mesentério e peritoneu: compreender a anatomia ... · ou pleural; extra ou intraperitoneal. ......

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ARP!79 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXII, nº 86, pág. 79-81, Abr.-Jun., 2010 Introdução O peritoneu é uma membrana serosa, a maior e mais complexa do organismo, que reveste o interior da cavidade abdominal, dividindo-a em cavidade peritoneal e espaço subperitoneal (figura 1). No seu conjunto, o peritoneu pode ser visto como um grande saco que está completamente fechado no homem e aberto na mulher, ao nível do orifício abdominal das tubas uterinas. O peritoneu é formado por dois folhetos: o folheto parietal, que reveste a parede abdominal e o folheto visceral, que reveste as vísceras abdominais. O espaço que separa o peritoneu parietal da parede abdominal apresenta uma quantidade de tecido conjuntivo e gordura variáveis em diferentes regiões. Este território é conhecido por “espaço extraperitoneal” que, durante o desenvolvimento embrionário, se estende para os mesentérios. Em contraste, o peritoneu visceral está fortemente aderente aos tecidos que reveste. O espaço potencial entre o folheto parietal e o folheto visceral corresponde à cavidade peritoneal, que está Mesentério e Peritoneu: Compreender a Anatomia, Identificar a Patologia João Filipe Costa Clínica Universitária de Imagiologia, Hospitais da Universidade de Coimbra Instituto de Anatomia Normal, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra “preenchida” por uma quantidade mínima de fluído (normal até 100ml). Do ponto de vista funcional, o peritoneu fixa as diferentes vísceras abdominais que reveste (ao mesmo tempo permitindo a sua mobilidade), serve como via de condução para os vasos sanguíneos e nervos dos respectivos órgãos, secreta o fluído peritoneal que facilita o deslizamento entre as estruturas (ao anular o atrito existente entre elas) e é responsável pela absorção e depuração do mesmo fluído (função que é “aproveitada” para realização de diálise peritoneal). O líquido peritoneal “circula” na cavidade peritoneal como resultado de diferentes forças. A gravidade facilita a acumulação caudal, o peristaltismo intestinal estimula o fluxo lateral e o fluxo cefálico resulta da criação de uma pressão subdiafragmática negativa em consequência da respiração. Compreender a Anatomia Ligamentos, mesos e omentos O peritoneu ao longo da sua “viagem” intra-abdominal estabelece “pontes” entre a parede abdominal e os diferentes órgãos parenquimatosos, sem vasos importantes (ligamentos), entre a parede abdominal e o tubo digestivo, transportando estruturas vasculares (mesos) e entre diferentes vísceras abdominais (omentos/epiploons). Estas estruturas são fundamentais porque fornecem vias de condução para vasos sanguíneos, linfáticos e nervos entre as diferentes vísceras abdominais e o espaço extraperitoneal (tabela 1). Contudo, são também vias potenciais para a disseminação tumoral, inflamatória ou de hemorragia a partir de órgãos distantes. Recessos peritoneais Os recessos, bursas ou fundos de saco peritoneais são determinados pelas inserções parietais dos ligamentos, mesos e epiploons e também pela existência de pregas condicionadas por estruturas salientes que são revestidas pelo peritoneu (figura 2). A cavidade peritoneal é dividida em dois grandes compartimentos pelo mesocólon transverso: os andares supra e infra-mesocólico. No primeiro, localiza-se a bursa omental (retrocavidade dos epiplons) que está separada da cavidade peritoneal restante, Fig. 1- Cavidade abdominal. 1- víscera; 2- cavidade peritoneal; 3- folheto visceral do peritoneu; 4- folheto parietal do peritoneu; 5- espaço subperitoneal.

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Page 1: Mesentério e Peritoneu: Compreender a Anatomia ... · ou pleural; extra ou intraperitoneal. ... Conclusões O conhecimento da complexa anatomia e fisiologia da cavidade peritoneal

ARP!79

Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXII, nº 86, pág. 79-81, Abr.-Jun., 2010

Introdução

O peritoneu é uma membrana serosa, a maior e maiscomplexa do organismo, que reveste o interior da cavidadeabdominal, dividindo-a em cavidade peritoneal e espaçosubperitoneal (figura 1). No seu conjunto, o peritoneu podeser visto como um grande saco que está completamentefechado no homem e aberto na mulher, ao nível do orifícioabdominal das tubas uterinas.O peritoneu é formado por dois folhetos: o folheto parietal,que reveste a parede abdominal e o folheto visceral, quereveste as vísceras abdominais.O espaço que separa o peritoneu parietal da paredeabdominal apresenta uma quantidade de tecido conjuntivoe gordura variáveis em diferentes regiões. Este território éconhecido por “espaço extraperitoneal” que, durante odesenvolvimento embrionário, se estende para osmesentérios. Em contraste, o peritoneu visceral estáfortemente aderente aos tecidos que reveste.O espaço potencial entre o folheto parietal e o folhetovisceral corresponde à cavidade peritoneal, que está

Mesentério e Peritoneu: Compreender a Anatomia,Identificar a Patologia

João Filipe Costa

Clínica Universitária de Imagiologia, Hospitais da Universidade de CoimbraInstituto de Anatomia Normal, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

“preenchida” por uma quantidade mínima de fluído(normal até 100ml).Do ponto de vista funcional, o peritoneu fixa as diferentesvísceras abdominais que reveste (ao mesmo tempopermitindo a sua mobilidade), serve como via de conduçãopara os vasos sanguíneos e nervos dos respectivos órgãos,secreta o fluído peritoneal que facilita o deslizamento entreas estruturas (ao anular o atrito existente entre elas) e éresponsável pela absorção e depuração do mesmo fluído(função que é “aproveitada” para realização de diáliseperitoneal).O líquido peritoneal “circula” na cavidade peritoneal comoresultado de diferentes forças. A gravidade facilita aacumulação caudal, o peristaltismo intestinal estimula ofluxo lateral e o fluxo cefálico resulta da criação de umapressão subdiafragmática negativa em consequência darespiração.

Compreender a Anatomia

Ligamentos, mesos e omentosO peritoneu ao longo da sua “viagem” intra-abdominalestabelece “pontes” entre a parede abdominal e osdiferentes órgãos parenquimatosos, sem vasos importantes(ligamentos), entre a parede abdominal e o tubo digestivo,transportando estruturas vasculares (mesos) e entrediferentes vísceras abdominais (omentos/epiploons). Estasestruturas são fundamentais porque fornecem vias decondução para vasos sanguíneos, linfáticos e nervos entreas diferentes vísceras abdominais e o espaçoextraperitoneal (tabela 1). Contudo, são também viaspotenciais para a disseminação tumoral, inflamatória oude hemorragia a partir de órgãos distantes.

Recessos peritoneaisOs recessos, bursas ou fundos de saco peritoneais sãodeterminados pelas inserções parietais dos ligamentos,mesos e epiploons e também pela existência de pregascondicionadas por estruturas salientes que são revestidaspelo peritoneu (figura 2). A cavidade peritoneal é divididaem dois grandes compartimentos pelo mesocólontransverso: os andares supra e infra-mesocólico. Noprimeiro, localiza-se a bursa omental (retrocavidade dosepiplons) que está separada da cavidade peritoneal restante,

Fig. 1- Cavidade abdominal. 1- víscera; 2- cavidade peritoneal; 3-folheto visceral do peritoneu; 4- folheto parietal do peritoneu; 5- espaçosubperitoneal.

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apenas comunicando através do foramen epiplóico (deWinslow). O andar infra-mesocólico está dividido em doissub-compartimentos principais pela raíz do mesentério.As duas extensões laterais do andar infra-mesocólico sãoas goteiras parieto-cólicas (direita e esquerda). A direita émais larga e continua-se superiormente com os espaçossubhepático e subfrénico direito. À esquerda não existecomunicação com o andar supra-mesocólico pela presençado ligamento freno-cólico. Ambas as goteiras parieto-cólicas estão em continuidade com os espaços pélvicos(figura 3).A bexiga divide a pélvis no espaço paravesical direito eesquerdo. No homem existe mais um espaço potencial emlocalização posterior à bexiga: o fundo-de-sacorectovesical. Na mulher, a presença do útero condiciona aexistência de dois espaços adicionais: o rectovaginal e outerovesical (figura 4).As pregas umbilicais, mediana, mediais e laterais,respectivamente condicionadas pelo úraco, artériasumbilicais obliteradas e artérias epigástricas inferiores,limitam as fossas inguinais ou recessos peritoneaisanteriores.

Fig. 2 - Ligamentos, mesos e omentos. 1- ligamento coronário; 2-pequeno omento; 3- ligamento hepatoduodenal; 4- ligamentoduodenocólico; 5- raiz do mesentério; 6- mesoapêndice; 7- “área nua”do fígado; 8- ligamento falciforme; 9- ligamento triangular esquerdo;10- epiploon gastro-esplénico; 11- ligamento freno-cólico; 12- raiz domesocólon transverso; 13- raiz do mesocólon sigmoíde. (Eur. Radiol.1998; 8:886-900)

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Fig. 5 - Hérnia interna (transmesentérica). Distensão de ansas dedelgado, com sinais de isquémia (ausência de realce parietal) e zona detransição abrupta, em relação com hérnia interna. Durante exploraçãocirúrgica, confirmou-se a existência de uma hérnia interna através deum defeito transmesentérico.

Fig. 4 - Escavação pélvica na mulher. A presença do útero e dosligamentos largos (setas finas) divide a escavação pélvica em doisespaços: o cavum pré-uterino (A) e retro-uterino (B). O ovário direito(seta larga) é identificado em localização posterior ao ligamento largo,ao qual adere através do mesoovário.

se com maior frequência a patologias em diferentes órgãos,pelo que o seu conhecimento é fundamental.A patologia peritoneal mais frequentemente encontrada emexames imagiológicos é a ascite, que pode resultar demúltiplas causas (exsudativas e transudativas). Ascolecções líquidas organizadas, principalmente osabcessos, são também muito comuns. O peritoneu e suasdependências são ainda afectados por patologiainflamatória, traumática e tumoral (a mais comum é acarcinomatose peritoneal).Além de poder estar envolvido em todos os processospatológicos atrás referidos, o peritoneu com as suasreflexões e recessos normais pode ser a causa de importantemorbilidade e mortalidade, podendo ser responsável porhérnias internas (figura 5).

Fig. 3 - Espaços e recessos peritoneais. 1- espaço subfrénico direito;2- espaço subhepático; 3- goteira parieto-cólica direita; 4- andarinframesocólico direito; 5- mesocólon transverso; 6- ligamentofalciforme; 7- espaço subfrénico esquerdo; 8- bursa omental; 9- goteiraparieto-cólica esquerda; 10- andar inframesocólico esquerdo. (Andarsupramesocólico representado em branco. Andar inframesocólicorepresentado em cinzento). (Eur. Radiol. 1998; 8:886-900)

Espaços extraperitoneaisO retroperitoneu (o espaço localizado atrás do peritoneuparietal posterior) está dividido em três compartimentosprincipais pela fascia renal (de Gerota): pararenal posterior;perirenal e pararenal anterior. A “área nua” do fígado(localizada na sua face posterior) está limitada pelainserção do ligamento coronário, ligamento falciforme eligamentos triangulares e comunica com o espaço perirenaldireito.

Identificar a Patologia

O primeiro passo para o correcto diagnóstico das diferentespatologias consiste na sua precisa localização: peritonealou pleural; extra ou intraperitoneal. De igual forma, oenvolvimento dos diferentes recessos peritoneais associa-

Conclusões

O conhecimento da complexa anatomia e fisiologia dacavidade peritoneal é a chave para compreender osprocessos patológicos que a afectam: os espaçosperitoneais, as reflexões peritoneais (formando ligamentos,mesos e omentos) e o fluxo natural do líquido peritonealdeterminam o sentido de disseminação do fluídointraperitoneal e, consequentemente, também as patologias.