessoas de sua família e amigos. Ele revela tais dados em

sua biografia, organizada por Olga Martínez Dasí, disponível no site de literatura

hispano-americana Sololiteratura. Sendo assim, essa obra é considerada, dentre

seus romances, a mais realista.

Discutem-se, no presente estudo, os aspectos do romance que produzem, à

semelhança do real, situações que acontecem no mundo da experiência e da

vivência humana. Há uma perspectiva, entretanto, que deve ser resguardada, a idéia

de que a imago – a imaginação – é a essência da ficção literária. Ao refletir, dentro

do texto ficcional, sobre um tema ligado à realidade, realiza-se a aproximação destes

dois mundos, ou seja, combina-se o mundo real ao ficcional e vice-versa. De acordo

com Umberto Eco:

[...] os mundos ficcionais são parasitas do mundo real. [...] No entanto,devemos entender que tudo aquilo que o texto não diferencia explicitamentedo que existe no mundo real corresponde às leis e condições do mundoreal. [...] ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido àinfinidade de coisas que aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecerno mundo real. Ao lermos uma narrativa, fugimos da ansiedade que nosassalta quando tentamos dizer algo de verdadeiro a respeito do mundo.Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoascontam histórias e têm contado desde o início dos tempos. (ECO, 1994, p.89-93)

No romance Crônica de uma morte anunciada, o escritor colombiano, ao atar

as pontas de uma história de desonra familiar, tece um enredo que se sustenta na

investigação de fatos ligados a um assassinato e, também, à insólita situação da

morte, que, anunciada, não foi impedida e acaba se consumando, tornando-se,

assim, um trágico episódio na vida de alguns moradores daquele pequeno povoado

na Costa da Colômbia. Daí decorrem inúmeras informações e temas periféricos

48

trazidos na narrativa acerca de sentimentos humanos como amor, ódio, vingança,

fatalidade, omissão, culpa, preconceito e violência.

2.1 A Estrutura do Romance : O Tempo e A Crônica

Crônica de uma morte anunciada, através do titulo, já sugere que o romance

apresenta uma estrutura que se aproxima da crônica. Segundo Edwin Muir, em sua

obra A estrutura do romance (1975), há três divisões consagradas da ficção em

prosa: o romance de personagem, o romance dramático e a crônica.

“A estrutura da crônica é flexível”, conforme Muir, e “a mais solta das três”.

Apresenta uma ação quase acidental, no entanto, todos os eventos acontecem

dentro de “uma armação perfeitamente rígida” (1975, p. 56). O crítico literário, ao

estudar a estrutura do romance, em sua obra de mesmo nome, apresenta Guerra e

Paz, de Tolstói, como exemplo de um dos grandes romances que possui a estrutura

da crônica

A ênfase na estrutura deste tipo de romance recai na passagem do tempo e,

sendo essa irreversível, traz mudanças e modificações; é a noção mitológica do

tempo devorador. Outro aspecto importante, é a possibilidade de mostrar que tudo

pode acontecer e que são diversas as situações do cotidiano que se compõem dos

mais variados incidentes. Tem-se o tempo como um elemento fundamental em

romances que apresentam a estrutura da crônica. Segundo Edwin Muir:

Uma armação inflexível, uma progressão arbitrária e descuidada, ambas,perceberemos, são necessárias à crônica como forma estética. Sem aprimeira não teria forma; sem a segunda, seria inanimada. Uma lhe dá suarealidade universal, a outra, a realidade particular. De vez que o Tempo,porém, é o terreno principal da crônica, assim cada um destes dois planosdo enredo é aspecto separado do tempo. Podem ser denominados deTempo como processo absoluto e Tempo como manifestação acidental.(MUIR, 1975, p. 56)

O romance de Gabriel García Márquez apresenta, em sua estrutura,

características da crônica, como, por exemplo, a noção de tempo que traz

49

modificações e que altera, de forma inexorável, o rumo de acontecimentos e a vida

das pessoas. Esse aspecto da passagem do tempo, como elemento construtor do

enredo, pode ser percebido desde o início do romance.

Evidencia-se, também, a inversão temporal, na atitude de contar os fatos, após

vinte e sete anos, ou seja, o crime está consumado e já nas páginas iniciais o leitor

sabe disso. Assim, um dos elementos centrais do enredo – o crime, ou seja, o

assassinato de Santiago Nasar – aparece na primeira frase da narrativa. Todos os

acontecimentos incidentais passam, então, a ser resgatados, apresentando, dessa

forma, uma linearidade que se traduz no decorrer das horas e minutos anteriores ao

crime e que, assim, compõem o dia da morte de Santiago Nasar. Quanto à inversão

temporal, apresentada no romance de García Márquez e que enseja um processo de

“anacronia”, Carlos Reis, em sua obra Dicionário de teoria da narrativa (1988), define

de maneira apropriada o conceito de “anacronia” formulado, primeiramente, por

Gerard Genette. Segundo Reis:

1.Como o termo etimogicamente sugere (ana-: “inversão”; cronos: “tempo”),anacronia designa todo o tipo de alteração da ordem dos eventos dahistória, quando da sua representação pelo discurso. Deste modo, umacontecimento que, no desenvolvimento cronológico da história, se situe nofinal da ação, pode ser relatado antecipadamente pelo narrador; por outrolado (e mais freqüentemente), a compreensão dos fatos do presente da açãopode obrigar a recuperar os seus antecedentes remotos. 2.Como observa G.Genette (1972:80), responsável pela consolidação teórica do conceito, trata-se de um recurso narrativo não só ancestral, como freqüentemente utilizado;de fato, a anacronia constitui um dos domínios da organização temporal danarrativa em que com mais nitidez se patenteia a capacidade do narradorpara submeter o fluir do tempo diegético a critérios particulares deorganização discursiva, subvertendo a sua cronologia por antecipação(prolepse) ou por recuo (analepse). [...] mas de um modo geral pode-se dizerque a utilização da anacronia é inspirada por um leque muito amplo demotivações: caracterização retrospectiva das personagens, reintegração aposteriori de eventos elididos, solução de enigmas por meio de revelaçõesretardadas, criação de atmosfera de mistério, manipulação da expectativa dodestinatário por meio do doseamento hábil de informações antecipadas [...].(REIS, 1988, p. 229-230)

Na obra, a cronologia e simetria dos episódios que marcam o assassinato de

Santiago são perfeitas. A vítima acorda às 5h30min da manhã e morre às 7h do

mesmo dia. Entretanto, nesse breve espaço de tempo ocorrem várias situações

ligadas ao crime e que são intercaladas na narrativa. Essas são trazidas através de

memórias e depoimentos de personagens, de maneira alinear, marcando a inversão

temporal dentro do texto. Esses episódios intercalados e acidentais, e a própria

50

contagem progressiva do tempo, no dia do crime, apresentam, na obra de Márquez,

características estruturais da crônica, comprovando a flexibilidade da estrutura

desse romance. De acordo com Edwin Muir (1975):

[...] Contudo, o tempo da crônica não é medido por acontecimentoshumanos, não importa quão importantes eles sejam; ele é, e continua aexistir inalterado depois que sua estória foi contada, ainda tão regular emseus acontecimentos e ainda tão rico em acidentes e nas multidões defiguras que descobrirá. [...] e vemos a vida humana como nascimento,crescimento e decadência, um processo perpetuamente repetido. Esta, pois,é a estrutura, ideal e real da crônica, sua estrutura de universalidade. [...] Nacrônica, pelo contrário, enquanto o mundo humano é claro e imediato, odestino continua um mistério e só podemos nos submeter a suas leisincognoscíveis por um ato de fé. A concepção de destino do cronista,portanto, e em especial em tempos antigos, tem sido com freqüênciareligiosa. (MUIR, 1975, p. 59-63)

A categoria de tempo estrutura o enredo desde o instante em que a noiva,

após o casamento, é devolvida, e sua desonra, anunciada à família, passando,

assim, por uma decisão de vingança, até a consumação do crime. Esses momentos

são relatados em horas e minutos que denotam a importância da passagem do

tempo no contexto da história. Todos os fatos anteriores que estabelecem a causa

da tragédia, envolvendo vários personagens, também são trazidos à luz via

flashback, com lembranças e memórias, dentro desse espaço de tempo que se

encerra com a morte de Santiago. O texto compõe-se, dessa forma, na narrativa,

como uma mescla de tempo cronológico e de tempo psicológico.

Há uma espécie de contagem progressiva, presente no texto, ou seja, o

tempo é decomposto de maneira minuciosa em horas e minutos, mostrando sua

necessária passagem. Essa é uma característica própria do romance que apresenta

a estrutura da crônica, segundo Edwin Muir (1975). Assim, a narrativa exige o

emprego de um tempo cronológico, pois insere a necessidade da seqüência de

fatos, da precisão no desenrolar dos episódios. Encerra-se, então, o tempo da

vítima, em uma espécie de ciclo que se inicia ao amanhecer do dia do crime e

termina na mesma manhã, quando, conforme o seguinte trecho: “No dia em que o

matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã, [...] saiu de casa às

6h05m até que foi retalhado como um porco, uma hora depois [...]” (MÁRQUEZ, p.

9-10).

51

A época do crime, ou seja, o tempo histórico, conforme Benjamin Abdala

Júnior (1995), “é um tempo externo à narrativa e poderá ou não se situar na época

do escritor” (ABDALA JÚNIOR, p. 54). Segundo o crítico, em relação à época do

escritor, pode ocorrer, então, um distanciamento temporal entre o seu tempo e o de

sua ficção. No caso do romance de García Márquez, esse distanciamento temporal

significa um pouco mais de duas décadas, sendo que é relativamente curto, de

forma geral, sob o enfoque da questão do tempo externo de uma narrativa.

Quanto à época da ocorrência dos fatos, esta não se apresenta por meio de

datas exatas, mas é marcada por uma seqüência de episódios; o autor faz uso da

inversão temporal para encadear unidades narrativas menores à ação principal. São

usadas freqüentemente expressões como: “No dia em que o matariam, a mãe

pensou que ele se enganara de dia [...]. Lembrei-lhe que era segunda-feira [...]”; e

ainda: “[...]até a segunda-feira de sua desgraça”; “Por aquela época”; “Naquele

tempo”, entre outras (MÁRQUEZ, p. 15;28;62). Tais indicadores lingüísticos servem

de referência e são formas de situar o leitor na questão do tempo, mas não

demarcam, com exatidão, a época do crime.

A narrativa compõe um quadro que registra o passado, ou seja, o narrador

relata, em um presente, fatos relacionados a sua história pessoal, episódios os quais

ele presenciou. Em suas memórias, também aparecem acontecimentos ligados a um

passado histórico, a uma época que marcou, por exemplo, os avanços na

navegação, que surpreenderam e causaram admiração nos moradores do vilarejo. O

trecho do romance, que envolve o episódio da chegada do bispo ao povoado,

exemplifica as reflexões acerca do tempo histórico marcado na narrativa:

Por aquela época, os lendários navios de roda, alimentados a lenhaestavam a ponto de desaparecer e os poucos que permaneciam em serviçonão tinham mais pianola nem camarotes para lua-de-mel, e mal conseguiamnavegar contra a corrente. Este, porém, era novo e tinha duas chaminés emvez de uma com a bandeira pintada como um bracelete, e a roda demadeira da popa dava-lhe uma força de navio. Na coberta superior, junto aocamarote do comandante, estava o bispo de sotaina branca e seu séqüitode espanhóis. (MÁRQUEZ, 2005, p. 28-29)

Após vinte e sete anos, muitos dos que assistiram ao crime já não viviam no

vilarejo e a vida ali também havia se transformado; estava distante no tempo e no

52

espaço aquele funesto episódio. O tempo em que ocorreu o crime, e onde, no

passado do vilarejo, ficou guardada a tragédia que envolveu Santiago, vem a ser

redescoberto através das memórias e lembranças do narrador-relator e de outras

personagens em seus depoimentos. O narrador tenta recordar a festa de casamento

de Ângela, episódio que ilustra sua fala subjetiva e seu olhar para o passado, a partir

de um presente que significa o ato da escritura da crônica, conforme demonstram os

fragmentos:

Eu conservava uma lembrança muito confusa da festa antes de me decidir aresgatá-la aos pedaços da memória alheia. [...] No curso das indagaçõespara esta crônica recuperei numerosas vivências marginais, [...].(MÁRQUEZ, p. 65-66)

Assim, por meio das memórias de várias personagens e do narrador, é que o

escritor colombiano mistura à seqüência dos episódios – necessária à evolução da

trama o – recurso do tempo psicológico, que é o tempo próprio de cada personagem

e das recordações do próprio narrador. Ocorre, então, grande parte da reconstituição

dos fatos e a composição da história. Pode-se verificar o emprego desse recurso,

através das lembranças e pensamentos do narrador no seguinte trecho:

Muito tempo depois, em um tempo de dúvidas, quando tentava entenderalgo de mim mesmo vendendo enciclopédias e livros de medicina pelospovoados da Guajira, cheguei por acaso àquele morredouro de índios. Najanela de uma casa frente ao mar, bordando à máquina na hora maisquente, havia uma mulher [...]. Vendo-a assim, dentro do marco idílico dajanela, não quis acreditar que aquela mulher fosse quem eu pensava,porque me recusava a admitir que a vida acabasse por se parecer tanto àmá literatura. Mas era ela: Ângela Vicário vinte e três anos depois do drama.(MÁRQUEZ, p. 130-131)

Há uma série de contradições nos depoimentos quanto ao dia do crime, mais

especificamente quanto ao tempo atmosférico, ou seja, as testemunhas divergiam

quanto às lembranças que tinham daquele dia: para uns chovia, para outros o sol

estava muito forte, enquanto alguns entendiam que até mesmo surgira um arco-íris

no céu. Nesse caso, o aspecto que traz uma idéia vaga do tempo sugere a presença

da perspectiva dialógica inserida no aspecto temporal da narrativa, isto é, diferentes

vozes ou percepções que se opõem ao descrever um único dia.

53

As lembranças quanto à época também eram contraditórias, pois, para

alguns, era mês de fevereiro e, para outros, era época de Natal, como, por exemplo,

no trecho: “Fazia um tempo de Natal”, disse minha irmã Margot” (MÁRQUEZ, p. 29).

Entretanto, a maioria concordava com a idéia de um tempo aziago, de maus

presságios, e que pairava no ar uma atmosfera “pesada” e sombria no dia do crime.

O fragmento a seguir ilustra essa consideração:

Muitos coincidiam na lembrança de que era uma manhã radiante com umabrisa de mar que chegava através dos bananais, como seria de esperar quefosse em um bom fevereiro daquela época. A maioria, porém, estava deacordo em que era um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um densocheiro de águas paradas, e que no instante da desgraça estava caindo umachuvinha miúda como a que Santiago Nasar vira no bosque do sonho. [...]Victória Guzmán, a cozinheira, tinha certeza de que não havia chovidonaquele dia, nem em todo o mês de fevereiro. [...] “O sol esquentou maiscedo que em agosto”. (MÁRQUEZ, p. 10-16, grifo do autor)

A estruturação do enredo, então, a partir da questão temporal dá-se via tempo

cronológico, sendo também empregado o recurso do flashback. O tempo psicológico

marca, assim, na narrativa, a presença do paradoxo, elemento literário que perpassa

a questão temporal, insere-se no enredo e mostra-se, também, na conduta das

personagens. O aspecto paradoxal da obra materializa-se, sobretudo, na confusão

que se cria em torno daquele dia, ou seja, nos desencontros que se traduzem em

fatalidade.

Quanto à conduta e percepções das personagens, essas não são claras em

relação ao fato em si, e suas atitudes demonstram o quanto o tema que envolve o

crime, e o próprio tempo, o momento do crime, confunde-as. Sendo assim, o texto

apresenta a idéia de que é possível ter uma conduta diversa àquela normalmente

esperada, pois atitudes diferentes podem-se apropriar de determinadas

circunstâncias do cotidiano, trazendo conseqüências não esperadas. Os fragmentos

abaixo exemplificam tais considerações:

Muitos dos que estavam no porto sabiam que iam matar Santiago Nasar.Dom Lázaro Aponte, coronel de academia [...] e prefeito municipal há onzeanos, cumprimentou-o [...]. “Eu tinha razões muito fortes para acreditar quenão corria mais nenhum perigo”, – disse-me. O padre Carmen Amadortambém não se preocupou. “Quando o vi são e salvo pensei que tudo haviasido uma mentira”, disse-me. Ninguém perguntou sequer se Santiago Nasarestava prevenido, porque todos achavam impossível que não estivesse. [...]“Achei que estavam tão bêbados”, disse-me Faustino Santos [...]. Tinham a

54

reputação de gente boa tão bem fundada que ninguém lhes deuimportância. “Pensamos que era só papo de bêbado [...]. Faustino Santosfoi o único que percebeu uma luz de verdade na ameaça de Pablo Vicário elhe perguntou de brincadeira por que precisavam matar Santiago Nasar comtantos ricos que mereciam morrer primeiro. – Santiago Nasar sabe por quê– respondeu-lhe Pedro Vicário. (MÁRQUEZ, p. 32-33; 77-79)

A descrença, por parte de alguns personagens, de que o crime iria, de fato,

realizar-se, e a “certeza”, motivada por diferentes razões, de que os gêmeos não

matariam Santiago Nasar também evidenciam a percepção paradoxal que o autor

traz ao texto. Naquele povoado, onde todos se conheciam, havia motivos suficientes

para que esse crime não ocorresse e, no entanto, foi consumado. Clotilde Armenta,

preocupada, percebeu na ameaça dos gêmeos a obstinação e a inconseqüência

própria das crianças, e procura alertar o marido que lhe responde: “– Não seja boba

– disse-lhe – esses dois não matam ninguém, e ainda menos um rico” (MÁRQUEZ,

p. 83).

A morte de Santiago está ligada à omissão voluntária ou involuntária; cada

personagem tem suas explicações para a atitude que tomou ou não, desde o

momento em que “a outra notícia reprimida alcançou o seu tamanho de escândalo”

(MÁRQUEZ, p. 35). O tempo, assim, estrutura o enredo que é definido segundo uma

relação de causa, a desonra, e efeito, a vingança. Os gêmeos anunciaram o crime

ao povoado inteiro, para quem quisesse e pudesse ouvi-los, e, a partir daí, a vítima

estava com as horas contadas, e o tempo foi insuficiente e fatalmente devorador.

A vida cotidiana, e tudo o que se pode considerar o mais prosaico possível,

pode esconder um mistério, e um dos mistérios é o minuto seguinte. É o

desconhecido presente no tempo e nos fatos. Tudo parece, por vezes, tão

organizado: são planos a se realizarem, aniversários e casamentos a serem

festejados; desejos e sonhos por se concretizarem. No romance, as personagens

vão construindo sonhos e fazendo planos de futuro. A vítima, por exemplo, na festa

de casamento de Ângela Vicário, comemorava junto àqueles que seriam seus

assassinos e fazia planos de como seria a festa de seu casamento, conforme o

fragmento abaixo:

Não houve uma só pessoa, pobre ou rica que não tivesse participado nafesta de maior repercussão que jamais se havia visto no povoado.

55

Santiago Nasar sonhou em voz alta – Será assim o meu casamento –disse – não terão bastante vida para contá-lo. (MÁRQUEZ, p. 31)

Pensa-se, então, ao ler as páginas do texto de Márquez, que, em alguns

momentos, a vida chega a ser até coerente, mas, por outro lado, volta-se à questão

do tempo e do incognoscível, ou seja, do minuto seguinte, do devir. Assim, percebe-

se o poder do tempo a mudar o rumo das coisas, ora com vagar ora repentinamente.

No romance Crônica de uma morte anunciada a linguagem é uma mescla dos

estilos jornalístico e literário. Apresenta-se concisa e simples, nos trechos relativos

ao fato do crime em si, desde sua premeditação até a consumação, que é o episódio

no qual o enredo se estrutura. O estilo objetivo e linguagem concisa, empregados

pelo autor em diversos episódios, apresentam-se em trechos como, por exemplo,

quando Cristo Bedoya, amigo de Santiago, vai até a casa verificar se a vítima já

havia retornado do porto onde, juntos, aguardaram a chegada do Bispo: “Cristo

Bedoya olhou o relógio: eram 6h56m. Foi ao andar de cima para se convencer de

que Santiago Nasar não tinha entrado” (MÁRQUEZ, 2005, p. 156).

Observa-se, assim, na linguagem precisa e na progressividade do tempo

dentro narrativa, uma cronologia bem marcada em episódios que se “armam”,

apoiados em horas e minutos, para que se feche o ciclo do tempo entre a acusação

de desonra, a premeditação, a divulgação, e o crime. Por outro lado, verifica-se,

também, a presença da linguagem literária como, por exemplo, o uso da metáfora.

Comprova-se isso com o trecho em que o narrador, ao voltar ao povoado, busca

informações, junto à mãe da vítima, sobre seu último dia de vida:

Ela o viu da mesma rede e na mesma posição em que a encontrei prostradapelas últimas luzes da velhice, quando voltei a este povoado abandonado,tentando recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado damemória [...]. (Márquez, p. 13)

A obra de Gabriel García Márquez assinala uma visão irônica dos fatos

apresentados o que se mostra, também, como uma característica do romance, cuja

estrutura é do tipo crônica. A ironia também é um recurso próprio da escritura do

autor. É a maneira de ele apresentar suas temáticas preferidas como a fatalidade, o

amor e o ódio, a solidão, honra, a violência, entre outras. Bella Jozef (1971), em sua

56

obra História da literatura hispano-americana, analisando a escritura do autor

colombiano, comenta:

O autor quer expressar a deformação que produz a violência nocomportamento humano. Será esta uma das constantes na obra de GarcíaMárquez, como também outros elementos: [...] os episódios superpostos, oambiente de mistério, cheio de colorido e certos acontecimentos históricosque voltarão nas demais obras. (JOZEF, 1971, p. 312)

A ironia, em Crônica de uma morte anunciada, ultrapassa a questão da

linguagem, pois se identifica com uma perspectiva de mundo, apoiando-se nas

incertezas e na percepção relativista da história que é contada ao leitor. Nesse

sentido, o pensamento de Kierkegaard contribui para ilustrar a figura da ironia

enquanto uma perspectiva e visão de mundo: “[...] uma definição que percorre toda

a ironia, ou seja, que o fenômeno não é a essência, e sim o contrário da essência.

Na medida que eu falo, o pensamento, o sentido mental, é a essência, a palavra é o

fenômeno” (KIERKEGAARD, 1991, p. 215). O uso da ironia, no texto, também vem

a ser uma estratégia, impedindo que, ao explorar temas contundentes como o crime

e a honra, o romance deslize para o drama.

2.2 O Enredo: Verossimilhança e Produção de Sentidos

O romance Crônica de uma morte anunciada constrói-se a partir do

assassinato de Santiago Nasar, já mencionado nas primeiras páginas. A relação de

causa, o porquê, ou seja, o motivo do crime, adquire, a partir daí, grandes

dimensões e envolve as personagens em uma série de circunstâncias inusitadas. A

perspectiva e a situação de cada personagem que o narrador descreve são os

elementos de que se vale para atar as pontas na história, e assim vai sendo tecido o

enredo. Para o crítico inglês E.M. Forster, “um enredo é também uma narrativa de

acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a causalidade” (FORSTER, 1969, p. 69).

Através da seqüência narrativa alinear, a obra apresenta, por meio do

processo de analepse, utilizando-se do recurso do flashback, um enredo que conta a

morte de Santiago Nasar. Ele é assassinado por Pedro e Pablo Vicário, irmãos de

57

Ângela Vicário. Os gêmeos Pedro e Pablo cometem o crime com intenção de

vingança. Ângela casara com o forasteiro Bayardo San Román e por ele foi

devolvida à família, em sua noite de núpcias, sob o argumento de que ela não era

mais virgem.

Ângela, pressionada por seus irmãos e por sua mãe, Dona Puríssima Vicário,

acusa Santiago, um jovem rico e sedutor, que vivia no mesmo povoado, como autor

de sua desonra, conforme demonstra o fragmento a seguir:

Os gêmeos voltaram a casa um pouco antes das três, chamados comurgência pela mãe. Encontraram Ângela Vicário atirada, de bruços, no sofáda sala de jantar. [...] Pedro Vicário, o mais decidido dos irmãos, levantou-ano ar pela cintura e a sentou na mesa da sala de jantar. Ande, – menina –disse-lhe tremendo de raiva – diga quem foi. Ela demorou apenas o temponecessário para dizer o nome. Buscou-o nas trevas, encontrou-o à primeiravista entre tantos e tantos nomes confundíveis deste mundo e do outro e odeixou cravado na parede com seu dardo certeiro, como a uma borboletaindefesa cuja sentença estava escrita para sempre. – Santiago Nasar –disse. (MÁRQUEZ, p. 71-72)

A acusação da moça foi suficiente para desencadear a seqüência de trágicos

acontecimentos, estabelecendo-se o conflito dentro da narrativa. Isso envolveria

todos os habitantes do pequeno povoado, localizado na Costa da Colômbia, próximo

às Antilhas. Assim, os gêmeos Vicário juraram lavar a honra da irmã, a esposa

devolvida, e anunciaram a todos no vilarejo que iriam matar Santiago Nasar: “[...]

fizeram as facas cantar na pedra, e Pablo pôs a sua junto a uma lâmpada para que o

aço brilhasse.

– Vamos matar Santiago Nasar – disse ” (MÁRQUEZ, p. 78).

Os assassinos anunciaram repetidamente a necessidade de cometer o crime

em nome da honra da irmã, conforme mostram os trechos a seguir: “Nunca houve

morte tão anunciada”. [...] e voltaram a gritar para serem ouvidos que arrancariam as

tripas de Santiago Nasar [...]” (MÁRQUEZ, p. 76;88). Os irmãos, que tinham a

profissão de açougueiro, naquele mesmo dia, mataram brutalmente Santiago,

quando este voltava do evento que marcava uma frustrada visita do bispo ao

pequeno vilarejo. Não foram impedidos, e o peso do silêncio e da omissão marcaria

por muitos anos a vida do povoado.

58

O crime ocorre em uma manhã de grandes festividades religiosas e após a

noite da celebração e da festa do curto casamento de Ângela Vicário. No momento

em que o jovem se aproxima da porta central de sua casa, que ficava em frente a

uma praça localizada no centro do vilarejo e próxima ao local onde estavam os

assassinos que o aguardavam, percebe o que está por acontecer.

Santiago Nasar tenta, desesperadamente, entrar por aquela porta que,

conforme suas lembranças, deixara aberta quando havia saído em direção ao porto,

aonde chegaria o navio que trazia o bispo. No entanto, a mãe do jovem, dona

Plácida Linero, ao saber da intenção assassina dos gêmeos, havia, um pouco antes,

trancado a porta. Sem ter como e para onde fugir, encurralado entre uma porta

trancada e seus assassinos, Santiago vê-se de frente com a morte. Essa se fazia

representar na fúria com que seus algozes desferiam os golpes de faca em sua

direção.

O episódio do crime constitui-se o clímax da ação. É o momento de maior

tensão dentro da narrativa, e o leitor percebe, através da crueza do discurso

empregado, no estilo da ficção realista, a extrema violência do momento e o

desatino que acometia os assassinos, conforme demonstra o trecho a seguir:

Santiago Nasar precisava apenas de uns segundos para entrar quando aporta se fechou. Pôde ainda bater com os punhos várias vezes e, emseguida, voltar-se para enfrentar à mão limpa seus inimigos. [...] levantou amão para evitar o primeiro golpe [...]. A faca atravessou a palma de sua mãodireita e logo mergulhou até o fundo nas suas costas. Todos ouviram seugrito de dor. [...] Pedro Vicário procurou o coração, mas procurou-o quasena axila, onde têm os porcos. [...] Pablo Vicário lhe deu um corte horizontalno ventre e os intestinos completos afloraram como uma explosão. [...]Santiago Nasar permaneceu ainda um instante apoiado contra a porta atéque as próprias vísceras ao sol, limpas e azuis e caiu de joelhos [...].(MÁRQUEZ, p. 172;174 -175 )

Após o crime, morre o pai de Ângela Vicário. Os gêmeos, quando

processados, alegam a legítima defesa da honra e não demonstram arrependimento

ou culpa, uma vez que acreditavam estar cumprindo o dever de proteger a honra da

família, conforme demonstra o fragmento: “Nós o matamos conscientes – disse

Pedro vicário – mas somos inocentes. – Diante de Deus e dos homens – disse Pablo

Vicário – Foi uma questão de honra” (MÁRQUEZ, p. 74).

59

Os Vicário foram enviados à prisão de Riohacha, um lugarejo vizinho ao

povoado, e quando ficaram livres continuaram ali vivendo. Pablo Vicário casou-se e

aprendeu a trabalhar com ouro, seguindo o oficio que tivera seu pai. Pedro Vicário,

em sua solidão, decide reintegrar-se às Forças Armadas, da qual fizera parte em sua

juventude, algum tempo antes do funesto episódio que mudaria sua vida. Ele

desaparece, com sua patrulha, em um território de guerrilha e não houve mais

notícias suas.

Ângela e a mãe foram morar em Manaure, que ficava próximo a Riohacha.

Bayardo San Román, o noivo enganado, abandonou o povoado e sobre ele, durante

muito tempo, ninguém soube nada. Alguns anos após o infeliz casamento, Ângela

reencontra Bayardo e percebe que, por muito tempo, lembrara-se dele, mas ele a

ignorara. Decide, então, escrever-lhe cartas durante dezessete anos e, por meio

dessas, manifesta, a princípio, um lamento e um desejo de viver aquilo que poderia

ter vivido. Com o passar do tempo, as cartas demonstram a paixão que nascera do

desejo e apego ao que Ângela não pudera viver no passado.

Ela envia cartas a Bayardo, mas somente muito tempo depois da separação

marcada por tragédias, e das várias cartas enviadas, ele decide procurá-la. Ângela

morava, na época, em um povoado que se localizava na Península de Guajira. Vivia

sozinha, pois a mãe havia morrido. Era um meio-dia do mês de agosto, quando ele

chegou com uma mala de roupas, e com outra mala igual que continha as quase

duas mil cartas, não lidas, que Ângela havia enviado durante todos aqueles anos.

A passagem do tempo os havia transformado; ele e ela estavam diferentes. E

então Ângela teve seu momento de epifania: já era dona de seu destino, pois ela,

Ângela Vicário, a irmã dos gêmeos Pedro e Pablo, havia descoberto, após muitos

anos convivendo com suas amargas lembranças, que o ódio e o amor, sentimentos

de igual intensidade, são paixões muito próximas. O narrador, também personagem,

ao reencontrá-la, após 23 anos, percebe que Ângela: “[...] Estava tão madura e

esperta que dava trabalho acreditar que fosse a mesma. O que mais me

surpreendeu foi a forma como acabara por entender a própria vida” (MÁRQUEZ, p.

131).

60

Ângela deu-se conta, sobretudo, de que tanto o amor quanto o ódio podem se

disfarçar e se esconder através dos véus do preconceito. Assim como Ângela, no

povoado, agora distante dela e de sua vida, muitas pessoas também tiveram seus

momentos de revelação e tentaram descobrir, igualmente, que sentimentos

escondem e ocultam preconceitos, que somente o tempo permite desvendar. A

seguinte passagem do texto ilustra tais considerações:

[...] a maioria dos que puderam fazer alguma coisa para impedir o crime, eapesar de tudo, não o fizeram, consolou-se com invocar o preconceito deque as questões de honra são lugares sagrados aos quais só os donos dodrama têm acesso. “A honra é o amor”, ouvia minha mãe dizer. [...] Dozedias depois do crime, o instrutor do sumário encontrou um povoado emcarne viva. (MÁRQUEZ, p. 144-145)

A história e os segredos desse crime insistiam em permanecer nas

lembranças daqueles que o presenciaram: “Durante anos não conseguíamos falar

de outra coisa” (MÁRQUEZ, p. 143). Os episódios são reconstruídos, através de

relatos, por uma personagem secundária, que participa da história e colhe, vinte e

sete anos depois, depoimentos de quem havia testemunhado o desenrolar dos fatos

na época, mas sempre persistia uma suspeita: a vítima do crime, o jovem Santiago

teria, realmente, algo a ver com a desonra de Ângela?

Provavelmente não. Essa resposta, segundo as anotações feitas pelo juiz

instrutor, constava nos autos do Processo, que teve perdidas algumas de suas

folhas devido a inundações que atingiram o Forum de Riohacha. O narrador, primo

de Ângela, buscando respostas aos mistérios que envolviam a morte de Santiago, e

tendo a intenção de contar os fatos ao escrever uma crônica, interroga-a, vinte e três

anos depois do crime, procurando esclarecer as dúvidas que tinha e saber o nome

de quem a desonrara. Ela confirma que havia sido Santiago:

Eu mesmo tentei arrancar-lhe esta verdade, quando a visitei pela segundavez, com todos os meus argumentos em ordem, mas ela só levantou osolhos do bordado para contestá-los. – Não mexa mais nisso, primo – disse-me. – Foi ele. Todo o resto ela contou sem reticências, até a desgraça danoite de núpcias [...]. (MÁRQUEZ, p. 133)

A construção do enredo sob a perspectiva da relação de causa entre o fato –

o crime – e a desonra – “o porquê?” apresenta suma importância. O leitor quer

descobrir não somente “o e depois?” da história, mas, principalmente, a causa desse

61

crime em seus mínimos detalhes. A resposta, então, vem por meio de diversos

personagens e de suas diferentes perspectivas sobre os fatos, ou seja, sobre o que

contam e a forma como contam.

Carlos Reis postula que a relação de causa entre os eventos narrados,

denominada por Forster como plot, permite a “constituição lógico-intelectual da

história”. “O plot envolve mistério e surpresa, desencadeia a participação inteligente

da instância receptora, mobiliza a sua memória” (REIS, 1988, p. 220). O processo de

entrelaçamento dos “fios soltos”, que tecem o enredo da obra de Márquez, permite

ao leitor interligar os fatos à medida que o autor vai desvendando alguns mistérios

ligados ao crime.

O verossímil é produzido, na obra, a partir da relação causal do enredo, que

se revela por meio do motivo do crime – a desonra, e que gera conseqüências, como

a vingança, desencadeando a ação principal: o brutal assassinato de Santiago

Nasar. Esse efeito de verossimilhança, predeterminado por uma relação de causa e

conseqüência no enredo, é preponderante na produção de sentidos no texto. De

acordo com Julia Kristeva:

[...] o problema do verossímil é o problema do sentido: ter sentido é serverossímil (semântica ou sintaticamente); ser verossímil nada mais é do queter sentido. Ora, sendo o sentido (acima da verdade objetiva) um efeitointerdiscursivo, o efeito verossímil é uma questão de conexão de discursos.[...] o verossímil é um efeito, um resultado, um produto que esquece oartifício da produção [...], encravado nas duas extremidades da cadeia falar-escutar (conhecível por um sujeito falante e um destinatário), ele não é nempresente (o discurso da produção presente é ciência), nem passado (odiscurso da produção passada é história); pretende ao universalismo.(KRISTEVA, 1972, p. 49-51)

A dita produção de sentido, isto é, o efeito verossímil mencionado por Julia

Kristeva (1972), fica evidente no encadeamento necessário entre causa – a

desonra, e o efeito – um crime que assume, na vingança, um aspecto de obrigação

social. Essa percepção de obrigação social, importante ao desenrolar dos fatos,

está presente em uma passagem do texto, na qual uma das personagens femininas,

Clotilde Armenta, preocupada com o rumo dos acontecimentos, interroga o Coronel

Aponte, que era prefeito e delegado no povoado, e sugere que ele mantenha os

62

gêmeos presos até que tudo seja esclarecido. Entretanto, por indiferença ou

incredulidade, o homem não lhe dá ouvidos, conforme indica o trecho a seguir:

O coronel Aponte mostrou-lhe as facas como um argumento final – Nãotêm mais com que matar ninguém – disse. – Não é por isso – disse ClotildeArmenta. – É para livrar esses pobres rapazes do horrível compromissoque caiu em cima deles. (MÁRQUEZ, p. 85)

A verossimilhança, portanto, pode ser percebida, também, no sistema de

valores apresentados no espaço social da narrativa, como a honra pessoal e familiar

e a necessidade da vingança em caso de ofensa. O fragmento do texto literário que

narra um momento em que um dos gêmeos titubeia na decisão tomada, mas o outro

o encoraja, ilustra a afirmação anterior: “De modo que pôs a faca na sua mão e o

levou à força para buscar a honra perdida da irmã. – Isso não tem remédio – disse-

lhe é como se já nos tivesse acontecido” (MÁRQUEZ, p 91-92).

Dessa forma, é possível a interação entre texto e leitor, uma vez que o

sistema de valores e de contexto, projetados nas condutas das personagens, são

apresentados e contribuem, assim, para a produção de sentidos. As desigualdades

existentes, no contexto da história, também são mostradas, o que serve como

indicador das diferenças sociais, e preconceitos diversos. Esses são aspectos que

se tornam relevantes na intriga e influenciam no desempenho das personagens,

enquanto continuidade e manutenção de um determinado padrão de conduta, ou

como evolução e transformação do mesmo dentro da intriga.

2. 3 O Espaço na Narrativa

A definição genérica do espaço, na narrativa, abarca o conceito de lugar ou

lugares onde ocorrem fatos e acontecimentos envolvendo personagens com o seu

ser e o seu fazer. O texto literário apresenta, através da categoria descritiva de

espaço, a realidade referencial, e estabelece, assim, fronteiras entre a ficção e a

realidade. Segundo concepção geral da teoria literária, a definição de espaço, em

63

primeira instância, refere-se ao espaço físico. Em segunda instância, tem-se a noção

de espaço social. De acordo com Carlos Reis (1988):

O espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, nãosó pelas articulações funcionais que estabelece com as categoriasrestantes, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam.Entendido como domínio específico da história, o espaço integra, emprimeira instância, os componentes físicos que servem de cenário aodesenrolar da ação e à movimentação das personagens: cenáriosgeográficos, interiores, decorações, objetos etc.; em segunda instância, oconceito de espaço pode ser entendido em sentido translato, abarcandoentão as atmosferas sociais (espaço social) como até as psicológicas(espaço psicológico). (REIS, 1988, p. 204)

A relação entre texto e contexto assume grande importância nos estudos da

Teoria da Literatura e várias posições têm sido adotadas ao estudar essa relação.

Ao analisar-se um romance, devem ser considerados aspectos ligados às diferentes

acepções que o termo “contexto” adquire frente ao estudo de uma obra literária. É

possível considerar e analisar o contexto de produção da obra, mas, sobretudo, a

análise deve partir do próprio texto, pois este enseja as condições e aspectos do seu

momento de produção. Para Todorov (1972):

[...] o contexto pode fazer parte da estrutura do texto. O único meio sério deestudar o contexto é passar pelo texto (e não pela série de circunstânciasanedóticas que a história nos traz); mas a relação dos dois não é a dooriginal com sua cópia. Seria mais justo dizer que o contexto faz parte dotexto, e que alguns traços estruturais do texto são elementos autênticos docontexto. A relação dos dois é mais de contigüidade que de semelhança.(TODOROV, 1972, p. 98-99)

No ambiente, no qual circulam as personagens e onde o enredo se

desenvolve, é possível perceber além do que o texto mostra. Há uma série de

elementos, em uma narrativa, que se constituem a partir do contexto e que exigem

uma leitura de entrelinhas. A obra de García Márquez traz uma relação entre o

contexto – em seus aspectos histórico, geográfico, socioeconômico e cultural – e as

personagens, mostrando-as fortemente ligadas ao conhecimento que têm do mundo,

sendo que esse não vai além do território da aldeia ou das cidades vizinhas; isso em

um país latino-americano, pobre e com alto índice de violência. O texto também

busca mostrar esses aspectos.

64

2.3.1 Espaço Físico e Contexto Geográfico

O espaço físico apresentado em Crônica de uma morte anunciada é de um

vilarejo não nomeado, e é através de descrições de lugares próximos, mencionados

no texto, que se torna possível ao leitor inferir a sua localização. Aparecem como

vizinhos ao povoado, lugares como Riohacha e Manaure, localizados na Península

de Guajira, Costa da Colômbia, e a ilha de Curaçau, situada no mar do Caribe.

Deduz-se, a partir desses dados, que o vilarejo também se localiza na Península e

geograficamente é um espaço que se situa entre a América Central e América

Latina.

A região da Península de Guajira, por pertencer à Colômbia, absorve

principalmente a cultura latino-americana. A língua empregada, de forma oficial, é o

castelhano, entretanto há inúmeras expressões citadas no texto que remetem a

dialetos também utilizados na região, como por exemplo, o papiamento (MÁRQUEZ,

p. 51), que é língua nativa de Curaçau, bem como de outras ilhas do Caribe, sendo

muito semelhante ao português.

O local em que ocorre a tragédia, narrada no romance, é um espaço onde

convivem etnias diferentes e esses grupos utilizam linguagem diferenciada. Ibrahim

Nasar, pai de Santiago, “chegou com os últimos árabes, no fim das guerras civis,

[...]” (MÁRQUEZ, p. 20). Consta ainda no texto que: “os mais velhos continuaram

falando o árabe rural que trouxeram de sua terra, e o conservavam intacto em

família até a segunda geração, [...] ouviam os pais em árabe e respondiam em

castelhano” (MÁRQUEZ, p. 120). Entretanto, a forma de organização social, na

localidade, estabelece uma hierarquia em que predomina o poder do pároco, do

prefeito e delegado, ambos de origem castelhana, de descendência espanhola.

Enfim, percebe-se que, política e culturalmente, sobrepõe-se a cultura hispano-

americana.

Ainda, quanto ao espaço físico referencial, a região da Península de Guajira é

conhecida por sua economia ligada à pesca e à pecuária. É região de miscigenação

e ali convivem, principalmente, índios, negros e espanhóis. A narrativa apresenta

65

claramente essa idéia de diferentes etnias. Isso pode ser comprovado através do

episódio, especificamente na forma como se refere a Santiago, no qual Victória

Guzmán, a cozinheira, tenta proteger a filha por ele assediada: “ – Solte-a, branco –

ordenou-lhe seriamente. – Dessa água não beberá enquanto eu estiver viva”

(MÁRQUEZ, p. 18, grifo nosso).

A fazenda Divino Rosto, de propriedade de Santiago e de sua família e a casa

onde ele e a mãe moravam fornecem informações sobre sua favorável condição

socioeconômica. Esse espaço físico, além de demonstrar o status da família,

também foi o local do crime. O fragmento a seguir apresenta descrições detalhadas,

feitas pelo narrador, da casa da vítima, que é um espaço importante no contexto da

história:

A casa era um antigo depósito de dois andares, paredes de tábuas brutas eum teto de zinco de duas águas [...]. No térreo abriu um salão que serviapara tudo, e construiu nos fundos uma cavalariça para quatro animais, osquartos de serviço e uma cozinha de fazenda com janelas para o porto [...].A única coisa que deixou intacta no salão foi a escada em espiral, resgatadade algum naufrágio. No andar de cima, [...] fez dois quartos amplos e cincocamarotes [...], e construiu um balcão de madeira sobre as amendoeiras dapraça,[...] Na fachada conservou a porta principal e abriu duas janelas detoda altura com marcos torneados. Conservou também a porta dos fundos,só que um pouco mais alta para passar a cavalo, [...]. Essa foi sempre aporta mais usada [...]. A porta da frente, exceto em ocasiões festivas,permanecia fechada e com tranca. Entretanto, foi ali, e não na porta dosfundos, que esperavam Santiago Nasar os homens que o matariam, e foipor ali que ele saiu para receber o bispo [...]. (MÁRQUEZ, p. 19-21)

Os assassinos, os gêmeos, tinham a profissão de magarefe, trabalhavam em

um matadouro de animais. A família Vicário, ao contrário da família de Santiago

Nasar, morava em uma residência humilde e administrava suas precárias condições

de vida. Na diminuta casa, moravam Ângela, os irmãos Pedro e Pablo, a mãe e o

pai, que era cego. As residências, no texto, apresentam-se como indicadores de um

espaço físico que denota as diferenças sociais entre as duas famílias. O trecho

abaixo apresenta a descrição do local onde morava a família dos gêmeos:

A família Vicário vivia em uma casa modesta, paredes de tijolos e um tetode palma arrematado por duas trapeiras onde, em janeiro, as andorinhas semetiam para chocar. [...] e um grande quintal com galinhas soltas e árvoresfrutíferas. No fundo do quintal, os gêmeos tinham um chiqueiro, a pedra desacrifícios e a mesa de corte, uma boa fonte de recursos domésticos desdeque Pôncio Vicário ficou cego [...] O interior da casa mal chegava para viver.(MÁRQUEZ, p. 60-61)

66

2.3.2 Espaço Social e Contexto Histórico

Edgar Morin em O método 5 a humanidade da humanidade: a identidade

humana, (2005) conceitua o termo cultura, possivelmente, em sua mais ampla

acepção. Apresenta sua definição a partir de noções sedimentadas e tece

contrapontos entre aspectos fundamentais no que se refere ao termo cultura. A idéia

é que, paradoxalmente, as sociedades mostram-se iguais, mesmo que sejam

diferentes. E isso ocorre exatamente através daquilo que instituíram como cultura.

Segundo Morin:

[...] uma definição de cultura que engloba todas as culturas: ”Conjunto dehábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes, regras, normasinterdições, estratégias, crenças, valores, mitos, ritos, que se perpetua degeração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e regenera acomplexidade social”. Significa que, por diversas que sejam, as culturastêm um mesmo fundamento. Em todas as sociedades há música, canto,poesia. Em todas as sociedades, há racionalidade e religião, técnica emagia, rito e culto; o sacrifício (humano ou animal) foi um dos aspectosextraordinários das culturas do passado; certos cultos ainda o praticam.Mesmo quando desapareceu sob a forma ritual religiosa, a idéia desacrifício permanece muito forte em nosso espírito [...]. (MORIN, 2005, p.61, grifo do autor)

A história da América Latina está fundamentada na dominação e exploração.

A terra é marcada pelo genocídio e por um apagamento da cultura dos povos pré-

colombianos. O extermínio de povos primitivos deu-se no espaço latino-americano,

bem como na América Central. Em uma cultura na qual as desigualdades se

impõem, como na América Latina, a violência é uma forma de registro de opressão,

quer seja ela social, de gênero ou entre etnias. É, sobretudo, o poder da força

impondo a desigualdade no inconsciente cultural quanto às relações de gênero e de

classe.

Segundo ponderações feitas por Juarez Cirino dos Santos (1984), no capítulo

“A violência na América Latina”, em sua obra As raízes do crime: um estudo sobre

as estruturas e as instituições da violência, pode-se dizer que o controle do mais

forte sobre o mais fraco, desde a colonização, compõe os traços de uma violência

primária, de natureza institucional e estrutural, que explica a violência secundária,

de natureza pessoal. De acordo com o criminologista:

67

A violência primária na América Latina é de natureza estrutural einstitucional: a primeira modalidade define a violência das relaçõescapitalistas de produção, exacerbadas nas áreas subdesenvolvidasdependentes e superexploradas do Terceiro Mundo, e constitui a base,origem e a determinação geral de todas as espécies particulares deviolência pessoal; a segunda modalidade define a violência oficializada,produzida pelo Estado, por seus aparelhos de poder e órgãos derepressão, e pelo sistema legal, constituído de normas jurídicas coativasque disciplinam as relações sociais, garantindo e reproduzindo a violênciade relações de produção injustas, que geram e permanentemente ampliama exploração, a miséria, a fome, as doenças, o desemprego, oanalfabetismo, [...] e toda ordem de sofrimentos, angústias e desesperosque dilaceram os povos latino-americanos. Essa violência primária,estrutural e institucional, explica a violência pessoal (secundária econdicionada), como reações individuais de sujeitos obrigados a viver emcondições adversas, respondendo, irracionalmente, às frustrações e fúriascontidas ao longo das experiências de vida penosas, que os castiga eviolenta permanentemente, antes e independentemente da comissão dequaisquer ações definidas pelo poder político como crime. (CIRINO DOSSANTOS, 1984, p. 70, grifos do autor)

Sendo assim, entende-se que as relações intersubjetivas tendem a se tornar

violentas em um determinado espaço e tempo, já que passam a reproduzir

culturalmente as relações de poder e outras formas de injustiça institucionalizadas

por meio do hábito e do costume, e esses, em geral, estão ligados a crenças e

ideologias socialmente aceitas. Considera-se, então, que o espaço social latino-

americano, constituído a partir da história de desigualdades e exploração do homem

pelo homem, é um dado importante na análise e interpretação de valores sociais –

como a honra – que se configura no comportamento e conduta dos grupos latino-

americanos.

No texto literário de Márquez, a influência do meio deve ser analisada sob a

perspectiva da reciprocidade, ou seja, as personagens interagem com o meio,

influenciando-o com suas condutas e sendo por ele influenciadas. São

apresentadas, assim, a partir da ficção: a dominação do feminino pelo masculino,

bem como a presença e importância do feminino no mundo masculino; as

desigualdades sociais; a violência, a imposição de condutas via força dos costumes

e a reprodução de ideologias e de crenças, mesmo as mais absurdas, como o dever

de matar para defender a honra.

São discutidos, também, elementos como as desigualdades presentes na

história latino-americana, e por exemplo, cita-se a situação da cozinheira Victória

Guzmán, na casa de Santiago Nasar, que servira à mesa e à cama do patrão,

68

Ibrahim Nasar, pai da vítima; ou como, um outro exemplo, o casamento imposto à

Ângela, de origem humilde, com Bayardo San Román, um rico desconhecido que ali

viera morar: “[...] O argumento decisivo dos pais foi que uma família dignificada pela

pobreza não tinha direito de desprezar aquele prêmio do destino” (MÁRQUEZ, p.

53).

Alguns valores, socialmente instituídos, podem estar ligados a uma certa

ingenuidade e à simplicidade de saberes, pois é no saber ingênuo de gente simples

e humilde que hábitos e crenças, como o poder do destino, o sentimento de

fatalidade, a idéia de desigualdades e o valor da honra possuem um terreno fértil

para se desenvolver. A simplicidade do universo e a rusticidade no modo de vida dos

gêmeos, as personagens assassinas, fizeram com que acreditassem que a eles se

impunha o dever de lavar a honra da irmã; essa era a sua lei, porque era também a

lei do lugar em que viviam: “Naquele momento, reconfortava-os a ilusão de haver

cumprido com a sua lei [...]” (MÁRQUEZ, p. 117).

O papel da mulher frente a costumes nos quais preponderam valores de um

mundo masculino, como é o caso do dever de lavar a honra com sangue, é

apresentado de forma ambígua; é, igualmente, através das personagens femininas

que o autor apresenta questionamentos sobre tais valores. Algumas mulheres

mostram-se também detentoras de um poder: o poder de organizar a vida familiar e

de perceber as contradições existentes em um mundo que se mostra masculino,

como, por exemplo, a mãe do narrador, e Clotilde Armenta, dona da leiteria, lugar

onde todos, do povoado, reuniam-se.

São mulheres que, na narrativa, posicionaram-se contra o silêncio e reagiram

diante da omissão daqueles que poderiam, ou deveriam ter impedido o crime. Ao

saber da tragédia que estava por acontecer, a mãe do narrador decide, então, ir

prevenir a família de Santiago, que era seu afilhado:

Ela já estava na rua. [...] Jaime correu atrás dela sem saber o que acontecianem para onde iam, e se agarrou à sua mão. Ia falando sozinha, disse-meJaime. “Homens de pouca moral”, dizia em voz muito baixa, “animais demerda que não são capazes de fazer senão desgraças”. [...] Apressou opasso, com determinação de que era capaz quando uma vida estava emjogo, até que alguém, que corria em sentido contrário, se compadeceu de

69

seu desatino. – Não se incomode, Luísa Santiaga – gritou-lhe – ao passar. –Já o mataram. (MÁRQUEZ, p. 37- 38)

Por outro lado, há personagens femininas que assimilam as idéias e valores

do mundo em que vivem, ou seja, também acreditam nos costumes que o senso

comum, no povoado, entende como correto. São mulheres como Dona Pura Vicário,

mãe de Ângela e dos gêmeos, que demonstra força ao administrar a casa: tendo o

marido cego, dois filhos homens e quatro filhas, conduzia tudo do seu jeito e tomava

as decisões que considerava necessárias ao bem-estar da sua família.

Prudência Cotes, noiva de Pablo Vicário, também consideraria um insulto a

ela, caso o noivo não tomasse a atitude de defender a honra da irmã: “Eu sabia o

que iam fazer”, disse-me, “e não só estava de acordo, mas nunca teria me casado

com ele se não agisse como homem” (MÁRQUEZ, p. 93). Essa percepção de mundo

denota que, no povoado, os papéis do masculino e do feminino, para algumas

mulheres, estavam bem claros. Representa, também, o valor que tinha o sentimento

de honra, conforme indica a fala da mãe de Prudência: “a honra não espera”

(MÁRQUEZ, p. 93).

Na visão de mulheres como Pura Vicário, Prudência Cotes e sua mãe, o

homem, então, tem o papel de guardião da sexualidade feminina. Sob essa

perspectiva, o autor deixa uma interrogação e joga com as incertezas: a honra é um

princípio somente ligado ao mundo masculino? Gabriel García Márquez não propõe

uma visão absoluta e, ao contrapor visões de mundo diferentes, mesmo a partir da

perspectiva de algumas personagens femininas, mostra que, na história que conta, o

peso e o valor da honra são diferentes.

Quanto à religiosidade, o Catolicismo é a crença oficial, o que se pode

depreender devido ao episódio da visita do bispo e a importância dada a isso. Há

outros índices que denotam a preponderância da crença católica instituída através

da dominação espanhola. São citadas festividades religiosas como a verbena, que

são festas e feiras em devoção a santos católicos e que, originariamente, ocorriam

em Madri.

70

Aliada a esse força do Catolicismo, tem-se a rigidez de costumes morais, o

que histórica e culturalmente, na América Latina, também está ligado a dogmas

religiosos. O trecho a seguir mostra forte influência desses dogmas, através do

discurso de uma das personagens femininas, que tenta dissuadir os gêmeos de suas

intenções de vingança: “ – Por amor de Deus – murmurou Clotilde Armenta. –

Deixem para depois, nem que seja por respeito ao senhor bispo” (MÁRQUEZ, p.

27).

Entretanto, o povoado representa, na verdade, um espaço primitivo, uma vez

que inúmeras passagens, no texto, demonstram que o conhecimento, naquele

lugarejo, provém de um processo cognitivo ligado ao empírico, a saberes que

nascem de vivências e experiências cotidianas. Fazem parte, também, da

construção desse espaço social primitivo as superstições e os sonhos, montando,

assim, um quadro de uma visão de mundo mítica com lendas e presságios, que se

misturam à fé religiosa, e a dogmas fundamentados em rituais e hierarquias.

2.4 O Foco Narrativo

Outro importante objeto de análise é o elemento que, na narrativa, tem a

função de contar a história, ou seja, a figura do narrador, que é, na verdade, uma

entidade fictícia como os demais elementos da história. A questão do ponto de vista

– visão e perspectiva – é que determina a forma de narrar. Essa característica é

única do ato de contar histórias, porque a narração é, por definição, o ato de contar e

requer, portanto, um contador. O ponto de vista, em um romance, pode ser uma

questão estética ou de estilo próprio do autor, mas, para o leitor, é uma forma de

percepção, ou seja, é como apreende o que lhe é contado. Todorov, em sua obra

Estruturalismo e poética (1974), considera que:

O termo “visão” ou “ponto de vista” designa um aspecto importante da obraliterária, e particularmente da narrativa. Ele se refere à maneira por que osacontecimentos narrados são percebidos pelo narrador e,conseqüentemente, pelo leitor virtual. [...] O fato é que as visões são deprimordialíssima importância. Em literatura, jamais temos de haver-nos comacontecimentos ou fatos brutos, e sim com acontecimentos apresentados de

71

determinada maneira. Duas visões diferentes do mesmo fato fazem destedois fatos distintos. Todos os aspectos de um objeto se determinam pelavisão que dele nos é oferecida. (TODOROV, 1974, p. 40-41)

No romance de García Márquez, há o olhar de alguém voltado para a história

que conta; é um olhar que se estende, mostrando a visão dos seres que dela

participam, as personagens. Crônica de uma morte anunciada é um romance

narrado em primeira pessoa. O narrador atua como personagem secundária, sendo

amigo íntimo da vítima, parente dos assassinos e da personagem pivô do crime,

Ângela Vicário. No contexto da história, sua função primordial é a de relatar os fatos;

é uma espécie, então, de narrador-relator.

2.4.1 O Narrador-Relator e os Múltiplos Pontos de Vista

Gabriel García Márquez apresenta um narrador em primeira pessoa, que

possui, conforme terminologia empregada por Todorov (1974, p. 44), “a visão de

dentro”, ou seja, é também personagem e figura como secundária dentro da

narrativa. A focalização é “interna variável”, segundo denominação de Genette,

citado por Carlos Reis (1988). De acordo com Reis: “a focalização interna variável

permite a circulação do núcleo focalizador do relato por várias personagens” (REIS,

1988, p. 252).

O narrador é quem relata a história do crime e busca, através das suas

memórias, e também por meio de depoimentos e lembranças de outras

personagens, reconstituir uma série de fatos ligados a um crime do passado. O

trecho a seguir refere-se ao encontro do narrador com Dona Pura Vicário, mãe de

Ângela e dos gêmeos:

A mãe, de uma velhice malcuidada, recebeu-me como a um incômodofantasma. Negou-se a falar do passado, e tive de me conformar, para estacrônica, com algumas frases soltas de suas conversas com minha mãe, epoucas outras resgatadas de minhas recordações. (MÁRQUEZ, p. 131-132)

Ao ouvir o relato das outras personagens e colher depoimentos, o narrador

cede-lhes a palavra, e elas passam também a contar a história. Ele busca entender

72

algo que fez parte de sua vida. Há uma tentativa de resgate do passado através da

investigação dos fatos e a possibilidade, então, de um processo de catarse, que se

materializa ao contar a história, pois, dessa forma, poderia expiar culpas e purgar o

drama da omissão que a ele e aos outros, no povoado, atormentava, conforme

demonstra o fragmento a seguir:

[...] Hortênsia Baute, cuja única participação foi ter visto ensangüentadasduas facas que ainda não estavam, sentiu-se tão afetada pela alucinaçãoque se entregou a uma crise de penitência e um dia não pôde mais suportá-la, saiu nua pelas ruas. (MÁRQUEZ, p. 144)

A ausência de certezas em relação a alguns episódios que são narrados, uma

vez que há multiplicidade de pontos de vista, pontua o romance de Márquez.

Diversas personagens contam e reconstroem, com suas lembranças, a história

daquele crime. Revelam o que se passara naquele dia conforme a visão que têm, de

acordo com a sua perspectiva e modo de encarar os acontecimentos.

O contador da história desconhece a verdade absoluta sobre todos os fatos

ligados à morte de Santiago, seu amigo, e, principalmente, os ligados à desonra de

Ângela Vicário, sua prima. Esses fatos, por estarem intimamente relacionados,

constroem a intriga. Na verdade, o narrador-relator busca saber o porquê e como

tudo aconteceu, mas isso não lhe é de todo revelado, e tampouco é revelado ao

leitor quem, de fato, foi o autor da desonra de Ângela Vicário: essa é uma incerteza

que se mantém até o final da história. Ângela afirma que foi Santiago quem a

desonrou, no entanto, o narrador e demais personagens contestam essa versão.

Para muitos dos envolvidos, descobrir essa verdade, após vinte e sete anos,

já não interessava, e essa era um mistério que poderia e deveria se perpetuar.

Entretanto, algumas personagens, através de suas falas, e o narrador, por meio de

digressões, questionam sobre a dúvida que pairava quanto à identidade do

desonrador:

[...] A versão corrente, talvez por ser a mais perversa, era que ÂngelaVicário estava protegendo alguém a quem, de verdade, amava, e tinhaescolhido o nome de Santiago Nasar porque nunca pensou que os irmãosse atreveriam a enfrentá-lo. (MÁRQUEZ, p. 133)

73

O crime é consumado e permanece na lembrança das pessoas daquele

povoado; a desonra traz modificações na vida da moça e daqueles que com ela

conviviam. Ângela afirmava e insistia que havia sido Santiago, e, portanto, assim é

pontuado, através de um enigma, esse episódio sobre a verdadeira identidade do

autor da desonra. O narrador, porém, entende que não havia razões suficientes para

atribuir a Santiago a desonra de Ângela, o que se pode verificar no fragmento a

seguir:

[...] porque ninguém acreditou que, de fato, houvesse sido Santiago Nasar.[...] Pertenciam a dois mundos antagônicos. Ninguém nunca os viu juntos, emuito menos sozinhos. Santiago Nasar era orgulhoso demais para prestaratenção nela. (MÁRQUEZ, p. 132)

Contudo, o narrador, ao apresentar na história o que conhece e buscar nos

depoimentos de outras personagens os elementos que desconhece, deixa claro que

também não lhe foi permitido saber tudo, que há segredos não revelados e que o

conhecimento destes pertence somente à personagem de Ângela. Dessa forma, ele

impõe limites à sua percepção e à sua onisciência, transferindo, assim, a outras

personagens o conhecimento de determinados fatos e lhes dá, portanto, a liberdade

de revelá-los ou não. De acordo com ponderações feitas por Oscar Tacca (1983):

[...] Com efeito, há personagens que sabem mais do que dizem,personagens que dizem mais do que sabem. Este é um dos recursos maissutis e mais tênues da arte romanesca: uma ínfima diferença de “saber” (deconsciência, de lucidez) entre narrador e personagem, apenas visível a umaleitura atenta e inquisidora. (TACCA, 1983, p. 82)

O conhecimento intencionalmente parcial do narrador e a não-revelação de

algo importante ligado ao enredo em nada prejudicam as situações de

verossimilhança, pois, na verdade, as informações dadas sobre o crime, na

narrativa, e a exposição de seu motivo sustentam o enredo e o mantêm coeso e

lógico. A posição do narrador, demonstrando desconhecer a totalidade dos fatos é

também estratégia narrativa que corrobora com a intenção que o autor tem de jogar

com as incertezas, construindo-as através da multiplicidade de pontos de vista, ou

seja, das intervisões de personagens.

O narrador onisciente, no romance, ao mostrar as múltiplas perspectivas –

diferentes visões – sobre como se dá a história, apresenta um “caráter multifário”,

74

terminologia empregada por Scholes e Kellogg (1977, p. 192); isso impede o

elemento do autoritarismo. Na narração, há onisciência, mas que evita expor uma

verdade única. O narrador percebe e sabe dos fatos, porque conhece as outras

personagens desde sua infância, como, por exemplo, a vítima. Daí é que decorre

também sua onisciência, bem como da possibilidade de inferir e refletir sobre o que

contam e o que revelam de si a partir do quê e de como falam, conforme demonstra

o trecho:

Era o filho único de um casamento de conveniência que não teve um únicoinstante de felicidade, mas parecia feliz com o pai até que este morreu derepente, três anos antes, e continuou parecendo feliz com a mãe até asegunda-feira de sua desgraça. Dela herdou o instinto. Do pai aprendeu,desde muito pequeno, o domínio das armas de fogo, o amor pelos cavalos[...], também as boas artes do valor e da prudência. [...] os fastos da igrejaprovocavam nele uma irresistível fascinação. “É como o cinema”, medissera certa vez. (MÁRQUEZ, p. 14-16)

Assim, em função do conhecimento e de informações que tem, segundo

noções encontradas em Oscar Tacca (1983), o narrador, em Crônica de uma morte

anunciada, acaba por estabelecer uma relação de “equisciência”, isto é, “sabe tanto

quanto a personagem sobre determinados episódios”. (TACCA,1983, p. 68). Sendo

assim, a forma de narração é alternada: ora o narrador sabe tudo e reflete sobre a

conduta das personagens, a partir do quanto elas se expõem através de suas falas,

ora ele sabe tanto quanto elas sobre os fatos e se rende às negativas de maiores

esclarecimentos sobre episódios que as envolvem.

A alternância de ponto de vista, na qual ora um personagem revela os fatos

ora outro o faz, não exclui a voz do narrador-relator da história. A voz e as reflexões

deste se fazem presentes no que ele conta, bem como em suas digressões que, de

acordo com Milan Kundera: “é a maneira de abordar o tema, fora da história,

permitindo que ele se desenvolva sozinho” (KUNDERA,1988, p. 77). A título de

exemplo dessa abordagem digressiva que traz, via reflexões do narrador, um novo

conteúdo ao tema da narrativa, cita-se o fragmento do texto literário:

Um dia eu havia de perguntar aos açougueiros se o ofício de magarefe nãorevelava uma alma predisposta a matar um ser humano. Protestaram:“Quando a gente sacrifica um animal não se atreve a olha-lo nos olhos.” Umdeles me disse que não podia comer a carne do animal que degolava. Outrome disse que não seria capaz de sacrificar uma vaca que tivesse conhecidoantes, e muito menos se houvesse tomado o seu leite. Lembrei-lhe que os

75

irmãos Vicário sacrificavam os mesmos porcos que criavam, tão familiaresque os distinguiam por seus nomes. “É verdade”, retrucou um. “Agorarepare que não punham nome de gente neles, mas de flores”. (MÁRQUEZ,p. 78-79)

A mudança de perspectiva, ao longo da narrativa, ou seja, a substituição de

uma visão do narrador por intervisões das personagens, estabelece, dessa forma,

que algumas percepções sejam convergentes, e que outras se apresentem de forma

diametralmente opostas. Sendo assim, não se estabelece uma única verdade, a

visão dos fatos não é monolítica e autoritária e nem pretende ser moralista. Ocorre,

contudo, que há, dentro da narrativa, uma exigência clara em questionar certos

valores sociais que, quando ensinados e viabilizados enquanto costumes ou hábitos,

podem se sobrepor a outros valores, como o respeito à vida, às individualidades e à

liberdade de cada sujeito.

As personagens, em seus depoimentos, apresentam incertezas quanto ao

que relatam, uma vez que a distância de tempo entre os fatos – a história (diegese)

– e o que contam é bastante significativo. São possíveis, então, o que Scholes e

Kellogg denominam de brechas irônicas. De acordo com esses autores: “tudo o que

é contado e o como é contado pode estar afetado e distorcido pela passagem do

tempo”. (SCHOLES,R.; KELLOGG,R., 1977, p. 185). A incerteza é, também,

resultado das brechas irônicas que se apresentam na obra.

No romance, também há o emprego do fluxo de consciência e do discurso

indireto livre, que se mistura à narração, bem como há o uso do discurso direto. Em

vários momentos, quando o narrador relata o que lhe foi contado, a narrativa é

alterada da primeira para a terceira pessoa; como exemplo dessa alternância nos

registros de falas e no uso de discurso indireto livre, pode ser citada a seguinte

passagem do texto:

“Disse-lhe uma mulher, que passou depois das cinco para pedir um poucode leite por amor de Deus, e revelou também os motivos e o lugar onde oestavam esperando.“Não o preveni, porque pensei que era conversa debêbado”, disse-me. Não obstante, Divina Flor me confessou, numa visitaposterior, quando a mãe já tinha morrido, que esta não dissera nada aSantiago Nasar porque no fundo de sua alma queria que o matassem.”(MÁRQUEZ, 2005, p. 22-23, grifo nosso)

76

No trecho citado acima, observam-se três discursos que se entrecruzam: o

discurso do narrador, ao interrogar Divina Flor sobre o passado para que possa

compor os fatos; o discurso de Divina Flor quando ela revela a omissão da mãe,

Victória Guzmán, que já sabia que os gêmeos queriam matar Santiago, e ao se

referir à fala da mulher, que cedo aparecera na casa; e o outro é a fala literal da

mulher que aparece, através de um discurso indireto livre, “pedindo um copo de leite

por amor de Deus”.

O narrador, ao investigar a história da morte de Santiago, busca entender a si

e a outros. Dessa forma, todos que estiveram diretamente envolvidos, como os

gêmeos, Ângela e Bayardo, têm a oportunidade de se revelar. Também dá voz a

outras personagens não diretamente envolvidas, mas que têm a oportunidade de se

mostrar na história e revelar o que puderam fazer, ou, então, por quê, e o que

deixaram de fazer para impedir o crime. Assim, o leitor encontra-se com um romance

em que já conhece o final, desde as páginas iniciais, mas o contador da história

surpreende constantemente com suas estratégias narrativas.

2.4.2 A Perspectiva Dialógica e o Tema da Honra

A multiplicidade de pontos de vista, através de um narrador que se apresenta

dividindo com as personagens o ato de narrar, enseja um diálogo no qual vozes

diferentes se mostram e avaliam subjetivamente o que é contado. Através dessa

postura democrática do narrador-relator é feita a reconstituição da história. As

personagens comungam, na narrativa de García Márquez, de sensações e

lembranças e cada uma as expõe ao narrador (e ao leitor) de acordo com o que

vivenciou ou sentiu. A estratégia de as personagens contarem o que sabem sobre

os fatos, que constroem a intriga, e de expor as percepções que têm do mundo em

que vivem, externando seus valores, é uma característica basilar da perspectiva

dialógica do texto.

O narrador põe-se em atitude de relator e, com isso, ouve os depoimentos e

permite a expressão livre dos sentimentos e pensamentos das personagens. Cada

77

personagem conta a sua história e a entrecruza à ação principal. O diálogo entre as

diferentes vozes do texto, torna-se explícito por meio da oscilação do ponto de vista

dentro da narrativa, evitando uma visão única dos fatos, o que, conseqüentemente,

traz à luz discussões e posicionamentos diferentes dentro do romance sobre o tema

da honra, que é a idéia central da narrativa.

Há temas periféricos que se relacionam com o tema central, como o amor, a

vingança, a desigualdade, o preconceito, o individualismo, dentre outros, que

também são apresentados sob perspectivas diferenciadas. Sendo assim, em

Crônica de uma morte anunciada, a honra desmascara uma série de sentimentos,

que se apresentam conforme crenças individuais ou mesmo coletivas.

Em um determinado episódio, que antecedeu ao infeliz casamento, o narrador

mostra as diferentes intenções que moviam as personagens centrais envolvidas no

drama, e também apresenta suas reflexões e vozes de outras personagens, como

se pode verificar no trecho a seguir:

[...] o fato de que Ângela Vicário se atrevesse a pôr o véu e as flores delaranjeira sem ser virgem havia de ser interpretado depois como umaprofanação dos símbolos da pureza. Só minha mãe considerou um ato decoragem o fato de ela haver jogado com cartas marcadas até as últimasconseqüências [...]. Ao contrário, ninguém soube ainda com que cartasjogou Bayardo San Román. Desde que apareceu, afinal, de levita e cartola,até que fugiu do baile com a criatura de seus tormentos, foi a imagemperfeita do noivo feliz. Também nunca se soube com que cartas jogouSantiago Nasar. Eu estive com ele o tempo todo, na igreja e na festa [...], enenhum de nós vislumbrou a menor mudança em seu modo de ser. [...]tínhamos crescido juntos[...] e não era concebível, a nenhum de nós, quetivéssemos um segredo sem compartilhar, e mais ainda um segredo tãogrande. (MÁRQUEZ, p. 62-63)

O dialogismo, dentro dos estudos literários, é apresentado a partir de

pesquisa de M. Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski (1981), obra na

qual ele estuda os textos do escritor russo. De acordo com os estudos de Bakhtin,

entende-se que a perspectiva dialógica, em sua essência, caracteriza-se por não

conter uma visão narrativa unilateral e, portanto, não reduz a uma única consciência

as visões das personagens. Todorov, em Estruturalismo e Poética (1974), em um

capítulo dedicado à relação entre poética e estética, oferece considerações sobre os

estudos de Bakhtin e discorre sobre o dialogismo:

78

[...] Nesse livro, um dos mais importantes, sem dúvida, no domínio daPoética, Bakhtine opõe o gênero dialógico ou polifônico ao gêneromonológico, ao qual pertence o romance tradicional. O gênero dialógico secaracteriza essencialmente pela ausência de uma consciência narrativaunificante, que englobaria a consciência de todas as personagens. Nosromances de Dostoiévski, que são o exemplo mais notável do dialógico, nãoexiste, segundo Bakhtine, uma consciência do narrador, isolada das outrase colocadas em nível superior, e que assumiria o discurso do conjunto. Não:“A nova posição do narrador em face do personagem no romance polifônicode Dostoiévski consiste na posição dialógica, respeitada rigorosamente, eque afirma a independência, a liberdade interior, a infinitude e a indecisãoda personagem. Para o autor o personagem não é um “ele”, nem um “eu”,mas um “tu” consumado, vale dizer, um outro “eu”, estranho mas igual”.(TODOROV, 1974, p. 109-110)

A perspectiva dialógica permite o “diálogo” de idéias e de percepções. Não

ocorre uma percepção única dentro da ficção, e a narrativa não sofre a imposição da

visão do narrador. Este, por sua vez, a compartilha com as personagens e cada

uma percebe os fatos segundo sua maneira de pensar e conforme seu

entendimento. Há uma intenção clara dentro dessa percepção dialógica trazida

pelos textos literários: questionar ideologias sedimentadas e traçar um diálogo entre

idéias e posturas.

O sentido dialógico pode-se fazer representar em nível discursivo, mas ele

adquire proporções maiores, não se reduz a isso. O discurso, então, passa a revelar

o ser da personagem, revela o contexto ao qual se insere, no que crê, o que de fato

é, ou pensa ser. O próprio Bakhtin, referindo-se ao dialogismo, na obra de

Dostoiévski, considera que:

De fato, o caráter essencialmente dialógico [...] não se esgota, em hipótesealguma, nos diálogos externos composicionalmente expressos, levados acabo pelas personagens. [...] Há relações dialógicas entre todos oselementos da estrutura romanesca, ou seja, eles estãocontrapontisticamente em oposição. As relações dialógicas – fenômeno bemmais amplo dos que as relações entre réplicas de diálogo expressocomposicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra todaa linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana,tudo o que tem sentido e importância. (BAKHTIN, 1981, p. 34)

Dessa forma, apresenta-se, aqui, a definição de dialogismo para confrontá-la

com a análise da obra de García Márquez e fundamentar as posições demonstradas

de que o texto em estudo apresenta fortemente o caráter dialógico e que não versa

sobre uma postura ideológica única e autoritária, qual seja a oposição entre o certo e

o errado. Nesse sentido, o que o romance questiona são os fatores que conduzem à

79

idéia de certo e errado, e isso se mostra através da intriga criada a partir do tema de

um crime em defesa da honra e na apresentação das diferentes percepções das

personagens sobre os fatos, conforme os vários exemplos citados, no item anterior,

que discutiu intervisões dentro da narrativa.

Sendo assim, o autor explora a idéia de que alguns costumes, crenças,

preconceitos e o individualismo podem prevalecer, muitas vezes, sobre sentimentos

como solidariedade, amor, dentre outros, e que, dessa forma, confundem criando

uma inversão de valores a ponto de se tornarem mais relevantes ao homem do que

sua própria vida. Entretanto, o romance não adquire um caráter moralizante ou

dogmático.

2.5 As Personagens: Construção e Perfil

Na ficção, o homem expõe a sua nudez. Ele se desvela e se torna

descoberto. Se o grande fascínio das narrativas é contar do humano para a

humanidade, é nas histórias lidas e ouvidas que o sujeito pode conhecer melhor a si

e ao outro. A personagem, na ficção, é uma duplicação do ser humano, porém, sem

a complexidade deste. É nesse contexto que atitudes e sentimentos bastante

humanos estão inseridos, no texto ficcional, através do ser e do fazer das

personagens, pois “elas vivem o enredo”. De acordo com Antônio Cândido (2002):

Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos,organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É umaimpressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo,pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas,pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que seenredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa duraçãotemporal, referida a determinadas condições de ambiente. O enredo existeatravés das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo epersonagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida quedecorre dele, os significados e valores que o animam [...] A personagemvive o enredo e as idéias, e os torna vivos. (CÃNDIDO, 2002, p. 53-54)

O romance Crônica de uma morte anunciada é construído por um grande

número de personagens. Dessa forma, apresenta-se, aqui, uma análise da

construção das personagens diretamente envolvidas na intriga. As demais, que

80

desempenham o papel de secundárias, e as que figuram como meras testemunhas,

são analisadas conjuntamente aos protagonistas da trama, uma vez, que em relação

e confronto com outras personagens, fica garantido aos protagonistas o processo de

verossimilhança e de coerência interna. De acordo com Carlos Reis (1988):

[...] aprofundou-se uma proposta metodológica esboçada pelos formalistasrussos: a de considerar a personagem pelo prisma da verossimilhançainterna, isto é, enquanto entidade condicionada no seu agir pela teia derelações que a ligam às restantes personagens do relato. [...] Para issocontribui a existência de processos de manifestação que permitem localizare identificar a personagem: o nome próprio, a caracterização, o discurso dapersonagem [...] são alguns desses processos, conduzindo à representaçãode sentidos fundamentais capazes de configurarem uma semântica dapersonagem. (REIS, 1988, p. 216-217)

2.5.1 A Vítima

Santiago Nasar, a vítima do crime, é personagem que protagoniza, junto aos

assassinos, os irmãos Vicário, o episódio que constitui o ponto mais dramático e de

maior tensão na narrativa. Na verdade, bem ao estilo garcimarquiano, ele é uma

típica vítima de situações que são construídas a partir de elementos como a

fatalidade e a inevitabilidade do destino. É, pois, a representação do homem frente

ao inusitado e diante de acontecimentos que lhe fogem ao controle.

O jovem desconhece, como todo ser humano, o que o dia lhe reserva, e suas

preocupações são cotidianas, como, por exemplo, ir à fazenda Divino Rosto, após a

visita do bispo e a indagação quanto aos gastos exagerados do casamento ocorrido

na véspera; tais pensamentos ele divide com aqueles que o viram por último.

Através de elementos descritivos e utilizando-se de detalhes, que aparecem

nas falas de outras personagens e em suas memórias, o narrador apresenta

psicológica e fisicamente a vítima do crime. Santiago era jovem, rico, sedutor, e de

descendência árabe. Possuía boa convivência no povoado em que morava,

conforme demonstra o seguinte trecho: “Por méritos próprios, Santiago Nasar era

alegre e pacífico, e de coração aberto” (MÁRQUEZ, 2005, p. 15). Afora algumas

divergências, aparentemente, ele não tinha inimigos.

81

É sobre a vítima que versa a primeira parte da história, e é a partir do seu

assassinato, a primeira informação revelada sobre a personagem e sobre o enredo

em si, que o narrador passa a relatar sobre a vida de Santiago. Os dados são

colhidos e chegam ao leitor através daqueles que o conheceram muito bem,

principalmente, o narrador, seu amigo de infância. O nome de Santiago se deve à

mãe do narrador, que se chamava Luísa Santiaga, e era madrinha do jovem. A

narrativa fala dos amores, desilusões, hábitos, projetos para o futuro, de seu noivado

por conveniência, e sobre a maneira de Santiago relacionar-se com os outros. O

fragmento do texto, a seguir, descreve, alguns aspectos citados:

Santiago Nasar sonhou em voz alta. – Será assim o meu casamento –disse. [...] Minha irmã sentiu um branco. Pensou mais uma vez na boa sortede Flora Miguel, com tantas coisas na vida, e que teria ainda SantiagoNasar no Natal daquele ano. “Compreendi logo que não podia haver umpartido melhor que ele”, disse-me. “Imagine: belo, sério, e com uma fortunaprópria aos 21 anos”. (MÁRQUEZ, p. 31)

Sua possível relação com Ângela Vicário era ignorada por todos e, segundo o

narrador, para Santiago, Ângela era insignificante e a ela se referia como “A boba da

sua prima” (MÁRQUEZ, 2005, p. 132). Enfim, são narrados, no início do romance,

pequenos episódios que compõem sua curta vida. Na verdade, o que marca a

personagem de Santiago, no texto, é muito mais sua morte do que seu protagonismo

na história.

2.5.2 A Personagem Pivô do Crime

A personagem de Ângela Vicário é, possivelmente, a mais complexa.

Apresenta uma evolução na sua forma de entender o mundo em que vive e de

perceber a si mesma. É uma jovem de comportamento, inicialmente, descrito como

previsível, porém, ao longo da intriga, preenche o aparente vazio que era a vida

submissa e insípida que levava. É personagem que funciona como pivô do crime e

que, dentro do texto, estabelece a conexão entre o tema da narrativa, que é o crime

em defesa da honra, e a intriga, uma vez que é a desonra da jovem que motiva o

crime.

82

A transformação de Ângela, ou seja, o preenchimento de sua vida, dá-se a

partir do episódio de seu malsucedido casamento. A moça devolvida e a quem os

irmãos vingam a honra, abandona o povoado e, nele, deixa o que ela tinha sido até

então. Ângela, vinte três anos depois, faz um relato ao primo contando como foram

seus dias, após ser devolvida em sua noite de núpcias:

Ninguém teria sequer suspeitado, até que ela se decidiu a me contar, queBayardo San Román estava em sua vida para sempre desde que a levou devolta à sua casa. Foi o golpe de misericórdia. [...] Estava há muito tempopensando nele sem nenhuma ilusão até que precisou acompanhar a mãe aum exame de vista no hospital de Riohacha. Entraram rapidamente no Hoteldo Porto [...] e Pura Vicário pediu um pouco de água no bar [...]. ÂngelaVicário virou a cabeça com o último suspiro, e o viu passar a seu lado semvê-la, e o viu sair do hotel. Em seguida olhou outra vez para a mãe com ocoração despedaçado. Pura Vicário acabara de beber, secou os lábios coma manga e sorriu para ela do balcão com os novos óculos. Nesse sorriso,pela primeira vez desde o seu nascimento, Ângela Vicário viu-a tal comoera: uma pobre mulher consagrada ao culto de seus defeitos [...]. Estava tãotranstornada que fez toda a viagem de volta cantando em voz alta, e seatirou na cama para chorar durante três dias. Nasceu de novo. “Fiquei loucapor ele”, disse-me, “louca de pedra”. Bastava-lhe fechar os olhos para vê-lo,ouvia-o respirar no mar, o calor de seu corpo acordava-a à meia-noite nacama. [...] escreveu-lhe a primeira carta [...]. (MÁRQUEZ, p. 135-137)

No início da história, a personagem denota, através de seu comportamento,

as características do espaço social, que refletem a miséria em que vive com a

família, a simplicidade exagerada e sua parca leitura de mundo: ”Ângela Vicário era

a filha menor de uma família de escassos recursos” (MÁRQUEZ, p. 47). Ela e suas

irmãs apresentam um perfil de mulheres submissas e indiferentes a seus desejos.

Na família Vicário, as moças foram educadas para viver em um mundo onde

existe o masculino e o feminino, porém, nesse mundo plural, muitas vezes, o

feminino apenas reproduz valores que apresentam uma óptica masculina. Na família

de Ângela, os papéis sociais endereçados a cada gênero definiam-se conforme o

exposto no trecho abaixo e no qual aparecem, além de comentários feitos pelo

narrador, os elogios que sua mãe dedicava às filhas de Pura Vicário:

Os irmãos foram criados para ser homens. Elas tinham sido educadas paracasar. Sabiam bordar em bastidor, costurar à máquina, tecer renda de bilro,lavar e passar, fazer flores artificiais e doces de fantasia [...]. “São perfeitas”[...]. “Qualquer homem será feliz com elas, porque foram criadas parasofrer”. (MÁRQUEZ, p. 47-48)

83

Ao descrever Ângela fisicamente, o narrador a apresenta como sendo a mais

bonita dentre as irmãs, emitindo juízo de valor sobre a personagem e citando

comentários de outras personagens sobre a protagonista, compondo-lhe, assim, o

perfil inicial. O comentário, apresentado a seguir, descreve a personagem antes de

sua tragédia pessoal:

Ângela Vicário era a mais bela das quatro, e minha mãe dizia que nasceracomo as grandes rainhas da história, com o cordão umbilical enrolado nopescoço. Tinha, porém, um ar de desamparado e uma pobreza de espíritoque lhe auguravam um futuro duvidoso. [...] pouco antes do luto pela irmã,encontrei-a na rua pela primeira vez, vestida de mulher, o cabelo crespo, emal pude acreditar que fosse a mesma. Mas foi uma visão momentânea:sua pobreza de espírito se agravava com os anos. Tanto que quando sesoube que Bayardo San Román queria casar com ela, muitos pensaram quefosse uma piada de mau gosto de forasteiro. (MÁRQUEZ, 2005, p. 48-49)

A mãe, Puríssima del Carmen, mulher de temperamento forte, era quem

conduzia a família desde que o pai, Pôncio Vicário, ficara cego. Era rígida em seus

costumes morais e entendia o casamento de Ângela como uma boa sorte que

recaíra sobre toda sua família. A jovem não queria casar com Bayardo San Román e

alegava a falta de amor. A mãe, no entanto, duramente lhe dizia que: “O amor

também se aprende” (MÁRQUEZ, p. 53). É uma personagem que, com sua moral

rígida, com sua aspereza e sofrimento de mulher, ajuda a compor a essência da

filha, protagonista da tragédia. Apresenta-se, a seguir, por meio da voz do narrador,

o perfil da mãe de Ângela:

[...] Puríssima del Carmen, a mãe, tinha sido professora primária até quecasou para sempre. O aspecto manso e um tanto amargurado disfarçavamuito bem o rigor de seu caráter. [...] Consagrou-se com tal espírito desacrifício na atenção ao marido e à criação dos filhos que a gente esqueciaàs vezes que continuava existindo. (MÁRQUEZ, 2005, p. 47)

Após vinte e três anos, o narrador reencontra Ângela, que vive, então,

sozinha, em um povoado na Guajira, “[...] aquele morredouro de índios” (MARQUEZ,

p. 130). Ela estava bordando, próxima à janela, e as impressões que ele teve sobre

a personagem se traduzem no pensamento de que ali havia uma mulher que em

nada lembrava a Ângela do passado: o tempo a fizera uma sobrevivente de si

mesma. O trecho citado a seguir denota essas impressões que ele teve:

84

Vendo-a assim, dentro do marco idílico da janela, não quis acreditar queaquela mulher fosse quem eu pensava, porque me recusava a admitir que avida acabasse por se parecer tanto à má literatura. Mas era ela: ÂngelaVicário 23 anos depois do drama. [...] Estava tão madura e esperta quedava trabalho acreditar que fosse a mesma. O que mais me surpreendeu foia forma como acabara por entender sua própria vida. [...] não mais mepareceu tão envelhecida como à primeira vista, mas quase tão jovem comona recordação, e não tinha nada em comum com a mulher que haviamobrigado a se casar sem amor aos vinte anos. Pela primeira vez dona deseu destino, Ângela Vicário descobriu então que o ódio e o amor sãopaixões recíprocas. (MÁRQUEZ, 2005, p. 131-137)

Em meio a confusões e tragédias pessoais, Ângela descobre que, do

desprezo que sentia pelo noivo, tempos depois, nasce uma paixão – um sentimento

de mulher – e, por mais que ela se tenha transformado mediante o sofrimento, e se

libertado do jugo e da pressão familiar, encontra-se, agora, aprisionada a um

sentimento novo, que é seu súbito amor. A sua trajetória mostra uma personagem, a

princípio, indiferente, distante e quase insignificante que, ao deparar-se com a

humilhação, com o preconceito e, após muitas amarguras, transforma-se e ousa

amar e sentir paixão.

Relembrando situações do passado, Ângela revela ao primo que, mesmo

mergulhada em seus temores, não aceitara a idéia de enganar o noivo na noite de

núpcias conforme lhe fora sugerido, e manteve a condição da perda de sua

virgindade.

Assim, através de suas falas ao narrador, demonstra ingenuidade, baixa

auto-estima, porém retidão de caráter e, sobretudo, coragem. De acordo com o

trecho a seguir, através da voz de Ângela, o texto denota que, por vezes, a ousadia

de simplesmente “deixar-se ser” é necessária; e é preciso, então, desafiar o que,

costumeiramente, conceitos sociais querem fazer parecer, senão como correto, no

mínimo, aceitável:

[...] a decência pura que Ângela Vicário levava escondida dentro daestupidez imposta por seus preconceitos. “Não fiz nada do que medisseram”, falou-me, “porque quanto mais pensava naquilo, maiscompreendia que era uma sujeira que não se devia fazer com ninguém,muito menos com o pobre homem que teve a má sorte de se casar comigo”.(MÁRQUEZ, 2005, p. 134)

85

No decorrer da história, Ângela constrói maior profundidade em seus

relacionamentos: impõe-se à mãe e decide retomar sua relação com Bayardo.

Liberta-se de seus preconceitos e vence sua própria indiferença à vida, modificando,

em vários aspectos, sua forma de pensar e de agir. É personagem que busca dentro

de si, ao longo da narrativa, conteúdo que possa preenchê-la e tornar-se mais

consistente.

É apresentada, inicialmente, na narrativa, somente sob o ponto de vista do

narrador; é ele quem conta sobre a personagem e a descreve como a vê e como os

outros no povoado a vêem. Entretanto, a partir de um determinado momento na

intriga, ou seja, após sua tragédia pessoal, a personagem recebe vez e voz para

mostrar-se. Adquire, então, o privilégio de respeitar-se e de julgar-se com o direito

de manter só para si alguns segredos. É personagem que ultrapassa os limites que

lhe são impostos, vence preconceitos e adquire força e essência dentro da narrativa.

2.5.3 Um Forasteiro: O Noivo

A tragédia pessoal de Ângela entrecruza-se, é claro, com a de Santiago,

também com a de Bayardo e com a de seus irmãos. Finaliza-se mediante a

possibilidade de recomeçar sua relação com Bayardo San Román, passados vinte e

três anos. O forasteiro que a escolhera, sabe-se lá o porquê, como noiva, marca

presença em sua vida desde o episódio do casamento. O tema desse desamor-amor

entre Ângela e Bayardo, e a dramática história que nasce da relação entre ambos,

pulula em torno da ação principal, preenchendo-a de siginificados.

Bayardo San Román é uma personagem que, desde sua chegada, envolve

em torno de si muito mistério e causa estranheza aos moradores do pequeno

povoado. É à personagem de Bayardo que se dedica a segunda parte da história.

Recém-chegado, veio, segundo alguns diziam, com a intenção de se casar. E,

assim, sua aparição é cercada de excentricidades; ele permite que diversos boatos

circulem livremente sobre sua pessoa no povoado; isso parece até lhe causar um

certo prazer:

86

Bayardo San Román, o homem que devolveu a esposa, viera pela primeiravez em agosto do ano anterior: seis meses antes do casamento. [...] Andavapelos trinta anos, mas muito bem escondidos, pois tinha uma cintura fina detoureiro, os olhos dourados e a pele cozinhada a fogo lento pelo salitre.Chegou com uma jaqueta curta, calça muito apertada, ambas de couronatural, e luvas de pelica da mesma cor. Magdalena Oliver viera com ele nonavio [...] “Parecia maricas”, disse-me. “ E seria uma pena [...]” . Não foi aúnica que pensou assim, nem mesmo a última em perceber que BayardoSan Román não era homem para conhecer à primeira vista. (MÁRQUEZ, p.39-40)

O narrador tem conhecimento de que chegou um forasteiro ao povoado,

enquanto está estudando fora de casa, através de cartas que a mãe lhe envia, e,

segundo ela, são muitas as opiniões dos moradores sobre o estranho que desejava

casar com Ângela Vicário. O fragmento do texto, abaixo, apresenta detalhes e as

opiniões sobre o estranho que havia chegado:

Minha mãe me escreveu para o colégio em fins de agosto e me dizia emuma nota casual: “Chegou um homem muito estranho”. Na carta seguinteme dizia: “O homem estranho se chama Bayardo San Román, e todomundo diz que é encantador, mas eu não o vi”. [...] Gostava de festasruidosas e longas, mas sabia beber, era apartador de brigas e inimigo debrincadeiras de mão[...]. Minha mãe lhe deu a aprovação final em uma cartade outubro. “As pessoas gostam muito dele”, dizia-me, “porque é honrado ede bom coração, e no domingo comungou de joelhos e ajudou a missa emlatim”. [...] Só muito depois do infeliz casamento é que ela me confessouque o havia conhecido quando já era tarde para corrigir a carta de outubro,e que seus olhos de ouro tinham provocado nela um estremecimento deespanto. – Achei-o parecido com o diabo – disse-me [...]. (MÁRQUEZ, p. 40-43)

A personagem apresenta-se, desde o início, como uma incógnita e assim se

mantém até o final. Não surpreende, não sofre transformações profundas. Não há

um arroubo sequer de paixão, ira ou generosidade. Não há expressão de

sentimentos intensos, mas a arrogância e vaidade eram-lhe os traços mais

marcantes. O trecho abaixo apresenta comentários do narrador e de sua mãe acerca

da personalidade de Bayardo San Román:

Um domingo depois da missa desafiou os mais destros nadadores, queeram muitos, e deixou para trás os melhores com vinte braçadas de ida evolta através do rio. Minha mãe me contou isso, numa carta, e no fim fez umcomentário muito seu: “Parece também que está nadando em ouro”. Istoconfirmava a lenda prematura de que Bayardo San Román não era capazapenas de fazer tudo, e fazê-lo muito bem, senão que dispunha de recursosintermináveis. (MÁRQUEZ, p. 41-42)

87

Chega ao povoado com a intenção de casar, e isso é tudo o que, inicialmente,

revela de si. Bayardo casa porque quer casar. Na seqüência, devolve a noiva porque

se sente logrado no negócio que fizera. A ”invisível” e recatada Ângela não era

virgem. Mesmo com um nome que sugeria a imagem da pureza, do etéreo, ela o

havia enganado e isso, para ele, era imperdoável. Seu ego não suportava, e

entendia, então, que devolvê-la seria desfazer o negócio.

As intenções de Bayardo para com Ângela nunca foram claras, a não ser o

fato de querer casar-se com ela e de tê-lo anunciado logo na primeira vez em que a

vira, conforme o trecho seguinte comprova: “– Tem um nome muito bem posto –

disse. Em seguida recostou a cabeça no espaldar da cadeira e voltou a fechar os

olhos. – Quando acordar – disse – lembre-me que vou me casar com ela”

(MÁRQUEZ, p. 44). Aqui, pode-se observar que o autor apresenta, novamente, a

perspectiva dialógica do texto, porque, no trecho que segue, são apresentadas

percepções de outras personagens sobre essa insólita “decisão de casamento” do

recém-chegado:

Ângela Vicário contou-me que a proprietária da pensão lhe havia faladodeste episódio antes que Bayardo San Román lhe propusesse namoro. “Eume assustei muito“, disse-me. Três pessoas que estavam na pensãoconfirmaram que o episódio ocorrera, outras quatro, não. (MÁRQUEZ, p. 44)

Ângela, segundo depoimentos que deu ao primo, quando conheceu Bayardo

San Román, revela que suas impressões a respeito de Bayardo nada tinham de

positivas. No excerto a seguir, há o relato dos sentimentos de Ângela em relação a

ele e aparece, também, a percepção do narrador:

Ela me confessou que conseguira impressioná-la, mas por razõescontrárias ao amor. “Eu detestava os homens arrogantes, e nunca tinhavisto um com tanta vaidade [...]”. Bayardo San Román, por sua vez, deviater se casado com a ilusão de comprar a felicidade com o peso descomunalde seu poder e sua fortuna, pois quanto mais aumentavam os planos dafesta, mais idéias loucas tinha para fazê-la ainda maior. (MÁRQUEZ, p. 45-58)

Após o infortúnio do casamento, Bayardo desaparece do povoado, e poucos

têm notícias dele. Sua passagem por lá fora meteórica, rápida, mas deixou marcas

de sua estada. A história da união entre Bayardo e Ângela começa quando a

história de seu nefasto casamento encerra-se. Assim como da primeira vez, ele não

88

demonstrou amor e quando se reencontraram, mais de duas décadas depois de um

curto casamento, também não revela o motivo de ter voltado a procurá-la.

É uma personagem que se modifica apenas com a passagem do tempo que,

em regra geral, tende a transformar a todos. Quando se reencontraram, ela

percebeu o quanto o tempo pudera transformá-lo: “– Em um meio-dia de agosto, [...]

sentiu que alguém chegava à sua porta. Não precisou olhar para saber quem era.

“Estava gordo, o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de

perto[...]” (MÁRQUEZ, p. 140). Ele voltou, depois de vinte e três anos e de muitas

cartas apaixonadas que foram escritas por Ângela, durante dezessete anos, e

endereçadas a ele, que apenas diz: “ – Bem – disse – aqui estou” (MÁRQUEZ,

2005, p. 140).

Através das reflexões, apresentadas, em um discurso irônico, o narrador vai

tentando reconstituir todos esses fatos para melhor entendê-los e, assim, expõe-se

aqui um fragmento do texto, que apresenta um traçado na concepção do narrador-

relator, acerca da presença e do papel que cada protagonista desempenhou na

dramática história:

Para a imensa maioria houve uma única vítima: Bayardo San Román.Imaginavam que os outros protagonistas da tragédia tinham sedesincumbido com dignidade, e até certa grandeza, do quinhão denotoriedade que a vida lhes tinha destinado. Santiago Nasar expiara ainjúria, os irmãos Vicário provaram sua condição de homens, e a irmãenganada estava outra vez de posse de sua honra. O único que tudo tinhaperdido era Bayardo San Román. “O pobre Bayardo”, como foi lembradodurante anos [...]. (MÁRQUEZ, 2005, p. 123-124)

2.5.4 Os Assassinos: Pedro e Pablo Vicário

As personagens dos irmãos gêmeos Pedro e Pablo Vicário representam, na

ficção de Márquez, a complexidade do ser humano e a importância que têm, para os

sujeitos, as coisas em que acreditam. A maneira como vivem é o reflexo daquilo que

aprenderam sobre o que é o viver. Tinham valores que incluíam o trabalho, o

respeito à família, à honra, ao compromisso, dentre outros. Em um determinado

89

episódio, para desespero de Ângela, quando a mãe e as irmãs a forçaram a aceitar

o pedido de casamento de San Román, a quem ela nem conhecia, os gêmeos assim

se manifestaram:

Ângela Vicário não esqueceu nunca o horror da noite em que seus pais esuas irmãs mais velhas com seus maridos, reunidos na sala da casa,impuseram-lhe a obrigação de casar com um homem que mal tinha visto.Os gêmeos se mantiveram à margem. “Achamos que eram bobagens demulher”, disse-me Pablo Vicário. (MÁRQUEZ, p. 52-53, grifo nosso)

Pedro e Pablo Vicário também protagonizam a tragédia. Os gêmeos

assassinos eram jovens e sua profissão era de magarefe, ou seja, trabalhavam em

um matadouro. Seu mundo era rústico, bruto e limitavam-se a cumprir com o que

consideravam ser suas obrigações. Coube-lhes o papel que, normalmente, causa

rejeição ao leitor. São personagens que, em uma situação normal na narrativa de um

crime, figurariam, certamente, como antagonistas. Os gêmeos, irmãos de Ângela

Vicário, são os brutais assassinos de Santiago Nasar.

No entanto, essa construção de antagonismo, no texto de Márquez, não se

apresenta, pois há um contexto que se impõe a essa avaliação. Não há no romance

uma personagem que encarne a figura do herói ou do vilão. Os assassinos

apresentam em seu perfil que não houve arrependimentos, mas a vontade de

realizar, de fato, o crime, também não era de todo absoluta, e o que aconteceu foi

que houve a necessidade de cumprir com uma obrigação moral: lavar a honra da

irmã.

“Nunca houve morte mais anunciada” (MÁRQUEZ, p. 76). Esse é um

comentário recorrente na história, bem como é parte do título do romance, e mostra

que, possivelmente, havia a intenção dos assassinos de serem impedidos. As

personagens possuíam características de homens simples e rudes, todavia

mantinham bom relacionamento com todos no pequeno povoado, conforme

demonstra o trecho a seguir:

Eram gêmeos: Pedro e Pablo Vicário. Tinham 24 anos e se pareciam tantoque dava trabalho distingui-los. “Eram de aparência grosseira mas de boaíndole”, dizia o sumário. [...] mas em situações críticas tinham caracteresopostos. [...] Pablo Vicário era seis minutos mais velho que o irmão, e foimais imaginativo e decidido até a adolescência. Pedro Vicário me pareceu

90

sempre mais sentimental, e por isso mesmo mais autoritário. (MÁRQUEZ,2005, p. 26;89)

Na verdade, dentro da intriga, o crime que cometeram os transforma em

assassinos, e isso não era algo esperado, pois, no vilarejo, os dois eram conhecidos

por sua reputação de gente boa e como trabalhadores. Clotilde Armenta, que os

conhecia muito bem, desconfiou do interesse que tinham os dois em Santiago

Nasar, às 4h10m da manhã, e decidiu investigar o porquê:

– Aconteceu alguma coisa a ele? – perguntou. – Nada – respondeu PedroVicário. – A gente só está querendo matá-lo. Foi uma resposta tãoespontânea que ela não pôde acreditar que fosse verdadeira. [...] ClotildeArmenta observou-os seriamente [...]. “Pareciam duas crianças”, disse-me.E essa reflexão assustou-a, pois pensou sempre que só as crianças sãocapazes de tudo. (MÁRQUEZ, p. 82)

Desde o início, na narrativa, os irmãos Vicário apareceram como os

assassinos e só restava explicar o motivo. Ao longo da história, a conduta de

vingança não só foi aceita por alguns no povoado, bem como exigida. Os gêmeos,

por acreditarem que agiram corretamente, consideravam-se inocentes. A exemplo,

cita-se:

[...] mas o pároco lembrava-se da rendição como um ato de grandedignidade. – Nós o matamos conscientes – disse Pedro Vicário – massomos inocentes. – Talvez diante de Deus – disse o padre Amador. –Diante de Deus e dos homens – disse Pablo Vicário. – Foi uma questão dehonra. [...] No xadrez de Riohacha, onde estiveram três anos à espera dojulgamento, porque não tinham como pagar a fiança para a liberdadecondicional, os reclusos mais antigos lembravam-se deles por seu bomcaráter e espírito social, mas nunca perceberam qualquer indício dearrependimento. Naquele momento, reconfortava-os a ilusão de havercumprido com a sua lei [...]. (MÁRQUEZ, 2005, p. 74-75; 117)

A rusticidade, a ingenuidade e a crença de que nada mais restava a fazer do

que matar o autor da desonra da irmã, e nem mesmo o sentimento natural, e tão

humano, da vingança, não obscurecem o fato de que os gêmeos, na verdade,

tentaram fazer de tudo para que o crime não se consumasse. Anunciaram a todos

que iriam matar Santiago Nasar. Avisaram os próximos e até os mais distantes de

Santiago na vã esperança de que alguém o prevenisse. Assim, eles seriam

poupados da vergonha e da desonra e, também, não se tornariam assassinos.

91

Entretanto, a eles coube, também, fazer jus ao próprio nome e o sentido que

este possui: “Vicário”; honraram, então, o nome da família e o conteúdo semântico

que possui, uma vez que vicário significa: “fazer as vezes de outrem ou de outra

coisa”, segundo consta no Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa

ilustrado. Assim, cumpriram o destino que o nome lhes reservara; diante da omissão

e consentimento, mataram e defenderam valores consagrados na comunidade em

que viviam.

Isso significa que não lhes restou outra alternativa a não ser cumprir o dever

que a sociedade, de certa forma, impusera. Através da fala da personagem Clotilde

Armenta, essa idéia também é apresentada: “[...] livrar esses pobres rapazes do

horrível compromisso que caiu em cima deles [...]” (MÁRQUEZ, p. 85). Defenderam

a honra da irmã e alegaram a legítima defesa da honra, pois acreditavam, sem

remorso algum, que fizeram valer a justiça ao seu modo. De acordo com o trecho

abaixo:

O advogado sustentou a tese do homicídio em legítima defesa da honra,admitida pelo tribunal da consciência, e os gêmeos declararam ao fim dojulgamento que voltariam a fazer mil vezes o que fizeram pelos mesmosmotivos. (MÁRQUEZ, p. 73)

Os motivos pelos quais o crime não foi impedido, foram diversos, e cada um

dos que presenciou, ou participou dos fatos, alega diferentes razões que os impediu

de evitar que os gêmeos matassem Santiago Nasar. Cada um tinha razões que

escondiam, talvez, outras de raízes mais profundas. No fragmento a seguir, o

narrador discorre sobre a omissão e a culpa que marcaram a história dos moradores

daquele lugarejo:

Mas a maioria dos que puderam fazer alguma coisa para impedir o crime e,apesar de tudo, não o fizeram, consolou-se com invocar o preconceito deque as questões de honra são lugares sagrados aos quais só os donos dodrama têm acesso. “A honra é o amor”, ouvia minha mãe dizer [...].(MÁRQUEZ, 2005, p. 144)

A reflexão trazida ao texto, na voz da mãe do narrador, sobre honra e amor,

aparece também na epígrafe, que consta nas primeiras páginas do romance, de

autoria de Gil Vicente, poeta e dramaturgo português do período humanista: “A casa

do amor é de altivez”.2 O romance Crônica de uma morte anunciada tematiza, na

2 “La caza de amor es de altanería” (transcrição na língua de origem).

92

ficção, questões humanas como a honra e, ligados a ela, traz outros temas

importantes com os quais o homem se defronta a todos os momentos: o amor e o

ódio; a vingança, o desprezo, a violência, a crença no que considera como valor

essencial e, principalmente, o senso e concepção de justiça.

A análise feita, até aqui, das categorias da estrutura narrativa que compõem o

texto literário em estudo, procura ser de ordem prática e metodológica. Para que um

texto literário seja compreendido e apreendido em seus diferentes aspectos e

potencialidades cognoscitivas, é preciso que possam ser entendidos alguns

mecanismos básicos de seu funcionamento, bem como se faz necessária a

exploração e a interpretação do tema. A própria literatura, segundo Todorov, “deve

ser compreendida na sua especificidade, enquanto literatura, antes de se procurar

estabelecer sua relação com algo diferente dela mesma” (TODOROV, 1970, p. 81).

93

3 AMBIVALÊNCIA E SUBVERSÃO NO ROMANCE CRÔNICA DE UMA MORTE

ANUNCIADA

O escritor Gabriel García Márquez apresenta uma discussão sobre o tema da

honra que, dentre outros, é considerado uma de suas obsessões. Segundo consta

no site de literatura hispano-americana “Centro Virtual Cervantes”, em matéria que

se intitula Gabriel García Márquez, obsesiones del autor, o escritor colombiano

fundamenta sua escritura em assuntos que discutem o universo das relações

humanas:

García Márquez chega a ser contemporâneo da eternidade ao apoderar-sedo tempo, uma de suas obsessões, como o amor e a morte ou a honra e avingança, elementos com que cria uma particular mitologia. Sua literaturamistura anedotas familiares que se somam à história, aos relatoscosmogônicos, a contos populares de sua terra, enfim, há todo um fluir delembranças e de saberes que acabam por se projetar em sua ficção e seapresentam como entidades sobrenaturais questionando nossa noção doreal. (http://CVC.Cervantes.es/ACTCULT/garcía_márquez/ obsesionesdel autor; acesso em 17/12/ 06;3 tradução da autora)

3.1 A Honra e a Concepção de Justiça em Crônica de uma morte anunciada

Analisa-se, quanto aos temas considerados obsessões de Márquez, não suas

preferências, e, sim, a forma como o escritor os coloca em discussão. Pode ser

observada a presença de todos os temas preferidos do autor, ou quase todos, no

3 García Márquez llega a ser coetáneo de la eternidad al adueñarse del tiempo, una de susobsesiones, como el amor y la muerte, o el honor y la venganza, elementos con los que arma unaparticular mitología. Su literatura recrea anécdotas familiares las que se suman la historia, los relatoscosmogónicos, los cantos populares de su tierra, todo un fluir de recuerdos y de saberes que alproyectarse en sus ficciones se nos presentan como entidades sobrenaturales cuestionando nuestranoción de lo real.

romance Crônica de uma morte anunciada. O amor e a vingança são,

principalmente, os elementos que aparecem, conjuntamente, ao eixo central da

ação: o crime para defender a honra.

A narrativa revela, a partir do tema central da honra, uma série de

sentimentos, como preconceito, vaidades, entre outros. Também se percebe a

covardia e a inércia, por parte da maioria dos personagens, principalmente, em

função de seus costumes e crenças diante do episódio do crime. Isso é possível

conferir através de um comentário feito pelo narrador sobre a omissão do povo, que

tinha ciência dos fatos, e que, antes mesmo de o crime acontecer, já o dera por

consumado:

[...] e éramos muito poucos os que não sabíamos que os gêmeos Vicárioestavam esperando Santiago Nasar para matá-lo, ainda mais que seconhecia o motivo com seus pormenores completos [...]. A notícia, então,estava tão bem espalhada que Hortênsia Baute abriu a porta bem quandoeles passavam diante de sua casa, e foi a primeira que chorou por SantiagoNasar. “Pensei que já o haviam matado”, disse-me, “porque vi as facas coma luz do poste e achei que iam pingando sangue”. (MÁRQUEZ, p. 87; 92)

Sublinha-se a idéia de que o romance traz à discussão o mundo das relações

humanas e, evidentemente, através dos temas que explora, mostra as possíveis e

até mesmo inimagináveis perspectivas e visões de mundo que as personagens

expressam, as quais são modeladas pelo espaço social primitivo onde vivem. O

escritor tece relações entre temas contundentes como honra, crime, vingança e

preconceito, misturando-os ao que muito inquieta o ser humano, como tempo,

fatalidade, destino e o desconhecido. O comentário do personagem-narrador, feito

no epílogo e abaixo transcrito, ilustra tais considerações:

Durante anos não conseguimos falar de outra coisa. Nossa conduta diária,dominada até então por tantos hábitos lineares, começara a girar, derepente, em torno de uma mesma ansiedade comum. Os galos doamanhecer nos surpreendiam tentando ordenar as numerosascasualidades encadeadas que tornaram possível o absurdo, e eraevidente que não o fazíamos por um desejo de esclarecer mistérios, masporque nenhum de nós podia continuar vivendo sem saber com precisãoqual era o espaço e a missão que a fatalidade lhe reservara. (MÁRQUEZ,p. 143)

O místico e o transcendental materializam-se em várias situações, como em

sonhos premonitórios, presságios e intuições das personagens. O texto, em

95

diversas passagens, propõe, nas entrelinhas, um questionamento: qual é o limite

entre o real e o transcendental. E, assim, o enredo constrói-se, também, mediante a

idéia de desestabilizar e desestruturar aquilo que o ser humano passou, desde

muito, a denominar como realidade.

Na esfera de interrogações acerca de uma porção de dogmas sociais e,

sobretudo, sobre o conceito de honra, a obra de García Márquez apresenta um

contexto de situações que confundem e não oferecem certezas. As personagens

estão envolvidas em episódios que ora se lhes apresentam de um jeito, ora lhes

parecem diferentes. A obra é perpassada por uma contínua ambigüidade em

relação aos fatos e até mesmo no que tange a sentimentos que as personagens

expressam.

Elas se apropriam, contudo, de seu modo de pensar, isto é, revelam as

percepções que têm, mesmo em meio às contradições e situações que lhes

parecem obscuras, sobre o tema da honra e sobre o crime ocorrido. Segundo o

texto, a grande maioria, no povoado: “consolou-se com invocar o preconceito de que

as questões de honra são lugares sagrados aos quais só os donos do drama têm

acesso” (MÁRQUEZ, p. 144). A voz democrática do narrador compõe

constantemente a história junto às vozes das diferentes personagens.

A obra não se resume à apresentação do tema da honra e seu vínculo com

outros temas que aborda. Discute a noção de honra que, no romance, em sua

essência, está ligada diretamente à necessidade de vingança. Nesse caso, pode-se

ir além nas reflexões até aqui feitas, uma vez que, no contexto da história, naquele

espaço social primitivo de crenças e mitos, a vingança foi a maneira encontrada

para fazer justiça. Sendo assim, matar em nome da honra significava, de certa

forma, uma concepção de justiça.

Os irmãos Vicário reconhecem, no crime que cometeram, a sua forma de

fazer justiça e alegam a legítima defesa da honra, que é o endosso de uma

vingança privada. Vale lembrar que o sistema de vingança privada é um direito

arcaico, que existia na Antigüidade, e também era representada através da arte. O

jurista e filósofo François Ost, ao analisar a tragédia Oréstias, de Ésquilo, examina o

96

tema da vingança, que no contexto do drama, é apresentada como um sagrado

dever incumbido a um familiar da vítima (OST, 2005 p. 124). E. Mechoulan,

mencionado por François Ost (2005), considera em sua obra Direito e literatura,

estudos clássicos4, que:

[...] ninguém ignora o quanto a pulsão vingativa continua a aflorar nasformas mais modernas de justiça. A pena jamais se libertará realmentedela; mesmo quando o Estado moderno monopolizar em seu proveito oexercício da violência legítima, a pena continuará conservando algo desua função retributiva originária. Quanto ao arrebatamento passional dacólera, vizinha da indignação vingadora, com freqüência valerá como“circunstância atenuante” – podendo mesmo obter a absolvição de júrispopulares tão próximos, sob muitos aspectos, dos leitores das ficçõesliterárias. (MECHOULAN, apud OST, 2005, p. 99, grifos do autor)

Para François Ost (2005), a vingança, relacionada à crença de “fazer justiça

com as próprias mãos”, é um tema que tem ocupado, freqüentemente, as páginas

da ficção literária. De acordo com o jurista, citando E. Mechoulan: “Esse estranho

entrelaçamento da vingança e da justiça – e os retornos sempre ameaçadores do

talião – ocupam um lugar considerável na ficção literária” (MECHOULAN apud OST,

2005, p. 99).

No texto de Gabriel García Márquez, há elementos como sonhos, presságios,

lendas e, sobretudo, a fatalidade que gera os desencontros e impede que a vida de

Santiago seja poupada. Apresenta-se, assim, no romance, um contexto de saberes

primitivos ligados ao mágico, ao místico e ao inexplicável. Isso fortifica o

entendimento de que a vindita, a vingança primitiva, e a intenção de lavar a honra

com sangue são as maneiras concebidas como forma de justiça e, portanto, aceitas

no povoado onde moravam os protagonistas do drama. François Ost, referindo-se

aos elementos místicos e crenças teológicas relacionados à concepção de justiça, e

sobre a evolução desta última, cita as palavras de Y. Barel5 :

Essa passagem da vingança à justiça, [...] só foi possível pela emergênciaprogressiva da idéia de responsabilidade individual: com efeito, comojulgar um indivíduo, se seu ato é apenas o produto das forças obscurasque o determinam do exterior [...]?. A passagem do pré-direito (davingança) ao direito (da justiça) implicará também o recuo da palavramágica (oráculo, imprecação, maldição, juramento, ordálio...) em favor de

4 A obra referida por François Ost, de E. Mechoulan, tem como título na língua de origem Droit etlittérature, Estudes classiques, 2000.5 Y. Barel, La Quête du sens. Comment l’ espirit à la cité, Paris, Seuil, 1987, p.41.

97

uma palavra dialógica que busca convencer por argumentos racionais eprovas verificáveis[...]. (BAREL apud OST, 2005, p. 98)

O romance de Gabriel García Márquez apresenta o tema da honra plasmado

à idéia de vingança que se encontra inserida na concepção de justiça que tinha o

povo da pequena vila, localizada na Costa da Colômbia: a honra da família Vicário

havia sido maculada, e isso significava, então, a perda do respeito diante da

comunidade. Vale, neste contexto, a pena de Talião.

Revela-se, assim, a importância do olhar do outro, “a opinião alheia”, que,

conforme alguns conceitos presentes tanto na filosofia quanto na antropologia, é um

dos aspectos definidores do sentimento de honra. Coube aos gêmeos a obrigação

moral e social de resgatar a honra perdida da irmã, e a solução encontrada, dentro

de seu rústico universo, foi assassinar o suposto desonrador.

Na relação que se estabelece entre vingança e justiça, há que se considerar

o fato de que ambas têm raízes profundas na construção da identidade do ser

humano. A vingança é um sentimento atávico, primitivo, e a justiça é um ideal

necessário e, teoricamente, seu poder é o da eqüidade. Nesse contexto, é que, por

vezes, elas se confundem e, ao longo dos tempos, uma tem sido usada em nome

da outra para justificar condutas, crenças e costumes.

No contexto da história, a ordem jurídica, com seus procedimentos legais,

apresentava-se, aos protagonistas do drama e ao povo, como algo distante,

nebuloso e tão enigmático quanto os episódios que envolveram o dia do crime. A

concepção de fazer justiça privada se sobrepôs, então, à noção de uma justiça que

apresentasse razões e contra-razões, oferecendo uma solução coerente que

pudesse reparar “a ofensa sofrida”. De acordo com Ost (2005), citando E.

Mechoulan:

Ligada ao código de honra de pequenas sociedades hierarquizadas, elase explica e se mede pela exigência imperiosa de restaurar um estatutosocial injustamente negado. À sua maneira, a vindita se inscreve no vastosistema das trocas sociais, como uma contratransferência negativa (olhopor olho, dente por dente) destinada a restabelecer a reciprocidade dosatos e o equilíbrio das balanças. (MECHOULAN, apud OST, 2005, p. 98)

98

3.2 Ironia e Crítica à Ciência Jurídica: O Juiz, Amante da Literatura e O Processo,

Um Enigma

A ironia, recurso constante no romance Crônica de uma morte anunciada,

apresenta-se através de situações que ocorrem no enredo, ou na construção das

personagens, bem como nas relações que entre elas se estabelecem. O texto é

marcado por uma ambigüidade que se revela na maneira de o narrador relatar os

fatos, pois muitos dos acontecimentos deixam margem a incertezas. Sendo assim,

considera-se o aspecto irônico da obra como fundamento da ambigüidade e

também da perspectiva dialógica que caracteriza o texto. A ironia, segundo

definições apresentadas por Muecke (1995), é:

[...] é uma visão de vida [...] experiência aberta a interpretações múltiplas,das quais nenhuma é simplesmente correta, que a coexistência deincongruências é parte da estrutura da existência. [...] ela também abrecaminho ao relativismo e eventualmente a um conceito de ironia que mal adistingue da ambigüidade ou mesmo do medo de que se pudesse pensarque alguém disse alguma coisa. [...] é a forma da escritura destinada adeixar aberta a questão do que pode significar o significado literal [...]. [...]a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma mas umasérie infindável de interpretações subversivas. (MUECKE, 1995, p. 48,grifo do autor)

A visão irônica de García Márquez perpassa o todo da obra. Entretanto, quer-

se aqui destacar que, dentre as várias personagens que aparecem no texto e que

não protagonizam a história, a figura do juiz instrutor é algo ímpar. A construção

dessa personagem apóia-se no viés irônico, que assinala a escritura garcimarquiana

e a intenção do escritor em mostrar as coisas como são ou, ainda, como parecem

ser.

O Processo envolvendo o caso de Santiago Nasar e alguns procedimentos,

apontados no texto como supostamente necessários ao andamento de um processo

legal, também são apresentados como algo típico da visão ironista: há situações sérias

entrecortadas por um humor sutil e desconcertante. Relembra-se, aqui, por exemplo, a

autópsia do corpo da vítima, dentre tantas outras situações insólitas envolvendo a morte

de Santiago Nasar:

99

O prefeito tinha sido oficial de tropa, sem nenhuma experiência emassuntos de justiça [...]. A primeira coisa que o preocupou foi a autópsia. [...]O prefeito pensou que o corpo podia se manter refrigerado até a voltadoutor Dionísio Iguarán, mas não encontrou uma geladeira do tamanhohumano, e a única apropriada estava enguiçada no mercado. [...] O coronelAponte compreendeu então que não era mais possível esperar, e ordenouao padre Amador que praticasse a autópsia. [...] Sete das numerosasferidas eram mortais. O fígado estava quase seccionado por duasperfurações profundas na face anterior. [...] A cavidade abdominal estavaocupada por grandes coágulos de sangue, e entre o lodaçal de conteúdogástrico e matérias fecais apareceu uma medalha de ouro da Virgem doCarmo que Santiago Nasar engolira aos quatro anos de idade. A cavidadetorácica mostrava duas perfurações: uma no segundo espaço intercostaldireito, que atingiu diretamente o pulmão, e a outra muito próxima da axilaesquerda. Tinha ademais seis feridas menores nos braços e nas mãos [...].E uma estocada profunda na palma da mão direita. O informe diz: “Pareciaum estigma do Crucificado”. A massa encefálica pesava sessenta gramasmais que a de um inglês normal, e o padre consignou no informe queSantiago Nasar era dotado de uma inteligência superior e um futurobrilhante. Apesar disso, assinalava na nota oficial uma hipertrofia do fígadoque atribuiu a uma hepatite mal-curada. “Ora”, disse-me, “de qualquermaneira teria muito poucos anos de vida”. O doutor Dioniso Iguarán [...]recordava indignado aquela autópsia. “Tinha de ser padre para ser tãoburro”, disse-me. “Não houve maneira de fazê-lo entender nunca que ohomem do trópico tem o fígado maior que o dos galegos”. O informeconcluía que a causa da morte foi uma hemorragia maciça ocasionada porqualquer das sete feridas maiores. (MÁRQUEZ, p. 108; 110-113)

O juiz instrutor chegou ao povoado doze dias após o crime e apresenta uma

verve literária e sensibilidade que, segundo o narrador, não eram condizentes “ao

rigor de sua ciência” (Márquez, p. 147). O juiz preferia desenhar o instrumento do

crime – no caso, uma faca artesanal – a descrevê-lo. Também costumava criar

aforismos e colocá-los em notas marginais ao sumário e, como se não bastasse

todo esse lirismo, segundo o narrador, era dado a fazer ilustrações após o aforismo

escrito, conforme indicam os fragmentos abaixo:

[...] Ninguém podia entender tantas coincidências funestas. O juiz instrutor,vindo de Riohacha, deve tê-las sentido sem se atrever a admiti-las, poisseu interesse de lhes dar uma explicação racional era evidente no sumário.A porta da praça foi citada várias vezes com um título de folhetim: A portafatal. [...] A folhas 416, de seu punho e letra e com a tinta vermelha doboticário, escreveu uma nota marginal: Dai-me um preconceito e moverei omundo. Debaixo dessa paráfrase de desânimo, com um traço feliz damesma tinta de sangue, desenhou um coração atravessado por umaflecha. Para ele, [...] o próprio comportamento do assassinado nas últimashoras foi uma prova cabal de sua inocência. [...] Santiago Nasar acabavade deixar Cristo Bedoya no estabelecimento de Yamil Shaium, e na praçahavia tanta gente interessada nele que era incompreensível que ninguém ovisse [...]. O juiz instrutor procurou pelo menos uma pessoa que o houvessevisto, e o fez com tanta persistência como eu, mas não foi possívelencontrá-la. A folha 382 do sumário, ele escreveu outra sentença marginala tinta vermelha: A fatalidade nos faz invisíveis. (MÁRQUEZ, p. 21- 22;148-149;166, grifos do autor)

100

Gabriel García Márquez, através da ironia, questiona a idéia de seriedade e

de rigor de uma justiça que se apresenta, no romance, como distante da realidade

dos moradores do povoado e mais fictícia do que se supõe que seja a própria

ficção. Assim, os episódios envolvendo o juiz e o processo assumem ares de

comédia. O nome do juiz não constava no sumário, mas, segundo o narrador, é

sabido que:

[...] Acabara de se formar e ainda vestia a toga negra da Escola de Leis eo anel de ouro com o emblema de sua promoção, além da vaidade e dolirismo da feliz estréia. Nunca, porém, se soube o seu nome. Tudo o quesabemos de seu caráter foi colhido do sumário, que muitas pessoas meajudaram a buscar 20 anos depois do crime no Palácio da Justiça deRiohacha. [...] é evidente que era um homem inflamado pela febre daliteratura. Sem dúvida, tinha lido os clássicos espanhóis e alguns latinos, econhecia muito bem Nietzsche, o autor da moda entre os magistrados deseu tempo. (MÁRQUEZ, p. 145-146)

Na figura caricata do juiz e nos rumos que tomaram o processo relativo ao

caso de Santiago, é possível ver uma relação contrapontística que o escritor

estabelece, no romance, entre Literatura e Ciência Jurídica. Certamente o maior

contraponto se dá, sobretudo, via tema da narrativa, que explora acerca do

significado da honra e interroga sobre o valor da vida.

Evidenciam-se, também, no texto literário, alguns aspectos que, através da

ironia e do humor, direcionam-se a avaliar certos rituais e comportamentos ligados à

conhecida objetividade jurídicas, e que deveriam ser bem mais acentuados na

época em que ocorreu a tragédia. Alguns questionamentos já aparecem na

personagem do juiz, que costuma fazer digressões – na estranheza e irreverência

com as quais manifesta seu gosto exagerado pela literatura – e em sua

sensibilidade. Essa característica permite-lhe ficar confuso diante de uma história

que envolve diferentes sentimentos e que mostra variadas crenças e maneiras de

perceber a vida; tem-se, assim, nessa caracterização, uma figura mais humana.

Para alguns, no povoado, a honra valia mais que a vida e, para outros, não: a

vida era soberana. Esses últimos, assim como o juiz, viram a morte de Santiago

como um fato incompreensível, uma incógnita. Segundo o narrador, toda a situação

envolvendo o caso era um verdadeiro enigma para o juiz:

101

Estava tão perplexo com o enigma que lhe coubera por sorte, que muitasvezes incorreu em divagações líricas contrárias ao rigor de sua ciência.Principalmente, nunca achou legítimo que a vida se servisse de tantosacasos proibidos à literatura para que se realizasse, sem percalços, umamorte tão anunciada. Não obstante isso, o que mais o tinha assustado aofinal de sua minuciosa diligência foi não haver encontrado um único indício,nem sequer o menos verossímil, de que Santiago Nasar houvesse sido, defato, o causador do agravo. [...] Ângela Vicário, por sua vez, não arredou pé.Quando o juiz instrutor perguntou, com seu estilo lateral, se sabia quem erao defunto Santiago Nasar, ela lhe respondeu impassível: – Foi o meu autor.(MÁRQUEZ, p. 147-148)

Um enigmático processo, é assim que fica caracterizado o caso envolvendo a

morte de Santiago Nasar, porque, nos depoimentos, até em relação à atmosfera do

dia os testemunhos eram desencontrados: ora chovia, o sol brilhava, ou o céu

estava nublado. O único fato certo daquele dia foi um homicídio que, de tão

anunciado, todos no lugarejo já sabiam. Entretanto, a vítima nem ao menos tivera

tempo para entender o motivo. Segundo as conclusões do juiz e conforme

impressões do narrador, Santiago: “morreu sem entender sua morte” (MÁRQUEZ, p.

150).

Havia um emaranhado de acontecimentos, e as circunstâncias envolvendo o

fato eram ambíguas. O juiz não conseguia entender como uma morte tão anunciada

não fora impedida. Os assassinos, enquanto cumpriram pena de três anos à espera

do julgamento, nunca demonstraram indício qualquer de arrependimento e,

finalmente, quando julgados e absolvidos pelo “tribunal da consciência” declararam:

”que voltariam a fazer mil vezes o que fizeram pelos mesmos motivos” (MÁRQUEZ,

p. 73).

O silêncio do povo, antes de o fato acontecer, apresenta um contraste

marcante com um episódio narrado em meio à cena do crime. É um momento em

que o autor utiliza linguagem ambígua para mostrar a culpa de todos no povoado.

Apresentando uma descrição pormenorizada da fúria com que estavam tomados os

assassinos, além de fazer uso da ambigüidade, ele também emprega metáforas, o

que acentua a crueldade e violência da cena:

Então os dois continuaram esfaqueando-o contra a porta, com golpesalternados e fáceis, flutuando no remanso deslumbrante que encontraramdo outro lado do medo. Não ouviram os gritos do povoado inteiroespantado de seu próprio crime. (MÁRQUEZ, p. 174, grifo nosso)

102

O crime materializava culpa e responsabilidade de todos, na vila, e

apresentava uma seqüência de enganos mergulhados em crenças no destino ou em

preconceitos escondidos. Na verdade, para o juiz, o conteúdo do caso era

incompreensível à luz da razão: “Era tal a perplexidade do juiz instrutor [...] que seu

bom trabalho parece, por momentos, desvirtuado pela desilusão” (MÁRQUEZ, p.

148).

O processo envolvendo a honra de Ângela Vicário e a vida de Santiago

Nasar, teve um destino incomum: foi tragado por inundações e teve várias de suas

páginas perdidas. Vale conferir o trecho, permeado de ironia, humor, e metáfora,

que tece críticas ao descaso e à indiferença para com instrumentos que, além de

terem valor legal, são narrativas que apresentam conteúdo que retrata o cotidiano e

a vida humana. O narrador descreve o rumo que tomou aquele processo, bem como

os demais que estavam depositados no Palácio da Justiça de Riohacha:

Não havia registro algum nos arquivos, e mais de um século de processosestavam amontoados no chão do decrépito edifício colonial que foi, pordois dias, o quartel-general de Francis Drake. O andar térreo inundava-secom as marés, e os processos desencapados flutuavam pelas salasdesertas. Eu mesmo procurei, muitas vezes com água até os tornozelos,naquele tanque de causas perdidas, e só um acaso me permitiu resgatar,depois de cinco anos de buscas, umas 322 folhas salteadas das mais de500 que devia ter o sumário. (MÁRQUEZ, p. 146)

François Ost, em sua obra Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico

(2005), que versa essencialmente sobre a ligação entre os saberes da Ciência

Jurídica e conhecimentos proporcionados através da Literatura, discorre sobre os

diversos aspectos dessa relação. Uma das perspectivas apresentadas é quanto aos

temas jurídicos freqüentemente abordados na ficção literária. Segundo Ost:

De todos os temas jurídicos tratados pela literatura, o do juiz – dojulgamento, do processo, da condenação – é com certeza o maisrecorrente. Sem dúvida, a intensidade dramática do processo, assim comosua unidade de tempo, lugar e de ação, contribuem muito para isso,conferindo-lhe quase naturalmente uma forma teatral, que a indumentária,a distribuição cênica dos papéis dos protagonistas e a presença tambémconfirmam. Mas há mais: o processo é o direito em ação, é a vida, sempresingular, que interroga a lei (ao menos tanto quanto o inverso), é a ficçãojudiciária (ainda muito próxima da “realidade”) que escava e subverte, que“ultrapassa” a ficção jurídica . Entre as duas – entre “o bom e o legal”,como diz P. Ricouer – está o juiz, homem da lei certamente, entrincheiradoatrás de sua toga e de seu código, mas às vezes também homemsensível, exposto ao recurso que os personagens intentam diante dos

103

leitores, juízes últimos da ficção literária. (OST, 2005, p. 97, grifos doautor)

O romance Crônica de uma morte anunciada apresenta o tema jurídico que

envolve crime e honra e enseja discussões acerca de todo o sistema, através da

figura do juiz e dos descaminhos do processo que envolve a história de Santiago.

As reflexões acerca dos temas da obra alcançam, também, as noções de “justo” e

de “justiça”, mostrando o quanto tais concepções são ambivalentes.

Através da narrativa de Márquez, são apresentados aspectos que estão

diretamente ligados a essas concepções, porque a vingança é aí percebida

enquanto forma de justiça e obrigação social. Estas se mostram, em sua origem,

fecundadas em costumes e crenças nas quais repousam a importância da opinião

alheia e em vaidades feridas. Dessa forma, o escritor colombiano revela a

fragilidade do ser humano, a violência que, por vezes, explode, e o menosprezo à

vida.

Há, no romance, um trecho que discute uma possível relação entre a escolha

da profissão das personagens e uma natureza violenta predisposta ao crime. O

narrador conta que, em determinado momento, no decurso de suas investigações,

resolveu interrogar pessoas que tinham a mesma profissão dos gêmeos. A intenção

era descobrir se haveria alguma relação entre a profissão de magarefe e a natureza

violenta que, então, os irmãos Pedro e Pablo Vicário poderiam ter.

Contrariamente a teorias de generalização do indivíduo quanto às suas

pulsões violentas, os gêmeos, segundo entende o narrador, não cometeram o crime

porque fazia parte de sua natureza matar, ou porque exerciam a profissão de

matadores de animais. Os motivos, conhecidos por todos, eram outros: a desonra

da irmã, a vergonha de sua família e o ridículo a que estavam sujeitos diante da

comunidade.

Além de explorar temas como honra, crime e vingança, a figura do juiz, a

lentidão do processo, a ineficácia da justiça, como na obra de García Márquez, a

literatura, em geral, tem colocado em discussão a arbitrariedade da lei, as punições,

motivos, pessoais ou sociais, que desencadeiam atitudes criminosas, entre outros.

104

Alguns temas, ao serem explorados na ficção literária, desacobertam ideologias que

se disfarçam em idéias. De acordo com Ost (2005):

Mas a função crítica da ficção literária não se limita a lembrar à justiçasuas origens violentas e sua face oculta vingadora; dedica-se também adenunciar, com uma eficácia que nunca se engana, as mil e uma derivasque a atingem. Não há tema literário mais repisado que o da arbitrariedadedos juízes, da lentidão e do custo da justiça, do formalismo e do imbrógliodos procedimentos, da venalidade, enfim, dos homens da justiça. [...] Alentidão da justiça é um tema, menos cruel certamente, porém maisuniversal. La Bruyère o imortalizará num aforismo assassino: “O dever dosjuízes é fazer a justiça; seu ofício é adiá-la. (OST, p. 100-101)

A Literatura tende a subverter e questionar tudo o que possa fazer parte do

cotidiano, e, assim, converter-se em princípio absoluto de certo ou errado, conforme

interesses e intenções de poder. A análise do romance, aqui feita, procura apontar

críticas a idéias do senso comum sobre justiça que aparecem no contexto da

narrativa. Apresenta-se, também, uma série de interrogações feitas pelo escritor

colombiano acerca das relações humanas e, conseqüentemente, das relações

jurídicas que nascem do convívio entre os indivíduos.

Há muitas reflexões que podem ser apreendidas nas entrelinhas do romance:

a responsabilidade que cada sujeito tem quanto aos seus atos ou omissões,

também quanto ao funcionamento de todo um sistema de justiça que, teoricamente,

tem como princípio máximo garantir a igualdade e o direito à vida e, talvez, a

reflexão mais importante: a honra está ligada à idéia de respeito e de dignidade.

Entretanto, ao longo dos tempos, foram criados novos conceitos e percepções que

atrelaram o sentimento de dignidade e de auto-respeito a uma série de valores que

vêm se sobrepondo ao valor da vida.

3.3 Literatura e Pensamento Jurídico: Uma Relação Histórica

A relação entre Literatura e Pensamento Jurídico se dá sob diversos vieses,

como, por exemplo, o de que muitos juristas são escritores consagrados. No Brasil,

de acordo com Afrânio Coutinho (2004), o século XVIII trouxe significativas

mudanças jurídicas ao Estado, as quais ocorreram, principalmente, em meados do

105

século. Isso se deu por diferentes motivos, como a influência do pensamento

iluminista, mas, sobretudo, porque os escritores brasileiros influenciaram, no Brasil,

a Ciência Jurídica, mais do que os juristas. Houve, assim, uma vinculação entre

Literatura e Direito. Conforme as palavras do crítico literário:

Pode-se dizer que o primeiro movimento poético marcante da literaturabrasileira, o Arcadismo mineiro, exprimiu também os ideais jurídicos daburguesia. [...] Nas Cartas chilenas, as questões afloram a cada passo. NaCarta segunda são expostos vários casos de Direito Penal e Civil, bemcomo dos respectivos processos. As Cartas terceira e quarta verberam asviolências praticadas contra os direitos humanos. A Carta oitava ocupa-se,relatando os desmandos do governador, de questões de DireitoAdministrativo. A Carta nona é um libelo contra a prepotência militar queespezinhava a lei. As Cartas chilenas, talvez ainda até hoje a nossa maiorsátira, são, assim, obra de fundo eminentemente jurídico. Não fosse o seuautor um magistrado zeloso e revoltado. [...] A tradição não se perdeu,antes prosseguiu, viva e necessária durante a fase já escoada do séculoXX. [...] Assim poderíamos enumerar uma série de contemporâneos cujaobra jurídica não se dissocia da literária. Alguns são melhores juristas queescritores, outros o contrário. Mas a tradição brasileira, que fez nascer aLiteratura e o Pensamento Jurídico como irmãos gêmeos, não se destruiu.Antes permanece indefinidamente atuante, porque a Literatura e o Direito,em países como o nosso, são duas formas de expressão muito próximasdos anseios de uma sociedade em mudança: de uma sociedade nacionalque ainda não encontrou os fundamentos adequados da sua coesão e dasua estabilidade. (COUTINHO, 2004, p. 193-194;199)

Após uma apresentação histórica do vínculo entre Literatura e Pensamento

Jurídico no Brasil, abordando seu igual enraizamento, que eram os ideais de

transformação da sociedade da época, salienta-se que essa relação de

contigüidade e parceria tem se mostrado, também, ao longo das épocas, como uma

relação de confronto. Assim, pretende-se, aqui, fundamentalmente, evocar a

interação entre essas duas áreas do conhecimento sob o viés temático.

Historicamente elas têm origens muito próximas. Ao longo dos tempos,

porém, evoluiu a idéia de que essas duas áreas em nada contribuiriam uma com a

outra. Apesar de sua proximidade, na Antigüidade Clássica, segundo François Ost

(2005, p. 10), a partir de algumas concepções platônicas, os legisladores

encaravam os poetas trágicos com desconfiança, preferindo mantê-los a distância

de tudo o que pudesse estar ligado à Justiça ou a preceitos jurídicos.

Entretanto, como que para provar a importância que tem a origem, isto é, o

princípio das coisas, a Ciência Jurídica e a Literatura voltam-se, constantemente,

106

uma para a outra, ora como enfrentamento ou embate, ora como a possibilidade de

troca e de acréscimo dos conteúdos e temas. Assim, Literatura e Ciência Jurídica

têm por escopo um mesmo tema: os dramas humanos que mostram os conflitos

das relações entre os homens. Diferem, todavia, na maneira de olhar e de perceber

esses dramas.

3.3.1 As Origens

François Ost (2005, p. 23) comenta que a narrativa “eleva-se à altura do

mito”. A história não é apenas contada, mas recontada e reescrita. O mito é tão

antigo quanto as civilizações, e a narrativa é a forma pela qual ele tem se mantido

vivo e perpassado milênios. Ost cita, em sua obra, uma narrativa mítica, contada

por Protágoras, abordando concepções de justiça, e que remonta à criação do

mundo:

Os deuses encarregaram os dois titãs Epimeteu e Prometeu de dotaremtodas as criaturas vivas de qualidades apropriadas à sua sobrevivência.Epimeteu lançou-se à tarefa e empenhou-se tanto em atribuir aos animaisessas qualidades, a uns a velocidade, a outros a força ou a astúcia, quenão lhe restou mais nenhuma para dotar a espécie humana. Prometeu éentão forçado a intervir: sabe-se que ele roubará o fogo e o conhecimentodas artes, presenteando-os aos homens para que eles possam seconservar. Graças a esse recursos, o fogo e as artes mecânicas, oshomens de fato sobreviviam, mas estavam submetidos a contínuasameaças: isolados, eram a presa dos animais selvagens; reunidos nascidades, guerreavam entre si sem piedade. Temendo assim odesaparecimento da raça humana, Zeus encarrega Hermes de levar aoshomens aidos e dikè o respeito e a justiça, “para servir de regras àscidades e unir os homens por laços de amizade”. Não sem esclarecer, apedido de Hermes, que a distribuição desses presentes se fará “entretodos” e não a alguns em especial, como é feito no caso da arte médica oudo talento artístico, por exemplo. De resto, todo homem incapaz derespeito e de justiça será afastado “como um flagelo da sociedade”. Eispor que, conclui Protágoras, “quando se delibera sobre a política, em quetudo se baseia na justiça e temperança, os atenienses têm razão deadmitir todo o mundo, porque é preciso que todo o mundo participe davirtude civil; sem isso não há cidade”. (OST, 2005, p. 63-64, grifos doautor)

Dikè, a justiça, apresenta-se, então, no mito, sob dois aspectos: remete à

idéia de igualdade e à de legalidade, e Aidos é um termo que possui maior

complexidade. De acordo com L. Gernet, citado por François Ost (2005), Aidos:

107

Significa ao mesmo tempo honra, dignidade, pudor, reserva, vergonha,temor respeitoso, reverência religiosa; visa àquele sentimento de reservaque envolve ao mesmo tempo a relação conosco mesmo (o que o sujeitodeve a si próprio) e a relação com outrem (sob esse aspecto, traduz apreocupação do sujeito em relação ao olhar dos outros, da opiniãopública). Traduzimos pelo termo geral “respeito”: estima de si, respeitopelo outro, respeito humano [...] e respeito à lei. (OST, 2005, p. 64, grifo doautor)

A história narrada por Protágoras, envolvendo temas relativos à justiça na

forma (a idéia do justo), e à justiça no conteúdo (o preceito de lei), exemplifica a

força da narrativa fundadora de um imaginário jurídico na construção da idéia da

justiça e do respeito. Na obra de François Ost, são citados outros exemplos de

histórias contadas ou escritas que passam a construir um universo de preceitos

legais, ou que se estabelecem como costume e, via de regra, tomam força de lei.

O jurista, ao fazer sua análise, entende que “outros textos poderiam ter sido

escolhidos e outras perspectivas privilegiadas” (OST, 2005, p. 57). Considera-se,

também, relevante um exemplo citado por Ost (p. 70), em relação às narrativas

fundadoras, que é a história do Sinai, as Leis de Moisés, que constam no texto

bíblico do Êxodo, mostrando, indiscutivelmente, o poder que têm as narrativas ao

estabelecer o conteúdo do dever e do não-dever, isto é, de prescrever normas e

disciplinar condutas.

De acordo com Ost, as narrativas fundadoras são textos, “geralmente mitos

reescritos em épocas ulteriores”, que viriam a se tornar, conforme o pensamento do

jusfilósofo, possíveis “entradas ou fontes de direito”. Para ele, “cada um desses

textos (e suas múltiplas reescritas) constituem à sua maneira “narrativas de

instituição” (OST, p. 56). François Ost diz que, segundo expressão de C.

Castoriadis, as narrativas fundadoras são: “monumentos literários que criam

magmas de significações sociais instituintes. Verdadeiras matrizes culturais, essas

narrativas engendram mundos novos, [...] universos de narrações e de prescrições

constitutivos de uma civilização jurídica” (OST, 2005, p. 56-57).

A tragédia de Sófocles, Antígona, dentre os textos trágicos, além de ser

considerada, de acordo com Ost, uma narrativa fundadora de preceitos legais,

apresenta aspectos diferenciados dos textos anteriormente citados. Segundo o

108

jurista, no caso específico do texto de Sófocles, não há somente o desejo de

organizar e civilizar as sociedades. Em Antígona, além da qualidade de narrativa

fundadora de um imaginário de justiça, impera, sobretudo, a característica soberana

da literatura: a subversão. É o poder da obra literária de questionar desigualdades,

interrogar arbitrariedades, enfim, deslocar ou desestabilizar o status quo. Conforme

as palavras de François Ost:

Na cultura universal, a Antígona de Sófocles permanece o modeloinigualado, incessantemente reproduzido, jamais esgotado, da resistênciaao poder. Essa resistência, no entanto, só aparece como um remédioúltimo quando todas as outras saídas, jurídicas e políticas, fecharam-se.[...] é que tanto o justo legal quanto o bem político podem eles próprios serevelar injustos e maus. [...] com Antígona, compreende-se que todajustiça origina-se por uma denegação – a recusa da injustiça. Aos olhos deuma tradição milenar, que remonta à Retórica de Aristóteles, a Antígonade Sófocles põe em cena a oposição do direito natural e do direito positivo.[...] a tensão que opõe a razão de Estado de um lado, e a objeção deconsciência de outro. O que é incontestável, em troca, é que a peçaaprofunda com grande eficácia a interrogação que uma sociedadeenfrenta em certas circunstâncias a propósito da legitimidade do direitoaplicável. (OST, p. 183-184;189)

Avançando em sua análise da relação entre Literatura e Direito, através dos

textos que considera como narrativas fundadoras de um imaginário jurídico, e

apresentando outros que buscam subverter e desconstituir dogmas, a exemplo de a

Antígona de Sófocles, François Ost, em sua obra, estuda textos como o de Balzac,

que através da personagem de César Birotteau, “o mais célebre dos falidos de

Balzac”, possibilitou mudanças na Lei de Falências após publicação da obra de

mesmo nome (OST, p. 15).

O jurista faz uma ampla análise de textos como os de Franz Kafka, Defoe,

entre outros. Ele tece, também, comentários sobre a obra de Dostoiévski, de Tolstói

e de Shakespeare, enfocando sempre a relação de “empréstimos recíprocos e

trocas implícitas” (OST, p. 23). Entre o conhecimento literário e Jurídico ocorre,

assim, uma interação em que a Literatura, através das narrativas, atua como um

dos fundamentos dos preceitos de justiça. De acordo com François Ost:

Tal é exatamente o trabalho da literatura: pôr em desordem asconvenções, suspender nossas certezas, liberar os possíveis [...]. Entredireito e literatura, decididamente solidários por seu enraizamento noimaginário coletivo, os jogos de espelhos se multiplicam, sem que se saiba

109

em última instância qual dos dois discursos é ficção do outro. (OST, 2005,p. 13;24)

A arte literária, no entanto, vai além, pois ela questiona e tem a intenção de

desestruturar, muitas vezes, costumes, normas ou hábitos que ajudou a

fundamentar. Esses, com o decorrer do tempo, ou por interesses contraditórios a

princípios de liberdade e de construção de identidades, já não fazem sentido. Resta,

então, à Literatura, através do recurso que tem – o seu discurso – a linguagem,

desconstruir tudo e voltar-se à subversão, mostrando, através da ficção, a

desordem existente dentro de uma suposta e intencional ordem das coisas.

3.3.2 A Honra: das Narrativas Fundadoras à Obra de García Márquez

O romance Crônica de uma morte anunciada explora o tema da honra já

abordado em outras obras literárias. Esse tema também se faz presente nas

narrativas fundadoras de preceitos de justiça, como na história contada por

Protágoras sobre Dikè e Aidos, sendo que este último termo acolhe o significado de

honra, e na narrativa do Sinai, na qual um dos dez mandamentos é referente à

honra.

A obra de García Márquez traz consigo o aspecto subversivo da literatura. O

romance apresenta ironia e ambivalência, sendo que o autor investe sagazmente

contra dogmas sociais presentes no local onde se passa a história: a honra é

apresentada como um contravalor quando impera o fanatismo, a omissão e a

sujeição cega e surda a padrões sociais estabelecidos.

A crítica direciona-se, possivelmente, a um espaço social ainda maior, ou

seja, ao espaço da cultura latino-americana. O escritor colombiano, através da

literatura, avalia, irônica e humoristicamente, as noções de honra e de justiça e,

como diria François Ost: “a literatura não cessa de investir contra a fortaleza jurídica

com suas salutares gargalhadas” (OST, 2005, p. 13).

110

Na obra, a honra aparece sob a perspectiva de reputação, ligada a

convenções sociais e crenças estabelecidas na comunidade. A ofensa à honra da

família Vicário apoiava-se na idéia de que todos estariam sujeitos aos olhares

alheios, mostrando-se ridículos e menos dignos, se nada fizessem para desfazer a

desonra. A vingança e o crime são formas de o autor mostrar uma série de

sentimentos, como a vaidade, o preconceito, a primitiva violência, que aparecem,

então, ligados à honra.

O romance subverte valores e demonstra que há crenças inúteis. Os fatos,

no enredo, aparentemente, não passam de uma porção de equívocos. Esses

equívocos são propiciados por uma perspectiva dialógica do texto, porém, devido à

ambivalência e à multiplicidade de sentidos intencionais do texto, poderia, talvez,

não haver equívoco algum: as cartas, então, estariam marcadas.

Assim, as personagens se confundem, e a fatalidade encontra espaço para

atuar. Santiago estaria, dessa forma, predestinado a morrer, seja lá por que razões

do destino. A ironia em relação aos fatos flui livremente e o romance revela, através

de seu jogo de incertezas, que até a fatalidade, conjugada à omissão, pode ser co-

partícipe de um crime.

O crime é, então, inevitável por muitas razões. Ângela, a desonrada, por

ironia e subversão a valores, no texto, apesar de sua tragédia pessoal, é quem,

talvez, apresente maior dignidade, mantendo sua honra como atributo pessoal e

ultrapassando preconceitos com uma postura corajosa. A noção schopenhaureana,

aqui, sobrepõe-se, pois, para o pensador, a honra é inerente ao ser humano, que só

a perde pelo que faz ou deixa de fazer, independentemente do olhar do outro.

Os gêmeos Vicário vingam a honra da irmã por questões de dever moral para

com a família e de obrigação social. Ficam presos durante três anos à espera do

julgamento e, finalmente são absolvidos pelo tribunal da consciência. Alegam

legítima defesa da honra e declaram que “fariam tudo novamente pelo mesmo

motivo” (MÁRQUEZ, p. 73). O autor mostra, então, neste trecho, de maneira sutil,

empregando metáfora e metonímia, que os assassinos foram absolvidos pelo

111

tribunal, não só de sua própria consciência, mas da consciência de todos que

poderiam ter evitado o crime e nada fizeram.

Gabriel García Márquez procura mostrar que os gêmeos fizeram o que

qualquer outro faria, com aquelas crenças, naquele povoado. Sendo assim, é a

consciência do tribunal que os absolve. Um tribunal que se sente culpado por sua

omissão e vê a possibilidade de estar na mesma situação dos assassinos. O

escritor colombiano, então, desnuda a fragilidade e os medos humanos. Dentre

outros sentimentos, no ato de julgar, talvez sejam esses os que mais preponderem,

e Márquez, possivelmente, sabe disso porque os explora em sua na narrativa.

O crime não é julgado; os assassinos e seus motivos, sim. Portanto, foram

absolvidos, conforme entendimento da maioria do “tribunal da consciência”. Essa é

uma bela metáfora, empregada pelo autor, para representar a forma como

realmente os gêmeos foram julgados e absolvidos: através da consciência de um

júri – representante da sociedade e símbolo da sua justiça –, mas comprometido

por sua omissão tanto quanto os assassinos por sua ação. Também, assim, como

em outras oportunidades, no texto, o autor discute as noções de honra, de justiça e

dogmas sociais, que são apresentados no espaço social da história e nas visões de

mundo das personagens.

112

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conhecimentos proporcionados pela ficção literária permeiam a vida e as

relações humanas, agregando-se a outros e, assim, o presente trabalho, com o

intuito de discutir e aprofundar esses saberes explorados na Literatura, analisa o

romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, estudando o

tema da narrativa: o crime em defesa da honra.

Ao explorar-se a honra, no texto literário, apresentam-se outros temas a ela

relacionados, como a vingança, a vaidade, o amor – representado no

relacionamento de Ângela e Bayardo –, que nasce após a tragédia que os envolveu,

o preconceito e o respeito aos costumes, que se mostra na questão da desonra e

nas diferenças de origem, de gênero e de classe marcadas pela desigualdade.

Para a discussão de um tema como a honra, buscou-se, em diferentes áreas

do conhecimento, subsídios que fornecessem um entendimento mais amplo. Dessa

forma, pesquisou-se, primeiramente, a percepção da Filosofia sobre o tema, ou seja,

o que entendem os filósofos sobre a honra.

A grande maioria dos pensadores, aqui estudados, entende que a honra está

ligada à vaidade, à reputação, à inveja, a riquezas e que se mistura aos conceitos de

fama e de glória, à concupiscência, aos prazeres mundanos e às aparências. E é,

sobretudo, no olhar alheio, isto é, no que o outro pensa a respeito de nós, que a

honra sedimenta-se. Sendo assim, é um sentimento que propicia desavenças e

conflitos,uma vez que, sob tais perspectivas, o orgulho pessoal impera sobre a

tolerância e sobre a prudência na relação com o outro.

O meio-termo e o equilíbrio dão ao sentimento de honra a sua essência de

dignidade e auto-respeito. Na filosofia aristotélica, a idéia de auto-respeito é

anterior à importância do olhar alheio. Também para Schopenhauer, filósofo que

mais aprofunda os estudos sobre a honra, ela aparece como um atributo pessoal,

inerente ao sujeito, ou seja, é uma qualidade que pode ser prejudicada somente por

atos próprios do sujeito. O princípio de honra, então, não dependeria do olhar do

outro.

Os estudos de antropologia e de sociologia jurídicas apresentam o sentimento

de honra sob o enfoque das relações entre os sujeitos dentro do grupo. Decorrentes

dessas relações sociais, surgem as relações jurídicas que se estabelecem mediante

conflitos ligados a questões envolvendo a honra. Conforme essas áreas do

conhecimento, a honra é um sentimento através do qual o sujeito constrói, junto ao

grupo, sua identidade. Algumas dessas relações sociais são, muitas vezes,

caracterizadas por desigualdades. De acordo com a antropologia e a sociologia,

essa percepção de honra, como sinônimo de reputação, passa a fazer parte do

imaginário coletivo, tornando-se, via costume, normas e regras a serem seguidas.

Após conhecer e entender melhor o sentimento de honra, foi feita a análise da

obra de García Márquez, conjugando os elementos composicionais do texto às

noções e conceitos de honra trazidos por outras disciplinas. A partir disso, a

interpretação da obra foi realizada via análise de sua estrutura que interage, então,

com os saberes adquiridos sobre a honra.

O enredo foi estudado na sua relação com o tema e quanto aos aspectos que

contribuíram para os efeitos de verossimilhança. A categoria de tempo foi observada

sob seu aspecto cronológico, em função de que o tempo estrutura e sustenta o

enredo até o final do romance. É a passagem do tempo, sua contagem progressiva,

em horas e minutos, que vai construindo a ação principal: o crime. O tempo

psicológico também se apresenta mostrando que as personagens, através de suas

lembranças e por meio de depoimentos, reconstituem fatos que envolvem a ação

principal, através de episódios incidentais que predeterminaram o desenrolar da

intriga.

114

O espaço físico e o social situam o leitor em relação ao tema e ao enredo

e, conseqüentemente, geram efeito de verossimilhança, ou seja, contextualizam

e produzem sentido. A ambiência, enfatizando crenças, lendas, presságios e,

sobretudo, a fatalidade, é índice do espaço social que tem, no texto, uma função

essencialmente explicativa: esclarecer o leitor de que naquele povoado a honra era

entendida como algo “sagrado”.

Quanto à instância narrativa de focalização, ela propõe a discussão do tema

sem, entretanto, apresentar uma visão unilateral. Devido a isso, a focalização é

permeada por intervisões das personagens. Disso resulta a perspectiva dialógica

que o texto apresenta. O narrador – em primeira pessoa – é personagem

secundário, que conta a história em forma de relato e mostra o quanto o crime e o

motivo deste o confundem e também às outras personagens.

É na ação, ou na omissão das personagens, que o enredo vai sendo

construído, por meio do recurso do flashback. A ação principal é construída em torno

de um crime em defesa da honra, e as personagens apresentam o que são, através

do seu fazer – ou não-fazer. Suas atitudes estão relacionadas a valores morais

aprendidos e ao conhecimento que têm a partir do universo em que vivem, que é o

vilarejo.

No romance, o autor mostra, portanto, utilizando-se dos elementos que

compõem a narrativa, um contexto de situações no qual o sentimento de honra

prepondera. É através dessas categorias narrativas, da forma como se apresentam

no texto, que a história da morte de Santiago Nasar e da desonra de Ângela Vicário

adquirem significado. O tema, assim, perpassa cada instância narrativa, e o autor,

por meio de uma escritura fundamentada na ironia e na ambigüidade, põe em

discussão concepções que surgem na narrativa acerca da honra.

Há elementos subjacentes ao tema, como questões ligadas à concepção de

justiça, que, na intriga, traduz-se em vingança. O autor também faz amplo uso da

linguagem literária como a metáfora e a ironia, acentuando a ambivalência do texto

que, em seus múltiplos sentidos, tece críticas e subverte convenções sociais e

jurídicas.

115

A obra de Márquez subverte a concepção de honra, enquanto reputação,

mostrando que essa não é só princípio masculino, mas também é uma crença que

se insere no mundo feminino. O aspecto subversivo do texto não estanca aí. Ao

discutir princípios de honra, o romance aborda a violência materializada através da

vingança, que é a forma mais primitiva de justiça. Em relação à defesa da honra,

que é um tema jurídico, o romance questiona posturas que vão além das questões

relacionadas à vingança: submete todos, no povoado, ao “tribunal da consciência”.

A absolvição dos gêmeos por um “tribunal da consciência” significa que os

envolvidos no caso da morte de Santiago Nasar, bem como aqueles que, através da

omissão, demonstraram que têm como princípio a intolerância e a rigidez em seus

valores morais, foram, de uma forma ou de outra, culpados por aquela morte.

Assim, “a consciência” que absolveu os assassinos, e que, como eles,

acreditava na legítima defesa da honra, demonstra que, para o ser humano, a

reputação lhe é o bem mais caro. A honra, sob essa perspectiva, vale mais do que a

vida. O “tribunal da consciência” – metáfora para o corpo de jurados, leigos, e

representantes da sociedade –, então, ao julgar o caso, teme não só por sua culpa e

omissão, mas também pelo fato de acreditar que, assim como os gêmeos Vicário,

poderia ter tido a mesma conduta.

Acredita-se que a personagem Ângela Vicário é, possivelmente, a única que

manteve, até o final do romance, a coragem e o auto-respeito. A honra se configura,

então, como uma qualidade estritamente pessoal, e que matar ou morrer em nome

desse sentimento é fútil e é em vão. A personagem avançou no tempo, ultrapassou

preconceitos e culpas, buscando realizar seus desejos de mulher. Perdoou ao

homem que a desprezara movido por sua vaidade e arrogância. Bayardo é uma

personagem a qual o autor apresenta como uma vítima, mas não das circunstâncias.

Ele foi vítima de si mesmo, de seu orgulho e de sua prepotência.

Nesse contexto, o romance Crônica de uma morte anunciada discute relações

humanas e critica figuras jurídicas, subvertendo, através do discurso literário,

concepções sedimentadas. A obra do escritor colombiano tem reconhecido valor

estético: é um romance breve, bem construído em termos de linguagem literária, e

116

cuja estrutura se propõe a revelar um sentido mais profundo de um tema que

abarca uma série de conceitos e envolve diferentes sentimentos. Esses são

explorados por meio dos elementos que compõem a narrativa de ficção, os quais

são processos cognitivos que contribuem para o entendimento de como se configura

a honra no contexto do romance.

Além do potencial estético, no que se refere ao processo de cognição e

produção de sentidos acerca do tema da honra, percebe-se que há que um

elemento preponderante: a intenção de subverter valores e dogmas. Contudo, o

romance não pretende impor visões, ou, ainda, apresentar uma tendência

moralizante. A obra procura demonstrar que, mesmo com o intuito de subverter

convenções sociais, traz uma dimensão ética – que é sobrepor a vida em relação a

qualquer outro valor que o ser humano possa considerar de suma importância.

117

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