marx crise e transicao ebook

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Marx Crise e Transicao eBook

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  • Marx:crise e transio

  • JAIR PINHEIRO (ORG.)

    MARX: CRISE E TRANSIO. contribuies para o debate hoje

    Marlia

    2014

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS

    Diretor: Dr. Jos Carlos MiguelVice-Diretor:Dr. Marcelo Tavella Navega

    Conselho EditorialMaringela Spotti Lopes Fujita (Presidente)Adrin Oscar Dongo MontoyaAna Maria PortichClia Maria GiachetiCludia Regina Mosca GirotoGiovanni Antonio Pinto AlvesMarcelo Fernandes de OliveiraMaria Rosangela de OliveiraNeusa Maria Dal RiRosane Michelli de Castro

    Ficha catalogr caServio de Biblioteca e Documentao Unesp - campus de Marlia

    Editora a liada:

    Cultura Acadmica selo editorial da Editora Unesp

    M392 Marx : crise e transio : contribuies para o debate hoje

    / Jair Pinheiro (org.). Marlia : O cina Universitria ; So Paulo : Cultura Acadmica, 2014.

    230 p.

    Inclui bibliogra aApoio: CAPES

    ISBN 978-85-7983-597-1

    1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Socialismo. 3. Comunismo.

    4. Capitalismo. 5. Revolues e socialismo. I. Pinheiro, Jair. CDD 335.4

  • SUMRIO

    ApresentaoJair Pinheiro ................................................................................. 7

    A URSS e o socialismo de EstadoMarcos Del Roio ............................................................................ 13

    Acerca da problemtica da transio socialista: avanos tericos e os recuos das experincias do chamado socialismo realLuiz Eduardo Motta ...................................................................... 51

    Notas para uma discusso atual sobre o socialismoLuciano Cavini Martorano ............................................................ 75

    A contradio em processo e seus limites:a crise na era do capitalismo senil Francisco Jos Soares Teixeira .......................................................... 91

    Crise, democracia formal e lutas populares: pistas da teoria social marxistaMilton Pinheiro ............................................................................. 107

    Fortes instabilidades, crises vistaLcio Flvio Rodrigues de Almeida ................................................. 127

    Piv brasileiro, crise e transio na Amrica Latina: Marx e a investigao de uma especiicidadeJason T. Borba .............................................................................. 147

  • Luta pelo socialismo no interior da revoluo bolivarianaJair Pinheiro ................................................................................. 187

    Lucha de clases y rentismo petrolero en venezuela: riesgos y diicultades para la transicin del capitalismo al socialismo algunas claves para comprender la situacin actual, aianzar la soberana nacional y avanzar al socialismo Rafael Enciso ................................................................................. 211

    Sobre os autores ............................................................................ 227

  • 7APRESENTAO

    A Queda do Muro de Berlim em 1989 varreu da agenda da maior parte dos pesquisadores todos os temas que guardam alguma aini-dade como o socialismo, como crise do capitalismo, transio, classes, etc.; desde ento a acusao mais leve dirigida aos que persistem pesquisando esses temas a de serem idelogos. Naturalmente os acusadores se dispen-saram de apresentar uma deinio conceitual de ideologia, pois esta lhes parecia bvia; ironicamente, uma premissa do modus operandi da ideolo-gia: a obviedade que dispensa explicao.

    Doravante, assumida essa suposta transparncia da realidade, to-das as relaes sociais reduzem-se a fornecedores e consumidores, as duas nicas categorias sociais admitidas como relevantes para o processo hist-rico. Como disse o ex-presidente da Unilever: As velhas e rgidas barreiras esto desaparecendo classe e status, blue collar e white collar, conselho de condminos e de proprietrios, empregada e dona de casa. Cada vez mais, somos simplesmente consumidores. (MICHAEL, 1994). Portanto, resta-ria apenas aperfeioar os dispositivos legais de regulao de mercado para garantir segurana jurdica (o mantra dos tempos neoliberais JP) a essas categorias, agora erigidas a clulas bsicas da sociedade.

    Complementa esta viso a previso de que,

    O im da histria ser um tempo feliz. A luta por reconhecimento, a dispo-sio para arriscar a prpria vida por objetivos puramente abstratos, a luta ideolgica mundial que fazia emergir a ousadia, a coragem, a imaginao e o idealismo, sero substitudos pelo clculo econmico, a permanente soluo de problemas tcnicos, preocupaes ambientais e a satisfao de demandas soisticadas de consumidores. (FUKUYAMA, 1989)1

    Entretanto, a vingana da histria no tardou a demonstrar que o caminho da utopia neoliberal no seria plano nem suave. Desde ento,

    1 Em trabalho posterior o autor reconsidera este otimismo, sem reconsiderar a tese central.

  • Jar Per (Or.).

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    as crises tm-se sucedido umas s outras, como em todo perodo histrico anterior, ainda que com intervalos menores. J em 1990 estoura a bolha do mercado inanceiro japons, dois anos depois, o ataque especulativo ao European Exchange Rate Machanism, sistema que antecedeu a criao do Euro; dois anos depois, o Efeito Tequila, como icou conhecida a crise da dvida mexicana; seguida da crise monetria do sudeste asitico, em 1997; no ano seguinte, a crise inanceira russa; em 2001, o colapso da economia argentina; em 2008 a crise inanceira global.

    H estudos que consideram que ainda estamos em meio a uma crise de longo prazo e, outros, que consideram que em 2009 comeou um novo ciclo de expanso que j apresenta os sinais de esgotamento. Em qual-quer dos casos, a crise permanece na agenda porque inerente ao sistema. A denominao e periodizao dessas crises tm variado entre os estudiosos do tema, cito-as apenas para ilustrar o contraste entre a utopia neoliberal e o movimento real da economia, que em tudo a contraria. Seja como for, essas crises foram seguidas de grandes mobilizaes e/ou exploses de revolta da-queles que as vivem como fardo, no como janela de oportunidades.

    Entre as mobilizaes que marcaram poca, pelos critrios de per-manncia e repercusso, pode-se citar o movimento zapatista e o caracazo. A primeira aparece no estado de Chiapas, ao sul do Mxico, uma expresso emblemtica do protesto contra os efeitos das polticas neoliberais na peri-feria de um pas perifrico, uma comunidade majoritariamente indgena se levanta em primeiro de janeiro de 1994, data simblica porque escolhida para a assinatura do NAFTA, acordo de livre comrcio entre EUA, Canad e Mxico, apresentado por seus defensores (polticos, jornalistas, pesqui-sadores etc.) como a chave do desenvolvimento e do combate pobreza (o segundo, efeito do primeiro). Justamente contra este vaticnio, aquela comunidade se levanta e proclama:

    HOY DECIMOS BASTA!, somos los herederos de los verdaderos forja-dores de nuestra nacionalidad, los desposedos somos millones y llamamos a todos nuestros hermanos a que se sumen a este llamado como el nico camino para no morir de hambre ante la ambicin insaciable de una dic-tadura de ms de 70 aos encabezada por una camarilla de traidores que representan a los grupos ms conservadores y vendepatrias. (EJERCITO ZAPATISTA DE LIBERACIN NACIONAL, 1993).

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    Seria este levante a expresso do atraso de uma comunidade cons-tituda de pessoas simples e ignorantes das leis do desenvolvimento ou estaria indicando um problema que no cabe no modelo terico domi-nante? Os textos que compem a presente coletnea permitem sustentar a segunda hiptese.

    A segunda mobilizao que marcou a conjuntura a revolta po-pular ao anncio do pacote de medidas neoliberais pelo governo de Carlos Andrs Prez na Venezuela, em 27 de fevereiro de 1989, conhecida como caracazo. Apesar de o nome referir-se cidade de Caracas, a revolta se es-tendeu por todo o pas, teve como efeito a imploso do sistema partidrio e a delagrao da Revoluo Bolivariana, a qual impacta o debate poltico local, regional e global ainda hoje. Os ltimos acontecimentos sugerem que assim continuar.

    Pelo critrio de globalidade da crise e seus efeitos, se destacam o Occupy Wall Street, que ocupou a Liberty Square, no distrito inanceiro de Manhattan, em Nova York em 17 de setembro de 2011; e os Indignados, que ocuparam a praa Puerta del Sol em Madrid, em 15 de maio de 2011. Ambos os movimentos se espalharam rapidamente para outras cidades, se caracterizaram por constituir-se de uma ampla rede de organizaes ideolo-gicamente heterognea, denunciaram a captura da democracia pelo mercado inanceiro, se tornaram modelo para jovens de todo o mundo (inclusive do Brasil), que tambm organizaram ocupaes de praas em cidades impor-tantes dos seus pases. Apesar da repercusso internacional alcanada, ambos os movimentos perderam expresso; hoje quase no se fala mais deles. O Occupy Wall Street mantm um animado debate pela internet, mas sem mobilizao e ao direta; os Indignados deram origem ao partido Podemos, que elegeu cinco deputados para o Parlamento Europeu em 2014 e assusta o establishment espanhol. Uma hiptese para essa acomodao terem cado na normalidade, na medida em que predominou neles uma explicao da crise como ganncia de uma minoria de banqueiros, muito prxima da falta de regulao alegada pelo mainstream formado pelo jornalismo econmico, departamentos de economia estreitamente vinculados ao mercado inanceiro e polticos ligados a partidos da ordem.

    Neste perodo, tambm se observou muitas exploses de revol-ta provocadas pelo empobrecimento urbano devido retirada de direitos

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    sociais, queda de investimentos em servios pblicos e da renda do traba-lhador. Para contrariar a suposio largamente estimulada pelo jornalismo econmico de que crises e exploses de revolta so provocadas por polticas errticas de governos populistas em pases perifricos, destaque-se os casos de Paris e Londres.

    Em 27 de outubro de 2005, na chamada Zona Sensvel, por con-centrar uma populao pobre de 5 milhes de habitantes na periferia de Paris, uma perseguio policial a alguns jovens deu lugar a uma exploso de revoltas que durou 19 dias, com um saldo de 8.900 carros queimados. Em 06 de agosto de 2011, aps a morte de um jovem negro pela polcia em cir-cunstncias suspeitas, a periferia de Londres viveu trs dias de revoltas com saques e depredaes. Em ambos os casos, uma operao policial aparen-temente rotineira fez eclodir, sob a forma desorganizada e despolitizada de exploso de revolta, o sentimento de injustia que o combate neoliberal poltica de proteo social,2 fermenta nas periferias urbanas, onde o Estado burgus opera principalmente atravs do seu aparato repressivo.

    Desde o primeiro momento, afrontando a nova palavra-de-or-dem do im da histria, pesquisadores vinculados a departamentos e gru-pos de pesquisa de importantes universidades brasileiras e estrangeiras tm buscado enriquecer o arcabouo terico crtico, aplicando o mtodo do materialismo histrico ao estudo de acontecimentos como os acima cita-dos, revisitando antigos temas e/ou propondo novos.

    O grupo de pesquisa Cultura e Poltica do Mundo do Trabalho (CPMT) vem realizando o Seminrio Internacional Teoria Poltica do Socialismo, desde 2005, com apoio do Departamento de Cincias Polticas e Econmicas (DCPE) e do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, da Faculdade de Filosoia e Cincias (FFC/UNESP/Marlia). A quinta edio, realizada em agosto de 2013, teve como tema Marx: crise e transio, ocasio em que se debateu a crise e seus vrios aspectos, assim como os desaios que o atual estgio do capitalismo impe ao pensamento crtico e prtica poltica que visa sua superao.

    O presente volume traz algumas das contribuies apresentadas naquela ocasio. Abre a coletnea o trabalho de Marcos Del Roio, inti-

    2 A este respeito, veja-se Organizao Internacional do Trabalho ( 2014).

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    tulado Socialismo na URSS, no qual o autor examina aquela experincia histrica segundo a tese de que o projeto de Lnin era o desenvolvimento de um capitalismo de Estado como fase de transio ao socialismo, o que se inviabilizou tanto devido s lutas internas como s intervenes impe-rialistas, resultando ento em uma espcie de socialismo de Estado, que o que ruiu em 1989; conclui Del Roio.

    Francisco Jos Soares Teixeira, em A contradio em processo e seus limites: a crise na era do capitalismo senil, analisa os traos caractersticos do que a literatura denominou capitalismo senil, extraindo da importantes contribuies tanto para a anlise da histria do capitalismo at aqui como para os limites a ele inerentes.

    Em Acerca da problemtica da transio socialista: avanos tericos e os recuos das experincias do chamado socialismo real, Luiz Eduardo Motta passa em revista o debate terico suscitado pela experincia histrica, con-cluindo que Ao enfatizar as relaes de produo, o marxismo althusse-riano demarcou claramente como ponto central na sua anlise a luta de classes e as suas contradies dentro e fora dos aparatos estatais.

    No mesmo diapaso de anlise das experincias histricas e das lies que comportam, Luciano Cavini Martorano, em Notas para uma dis-cusso atual sobre o socialismo, apoiando-se em Balibar e Betelheim, aborda as questes da socializao econmica, da poltica e da representao pol-tica no socialismo.

    Milton Pinheiro desloca o foco da anlise das experincias his-tricas para o debate terico em torno da relao entre crise econmica e democracia, apresentando uma anlise que explora os limites do forma-lismo da democracia burguesa e de como ele tem servido precarizao e pauperizao dos trabalhadores. Em Fortes instabilidades, crises vista, Lcio Flvio Rodrigues de Almeida explora as potencialidades do conceito de crise para analisar o debate poltico corrente e suas contradies.

    Com o texto de Jason T. Borba, Piv Brasileiro, Crise e Transio na Amrica Latina: Marx e a investigao de uma especiicidade, opera-se mais um deslocamento de foco, desta vez voltando-se para a economia na formao social brasileira e as suas caractersticas geoestratgicas que

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    articula o centro-sul do Brasil e a Amrica Latina como componentes da acumulao internacional do capital.

    Fecha o volume duas contribuies sobre a Venezuela: em Luta pelo socialismo no interior da Revoluo Bolivariana, Jair Pinheiro apresenta uma interpretao daquela revoluo apoiando-se numa deinio concei-tual de revoluo em sentido amplo e restrito, ao mesmo tempo que pe-riodiza o processo revolucionrio segundo a correlao de foras das classes em luta; por im, em Lucha de clases y rentismo petrolero en Venezuela: riesgo y diicultades para la transicin del capitalismo al socialismo, Rafael Enciso apresenta uma anlise da conjuntura lationomaricana, tendo como eixo in-terpretativo o peso da Revoluo Bolivariana no subcontinente e a ofensiva do imperialismo estadunidense em aliana com direita venezuelana contra o governo Maduro.

    Jair Pinheiro

    REFERNCIAS

    EJERCITO ZAPATISTA DE LIBERACIN NACIONAL. Primera Declaracin de la Selva Lacandona. 1993. Disponvel em: . Acesso em: 11 jun. 2014.

    FUKUYAMA, F. he end of the history, summer, 1989. Disponvel em: . Acesso em: 11 jun. 2014.

    ORGANIZAO INTERNACIONAL DO TRABALHO. World social protec-tion report. Geneva, 2014. Disponvel em: . Acesso em: 12 jun. 2014.

    PERRY, M. he Brand: vehicle for value in a changing marketplace. Londo: Advertising Association, Presidents Lecture, 1994.

  • 13

    A URSS E O SOCIALISMO DE ESTADO

    Marcos Del Roio

    1 INTRODUO

    A necessidade impostergvel de refundao do comunismo en-quanto crtica terica / prtica, enquanto movimento de superao da or-dem social regida pelo capital, enim globalizada como Imprio, aponta como uma de suas tarefas uma avaliao severa da prpria trajetria do movimento operrio no sculo XX, de suas formulaes tericas e de suas prticas poltico-culturais. Um ponto essencial nessa avaliao geral o entendimento do fenmeno histrico constitudo pela URSS.

    No campo terico do marxismo as interpretaes so variadas e por nada conclusivas. Na vertente do prprio PCUS e do movimento co-munista a ele vinculado predominou a ideia de que se tratava de um socia-lismo em construo ou, depois, de um socialismo realmente existente ou mesmo desenvolvido (sic). A crtica de Trotski indicava a presena de um Estado operrio degenerado pela burocratizao. Na Iugoslvia, no correr dos anos 50 havia se generalizado a concepo de que uma nova classe se apossara do poder na URSS. Logo depois o maosmo trabalhou com a hiptese de um capitalismo de Estado substituindo a construo socialista a partir de 1956. Em seguida adveio da mesma vertente interpretativa a sugesto de que o capitalismo de Estado prevalecia desde 1921 e perpas-

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    sou toda a experincia histrica em questo (LOSURDO; GIACOMINI, 1997; FERNANDES, 2000).

    Sem discutir as leituras precedentes, neste texto pretendo aventar a hiptese de que o capitalismo de Estado era um projeto de Lnin como imposio da realidade social e histrica da Rssia e que assistiu a diversas fases tanto do ponto de vista terico quanto prtico, mas que se esgota em 1929, quando substitudo pelo socialismo de Estado. A inteno reside, portanto, em expor rapidamente o entendimento terico e estratgico de Lnin quanto ao capitalismo de Estado para em seguida discutir o con-tedo especico e o signiicado histrico do socialismo de Estado como negao no s do capitalismo de Estado e do projeto leniniano, mas da prpria transio socialista.

    Percebe-se que a nfase est colocada no ano de 1929, como mo-mento essencial de ruptura histrica. Nessa tarefa o auxlio de Gramsci ser fundamental tanto pela sua compreenso da transio socialista quanto pelo seu universo categorial. No ser usada a expresso stalinismo por conta de seu forte carter polmico poltico-ideolgico e pelo fato de su-gerir que o regime em pauta se identiicou com o personagem e que teria terminado com a sua morte, quando, na verdade, se prolonga at 1989/91.

    2 LNIN E O CAPITALISMO DE ESTADO

    J nos primeiros anos do sculo XX, Lnin tinha bastante claro que o capitalismo se desenvolvia na Rssia sob uma forma particular, que tendia a desintegrar o feudalismo e a comuna agrria, assim como a colocar em crise o Estado feudal-absolutista. Essa dinmica colocava na ordem do dia a realizao de uma revoluo democrtica e burguesa, que instaurasse as liberdades polticas (liberal-burguesas) e a democracia, mas tambm cui-daria do desenvolvimento das foras de produo da vida material.

    No entanto, Lnin percebia as diiculdades e os limites da burguesia russa para contribuir nessa tarefa e entendeu que apenas o jovem proletaria-do industrial, com respaldo das mais amplas fraes do campesinato, poderia levar ao cabo a instaurao de uma democracia burguesa radicalizada, pois que dirigida pelos trabalhadores. A ditadura democrtica do proletariado e do campesinato, tal como Lnin a concebia, seria o invlucro do desenvol-

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    vimento de uma forma particular de capitalismo, um capitalismo de Estado, no qual os principais meios de produo mquinas e terras seriam pro-priedade estatal, ainda que a burguesia continuasse existindo.

    A derrota da revoluo democrtica de 1905, e do proletariado, abriu a possibilidade de uma composio entre a burguesia e a nobreza feudal e seu Estado, tal como ocorrera na Alemanha depois de 1849. Da Lnin haver identiicado a possibilidade do capitalismo na Rssia se pro-cessar por uma via prussiana, na qual o papel do Estado sempre im-portante, a im de manter as massas operrias e camponesas disciplinadas e submetidas.

    A ecloso da guerra imperialista, em 1914, ao trazer a tona as suas debilidades e insanveis contradies, criou as condies para a crise espe-tacular do Estado feudal-absolutista russo e a sua via de desenvolvimento capitalista com proteo estatal. Na leitura de Lnin, a guerra imperialista trazia consigo a atualidade e a iminncia da revoluo socialista internacio-nal e essa levaria de roldo o regime czarista. A questo era como inserir a classe operria e a prpria Rssia nesse processo.

    A resposta foi oferecida pela realidade. Em maro de 1917 ocor-reu a derrocada da monarquia feudal-absolutista russa e a instaurao de uma situao democrtica, que se desenvolvia em duas direes contradi-trias que deveriam culminar com uma ditadura de classe, de um ou outro modo. O processo de democratizao liberal implicaria, pelas caractersti-cas da burguesia russa, uma nova ordem institucional que recomporia as foras sociais dominantes e a relao subalterna com o ncleo do Ocidente imperialista, reativando a via prussiana, tanto na economia como no Estado e congelando ou revertendo a democratizao.

    No entanto, a democratizao socialista ocorria ao mesmo tem-po e estimulava aquela outra. Lnin percebeu desde logo que o soviet de operrios e soldados era uma instituio social que indicava a presena de um novo Estado em gestao, um Estado operrio que deveria assumir a forma de uma ditadura democrtica do proletariado e dos camponeses po-bres. Era preciso fazer com que a classe operria russa, aliada internamente aos camponeses pobres e externamente ao proletariado alemo, iniciasse a revoluo socialista internacional. Em consonncia com essa perspectiva,

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    Lnin props que o objetivo a ser alcanado imediatamente na Rssia fosse a instaurao de uma repblica dos soviets de deputados operrios, braan-tes e camponeses, estatuda de baixo para cima.

    A revoluo socialista internacional teria incio ento na Rssia, mas deveria se difundir de todo modo para a Alemanha. Lnin julgava que as condies para a transio socialista estavam presentes na Alemanha, no s pela existncia de uma classe operria grande e qualiicada, com avanadas foras produtivas do trabalho, mas porque a guerra havia acen-tuado ainda mais a tendncia presente no capitalismo alemo de grande centralizao do capital e de interferncia estatal. Aqui, a transferncia do poder para as mos do proletariado acentuaria o capitalismo de Estado e daria inicio imediato transio socialista.

    A situao da Rssia era, porm, bastante diferente por conta do atraso signiicativo no desenvolvimento das foras produtivas e pela presena de enorme massa camponesa, pelo limitado mercado interno e pela depen-dncia inanceira frente ao ncleo imperialista do Ocidente. Em torno de setembro de 1917, era j patente o fracasso da democratizao liberal, que fora apoiada at ento por parcelas signiicativas do movimento operrio e do campesinato, alm da aliana anglo-francesa. Agora crescia rapidamente, em contraposio, o apoio ao projeto dos bolcheviques de criao de uma ditadura democrtica do proletariado e do campesinato pobre, sob a forma de um Estado-comuna, que no soviet teria a sua instituio basilar.

    Era patente a disjuno entre a possibilidade da criao de um Estado-comuna, de uma ditadura da democracia de base sovitica, que estabelecia o poder operrio, com a ausncia de condies materiais ao menos razoveis para que se desse incio transio socialista. A Rssia, na verdade, estava ainda longe de concluir a revoluo burguesa do ponto de vista do desenvolvimento das foras de produo e do ponto de vista da dissoluo das camadas sociais pr-capitalistas, de modo que seria tarefa do Estado operrio, o Estado da transio socialista, realizar a obra que alhures a burguesia havia j realizado. Essa tarefa seria quanto mais fcil no momento em que a classe operria assumisse o poder na Alemanha e que a revoluo socialista internacional se difundisse.

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    De imediato, Lnin propunha que se estabelecessem medidas que visassem o controle, inspeo e contabilidade dos bens. Para tal indicava a necessidade da nacionalizao e fuso dos bancos, nacionalizao dos monoplios, abolio do sigilo comercial, agremiao obrigatria da bur-guesia, organizao obrigatria da populao em cooperativas de consumo ou fomento. Essas medidas j podiam ser vistas nos Estados imperialistas, mas na Rssia essas aes s poderiam ser voltadas contra a burguesia, diante da incompatibilidade entre a dominao burguesa e a imposio da democracia. Ento, Lnin indicava que a associao entre democracia proletria e capitalismo monopolista de Estado apontava para a transio socialista, pois o controle democrtico do monoplio capitalista estatal se-ria j o reverso do monoplio capitalista. A questo da democracia operria era ento fundamental.

    Elemento do que havia de mais avanado no capitalismo era o mtodo Taylor de organizao do processo de trabalho, surgido para au-mentar a produtividade e disciplinar o trabalho tendo em vista a explora-o e a expropriao do saber operrio, que deveria tambm ser incorpo-rado pelo avesso no capitalismo de Estado com poder operrio. Na Rssia revolucionria o taylorismo deveria servir para disciplinar o trabalho e au-mentar a produtividade, mas com objetivo emancipatrio, por aumentar o tempo livre para participao na vida pblica e para os estudos. Ademais, seria tambm um meio de aumentar o saber operrio, pois que o controle do processo produtivo estaria cargo dos prprios trabalhadores.

    A guerra civil, seguida da invaso imperialista e da derrota da revoluo socialista internacional foi elemento fundamental para o futuro da Rssia sovitica. No comeo de 1921 a Rssia encontrava-se devastada e isolada poltica e economicamente, mas tratava-se ainda de um poder revolucionrio cujo objetivo era a criao das condies para a transio socialista, ainda que a partir de condies muito difceis e que obrigavam o investimento no capitalismo de Estado. As condies agora eram piores que em 1918 e as solues encontradas indicavam o retorno produo mercantil no campo e mesmo o estimulo a pequena indstria artesanal.

    Por outro lado, deveriam ser feitas concesses das fbricas esta-tizadas ao gestor da grande empresa, uma forma de reforar o capitalismo de Estado contra a pequena produo mercantil. O cooperativismo seria

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    outra forma de capitalismo de Estado, que agruparia pequenos produtores. A resistncia da burguesia em se adaptar nova ordem e a estratgia impe-rialista de sufocar o novo Estado obrigaram Lnin e a Rssia a se voltarem para formas atrasadas de capitalismo de Estado como patamar possvel de um novo desenvolvimento.

    Lnin, ao conceber a Nova Poltica Econmica - NEP como um projeto de desenvolvimento capitalista de Estado agro-industrial, reconhe-ceu o peso enorme do campo na Rssia e a necessidade da elevao da qua-liicao do trabalho e do padro cultural das massas, como medidas estra-tgicas imediatas, reconhecendo assim que a comuna agrria, enim, como havia sugerido Marx em 1881, desde que industrializada, poderia servir de um patamar para a transio socialista. A construo do Estado da tran-sio socialista deveria correr junto com criao das condies materiais e culturais para a transio socialista, que seriam geradas pelo capitalismo de Estado. Essa disjuno seria cimentada pela construo da hegemonia operria na produo e no Estado, mantida a autonomia e o autogoverno da classe operria, cumprindo o partido e o Estado o papel de organizador e educador (LENIN, 1976).

    3 O CAPITALISMO DE ESTADO DEPOIS DE LNIN

    Lnin foi colhido pela morte no incio de 1924, logo depois de ser derrotada a ltima manifestao da revoluo na Alemanha, acabando com a esperana de que o isolamento do Estado sovitico viesse a ser rom-pido. Ao mesmo tempo, na URSS, ocorria a primeira crise da NEP, que se manifestava na alta dos preos agrcolas e na crise de abastecimento das cidades. Esse foi o momento em que se delinearam dois diversos projetos estratgicos para a URSS, aquele elaborado por Bukhrin, seguindo as in-dicaes de Lnin, e outro pensado por Trotski.

    Para Trotski, a NEP, enquanto retirada ttica da revoluo socia-lista e meio de recompor a aliana operrio-camponesa estava superada j em ins de 1923. Diante dos sinais de reativao da revoluo na Europa central e da necessidade incontornvel da URSS acelerar a industrializao e recompor a classe operria dizimada na guerra civil, Trotski propunha que a presso econmica sobre os camponeses devesse se acentuar, at por-

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    que a industrializao seria a nica forma de se evitar que a distncia entre o desenvolvimento capitalista nos EUA, que se manifestava com tanta evi-dncia, aumentasse ainda mais. Nessa viso, fundamental continuava a ser a aliana entre a classe operria russa e alem para o avano do processo revolucionrio, mesmo que em detrimento da massa camponesa russa. O crescimento da classe operria na URSS seria tambm o antdoto possvel burocratizao que j se divisava nas instituies do Estado sovitico e do prprio partido (TROTSKI, 1979).

    De outra parte Bukhrin procurava desenvolver as derradeiras formulaes de Lnin, que indicavam a prioridade da aliana poltica entre a classe operria e o campesinato e o desenvolvimento do capitalismo mo-nopolista de Estado, com base na pequena indstria rural, mas sob o poder do partido operrio. Na concepo de Bukhrin o capitalismo monopolis-ta de Estado com conduo poltica do partido operrio seria um processo de longa durao, pois que demandava a criao de um mercado interno de produo e consumo para que se atingisse o patamar para a construo de um capitalismo de Estado baseado na grande indstria. S ento que estariam prximas as condies efetivas para a transio socialista.

    A formao de cooperativas, aproveitando-se da tradio comu-nal do campesinato, e a industrializao do campo, com o passar do tem-po, transformariam o prprio campesinato de heterogneo grupo social pr-capitalista, em frao educada da classe operria ocupada na agroin-dstria socializada e de grande porte. A diferenciao social, segundo Bukhrin, decorrente do prprio processo de acumulao, seria combatida com medidas de poltica econmica, ou seja, haveria um mercado deter-minado politicamente. O capitalismo de Estado avanado e desenvolvido seria a condio e o momento inicial da transio socialista. No entanto, a intruso economicista, talvez decorrente do pouco domnio do mtodo dialtico, debilitou a formulao terica de Bukharin (1980).

    O resto da liderana bolchevique no tinha formulaes tericas mais claras sobre como seguir na construo do novo Estado operrio. Entre 1923 e 1927 o conlito poltico esteve relacionado disputa entre essas duas perspectivas estratgicas, que culminou com a consolidao da teoria de Bukhrin e a derrota de Trotski, participando a burocracia estatal e a maioria do grupo dirigente bolchevique ao lado de Bukhrin.

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    A vitria, parcial, da linha de Bukhrin ocorreu como decorrn-cia de elementos variados da luta poltica, mas principalmente pelos bons resultados da economia nesse perodo, baseada na acumulao agro-mer-cantil de baixa produtividade. A indstria se ressentia tambm da baixa qualiicao dos trabalhadores e assim como da mquina administrativa inoperante. Em suma, o baixo padro cultural diicultava o desenvolvi-mento do prprio capitalismo de Estado e estimulava a recomposio de estruturas gerenciais burocrticas, como o prprio Lenin havia j destaca-do nos seus ltimos escritos.

    J em 1927, no entanto, era patente a crise econmica e social, com problemas na produo agrcola e de abastecimento nas cidades. A diferenciao social no campo tambm era perceptvel com a formao de uma embrionria burguesia agrria. O descontentamento social na cidade e no campo foi combatido com medidas repressivas, sinal da fragilidade do Estado operrio enquanto tal e da dbil representatividade do partido frente o conjunto da vida social. Em suma, o partido, que acabara de passar por grave ciso, encontrava srias diiculdades para operar a hegemonia operria, a comear pelo problema de se fazer representante poltico efetivo da classe operria que se constitua novamente, aps a dizimao de 1918-1920.

    Como a classe operria, ela mesma, no se fazia dirigente da vida social e no conseguia garantir o campesinato como base social da sua ditadura democrtica de classe, o partido operrio no conseguia tambm consolidar o seu o papel de organizador e educador da classe. Com isso se fortaleciam laos sociais prprios da poca absolutista-feudal, fosse no campo, fosse na burocracia estatal, assim como a contradio que os co-locava em antagonismo. O Estado feudal-absolutista se recompunha nas sombras e se disseminava sobre as instituies administrativas e policiais, at mesmo sobre o partido, o mediador principal da vida social e poltica.

    O enfrentamento da crise implicou o esvaziamento da concepo de capitalismo de Estado que a necessidade havia feito Lnin projetar e que Bukhrin viria a aprofundar, ou seja, um capitalismo de Estado que preci-saria de alicerce forte no campo, em termos econmicos e de sustentao social. O risco que se apresentava, porm, era o fortalecimento de uma burguesia agrria, que poderia almejar o poder poltico, necessariamente em aliana com o imperialismo. Mas um capitalismo de Estado baseado

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    na grande indstria estatal, como pressuposto da transio socialista, era ainda invivel frente o atraso das foras produtivas do trabalho, da sua de-iciente auto-organizao e capacidade hegemnica de classe.

    Assim, o cenrio apontava a quase impossibilidade de solucionar a crise, fosse por meio da passagem para um capitalismo atrasado de base agrria e tambm a impossibilidade de um capitalismo de Estado com base na grande indstria e com direo efetiva da classe operria em contexto de ditadura democrtica com o soviete como fundamento da democracia. Mas estava tambm sempre mais complexa e difcil a continuidade da cha-mada NEP, ou seja, o capitalismo de Estado com base agrrio-industrial, que alimentava a industrializao de maneira articulada e homognea, se-gundo se pretendia, pelo menos. Isso tudo exatamente porque a classe ope-rria no tinha condies de ser hegemnica e o partido comunista tinha diiculdades enormes de representar efetivamente a classe que se formava novamente depois do extermnio da guerra civil e de formular um projeto que fosse capaz de respaldo suiciente para enfrentar crises e suportar o baixo padro de vida com um mnimo de percalos.

    O Estado operrio que havia surgido pela atividade autnoma e antagnica das massas no decorrer de 1917, como notara Lnin, s po-deria se consolidar com a condio que a revoluo se difundisse para a Alemanha e que o capitalismo de Estado baseado na grande indstria esta-tal criasse, na Rssia, as condies para a transio socialista. A revoluo socialista internacional fora derrotada e, na Rssia, foi destroada a grande indstria e a prpria classe operria. O desenho do capitalismo de Estado precisou ser mudado, assumindo as diretrizes da Nova Poltica Econmica, que postergou a rpida criao ao das condies materiais da transio em troca da busca do consenso nacional popular, ou seja, do respaldo das fraes camponesas.

    Acontece que as instituies do Estado operrio se encontravam tambm debilitadas, no s a produo material. A guerra civil induziu a militarizao da vida social, que, junto com a destruio de meios e bens de produo, assim como da prpria classe operria, esvaziaram o soviet, como instituio bsica do novo Estado. O poder passava a se concen-trar no partido, mais exatamente na sua cpula, gerando uma importncia crucial s suas contendas internas. Trata-se de uma situao propcia para

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    a recomposio da administrao estatal nos moldes burocrticos do abso-lutismo-feudal, particularmente a partir de 1924, quando o Partido se abre para novas levas de militantes e tem que nomear servidores pblicos em quantidade. A diiculdade da situao bastante clara, pois o Partido teria que escolher entre se abrir para a vida social ou se manter fechado numa restrita militncia de bolcheviques de primeira hora, que se descolava das massas e suas demandas. A opo por abrir o Partido fez com que a senda estivesse iluminada para arrivistas sociais e novos membros forjados no ambiente da antiga ordem.

    Por outro lado, no campo, em particular, se disseminava a pro-duo mercantil, com a inerente diferenciao social, e se revitalizava a comuna agrria. Era uma corrida contra o tempo: ou se refazia uma clas-se operria com capacidade de hegemonia para dirigir o capitalismo de Estado e a criao das condies da transio ou as instituies absolutis-ta-feudais se reorganizariam com nova faceta. Percebe-se que as condies para a manuteno do Estado operrio com base nos soviets, ao modo de uma ditadura democrtica, eram por demais exguas.

    Entre a diiculdade de conigurao da hegemonia da classe ope-rria sustentada pelas massas camponesas e a igual diiculdade da implan-tao de um capitalismo de base agrria mercantil, considerando que a burguesia industrial era apenas residual, a soluo que se apresentou para a crise social, que se confundia com a crise do capitalismo de Estado de base agrrio industrial, foi o desencadeamento de uma revoluo passiva.

    Era o terceiro fracasso da Rssia no sculo XX, que havia visto j naufragar a via prussiana de desenvolvimento do capitalismo em seguida a revoluo de 1905, a impossibilidade de insero em uma revoluo so-cialista internacional (1917-1921), e agora as diiculdades incontornveis no desenvolvimento capitalista de Estado direcionado para a transio so-cialista. Em todas as situaes o cenrio internacional teve peso decisivo, ainda que diferenciado.

    4 A CRISE DO CAPITALISMO DE ESTADO

    A derrota deinitiva das vertentes de esquerda do bolchevismo, em 1927, que se agruparam em torno de Trotski, coincidiu com a derrota da

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    revoluo chinesa, com o renovado isolamento da URSS no cenrio interna-cional e com o agravamento da luta de classes no interior desse Pas, que ge-rou a crise social e as condies para o im do prprio capitalismo de Estado como delineado pela NEP. As pssimas condies de vida, o desemprego, a crise de abastecimento, tudo fez difundir forte descontentamento nas ci-dades, que culminaram em movimentos grevistas importantes, a indicar o conlito com a administrao fabril e a corroso da base de apoio do partido e do governo. O conlito social no campo estimulou a reteno da produo e aumentou o desabastecimento nas cidades. Cidade e campo viviam em mundos estranhos e a posio que era das esquerdas do bolchevismo, que pensavam priorizar a base de apoio urbano-industrial, ganhava fora difusa.

    Se a hegemonia operria no se conigurava, ou antes, se o cor-porativismo operrio voltava a se manifestar com fora, se a base de apoio do regime se enfraquecia no campo com a crise social, que se manifestava mesmo em revoltas marcantes, que poderiam o partido e o Estado faze-rem? A recomposio do capitalismo de Estado vigente desde 1921 era possvel? Como mais uma vez recompor as suas bases sociais?

    Com a crise de abastecimento e de fornecimento de matrias pri-mas para a indstria havia o risco de fechamento de fbricas e de se ampliar o desemprego. Na crise econmica e social generalizada foi necessrio se fazer opes e o partido decidiu por priorizar os interesses urbanos, onde se encontrava a sua base social mais slida e iel, ainda que trepidante. A op-o pela acelerao da industrializao ocorreu tambm como decorrncia do agravado isolamento econmico e diplomtico a que a URSS se encon-trou a partir da segunda metade de 1927, que difundiu a preocupao com um possvel ataque externo. A inevitvel implicao foi o substantivo au-mento da represso social na cidade, mas muito principalmente no campo.

    Contra as determinaes do Plano Qinqenal e contra os ad-ministradores, os operrios se insurgiram em 1928. Acusada a Inspeo Operria e Camponesa de inoperante, a OGPU (a polcia poltica de ento) passou a agir com mais determinao e fora. O descontentamento dos ope-rrios foi direcionado contra a camada inferior da administrao pblica, que redundou em processos polticos de inalidade demonstrativa. A direo dos sindicatos favorvel s demandas dos operrios foi mudada por outra que privilegiava a questo da disciplina no trabalho. No campo a represso se

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    desencadeou com brutalidade, acoplada a medidas de restrio ao mercado e requisio da produo, fazendo recordar o tempo da guerra civil.

    Os fundamentos econmicos e sociais que sustentavam o projeto da NEP estavam sendo inexoravelmente corrodos. O capitalismo de Estado de base agrrio industrial, conforme teorizado por Bukhrin, precisava de relativa estabilidade no cenrio externo e a busca permanente do consen-so social interno a ser alcanado pelos mtodos da poltica, com paulatino crescimento do bem estar e elevao cultural das massas. Coerente com essa concepo os seus defensores insistiam que a ameaa externa estava sendo muita exagerada e que os problemas econmicos estavam na concepo mes-ma do plano de industrializao, portanto, na alta administrao e na cpula do Estado, e no nos estratos inferiores da administrao responsveis pela implantao. Do mesmo modo, persistiu-se na defesa da agricultura familiar com base cooperativa e das empresas agrria mdias.

    Por outro lado, a interpretao de Preobrajenski, feita ainda nos incios da NEP, de que a tendncia da economia sovitica levaria a um ine-vitvel conlito entre a cidade socialista e o campo capitalista, parecia se efetivar em 1928. Assim se explica o fato de muitos daqueles que at 1927 se encontravam ao lado da oposio de esquerda, terem aderido ao novo projeto de industrializao acelerada, como se fosse uma corrida pela efetiva construo das bases da transio socialista e a deinitiva derrocada do capitalismo agrrio. No se considerou, no entanto, que a concepo de Trotski, em particular, estava voltada para a revoluo internacional e para a necessidade de fazer crescer a classe operria, exatamente para reverter a ascenso da burocracia estatal (PREOBRAJENSKI, 1979).

    Na verdade, o novo confronto que se exprimia no vrtice do par-tido contrapunha ao projeto nepista de construo das condies da transi-o socialista, no com o projeto dito da revoluo permanente, mas com outro que viria a se expor com alguma clareza somente agora, com a grave crise social. Entre 1923 e 1927, quando a NEP se imps frente perspectiva terica de Trotski, com Bukhrin esteve Stlin e a maioria do partido, in-cluindo as novas levas que adentravam o organismo partidrio por nsia de ascenso social. Na luta ideolgica, no esforo de sistematizar o pensamento de Lnin (contrariando o seu mtodo, alis), Stalin concebeu a idia do so-cialismo num s pas para opor a revoluo permanente de Trotski. Nesse

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    momento essa formulao poderia ser entendida como reconhecimento da possibilidade de um capitalismo de Estado atrasado que construsse, ainda que parcialmente, as bases e os pressupostos da transio socialista, por esfor-o prprio, que era a concepo de Bukhrin (e de Lnin).

    A partir de 1928, a formulao de Stalin e do grupo que se agre-gava ao seu redor ganha maior nitidez. O consenso social era pouco re-levante diante da importncia crucial da industrializao e da criao de fazendas estatais e de grandes empresas agrcolas. Certo que os camponeses deveriam arcar com sacrifcios a im de garantir a industrializao, mas, em troca veriam tambm a produo agrcola se industrializar. Ademais, como se supunha que a transio socialista andasse avanada, difundiu-se a ideia absurda do ponto de vista terico, de que a luta de classes se acirra na medida em que se progride no caminho do socialismo. Para completar, seria tambm indispensvel presena de um reforado Estado socialista, que completaria a transio socialista dentro do territrio da URSS.

    O projeto de industrializao acelerada e de formao de gran-des empreendimentos agrcolas , sem dvida, revolucionrio, mas emerge como produto de amplo consenso democrtico? Emerge como desdobra-mento da elevao material e cultural das massas? fruto da hegemonia operria no capitalismo de Estado sovitico? A resposta deinitivamente negativa, considerando-se a insuicincia de fora da classe operria para estabelecer a sua efetiva hegemonia na produo e no Estado, j que era uma classe operria em formao e a mediao do partido era insuiciente do mesmo modo, com implicaes na legitimidade e representatividade.

    De quem era ento o projeto em vias de se implantar? Tudo indica que a administrao pblica, principalmente em suas altas instncias, preser-vava interesses particulares, mas tambm interesses permanentes de Estado. O fato do Estado operrio presente em embrio no soviet no se ter consti-tudo efetivamente, por conta da guerra civil e da eliminao de grande parte da prpria classe operria revolucionria, possibilitou a reconstituio social e cultural da burocracia do antigo Estado feudal-absolutista.

    Desprovida de ideologia prpria e de fora poltica, essa fora so-cial se imbricou com o partido, aproveitando de seus limites como camada dirigente da classe operria, dos limites da prpria classe operria e tam-

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    bm das crises sociais e econmicas do capitalismo de Estado agro-indus-trial. Partes dessa velha burocracia j no existiam mais e certos elementos deveriam ser eliminados para que a revoluo / restaurao fosse possvel, e assim se procedeu, mas tambm houve a incorporao da burocracia operria que se formava. Mas essa era uma necessidade para que a prpria recomposio e reciclagem do Estado absolutista pudessem ocorrer.

    Em 1928 surgiu a ocasio para que a burocracia estatal recicla-da, mas, sem dvida, continuadora da tradio feudal-absolutista, partisse para a ofensiva restauradora do seu Estado, pois a correlao de foras lhe era favorvel. A presso operria a partir das fbricas em oposio aos ad-ministradores, de incio, contou com o apoio do sindicato, mas a luta entre os interesses econmico-corporativos da classe operria e dos administra-dores, que clamavam por disciplina no trabalho para garantir a produti-vidade, acabou com a mudana na direo dos sindicatos, que passaram apoiar a disciplina do trabalho a partir do plano econmico global acertado pelas instncias estatais. O sindicato se tornava assim organizao de uma excrescncia da classe, da mesma forma que aconteceria com o partido logo depois. Sindicato e partido, de instituies orgnicas e representativas da classe operria passavam a ser uma excrescncia que se voltava contra a classe, despojando-a de autonomia e autoatividade, alm da capacidade e direito de se opor ao seu prprio Estado.

    A disputa poltica, que no fundo era expresso da luta de classes se expressou mais uma vez na contenda partidria, mas o projeto nepista, ao que tudo indicava, estava j derrotado. O peso do Estado poltico desabou sobre a sociedade civil e os camponeses foram as maiores vtimas. A produ-o continuava estagnada e a resistncia camponesa crescia, promovendo a matana de animais e mesmo assassinato de representantes do governo. Em troca ocorria o reforo da OGPU (polcia poltica) e a multiplicao de processos polticos. Tributos, requisies e poltica de preos arruinaram os camponeses mdios, que, sem alternativa, entravam nos empreendimentos agrcolas organizados pelo Estado. Embora a produo industrial tambm estivesse estagnada e at com queda de produtividade, o esforo maior do partido era garantir o apoio da classe operria, para a qual eram oferecidos relativos privilgios (num claro estmulo ao corporativismo), mas sem que a autonomia da classe se izesse presente.

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    A frao de Bukhrin, ainda no incio de 1928, contava com apoio nas instncias partidrias, no sindicato, no exrcito, entre os campo-neses, na Internacional Comunista, mas mesmo assim no conseguiu fazer frente ofensiva burocrtica, que contava com aquela parte do partido que havia j absorvido essa concepo com a expectativa de ascenso so-cial, muito mais do que como estratgia da transio socialista. A disputa se arrastou por cerca de ano e meio e culminou com a vitria completa de Stlin e seu grupo. Bukhrin logo se deu conta que o que estava a se implantar era uma forma de explorao militar-feudal do campesinato. (BUKHARIN, 1980).

    Ainda que seja verdade que o grupo de Stalin tenha se mostrado mais competente na luta pelo poder, mais determinado e despreocupado com questes legais ou ticas, essa apenas uma parte da explicao para o fracasso do capitalismo de Estado agrrio industrial do qual era Bukhrin o principal terico. Tampouco pode ser explicada a revoluo passiva que redundou no socialismo de Estado pela perfdia de Stalin, ou por qualquer outra interpretao subjetivista.

    O fato que as diiculdades para o estabelecimento da hegemonia operria com mediao do partido desempenharam um papel fundamen-tal. A dinmica que deveria recriar uma classe operria j com grau de qua-liicao, disciplina e conscincia suiciente para se exprimir como dialtica democrtica no partido e no Estado, bloqueando qualquer tendncia remonta burocrtica se mostrou invivel do comeo ao im no desesperado projeto nepista, que Lnin elaborara. Parte essencial da tragdia icou por conta da alternativa que o partido operrio tinha de se manter fechado vida social ou ento se abrir para novas levas sociais, das quais grande maioria faltava qualiicao proissional e conscincia revolucionria, mas buscava melhorar a sua condio de vida.

    5 A REVOLUO RESTAURADORA E O CESARISMO: FASE ECONMICO-CORPORATIVA

    Como explicar o que se sucedeu com o im do capitalismo de Estado agro-industrial? possvel que a categoria de revoluo passiva elaborada por Gramsci nos Cadernos do Crcere possa ser de utilidade. Gramsci elaborou essa categoria inicialmente com o objetivo de explicar

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    a particularidade da revoluo burguesa na Itlia, que teria sido realiza-da pelas prprias classes dominantes reorganizadas diante da presso das classes subalternas e do impacto externo da revoluo francesa. A prpria revoluo francesa, porm, um processo de longa durao, passara por fase de restaurao, jamais completada, pois que no era possvel reverter com-pletamente a obra revolucionria, constituindo assim um momento de re-voluo / restaurao.

    Gramsci, em seguida, procurou interpretar o fascismo como for-ma de revoluo passiva que reorganiza o capitalismo, cujas classes diri-gentes encontravam-se em crise de hegemonia. O impacto da revoluo socialista e a presso das classes subalternas italianas obrigaram as classes dominantes a se reorganizarem sob a forma do fascismo depois de derrota-rem a classe operria. Mesmo sem um evidente impacto externo, Gramsci aventa que tambm o americanismo-fordismo seria uma variante de revo-luo passiva, na medida em que reordena a classe dominante e submete as classes subalternas de forma mais eicaz. Sobre a URSS, Gramsci apresenta apenas alguns possveis indcios de que ocorria tambm ali uma revoluo passiva e uma fase econmico-corporativa, na qual predominava a ditadura sem hegemonia. (GRAMSCI, 1975).

    Pode ser efetivamente til utilizar a categoria de revoluo passiva na explicao da crise do capitalismo de Estado agro-industrial da URSS dos anos 20? A presena do impacto externo do imperialismo reorganizado depois da guerra, particularmente na inovadora forma americanista, era patente em todos os momentos e formas de presso econmica e polti-co-militar. Por sua vez, a classe operria que fez a revoluo foi dizimada, mais do que derrotada, abrindo uma possibilidade para que as foras so-ciais do antigo regime se reorganizaram para redeinir a sua dominao.

    Pelas circunstncias, a revoluo passiva, ao que parece, era inevi-tvel na URSS, a menos que a revoluo socialista internacional ganhasse flego. Mas qual seria o seu produto? A revoluo socialista inviabilizou a via prussiana de desenvolvimento capitalista, mas a guerra civil e a derrota da revoluo socialista internacional diicultaram sobremaneira a criao das condies para a transio socialista e a crise do capitalismo de Estado agro-industrial no deixou outra sada seno a revoluo passiva, j que a classe operria no atingira e nem poderia ter atingido o estgio da hege-

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    monia civil. Mas essa revoluo passiva, at para se constituir como tal, de algum modo deveria aparar o impacto do americanismo fordismo.

    A burguesia industrial surgira na Rssia como criatura do Estado feudal-absolutista e era agora muito residual, enquanto que a burguesia agrria que se formava nos interstcios do capitalismo agro-industrial ti-nha poucas condies de almejar a hegemonia ou o poder estatal, seno aliada com foras imperialistas. Assim, a nica fora capaz de conduzir a revoluo passiva era o Estado poltico, a burocracia feudal-absolutista recomposta e reciclada ao absorver a excrescncia da classe operria ou seja, as instituies burocratizadas da classe.

    Mas de que Estado se tratava enim? Era um Estado operrio que no se concretizava por conta de carncias variadas nas foras produ-tivas, na constituio da classe operria, na sua organizao e cultura, na sua relao com o partido, no prprio partido, enim, um Estado oper-rio sem hegemonia operria? Ou um Estado operrio que convivia com a recomposio paulatina da burocracia feudal-absolutista reciclada, que se entrelaava com o prprio partido operrio, o qual se tornava por sua vez a excrescncia da classe? A crise do capitalismo de Estado agro-industrial foi a oportunidade para a ofensiva burocrtica em toda a linha.

    No poderia, no entanto, tratar-se pura e simplesmente de uma restaurao do poder feudal-absolutista, posto que a nobreza feudal no mais existisse e os latifndios estatais ou de posse feudal no mais existiam. A restaurao deveria passar ento pelo controle do Estado e a partir dessa instncia poltica controlar a vida social, antes de tudo os camponeses. A reduo dos camponeses condies feudais passou pelo extermnio da burguesia agrria e pelo endereamento dos trabalhadores do campo para as fazendas estatais. Ao mesmo tempo em que se implantava a coletiviza-o da terra, tambm foi criado o sistema dos campos de internamento com trabalho forado.

    O controle da classe operria, por sua vez, deveria passar pela imposio da disciplina no processo de trabalho e a transformao do que restava de classe operria (classe para si, com conscincia de classe, com capacidade de hegemonia civil) em massa trabalhadora submetida a uma pardia do taylorismo / fordismo, em grupo social subalterno explorado

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    e oprimido. O planejamento econmico e social seria a frmula pela qual o Estado absolutista recomposto restauraria o seu poder e submeteria as massas trabalhadoras do campo e da cidade. Fica em aberto a questo de tratar-se de uma burocracia que se constituiu como expresso nacional ou apenas como casta.

    A restaurao feudal-absolutista deveria, porm, conter fortes ele-mentos de revoluo, deveria ser uma restaurao progressiva. A revoluo socialista de 1917 no poderia ser ignorada e a abolio da propriedade privada dos grandes meios de produo era irrevogvel, ainda mais por se tratar de um Pas no qual a noo de propriedade privada capitalista nunca fora mais que embrionria no conjunto da vida social. O elemento mais forte de revoluo foi o projeto de revoluo industrial acelerada, com seus desdobramentos de proletarizao e urbanizao. Essa era uma condio para que o Estado russo se mantivesse forte no contexto internacional, pelo menos o suiciente para se defender da muito possvel agresso imperialis-ta. Em 1928 foi contratada a A. Kahn Organization, uma empresa estadu-nidense de engenharia, que capacitou administradores para a incorporao de tecnologia e deinio de processos de trabalho dentro do padro taylo-rista. O elemento de revoluo passiva claro.

    Como a burocracia no contava com uma ideologia prpria e precisou utilizar o partido como instrumento do seu poder, promoveu uma mutao ideolgica, de modo a manter o projeto socialista como ideologia do Estado feudal-absolutista recomposto com nova face. A falta de um projeto prprio adequado ao sculo XX e a necessidade de encontrar fora material e ideolgica para o seu domnio levou a burocracia feudal-abso-lutista reciclada a ser a construtora do socialismo de Estado russo e a assu-mir o marxismo como sua ideologia. Mais que isso, passou a se declarar como guardi do socialismo verdadeiro e do marxismo-leninismo, que veio tambm a ser a nova ideologia imperial, em substituio a da Terceira Roma. Uma ideologia que assimilou ao mesmo tempo aspectos de vulgari-zao, de folclore e de mito. Assim, na URSS apresentou-se a situao que a ausncia de hegemonia operaria e de condies materiais da transio socialista izeram a necessidade de uma fase econmico-corporativa, que acentuou medidas prticas de construo das referidas condies que se

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    colocaram contra a possibilidade da formao terica, da reforma moral e intelectual e de gestao da hegemonia operria (GRAMSCI, 1975).

    Em perspectiva histrica, o socialismo de Estado cria as condi-es materiais para a transio socialista, mas no ele mesmo a transio em processo. O socialismo de Estado pode ser uma fase que precede a tran-sio socialista ou que precede a instaurao do capitalismo, dependendo de que classe encontra condies melhores para dirigir o seu processo de transposio. Mas a transio socialista o avesso do socialismo de Estado na medida em que esvazia o poder poltico e burocrtico, em vez de re-for-lo, que elimina a propriedade privada, em vez de universaliz-la. O socialismo de Estado, contudo, tambm no uma forma ou variante de capitalismo de Estado, no somente porque no conta com proprieda-de privada dos meios de produo e com a presena de uma burguesia privada, mas principalmente porque produto da parcial restaurao do absolutismo-feudal depois de uma revoluo socialista comprimida, no da restaurao de um capitalismo, que era muito frgil.

    O socialismo de Estado, de algum modo, pode ser tambm iden-tiicado como uma forma de via prussiana sem burguesia, na qual a buro-cracia absolutista-feudal o sujeito essencial, composta de diversos estratos sociais arcaicos e incluindo agora setores de origem subalterna. O socialismo de Estado no um Estado burgus sem burguesia com relaes sociais de produo socialistas (como pensava Trotski da URSS staliniana), mas sim um Estado que revoluciona e restaura o absolutismo feudal, um Estado feu-dal-absolutista com relaes de produo que garantem a acumulao pri-mitiva do capital e ao mesmo tempo a criao de bens de capital. A explora-o do trabalho ocorre por meio da poltica de domnio, no por meio das relaes de produo como no capitalismo. Assim, a extrao da mais valia absoluta predomina, mas a industrializao possibilita a mais valia relativa apropriada coletivamente e distribuda hierarquicamente entre categorias e grupos sociais, que no constituem classes propriamente ditas. Assim, com a industrializao se abre a possibilidade de uma ulterior revoluo burguesa, como ocorrida entre 1989 e 1991 na URSS e Europa oriental.

    A implantao da revoluo passiva, nesses termos, necessitava proceder intensa represso social e estimular o corporativismo operrio, a im de inviabilizar de vez a aliana operrio-camponesa, que era a base so-

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    cial do capitalismo de Estado agro-industrial e a fora que deveria alcanar a transio socialista. Ao mesmo tempo era preciso afastar ou neutralizar o grupo poltico que, no partido e no Estado, representava esse projeto e substitu-lo por outro, que passasse a subordinar todas as instncias sociais e institucionais autnomas frente ao poder poltico administrativo, parti-cularmente dos operrios fabris.

    O extermnio da burguesia agrria (kulacs) estava j em anda-mento quando o grupo de Bukhrin, dividido e enfraquecido, foi afastado das instncias mais decisivas do poder, que teve no fortalecimento do pro-jeto do plano econmico o desdobramento imediato. A caracterstica do plano era raciocinar em termos de metas a serem cumpridas administrati-vamente e no partir dos recursos existentes.

    A ecloso da gravssima crise capitalista, em 1929, ofereceu novos argumentos ao grupo de Stalin, que defendia a inevitabilidade da crise ca-pitalista e do ataque imperialista contra a URSS. A prpria Internacional Comunista foi submetida aos ditames da ditadura poltica instaurada na URSS no decorrer de 1929, com os partidos sofrendo intervenes di-retas a im de serem afastados dirigentes ainados com a orientao de Bukhrin. Para justiicar internamente a verdadeira guerra desencadeada contra o campesinato na URSS, a IC foi imposta uma poltica de ofensiva direta contra o capital, deinida de classe contra classe e que percebia na social-democracia o inimigo principal, por ser essa vertente do movimento operrio geradora de iluses que bloqueavam a via revolucionria. Essa poltica contribuiu para a vitria da ditadura do capital com forma fascista, mais do que para a revoluo socialista.

    6 O SOCIALISMO DE ESTADO

    Marx e Engels j destacavam como a critica da nobreza feudal ao capitalismo e a burguesia gerou uma sorte de socialismo feudal. A concep-o de socialismo de Estado apareceu com Robert Owen na Gr-Bretanha e depois com Louis Blanc na Frana, mas forjou-se de maneira efetiva na Alemanha, com Ferdinand Lassalle, e estava nucleada na ideia de uma aliana entre a classe operria e o Estado, na qual os trabalhadores ofere-ceriam respaldo aos interesses estatais nacionais (burocrtico-feudais) em

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    troca de direitos polticos e sociais. Essa viso alimentou depois o refor-mismo social-democrata, em outro patamar, no qual se colocou a viso de um capitalismo de Estado avanado que transitasse para o socialismo de Estado, na medida em que a classe operria assumisse o poder. Nessa pers-pectiva, na qual desponta o nome de Rudolf Hilferding, a classe operria no aparece como fora antagnica ao capital, mas como agente / objeto de reformas deinidas por um Estado destitudo de sua natureza de classe, que generalizaria os direitos, assim que os monoplios e os meios de inan-ciamento fossem estatizados.

    Na URSS o socialismo de Estado surgiu como forma especi-ca de revoluo passiva do Oriente, subproduto do fracasso de diferentes projetos: da via prussiana de desenvolvimento capitalista, desencadeada aps 1905 e inviabilizada pela crise global do bloco histrico do Ocidente a partir de 1914; da revoluo popular socialista de 1917-1921, que ao icar limitada a territrios do antigo Estado feudal-absolutista russo, re-produziu a dualidade Ocidente/Oriente; da construo de um capitalismo monopolista de Estado sob direo do partido comunista. A sobreposio desses sucessivos fracassos, com o impacto da retomada da crise do bloco histrico do Ocidente no inal da dcada de 20, ofereceu as condies para que se desencadeasse a revoluo/restaurao no Oriente-russo. Sob o in-vlucro marxista, possvel que estivesse presente na ideologia socialista da burocracia absolutista reciclada uma variante da cultura narodinik, que previa uma aliana do povo / nao com o czar para a garantia do acesso a terra e ao trabalho.

    A vitria do grupo staliniano na luta interna do partido implicou a eliminao tanto da burguesia agrria quanto do pequeno campesinato comunal, promovendo a abolio das relaes mercantis e concentrando fora de trabalho em fazendas coletivas e estatais. Assim, sob o nome de co-letivizao da terra houve a restaurao da servido de Estado, semelhante a existente na poca czarista, a im de preparar a mecanizao da produo agrcola e criar excedente a ser desviado para as zonas urbano-industriais. Essa soluo guarda analogias tambm com uma forma social oriental que jamais existira na Rssia, onde a comunidade agrria mantinha uma rela-o direta com o Estado (DEL ROIO, 2008).

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    De todo modo, o resultado foi o sepultamento da j cambaleante aliana operrio-camponesa, pois os camponeses vislumbravam na entusias-mada organizao da juventude comunista que se dirigia ao campo para rea-lizar o socialismo, o reviver dos antigos burocratas cobradores de impostos do Estado feudal-absolutista. Para os camponeses era uma guerra da cidade contra o campo, a qual durou todo o perodo de realizao do plano de 1928 a 1933. Nesse perodo se cumpriu a chamada coletivizao do campo, ao custo da desorganizao da produo e de milhes de mortes.

    O projeto de industrializao acelerada concentrava e ampliava o nmero de operrios fabris em grandes empreendimentos, ao mesmo tempo em que lhes retirava qualquer resqucio de autonomia e poder no processo produtivo e no Estado. O crescimento da classe operria foi ver-tiginoso, mas no de uma classe operria dirigente de um Estado operrio. Pelo contrrio, tratava-se de uma massa de trabalhadores fabris espoliados pelos mtodos da mais-valia absoluta. As instncias do Estado operrio transformaram-se em correias de transmisso da dominao da burocracia socialista, forma reciclada da burocracia feudal-absolutista. Soviet, sindi-cato, clula partidria, tudo foi transformado em instncia administrativa do Estado-plano, conigurando o que Gramsci entendia ser uma fase eco-nmico-corporativa do Estado na qual no h hegemonia e nem loresci-mento cultural.

    A direo nica de fbrica, implantada desde 1918 por Lnin, permaneceu pelo perodo da NEP, mas seu poder era limitado pela asses-soria tcnica qualiicada e principalmente pela clula do partido e pelo sindicato. A partir de 1929 a clula e o sindicato j estavam integrados na administrao e responsabilizados pela produo, deixando ento de exercer o controle poltico da direo fabril e de promotor da democracia industrial, invertendo o seu papel e passando a ser agente de controle dos trabalhadores e no mais dos diretores. A nova funo do sindicato era a de controlar a disciplina do trabalho e estimular a produo, tendo sido, em 1935, abolida at mesmo a contratao coletiva. A monocracia na fbrica, porm, estava j consolidada quando passou s mos do diretor o poder de demitir e punir por meio do controle da alimentao e habitao dos trabalhadores -- aqueles que se desviassem da disciplina fabril, cujas faltas

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    foram identiicadas sabotagem e includas no cdigo penal, poderiam ser enviados aos campos de trabalho forado (LEWIN, 1985).

    O poder poltico dos administradores ligados ao partido, com derivados benefcios econmicos, e o crescimento de uma camada social de funcionrios intermedirios pouco capacitados -- mas que controlavam o cotidiano fabril -- desenhou o novo proletariado, forjado em parte com foragidos da coletivizao, como estrato inferior da vida social urbana. O partido deixou assim de ser o partido da classe operria na transio socia-lista para ser excrescncia da classe na organizao do socialismo de Estado e do neo-absolutismo.

    Os intelectuais tcnicos e culturais no comunistas que vinham prestando servio ao Estado sovitico, foram vtimas da represso e dos primeiros a serem internados em campos de trabalho forado j a partir de 1931, o que implicou o rebaixamento do padro tcnico da produo, obrigada a incorporar os prticos, que assim ascendiam socialmente. Mas o fato que esses campos de trabalho forado, povoados por seres sociais ideologicamente inferiorizados por hipoteticamente resistir instaurao da nova ordem, tiveram um papel econmico de monta na produo do excedente a ser investido na indstria e no sustento da burocracia estatal (CHLEVNJUK, 2006).

    A submisso da classe operria e do campesinato ocorreu a partir do momento que as suas instncias de organizao e representao o soviet e o sindicato -- foram transformadas em instncias de sua opres-so. Na verdade, classe operria e campesinato deixavam de existir en-quanto tais para que surgisse uma enorme massa de trabalhadores sub-metidos ao Estado poltico. Restava apenas a ilusria esperana de que a luta interna no partido pudesse levar a uma nova mudana de situao (AVTORCHANOV, 1980).

    A autonomia relativa entre Estado, partido e sindicato que subsistia no perodo da NEP, extinguiu-se no socialismo de Estado, quando prevale-ceu a tendncia fuso num nico poder poltico-administrativo. Na medi-da em que se restringia o debate poltico, o poder decisrio se concentrava no vrtice do partido ao mesmo tempo em que esse crescia e se consolidava entre os trabalhadores. Esse paradoxo aparente se deslinda a partir do momento

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    que se observa que o partido deixara de ser instrumento do poder poltico da classe operria para ser instrumento de controle, disciplinamento e educao do mundo do trabalho, tendo em vista a acumulao primitivo-socialista do capital. O socialismo de Estado promove a completa estatizao de uma sociedade civil construda segundo seus desgnios, onde partido, sindicato, soviet, escola, imprensa, etc., sob o controle onisciente da polcia poltica, encontram-se ligados ao mundo da produo, com o objetivo manifesto de convergir para o ideal do Estado-plano, como nico propulsor da acumula-o e gestor das coisas e dos homens.

    Surgido no contexto da guerra dos trinta anos do sculo XX, o so-cialismo de Estado uma ordem social militarizada que exige uma signii-cativa fora armada e uma poltica externa ativa, combinando diplomacia, espionagem e a IC. A camada burocrtica que se formou da revoluo / restaurao feudal absolutista composta por interesses conlitantes origi-nados da crescente desigualdade e da sedimentao de grupos proissionais e sociais com prestgio e renda diferenciados, interseccionados com a orga-nizao partidria. Compunha-se de administradores, engenheiros, ide-logos, militares, polticos que submetiam a massa trabalhadora. Dividia-se, de modo geral, entre aqueles que privilegiam a tcnica do poder e do plano e os que se preocupam com a questo do consenso, tendo em vista o risco de desagregao da ordem social e estatal.

    Uma depurao do partido decidida pelo grupo de Stalin no Comit Poltico partidrio, sem consulta a qualquer outra instncia, ainda em 1933, restringiu a ao da massa partidria, colocada toda em suspeita. Mesmo assim, no congresso do partido comunista de 1934, o de nmero XVII, Stalin precisou chamar ateno contra os perigos que rondavam a revoluo passiva em execuo.

    Com o discreto suporte dos velhos bolcheviques a essa segunda tendncia, preocupados com os riscos da desagregao social, conseguiu-se uma situao de compromisso, entre 1934 e 1936, que implicou a suspen-so da guerra anticamponesa e da presso poltica policial sobre os traba-lhadores fabris. A IC, por sua vez, adquiriu uma temporria autonomia, pressionada pela gravidade da ofensiva fascista, que permitiu a retomada da poltica de frente nica sob a forma de frentes populares, contemplando ao mesmo tempo o interesse sovitico de aproximao com a Frana. A

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    ascenso do nazismo passava a preocupar a burocracia socialista e a recom-posio do consenso interno ganhava importncia.

    Durante esse perodo o nmero de inscritos no partido foi dimi-nuindo devido depurao, e visto que nem a eiccia produtiva nem o consenso social aumentavam, entre os anos 1937 e 1938, foi desencadeada impiedosa represso contra o prprio partido, com conduo da polcia poltica, atingindo todas as instncias diretivas e as foras armadas. A dire-o do partido bolchevique foi praticamente eliminada. A rigor tratava-se agora de um acerto de contas no interior do prprio Estado, j que as classes subalternas estavam em situao de incontestvel subordinao eco-nmica e poltica. A partir de ento, eliminado o antigo grupo dirigente bolchevique, um novo partido comeou a ser construdo com aqueles que participaram na guerra anticamponesa e da corrida pela produo indus-trial, em geral arrivistas sociais, entre os quais se contavam grande nmero de funcionrios e pequenos intelectuais, cuja cultura prtica tendia a re-produzir aquela da burocracia feudal-absolutista.

    Era esse um partido feito imagem de Stalin, que encarnava, de acordo com o papel a ser desempenhado, Ivan IV (o consolidador da tercei-ra Roma), Pedro I (o modernizador do Estado e da economia) ou Lnin (o revolucionrio internacionalista), e acreditava estar conduzindo a Histria e a construo do homem novo, na medida em que procedia a ediicao socialista, tendo o marxismo-leninismo como guia infalvel. Uma impla-cvel ditadura deveria ser imposta queles que se opunham a esse projeto de dimenso universal, que tinha na URSS apenas seu marco inicial. O traba-lhador absentesta, o reivindicador de melhores condies de vida e trabalho, o opositor poltico-ideolgico, eram todos tratados como sabotadores e traidores da grande obra fastica em andamento, manietados por contrar-revolucionrios de diversos matizes, entre os quais tinha particular destaque os trotskistas, associados ao imperialismo.

    Mas era tambm inaceitvel que se formasse um grupo de gran-des senhores feudais na economia e na poltica e para que isso no viesse a ocorrer a ateno do czar Stalin e da polcia poltica era contnua, a colocar sob tenso permanente a prpria burocracia do novo regime feu-dal-absolutista composto ao modo do socialismo de Estado. No era con-veniente recair nos erros de Ivan IV, que, na fase histrica da Rssia de ins

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    do sculo XVI e comeo do sculo XVII, no coagiu suicientemente os feudatrios boiardos e permitiu a invaso polaco-sueca e a posterior insu-bordinao dos camponeses.

    Esse socialismo de Estado constituiu uma forma de revoluo passiva especica do Oriente, por pretender no a ocidentalizao subal-terna, mas por indicar no socialismo de Estado uma via da modernidade que resgata aspectos do feudalismo oriental e promove a acumulao de capital de forma anticapitalista, sob um regime cesarista. Nessa forma de revoluo passiva, a sociedade civil criatura de um Estado que impede o desdobramento das dimenses pblicas e privada da vida social, como na modernidade capitalista do Ocidente, pois que se constitui em lcus de generalizao da propriedade privada coletiva, realizando aquilo que Marx chamava de comunismo tosco (MARX, 2004). O Estado no se con-igura como poder pblico da coletividade, mas como poder poltico da camada burocrtica, cuja ideologia recusa a propriedade privada individual e bloqueia a emergncia de uma sociedade civil autnoma, que poderia dar origem tanto a interesses individuais privados como a uma esfera pblica efetivamente socialista.

    O Estado, enquanto poder poltico burocrtico que cria e se sobre-pe sociedade civil, elemento propulsor da acumulao no capitalista do capital e de distribuio da riqueza social, gerindo assim a desigualdade e as relaes entre grupos sociais. Esse Estado feudal-absolutista revolucionaria-mente restaurado no socialismo estatal aloca e reduz a fora de trabalho ao regime de salrio, enquanto que o exercito industrial de reserva conduzido ao trabalho forado nos campos de reeducao, num moderno resgate da servido feudal de Estado. O produtivismo -- gerador de coisas que movi-mentam essa ordem -- nega a personalidade do homem e expressa a universa-lizao da apropriao privada da riqueza social. Assim que o socialismo de Estado generaliza a propriedade privada como forma especica de imposio do trabalho perptuo que distingue a modernidade capitalista, airmando a alienao em vez de promover a emancipao humana.

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    7 A EXPANSO DO SOCIALISMO DE ESTADO

    A ltima fase da guerra dos trinta anos do sculo XX, de 1941 a 1945, colocou em confronto aberto trs formas de revoluo passiva e seus subjacentes projetos de imprio universal: o americanismo liberal, o fascis-mo e o socialismo de Estado. Nessa disputa triangular o Ocidente liberal anglo-americano aliou-se ao Oriente feudal-socialista porque se tratava de decidir, prioritariamente, contra a aliana nipo-germnica, a sobrevivncia do ncleo original do Ocidente e o controle do Oriente asitico. A derrota da aliana fascista, em 1945, impossibilitou a consolidao do corporati-vismo estatal como forma de revoluo passiva, mas reabriu a possibilidade da conigurao de alternativas nacional-populares, particularmente na re-gio do Oriente europeu, ento dominada por blocos agrrios e anexada ao imprio alemo. A convergente ao do exrcito sovitico em progresso, com a insurgncia popular armada, a partir de ins de 1944, criou condi-es para a realizao de revolues nacional-populares, tendo a aliana operrio-camponesa como fora motriz.

    Embora numa enorme diversidade de situaes, Albnia, Iugoslvia, Bulgria, Romnia, Hungria, Checoslovquia e Polnia empre-enderam a institucionalizao de repblicas democrticas. Tratava-se, rea-lizada uma radical reforma agrria, de desenvolver um capitalismo mono-polista estatal a partir de um planejamento central socialmente controlado, com bancos e setor de bens de capital estatizados e voltados para o forta-lecimento do mercado interno, alm de investimentos na mecanizao do campo e na formao de cooperativas agrcolas. Parecia enim se realizar a ditadura democrtica, teoricamente formulada por Lukcs e outros, e ago-ra rebatizada por Dimitrov com o nome de democracia popular.

    Esses novos regimes eram dirigidos por frentes nacional-popu-lares pluripartidrias (com exceo de Albnia e Iugoslvia) de amplitude varivel, que eram legitimadas pela presena de oposies liberal-conser-vadoras. O contedo econmico poltico desses Estados dependia do peso da burguesia industrial, da atitude tomada diante da ocupao nazista e de sua ascendncia sobre o campesinato, assim como da capacidade da classe operria e seus partidos estabelecerem uma aliana estvel com o campesi-nato e camadas mdias urbanas. Nessa forma poltica, atravs da elevao cultural e da ativao poltica das classes subalternas a hegemonia estaria

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    em disputa com as burguesias no prprio processo de construo da so-ciedade civil, quando poderia se colocar o problema da transio socialista (FEITJO, 1977).

    Essa constelao de democracias populares, instauradas no Oriente europeu ameaava tambm o socialismo de Estado russo como forma especica de revoluo passiva do Oriente e restaurao feudal-ab-solutista, mas foram os EUA os primeiros a se darem conta do perigo que representava para o seu projeto de reconstruo do imprio universal do Ocidente a partir do americanismo, pois que poderiam se difundir para o Ocidente, particularmente para a Itlia. Enquanto a URSS mantinha-se na expectativa de ajuda econmica, os EUA decidiram-se por romper, em 1947, em todos os nveis, a aliana antifascista, forando a deinio de partidos americanos. A sada da esquerda social-democrata e comunista dos governos de coalizo da Frana e Itlia, dos trabalhistas do governo ingls, a formao da RFA (Alemanha ocidental) e a interveno na guerra civil grega, deiniram os contedos e contornos do imprio do Ocidente. A OTAN e o rosrio de bases militares americanas espalhadas por todo o mundo constituram a nova fora militar imperial.

    A URSS, que sara exaurida da guerra dos trinta anos (1914-1945), aguardava ajuda e investimentos do Ocidente na obra de recons-truo, enquanto que o prestgio angariado na vitria permitia o forta-lecimento internacional dos comunistas e a maturao de alternativas nacional-populares aliadas. A deciso americana de fechar as fronteiras do imprio ocidental e provocar o recuo ou at mesmo o estrangulamento da URSS, assim como a mobilizao social implcita aos novos regimes democrticos, obrigou tambm a deinio das fronteiras do imprio do Oriente, que estavam, alis, pressupostas desde a conferncia de Ialta, em 1943. O esforo de reconstruo no isolamento e com ameaa de ataque nuclear, reproduziu as condies sociais presentes nos anos 30 que permi-tiram a superexplorao da fora de trabalho nas fbricas e nos campos de concentrao.

    Entre 1947 e 1949, em simetria com a recomposio imperial do Ocidente, o socialismo de Estado, como forma especica de revoluo passiva, expandiu-se pela Europa oriental, sobrepondo-se a alternativa na-cional-popular. A primeira medida foi a formao do Comit Informativo

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    Comunista (Kominform) no segundo semestre de 1947, que agregava os partidos comunistas no poder na Europa oriental (com exceo da Albnia) mais o PCI e PCF. Passou-se, em seguida, dissoluo das frentes popula-res, fuso forada de social-democratas e comunistas e perseguio da oposio liberal. Os ensaios de formao de federaes entre democracias populares (Bulgria / Iugoslvia / Albnia e Checoslovquia / Polnia) fo-ram acintosamente obstrudos por Stalin, exatamente por contrariar a lgi-ca do Imprio. A Iugoslvia, que havia realizado uma revoluo baseada na aliana operrio-camponesa, conduzida pelo partido comunista, recusou a homologao ao imprio do Oriente e rompeu com a URSS.

    Utilizando as divergncias polticas nos partidos que compu-nham o Kominforn, o partido comunista da URSS imps seus pontos de vista, tachando de titostas os defensores da autonomia das democracias populares. A ruptura com a Iugoslvia e a formao da RDA (Alemanha oriental) em 1949, deiniu as fronteiras europeias do imprio do Oriente e do socialismo de Estado. No entanto, a poltica imperial da URSS, at por no ser capitalista, no pode ser considerada imperialista em sentido estrito, do modo formulado por Lnin. A sua poltica imperial tem relao, tambm aqui, com as caractersticas expansivas pr-capitalistas do antigo Imprio russo feudal-absolutista.

    A radicalizao da alternativa nacional-popular na Checoslovquia, o mais ocidentalizado desses pases, em fevereiro de 1948, quando a classe operria ocupou as fbricas e as ruas com apoio discreto do aparato poli-cial, viu-se sufocada nesse processo. Do mesmo modo que nas outras de-mocracias populares, onde a presena dos comunistas era mais dbil, j no primeiro semestre de 1948 o partido comunista ganhou foros de partido do Estado. Com toda oposio perseguida, abriu-se rota para a represso de massa, a estatizao da sociedade civil e da economia e a conformao de uma burocracia estatal socialista que implantou uma poltica de coleti-vizao forada da terra e de industrializao acelerada, com a consequente superexplorao da fora de trabalho.

    A ampla base social camponesa e pr-capitalista explica o poder poltico burocrtico do socialismo de Estado, isso porque o campesina-to pobre tem diiculdades em se organizar e gerar intelectuais prprios e tambm porque o absolutismo feudal tende a se recompor como neoabso-

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    lutismo. Certo que cada um dos Estados feudal-socialistas que se formou tem a sua particularidade, mas vale destacar o caso alemo oriental, onde extirpada a burguesia, pode se forjar a aliana entre o Estado prussiano e a classe operria, seguindo a tradio que vinha de Lassalle. Do mesmo modo vale o destaque da Checoslovquia, onde socialismo de Estado me-nos apresentou aspectos progressivos, por conta da longa trajetria de luta operria e nacional e da anterior experincia democrtico burguesa.

    A vitria da revoluo nacional-popular chinesa, tambm em 1949, resultado da atuao bem sucedida da poltica de frente nica e da aliana operrio-camponesa, permitiu que se ampliasse a representao ideolgica de um compacto e uniforme campo socialista. No entanto, por suas prprias dimenses geo-demogricas e tradio histrico-cul-tural, a China preservou sua autonomia em relao a URSS, alternando momentos de colaborao e de frico. A URSS apoiou poltica e mili-tarmente os chamados movimentos de libertao nacional, sempre que se mostrassem hostis ao imprio do Ocidente, cuja presso poltica facilitava aquela aliana em nome do antiimperialismo.

    Com a morte de Stalin, em 1953, abriu-se um conlito institucio-nal que visava fazer o partido retomar o controle do Estado submetido ao poder policial. A sedimentao de interesses sociais setoriais obrigou um rearranjo do poder burocrtico a im de estabelecer prioridades scio-eco-nmicas e relegitimar o papel dirigente do partido, ampliando o consenso social. A denncia da obra de Stlin no XX congresso do PCUS (1956) consolidou no poder a burocracia gerada na esteira do extermnio do ve-lho partido bolchevique, em 1937-1938. Essa burocracia estatal, imbu-da de uma ideologia socialista, dita marxista-leninista, conseguiu impor sua hegemonia numa sociedade civil estatizada, restringindo os campos de trabalho, apresentando solues econmicas e promovendo o crescimento cultural e cientico. J em 1955 foram lanadas as sementes de um merca-do oriental, com a criao de um Conselho Econmico de Ajuda Mtua (Comecon) e foi assinado o acordo militar de Varsvia, claros indcios de que se pretendia a reorganizao do imprio em bases consensuais, bus-cando-se a reaproximao com a Iugoslvia e dissolvendo-se o inoperante Kominform.

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    O que poderia parecer a retomada da democratizao socialista, ensejada pelo regime de democracia popular, foi na verdade a consolida-o do socialismo de Estado com hegemonia da camada burocrtica, que, alm de interesses gerais do Estado, defende interesses materiais especi-cos, condicionados pela ideologia socialista, que limita a apropriao pri-vada e a transferncia por herana da riqueza. Em pases nos quais a fora poltica original dos comunistas era dbil, como na Polnia e Hungria, a reestruturao foi mais difcil, dando margem a forte movimentao po-pular anti-regime, que culminou na insurreio de Budapest, provocando a interveno militar das foras imperiais. Na Albnia e na Romnia, por motivos opostos, a reestruturao foi imperceptvel: num caso, pela susten-tao popular original do regime e, no segundo, pelo limitado consenso, que exigiu a continuidade da coero e o progressivo deslocamento do poder para temas nacionalistas como esforo de legitimao.

    Sustentada por uma massa de trabalhadores e de funcionrios re-lativamente privilegiados, nos anos 60 a economia de grandes empresas estatais atingiu seu apogeu na URSS na funo de acumulao no-ca-pitalista de capital. Ao mesmo tempo, relaes mercantis, vivendo numa zona de sombra da legalidade, foravam passagem entre os estratos in-termedirios da burocracia do partido-Estado. O trabalho servil, embora diminuindo de intensidade, continuou existindo, j que contribua para a acumulao da riqueza social desigualmente distribuda. A passagem do poder de Kruschev para Breshenev (1965) foi expresso de um conlito poltico no interior da camada burocrtica, emerso com o temor da perda do monoplio do poder pelo partido, ensejado pela poltica do primeiro de fortalecer a autonomia de setores ligados agricultura, em troca do que se passou novamente a priorizar a indstria pesada e seu uso militar (VOSLENSKI, 1980).

    A relativa ampliao das relaes sociais e poltico-culturais deu margem retomada de uma autnoma dialtica democrtica na Checoslovquia, que culminou na primavera de Praga de 1968, mas a ameaa velada de ruptura no interior do imprio, num momento de es-calada americana no Vietn, provocou a interveno militar do Pacto de Varsvia e a eliminao do intento de democratizao socialista. De outra parte, a China encaminhava-se, com a chamada revoluo cultural, para

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    uma variante autnoma de socialismo de Estado, que precisou tambm fazer uso da represso massiva e de campos de trabalho forado, ainda que a mobilizao popular tenha sido bastante intensa.

    Esse foi o desdobramento e o resultado do fracasso do arranque econmico intentado em ins dos anos 50 e que havia resultado na morte por fome de milhes de pessoas. O embate entre a via do socialismo de Estado, que resgatava aspectos da forma oriental antiga, e a via do capita-lismo de Estado se concluiu na China somente em ins dos anos 70 com a vitria da via capitalista no partido e no Estado. A via do capitalismo de Estado na China, no entanto, parece ser produto de uma aliana entre a burocracia feudal reciclada e uma burguesia emergente, ainda que, junto com o rpido crescimento econmico, ocorra uma proletarizao em mas-sa do campesinato e a criao das condies materiais da transio socialis-ta, mas no, por ora, da hegemonia operria, que era, por sua vez, o intento declarado da revoluo cultural.

    8 A CRISE DO SOCIALISMO DE ESTADO E A NECESSIDADE DA TRANSIO SOCIALISTA

    Em ins dos anos 70 a crise de hegemonia da camada burocr-tica socialista, cuja origem, na URSS, fora o ressurgimento da burocracia feudal-absolutista, articulada com a excrescncia da classe operria, era ir-reversvel. Iniciada pela periferia, onde era mais frgil e mais recente, a crise manifestou-se com o surgimento de uma sociedade civil autnoma respaldada na economia mercantil e por instituies sociais tradicionais, com destaque para a Igreja catlica. A economia socialista estatal, incapaz de incorporar produtividade ao trabalho social, passou a investir mais que nunca na tecnologia militar de ponta, realando a militarizao do imprio e sua expanso, manifesta na frica e no Afeganisto. Ao mesmo tempo se reativavam os campos de trabalho servil, lotados com loucos, bbados e dissidentes, a im de tentar suprir a carncia de valores de uso e de consenso social.

    A acumulao originria do capital privado no ncleo original do Ocidente abriu espaos institucionais no Estado absolutista, compondo-se com a nobreza feudal. Mas no Estado feudal-socialista do Oriente, por sua

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