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A LÍRICA CONTEMPORÂNEA NA SUA CONDIÇÃO EX-CÊNTRICA ESTUDO SOBRE A OBRA MUSICAL DE JOÃO BOSCO MARIA APARECIDA MUCCI BRANDÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO UFJF 1996

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A LÍRICA CONTEMPORÂNEA NA SUA CONDIÇÃO EX-CÊNTRICA

ESTUDO SOBRE A OBRA MUSICAL DE JOÃO BOSCO

MARIA APARECIDA MUCCI BRANDÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

UFJF 1996

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A LÍRICA CONTEMPORÂNEA NA SUA CONDIÇÃO EX-CENTRICA ESTUDO SOBRE A OBRA MUSICAL DE JOÃO BOSCO

Por

MARIA APARECIDA MUCCI BRANDÃO Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação do Mestrado em Letras (área de concentração):Teoria da (Literatura), da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Orientadora acadêmica: Professora Doutora Nancy Campi de Castro.

Para Daniel e Lilá, meus pais. Para José Flávio, Daniel, Flávio e Luisa, companheiros de sempre. Para João Bosco, assim,sem mais.

Agradeço aos Professores Doutores do Curso de Mestrado em Letras, da Universidade Federal de Juiz de Fora que, por sua disponibilidade e determinação, Asseguram a continuidade desse importante espaço de formação acadêmica. Agradeço particularmente à Professora Doutora Nancy Campi de Castro, por sua indiscutível competência, como orientadora, na condução dessa dissertação, assegurando sua realização. Agradeço também à Professora Doutora Maria de Lourdes Abreu de Oliveira, pela sensibilidade estética e afetiva. Agradeço ainda à Professora Doutora Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro, por nortear-me as primeiras idéias, agora desenvolvidas nessa dissertação.

SINOPSE A evolução da lírica enquanto gênero literário e sua configuração contemporânea.Sujeito da enunciação: Condição auto-reflexiva.O processo interdiscursivo e intertextual da Poética contemporânea. João Bosco: prática e síntese de tal poética.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1. A CONTRUÇÂO DA LÍRICA: UMA VISÃO DIACRÔNICA 1.1 A lírica contemporânea. 1.2 Obra aberta e estética da recepção 1.3 Fenomenologia e sistemas de estratos da obra, literária. 2. PROCEDIMENTOS DA POÉTICA CONTEMPORÂNEA 2.1 O sujeito da enunciação 2.2 O processo intertextual Intertextualidade e paródia 3. O SENTIDO DO SOM: A LÍRICA NA OBRA DE JOÃO BOSCO 3.1 Música e interdiscursividade 3.2 O discurso da crítica 3.3 A prática da lírica 4. CONCLUSÃO 5. BIBLIOGRAFIA 6. NOTAS

... quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras»de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma .Amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Ítalo Calvino * O que diferencia João Bosco de picaretas pós- modernos é que ele recorre à tradição não para fazer colagens pseudo-inovadoras, mas para reinventá -las, incorporando-as ao seu estilo e colocando novas idéias em circulação.

João Gabriel de Lima ** Dá licença meu senhor.

João Bosco ***

INTRODUÇÃO Uma abordagem da poética contemporânea (compreendida, aqui, como o projeto de obra que o artista se propõe realizar, no século XX), que se faça a partir de uma perspectiva histórica, deve refletir a relação do homem com o mundo - de indagação, contestação - que se projeta na intencionalidade explicita da relação auto-r e texto- fruidor, em seu caráter de ambigüidade e pluralidade de significados, direcionando tal poética para sua condição auto-reflexiva e excêntrica (não paradigmática), em que se rompe a barreira da obviedade, provocando o estranhamento que nos leva a intervir, como leitores, num processo de continua descoberta da expressão poética contemporânea. Para alcançar sua proposta estética, torna-se relevante uma visão diacrônica das poéticas, configurada no estudo da evolução dos gêneros literários, que assumem ora uma perspectiva a - histórica (em seu valor absoluto e sua condição de modelo temático - formal), ora uma perspectiva histórica, em seu caráter evolutivo e diferenciado, levando em conta o processo criador. Assim, traçou-se um perfil dos períodos estéticos e de crítica literária: uma breve história das poéticas, em suas diferentes visões de mundo e as conseqüentes transformações das manifestações literárias como resultantes da dinâmica do sistema literário em conexão com a dinâmica cultural. -Isso porque, nessa perspectiva histórica, o código de cada gênero literário pode ser mutável, especialmente pela inserção da originalidade e transgressão das suas regras e convenções. As digressões histórico-culturais das poéticas,quanto aos gêneros, passam pela perspectiva temporal da poética de Platão (em sua configuração triádica), pela concepção de imitação (mimese) e deleite (catarse) da poética aristotélica, até alcançar um momento novo na estética romântica, pela rejeição da regra da unidade de tom e da concepção mimética da arte, e pela retomada original da divisão triádica das dimensões de tempo (passado - épico, presente-lirico e futuro-dramático), configurando uma nova caracterização, mais efetiva, da lírica. Chegamos à poética contemporânea, especificada na sua expressão lírica, a partir de suas referências intrínsecas e perspectiva histórica. Os elementos estruturais do gênero lírico, de que dá conta, numa visão contemporânea, o critico Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da poética, partem da contaminação emocional da linguagem poética, do eu que se volta para si mesmo: dai a unidade entre o tom lírico e a significação das palavras, a inclinação melódica do poema - pela ordenação sonora dos vocábulos (métrica, rima) -, a diversidade de ritmos que representam a disposição anímica do eu lírico e sua existência na recordação, na brevidade de seu clima afetivo. Como parte das estruturas implícitas da lírica contemporânea, revelam- se os sistemas de estratos: o estrato fônico, rítmico, das unidades de sentido, numa perspectiva fenomenológica, em que se percebe o caráter descritivo desses elementos na reciprocidade de suas relações, desveladas pela evidenciação do objeto estético, a partir dos sistemas de estratos, como o faz Maria Luiza Ramos, em Fenomenologia da obra literária. A poética contemporânea pode ser repensada a partir de teorias criticas que ampliem os guestionamentos na percepção do objeto estético, como a análise conceituai de obra aberta, a partir do livro homônimo do escritor e critico Umberto Eco, para quem o sentido de obra aberta é inerente à produção estética - e até independe da intencionalidade do escritor -,

embora explicitada a partir do Simbolismo e sua poética da sugestão. A estética da recepção, relacionada ao sentido de obra aberta e discutida pêlos formalistas russos, considera o prazer estético e suas condições de experiência como ato de recepção e interpretação, enfatizando a intencionalidade do próprio autor. Dá-se então, na lírica contemporânea, a transgressão do discurso literário previsível, que evita a convencional disposição anímica propõe uma estrutura fragmentada, de caos aparente, como atesta o critico Hugo Friedrich, em Estrutura da lírica moderna. As teorias da intertextualidade representam um momento especial e fecundo na abordagem critica da poética contemporânea. Partindo da terminologia de Júlia Kristeva,o estudo do intertexto ganha com Gérard Genette maior especificidade, enquanto Laurent Jenny percebe sua presença como condição inerente à produção de arte, embora reconheça sua presença efetiva e intencional no nosso tempo. Essa questão da tradição em seu diálogo com o novo, discutida por T.S.Eliot, em "Tradição e talento individual", ganha nova dimensão com a análise de Linda Hutcheon sobre as manifestações estéticas contemporâneas, em sua concepção histórica, teórica e ficcional - particularizadas no que ela denomina metaficçào historiográfica - na obra Poética do pós-modernismo, evidenciando-se sua postura auto- reflexiva e paradoxal: questiona, contesta e desafia a cultura, a partir de seu interior. Para tanto, a autora parte do sentido da deslegitimação da estética - a perda da condição aurática, original, da obra de arte - e do saber - à noção de paradigma sobrepõem-se a flexibilidade e multiplicidade dos critérios de desempenho.Em conseqüência, muda de foco também o sujeito da enunciação:altera-se a relação autor-autoridade e toma-se a entidade enunciativa na sua intencionalidade e na relação de produção e contexto, inferidas pelo leitor-fruidor. O processo interdiscursivo e intertextual da poética contemporânea é discutido por Linda Hutcheon em Uma teoria da paródia, a partir não só da literatura, como da música e arquitetura, entre outras manifestações estéticas. Tal processo pressupõe o conhecimento da multiplicidade, da rede de conexões, especificadas na paródia, evidenciando-se sua condição paradoxal e auto-reflexiva, a partir da natureza e função de suas manifestações na poética contemporânea. Assim, busca-se revisar as teorias do intertexto, em especial a paródia, como um processo estético de percepção, interpretação e produção de obras de arte, com implicações culturais e ideológicas, que permeiam toda arte do nosso século, trazendo uma experiência de análise da auto-reflexividade no conjunto possível da interdiscursividade. Nesse momento, a paródia tem suas formas alargadas por sua condição paradoxal, de retomada da tradição, porém com distância critica, e pode-se percebê-la, confrontando-a com outros processos de intertextualidade. Assim, também a lírica contemporânea, na sua condição excêntrica (não paradigmática) propõe outro sentido para as relações de autor-autoridade, texto-leitor e as próprias relações intertextuais. A partir das possibilidades interdiscursivas, a música, como outras formas de arte, tem participado do processo de auto-reflexividade (esse virar-se para dentro), numa postura autolegitimadora, refletindo sobre sua constituição. A intenção paródica musical tem, em Hutcheon, uma visão mais alargada, de revisão, reexecução e inversão do passado, numa abordagem criativa-produtiva da tradição. Para o crítico Noïthrop Frye - na sua abordagem do épos,gênero que ele especifica como próprio dos poemas destinados à recitação, cuja relação com a música recebe o nome especifica de meios-, a música não é propriamente uma composição harmônica, mas uma seqüência de dissonâncias de final harmônico, o que determina o grau de complexidade e o fluxo criativo da linguagem musical. É como José Miguel Wisnik, em O sentido do som, repensa a música, hoje: em sua complexidade, como experiência acústica produtora de sentido, em que a história da sua

linguagem reflete sua posição dialógica e simultânea quanto à produção e interpretação das culturas, nos campos denominados modal, tonal e serial. A música se associa, então à poesia, desde sua origem,relacionada ao canto - a partir do manuseio sonoro da linguagem -, até sua proposta estética contemporânea que dá conta, inclusive, do reconhecimento acadêmico da linguagem poética a partir da música, como atesta Affonso Romano de Sanf’Anna, em Moderna poesia e música popular brasileira. Propomos, enfim, nessa dissertação de Mestrado, uma leitura da poética contemporânea, em seu processo de interdiscursividade, a partir da obra do compositor da música popular brasileira, João Bosco, cuja marca da diferença se dá através do ritmo, harmonias e linguagem poética. Há, em João Bosco, o senso de origem e tradição - perceptível em suas referências estéticas e culturais – que dialoga com a transgressão do discurso estético previsível, em que palavras, sons e conceitos se relacionam de modo incomum. Assim, João Bosco retoma a tradição de sua arte pela releitura das suas possibilidades e renovação instigante, com intenção transformadora e diferença critica, numa postura interdiscursiva, especificada na prática paródica, em sua dimensão contemporânea. Pretendemos, portanto, uma releitura da obra musical de João Bosco a partir das teorias criticas que, no século XX, refletem as poéticas contemporâneas na sua condição múltipla, enquanto arte de inquietação. l. A CONSTRUÇÃO DA LÍRICA: UMA VISÃO DIACRÔNICA A lírica, expressão monológica de um "eu", tem sua origem (assim como a epopéia) nos hinos religiosos e tradições populares, como as cantigas de ninar, de morte,de adoração, que estariam representando, em geral, as marcas da vida. Assim, segundo Maria Lúcia Aragão, no ensaio "Gêneros Literários"1, a lírica se revela um gênero polimorfo, dada sua associação à livre imaginação, em que a emoção supera o pensamento. A lírica se manifesta por duas inspirações distintas: uma clássica, pessoal - o "eu" do poeta com seus sentimentos e idéias - e outra geral – o "eu" como voz comum da alma coletiva. A essência da lírica seria a unidade entre a significação das palavras e seus estratos (fônico, ótico ...), envolvendo ritmo, metro, rima e outros recursos. Daí o caráter insubstituível e imprescindível das palavras, que renunciam à coerência lógica, gramatical e formal em função da liberdade autenticamente momentânea: o instante lírico. Numa visão diacrônica a respeito dos gêneros literários, em geral, e do lírico em particular, percebemos variações pautadas ora numa perspectiva a - histórica – que privilegia a essência do gênero de modo paradigmático, como universo temático-formal rigidamente fechado e, portanto não susceptível a desenvolvimentos e mutações - ora numa perspectiva histórica - cuja tendência é a negação do caráter estático e imutável do gênero e de seus modelos e regras como valores absolutos. De um lado, a subestimação da obra literária em si, valorizada sempre por sua inclusão aos preceitos e à essência de determinado gênero. De outro, o reconhecimento da atividade criadora do poeta. Em sua Teoria da literatura2, Vítor Manuel de Aguiar e Silva remonta à poética de Platão,em que se estabelece a divisão triádica dos gêneros, numa perspectiva temporal: os textos literários são narrativas de acontecimentos passados, presentes ou futuros, compondo assim, as modalidades de gêneros miméticos, narrativo puro e misto: a imitação ou mimese é própria das tragédias e comédias, em que o poeta se oculta e fala como uma outra pessoa; a

narrativa pura, própria dos ditirambos,em que fala o próprio poeta; e a modalidade mista, própria da epopéia, em que se mesclam segmentos de narrativa pura com a mimese. Tal divisão tripartida não inclui o estatuto da poesia lírica, a nível conceptual ou terminológico, embora, para Vítor Manuel de Aguiar e Silva3, esta não seja uma exclusão deliberada, visto que a diegese pura abrange a poesia lírica - o ditirambo, manifestação da narrativa pura, constitui uma das variedades da lírico coral grega. Quanto à Poética aristotélica, Vitor Manuel4 reconhece em seu autor um receptor crítico das obras artísticas conhecidas- como as de Homero - que parte de sua observação para chegar às formulações conceituais, reconhecendo o caráter de diversidade e multiplicidade da arte. Aristóteles atribui à criação da poesia duas causas que têm suas raízes na natureza humana: o instinto de imitação e o instinto do deleite com obras de imitação. A mimese e a catarse representam, portanto, o fundamento da sua critica literária. A mimese é o principio unificador e, ao mesmo tempo, diferenciador dos textos poéticos, em função da variedade dos seus meios (ditirambo: uso simultâneo do ritmo, canto e verso; tragédia e comédia: uso parcial desses elementos), modos (narrativo; vocábulos raros e metafóricos; dramático: versos ligeiros, aptos para a ação) e objetos (os homens em ação: superiores, inferiores ou semelhantes à média humana). Enquanto imitação, a mimese aristotélica não é cópia, mas invenção, reelaboraçâo pois, segundo o filósofo, cabe ao poeta descrever, não o que aconteceu, mas o que pode acontecer: a arte imita, sim , a natureza, mas no sentido da verossimilhança, ou seja, mantendo um nexo com a realidade e prolongando a obra da natureza pelo seu movimento criador. São reconhecidas, portanto, as variações em torno da representação mimética da natureza humana,cabendo ao poeta revelar o natural para que ele próprio se revele culturalmente: O instinto de imitação, então, nos é natural, como também uma inclinação para a música e para o ritmo [...]. Partindo dessas aptidões naturais , e por uma série de aperfeiçoamentos, em sua maior parte graduam, de seus primeiros esforços, os homens acabam afinal criando, das improvisações, a poesia5. Para Aristóteles, a mimese caracteriza a natureza da poesia, em sua linguagem simbólica, pela força da conotação, geradora de múltiplos significados. Assim, a relação do signo poético com o real (dimensionada pela mimese) nos leva a depreender a natureza do literário pela metáfora, que vai além da semelhança real entre dois elementos, ultrapassando os limites da similaridade. Como observa Manuel António de Castro em "Natureza do fenômeno literário"6, a palavra metaforizada centra-se na transitividade entre o não-verdadeiro - pelo plano do discurso, matéria da ficção - e o verdadeiro - pelo plano do real. A metáfora, ao apresentar uma semelhança real entre seus elementos (pela transferência de que fala Aristóteles), revela uma coincidência entre eles, mais profunda que a semelhança, pois acentua justamente a não- semelhança real entre os termos, pela própria natureza do signo poético. Evidencia-se, então, o caráter mimético da metáfora que, indo além da simples semelhança a nível do

discurso, nos permite supor que a mimese esteja além da simples imitação, atuando como força geradora dos múltiplos significados da palavra poética e como unidade estruturante da metáfora, ligada a este como núcleo do fazer poético. Também define a essência da poética aristotélica e faz parte da natureza do fenômeno literário à catarse, profundamente relacionada à mimese, e cujo efeito se dá no receptor : Aristóteles considera não só o sentido das palavras, como também as maneiras pela quais elas podem ser interpretadas no contexto, bem como as pessoas a quem tais palavras se destinam, envolvidas ainda pela ocasião, os meios e o motivo do discurso mimético. Sendo assim, o sistema da poética aristotélica reconhece, na linguagem poética, sua condição de ambigüidade, bem como a interação complexa e profunda de fatores materiais, culturais, semânticos e aptidões da sensibilidade presentes no fenômeno estético. Não é ainda, porém, com Aristóteies, que se dá o reconhecimento da lírica como modalidade de poesia comparável à dramática e narrativa: O princípio de que toda poesia se fundava na mimese, ou na representação imitativa, da natureza bloqueava a possibilidade de uma adequada compreensão, no plano da teoria literária, da poesia lírica7. Seguindo a linha evolutiva da teoria dos gêneros, Vitor Manuel8 refere-se a Horácio, em sua Ars poetica,que retoma a tradição aristotélica e, mesmo sem a profundidade de análise da Poética, tece importantes reflexões acerca dos gêneros literários, no período medieval. Concebe-os como entidades diferenciadas entre si, com caracteres temáticos e formais distintos. Com isso, estabelece-se a regra da unidade de tom: a separação rígida dos gêneros. Embora faça referências a tipos de composições líricas, o autor não caracteriza a lírico propriamente como gênero. O período que vai do século XVI ao XVII, do Renascimento ao Barroco, representa uma fase fecunda do estudo da teoria literária, pela redescoberta e difusão da Poética,de Aristóteles. Aqui, define-se a tripartição dos gêneros em lírica, drama e narrativa, evidenciando-se uma profunda assimetria entre as imprecisões da teoria e a maturidade da praxis da poesia lírica, tendo este período o paradigma lírico por excelência: Petrarca. Embora a poética do Maneirismo e do Barroco, pelo seu Ímpeto criador e sentido vigoroso da historicidade do homem e de seus valores, confira aos gêneros um caráter de diversidade, é com a estética romântica que se manifesta uma caracterização nova e mais profunda da lírica, pela ruptura com a concepção mimética da arte. A teoria romântica dos gêneros, de forma original, correlaciona-os com as dimensões do tempo, retomando a divisão triádica: passado - epopéia, acontecimento; futuro - drama, ação;presente -lírica, sensação. O prefácio de Cromwell, de Vítor Hugo, uma das obras mais significativas do romantismo francês, se propõe, segundo Vítor Manuel9, um manifesto dos ideais românticos, posicionando-se em favor da miscigenação dos gêneros literários e pela condenação da regra da unidade de tom. A abordagem contemporânea dos gêneros literários -sobretudo os formalistas russos - não prevê o seu isolamento no tempo histórico. Ao contrário, confere a eles um caráter

dinâmico, histórico e sociológico, que possibilita a constante mutação de suas formas. O caráter evolutivo da produção literária e sua interferência no conjunto das estruturas da expressão literária caracterizam o que Tzvetan Todorov10, formalista russo, denomina duplo movimento que compõe o estudo da literatura: da obra em direção à literatura (ou ao gênero), e da literatura (do gênero)em direção à obra.O formalista lembra,aqui,o critico Gérard Genette e sua análise sobre a questão dos gêneros literários, ao configurar nesse esquema a possibilidade de transgressão do discurso literário diante das estruturas já existentes que, exatamente por isso, possibilitam essa transgressão. Em Introdução à literatura fantástica11, Tzvetan Todorov situa, em principio, questões básicas a respeito dos gêneros. Para ele, é imprescindível a tal estudo o alcance a duas ordens de exigências: práticas e teóricas, ou seja, a dedução dos gêneros se verifica nos textos. Dai sua qualificação, de forma distinta, dos gêneros históricos (fruto de uma observação dos fatores literários) e teóricos( deduzidos de uma teoria da literatura). Essa conformidade entre a teoria e a prática é de natureza probabilistica, ou seja, uma obra pode manifestar determinado gênero e até mesmo mais de um gênero, mas não necessariamente. Há, aqui, uma confluência com a posição inovadora do critico contemporâneo Emil Staiger, cuja análise sobre os gêneros abre novas possibilidades para o estudo da literatura, apresentando a noção do caráter impuro e variável das categorias formais de composição, que irão configurar a constante mescla, em maior ou menor grau, dos gêneros, em toda obra poética. A concepção poética de Staiger12 apóia-se na história, na temporalidade que constitui a essência do homem, contribuindo assim, para a visão contemporânea dos gêneros na negação do seu isolamento no tempo histórico e consequente reconhecimento da constante mutação das formas literárias, em seu caráter dinâmico. Staiger, ao fundamentar os gêneros poéticos, esclarece a questão da sua generalidade e particularidade: enquanto grandes fenômenos, seriam usados em geral como um conceito coletivo, eixo originário do qual partem todas as possibilidades e mesclas de gêneros que teriam nos adjetivos lírico, épico e dramático qualidades simples, das quais uma determinada obra pode participar ou não. Assim, Staiger reconhece uma conexão mais próxima entre as qualidades do lírico, épico e dramático e os conceitos de Lírica, Épica e Drama, respectivamente, embora deixe clara a impossibilidade da existência purista de uma obra literária vinculada a um único gênero: Mas não vamos de antemão concluir que possa existir em parte alguma uma obra que seja puramente lírica, épica ou dramática. Nossos estudos, ao contrário, levam-nos à conclusão de que qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e de que essa diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente13. A problemática da teoria dos gêneros parece alcançar um momento ambicioso e original com Northrop Frye, em Anatomia da Crítica14. Para Todorov, Frye, enquanto teórico contemporâneo,

“ocupa hoje um lugar predominante entre os críticos anglo- saxões e sua obra é, sem dúvida alguma, uma das mais notáveis na história da crítica desde a última guerra"15. Para o critico, a literatura se organiza coerentemente em modos, categorias e gêneros: uma análise dos dois primeiros elementos nos faz alcançar melhor compreensão a respeito da sua teoria dos gêneros. Frye desenvolve sua teoria dos modos ficcionais inspirado na Poética de Aristóteles. A classificação desses modos é criada em função da capacidade de acção do herói ficcional e sua relação (com os homens e o meio, que pode ser de superioridade, igualdade e inferioridade). São eles: o modo mítico ( o herói como ser divino), o modo fantástico ou lendário ( o herói é um ser humano, porém suas ações são fabulosas), o modo mimètico superior (o herói próprio do épico e das tragédias), o modo mimético inferior ( o herói das comédias e ficções realistas) e o modo irônico ( o herói inferior aos homens, em inteligência e poder). As quatro categorias narrativas, que Frye estabelece, fundamentam-se na oposição e na interação do real e ideal:assim estariam caracterizados o romance (no ideal), a ironia (no real), a comédia ( na passagem do real ao ideal) e a tragédia ( na passagem do ideal para o real). Tais categorias, bem como toda a teoria de Frye, representam uma renovação fecunda na teoria dos gêneros e, conforme o critico Vitor Manuel, vão

estabelecendo ou sugerindo interessantes conecções de ordem semântica,

simbólica e mítica, entre o fenômeno literário, considerado na sua diversidade e

nas suas especificações, e o real cosmológico e o real antropológico16.

A teoria dos gêneros literários, propriamente ditos, é elaborada por Frye a partir do seu conceito de "radical de apresentação", fundamentado no tipo de relação que o autor textual mantém com seu texto e seus receptores. Seriam eles; o épos (narração oral do texto, em verso ou prosa), o lírico (obras cantadas, dirigidas a um ser específico -musa, deus, amante - , caracterizadas pelo ocultamente, separação entre a plateia e o poeta), o dramático (obras representadas) e a ficção (tendência da prosa, pela palavra impressa ou escrita). Os três primeiros gêneros, sobretudo, fundamentam-se nessa relação enunciativa, pautada na expressão oral. Assim, o último gênero representaria para Vitor Manuel de Aguiar e Silva, em sua Teoria Literária17, um fator anômalo, dada a fixação e transmissão do texto pela escrita, diferindo do critério enunciativo - que representa a lógica da teoria de Frye - e acarretando uma heterogeneidade de critérios que delimitam seu conceito de ficção, critérios esses que sofrem restrições do critico Tzvetan Todorov,em Introdução à Literatura Fantástica18, por assumirem um caréter arbitrário, em seu aspecto classificatório. Nosso interesse imediato na teoria dos gêneros desenvolvida por Northrop Frye justifica-se por sua fundamentação no principio da apresentação, pelas condições estabelecidas entre o poeta e seu público. Frye contrói sua teoria, baseando-se na literatura oral, que norteia em

principio, a arte da canção popular. Do seu conceito de "radical de apresentação", delimitamos o épos, que representa o gênero da palavra falada e do ouvinte, e se relaciona à expressão grega tá épe, referente a poemas destinados à recitação, mas não necessariamente a epopéias do tamanho convencional, gigantesco - para quem Frye conserva a denominação de epopéia. O épos, abrange, então, toda literatura em verso ou prosa, que preserve, de algum modo, a conexão recitação/audiência:

No épos, o autor defronta sua audiência diretamente, e as personagens hipotéticas de sua estória estão escondidas. O autor ainda está presente, em teoria, quando representado por um rapsodo ou menestrel, pois este fala como o poeta, não como uma personagem do poema19.

Dada uma visão evolutiva da lírica, a partir da teoria dos gêneros literários - que alcança, com a crítica contemporânea, o reconhecimento da dinâmica da criação literária,especificaremos o gênero lírico em sua manifestação contemporânea.

1.1.A LÍRICA CONTEMPORÂNEA

Denominamos contemporânea, em sua generalidade, à produção lírica do nosso século. Especificamente, consideramos contemporânea a lírica do poeta em foco na nossa análise, correspondente a sua produção literária das duas últimas décadas. Em caráter introdutório, tratamos do termo lírico na sua essência. Para Emil Staiger20, a essência lírica se fundamenta na alma, por ser esta a fluidez de uma paisagem na recordação: assim, a existência lírica recorda, enquanto a épica torna presente - por registrar as coisas como elas são e entregá-las à memória - e a dramática projeta - pois sua essência está no espírito, no qual se configura e se projeta um todo mais amplo. A presença do eu lírico contamina emocionalmente a linguagem e os fatos: concentra-se e se volta para si mesmo. É o clima lírico, que Staiger denomina disposição, ao mesmo tempo, do clima e da linguagem poética. Portanto, não há uma reprodução linguística de sensações esentimentos e, sim, uma unidade entre a significação das palavras e o seu tom lírico. Tal unicidade harmônica revela a brevidade do clima afetivo no lírico, pois ele é o que existe de mais fugaz. A fragilidade do gênero lírico se dá por essa disposição anímica que, na verdade, "não é nada que exista 'dentro' de nós e, sim, na disposição estamos maravilhosamente 'fora', não diante das coisa mas 'nelas' e elas em nós”21.

Assim, os elementos externos são apenas pretexto para a disposição anímica, para a fugacidade do mundo interior, e contam com o recurso da repetição, que mantém o clima lírico da linguagem poética, impedindo-o de desfazer-se ao reduzir o grau de discursividade dessa linguagem. Em O Poético22, Mikel Dufrenne tece uma reflexão filosófica sobre a questão da linguagem, em sua manifestação poética, como principio de sua análise sobre a percepção estética. A essência lírica está ligada ao íntimo e ao sentimento, que se fundem ao mundo exterior, tornando fluida a relação entre o eu e o mundo. A matéria dessa expressão lírica é a palavra, enquanto evocação, não da presença do objeto, mas do sentimento da sua presença. Afirma Dufrenne que a poesia coloca as palavras em liberdade, na medida em que conjuga significação e• expressão. Assim, o sentido não é determinado por uma necessidade lógica e, sim, estética: o assunto torna-sepoético no próprio poema e a linguagem comum tem, aqui, reativado o seu poder expressivo e, então, se transfigura.

Na lírica contemporânea, de caráter mais racional, há liberdade formal e relação estreita entre linguagem culta e popular, aliando temas sociais aos do cotidiano. Em termos de construção formal, a lírica contemporânea privilegia a construção interna em detrimento da externa de origem clássica, tradicional. Enquanto essência lírica, a linguagem poética contemporânea se pauta na antidiscursividade : a transgressão do discurso literário previsível. Em sua critica sobre a lírica moderna, Hugo Friedrich23 observa a maneira enigmática e obscura com que se expressa a lírica europeia do século XX : a magia das palavras age profundamente no leitor, evidenciando a sua comunicação, antes mesmo da sua compreensão. A esse processo, o autor denomina dissonância: a junção da incompreeensibilidade e da fascinação que gera uma tensão dissonante. Assim,a obscuridade dessa lírica é intencional: o poeta não escreve versos para se fazer entender. A poesia é pluriforme na sua significação, e a tensão dissonante que desperta advém da conjugação de opostos: traços de origem arcaica e mística e aguda intelectualidade; simplicidade da exposição e complexidade do que é expresso. São tensões formais e também de conteúdo:

Quando a poesia moderna se refere a conteúdos - das coisas dos homens - não as trata descritivamente, nem com o calor de um ver e sentir íntimo. Ela nos conduz ao âmbito do não familiar, torna-os estranhos, deforma-os [...]. Das trêsmaneiras possíveis de comportamento da composição lírica - sentir, observar, transformar - é esta última que domina na poesia moderna e, em verdade, tanto no que diz respeito ao mundo como à língua24.

Tal composição lírica, na verdade, evita a intimidade comunicativa, a convencional disposição anímica de que fala Emil Staiger. O eu lírico agora é a inteligência que poetiza, o operador da língua, com intenção transformadora. Os efeitos dessa lírica se fazem sentir na diversidade da linguagem poética, cujas combinações criam novos significados, e também na relação entre poesia e leitor, pelo estranhamento que causa. Para Friedrich, a lírica moderna, que tende ao não-descritivo e ao não -familiar, resulta num comportamento inquieto de estilo, refletindo-se no seu significado: A língua poética adquire o cará ter de um experimento, do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o sígnificado. O vocabulário usual aparece com significações insólitas. Palavras provenientes da linguagem técnica mais remota vêm eletrizadas liricamente. A sintaxe desmembra-se ou reduz-se a expressões nominais intencionalmente primitivas. Os mais antigos instrumentos da poesia, a comparação e a metáfora, são aplicados de uma nova maneira, que evita o termo de comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável25. Pela negação da obviedade e consequente multiplicidade do discurso estético, lírica contemporânea abre espaço para uma relação com a condição de abertura da obraliterária e as possibilidades de participação do leitor/fruidor na reconstrução variável do objeto estético. 1.2 Obra Aberta e Estética da Recepção Em Obra Aberta26; Umberto Eco atenta para a condição de abertura da arte contemporânea : enquanto arte de vanguarda - no sentido mesmo de propor algo novo - , sua manifestação estética reflete, por antecipação, uma nova relação do homem com o mundo,

que é de indagação, contestação, abertura para uma nova forma de vida. O artista contemporâneo explicita intencionalmente sua relação de não-univocidade com o fruidor, revelando assim a ambigüidade almejada pelas poéticas contemporâneas. Mas , o principio básico de abertura da obra é inerente à própria concepção de arte: " a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua/ uma pluralidade de significados que convivem num só significante. Essa condição constitui característica de toda obra de arte"27.

Assim, o principio da obra aberta28 remonta aos clássicos, à Poética de Aristóteles - que se posiciona criticamente diante das obras literárias, a partir do que elas teriam a oferecer: a contribuição do coro no teatro grego confirma a presença do público intervindo na criação. O fenômeno da obra aberta independe da intencionalidade ou da consciência do autor; a noção de obra aberta reside, não no modo como são resolvidos os problemas artísticos, mas nomodo como são propostos. Sua estrutura é determinada pela análise de uma obra enquanto sistema de relações entre seus diversos níveis (tema, conteúdo, gênero) e pela relação fruitiva com seus receptores. O que distingue as poéticas da obra aberta é, segundo Eco29, uma diferente visão de mundo: a poética medieval centrou-se na teoria do alegorismo; a negação da definitude estática e inequívoca da forma clássica renascentista, em favor de uma forma dinâmica, compatível com um mundo em movimento, exige do homem barroco atos de invenção; do iluminismo ao romantismo, a liberdade do poeta prenuncia uma temática da criação, pelo poder evocativo da poesia. É no simbolismo, no entanto, que pela primeira vez aparece uma poética consciente da obra aberta, que pressupõe a livre reação do fruidor:a poética da sugestão. A particularidade das poéticas contemporâneas em termos de abertura se dá, segundo Umberto Eco30, pelo fato de refletirem uma tendência geral da cultura desse período, relativa a uma ambiguidade de situação, que estimula escolhas operativas ou interpretativas diferentes. Eco parte das funções referencial e emotiva da linguagem para justificar tal fenómeno. A primeira indica algo de univocamente definido. Porém, cada indivíduo alia a essa compreenssão referencial, dados conceituais ou emotivos próprios, capazes de criar um espaço de abertura que acompanha todo ato de comunicação humana. O caráter estético da linguagem não depende portanto, só do discurso emotivo em detrimento do referencial, mas de um todo que o fruidor não consegue romper, o que leva ao significado multiforme da linguagem, ainda no campo da compreensão. O grau de complexidade da mensagem torna-se proporcional a sua renovação, suas leituras mais aprofundadas, empreendidas pelo receptor. No caso do fenómeno estético, há uma interação mais complexa e profunda de fatores materiais, culturais e outros, que atingem o fruidor na sua relação com a obra. Na mensagem poética, palavra, sons e conceitos se relacionam de modo novo para comunicar um certo significado aliado a uma emoção inusitada. Assim, Umberto Eco compara uma declaração de amor articulada segundo as regras de probabilidade do discurso e outra, cujo autor seria Petrarca, por exemplo, elaborada acima das regras de construção comum: não haveria propriamente diferença de significado entre elas, mas acréscimo de informação, pela originalidade da organização do texto poético e imprevisibilidade em relação às regras de probabilidade do discurso. O resultado poético advém, portanto, de um certo modo incomum de uso da linguagem.

A abertura explicita, de que fala Umberto Eco, caracteriza-se na arte contemporânea pela criação original de um sistema lingüístico que oscila entre a recusa do sistema lingüístico tradicional e sua conservação,alterando-o e aumentando-lhe a possibilidade de informação. Há, no poeta contemporâneo, a intenção ambígua da mensagem como origem da riqueza dos sentidos poéticos. Assim, a poética contemporânea

tende a uma multipolaridade da obra e tem todas as características de uma

criatura de seu tempo, de uma época na qual certas disciplinas matemáticas se

interessam pela riqueza dos conteúdos possíveis em mensagens de estrutura

ambígu^ abertas multidirecionalmente31.

Diante do texto contemporâneo, há uma quebra do consumo automático do leitor pelo aspecto renovador da arte. Esse texto estranho32 representa o caminho para a transformação do conceito de função da literatura no século XX, pela percepção desautorizada e esforço reflexivo exigido do leitor, que levam a uma atividade de descoberta e invenção, de que provém um novo significado do termo leitura. Como teoria critica contemporânea, a estética da recepção recoloca o questionamento da práxis estética, importante na arte como atividade produtora, receptiva e comunicativa, considerando-se o prazer estético e suas condições de experiência como ato de recepção e interpretação, diferenciados enquanto fenômeno. Surge na Alemanha, a partir, de 1967, visando a uma nova teoria da literatura, baseada na compreensão da historicidade característica da arte e diferenciadora de sua própria compreensão, e que daria conta do processo dinâmico deprodução e recepção da relação dinâmica entre autor, obra e público de um tempo histórico determinado, estabelecendo-se dois horizontes de expectativa em relação ao texto: interna (derivável do próprio texto) e social. Hans Robert Jauss, orador da lição inaugural da estética da recepção, desenvolve no ensaio "O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e Katharsis”33 o esboço de uma história da experiência estética, cuja trajetória passa, por exemplo, pela discussão sobre a abolição da arte autônoma, bem como pela dimensão da liberdade na experiência estética e pela análise de sua desritualização. Jauss remonta à poética aristotélica, que atribui ao prazer uma explicação de caráter estético - recepcional, levando à descoberta e justificativa do prazer catártico, em que o expectador, após um processo de admiração, identificação e regozijo diante da arte, alcança profundo prazer estético. O autor prossegue em sua trajetória critica, destacando as heranças que contribuíram para a formação e auto-afirmação da experiência estética, até alcançar a critica contemporânea, destacando-se Roland Barthes, com O Prazer do texto34, responsável, segundo Jauss, pela reabilitação do prazer estético.

Segundo Barthes, é preciso traçar uma estética moderna que examine o prazer do

"consumidor": a escritura é a ciência dos deleites da linguagem, que leva ao prazer estético como postura contemplativa do paraíso das palavras. Para que o prazer stético se diferencie do simples prazer, é preciso ir além da atitude contemplativa, pela articipação experimentadora do fruidor em relação ao objeto estético. Barthes fala do prazer como uma deriva, que independe de uma lógica do entendimento e não pode ser fixada por nenhuma coletividade. O texto produz o melhor prazer quando consegue fazer-se ouvir indiretamente, provocando um momento particular, especial de leitura. Mas o texto é também especial, aquele que "escolhe" o leitor através da disposição do vocabulário, das referências; aquele

que provoca contentamento/ conforto. O prazer do texto, inclusive, será mais diverso ao envolver a inteligência, euforia, domínio. Nesse sentido, é preciso atentar para a questão da produção de arte acessível à grande massa, pois tal relação não se dá apenas a nível de compreensão, mas também de fruição, de catarse, na medida em que as barreiras intelectuais mais rígidas se quebram e os homens se reconhecem num plano além da cultura, pelo prazer estético da arte.

De forma conclusiva, em sua análise, Hans Robert Jauss35 associa à história do prazer estético três conceitos da tradição estética: a poesia - consciência produtora, criação artística; a estesia - atividade receptiva do objeto estético, pela possibilidade de sua renovação perceptiva; e a catarse - experiência estética comunicativa, que incita a capacidade de julgamento dofruidor. Essas três categorias relacionam-se de forma autônoma e sequencial; enquanto mantêm o caráter de prazer, preservam o traço de experiência estética da comunicação literária. A arte contemporânea, a partir de seu projeto estético e histórico-cultural, permite e até mesmo provoca essa reação do expectador-leitor. É o que demonstra o escritor Júlio Cortázar, em Valise de Cronópio36, quando, em dado momento,aborda a importância do conto na literatura contemporânea, em sua relação com o leitor. Essa tentativa de aliciamente do leitor, segundo Cortázar, se manifestaria no texto contemporâneo por uma provocação de estranhamento que seduz o leitor, e pela ludicidade que o leva à penetração na trama lúdica para inseri-lo na descoberta do jogo. Assim, o significado dentro da estética contemporânea deixa de ser um fim para funcionar como elemento significativo ao leitor, processando uma abertura pela qual ele construirá também o texto, podendo lançar mão inclusive da sua herança intertextual: o leitor contrapõe ao texto lido a sua experiência sobre outros textos. Assim, na medida em que a novidade do texto contemporâneo se apresenta de caráter formal ou expressivo e também substancial, processa-se , segundo Cortázar, maior proximidade do leitor com o texto:

... agora, como último termo do processo, como juiz implacável, está esperando o leitor, o elo final do processo criador, o cumprimento ou o fracasso do ciclo37.

1.3. Fenomenologia e Sistemas de Estratos da Obra Literária O pensamento da critica literária, em suas várias denominações, no nosso século, processa-se em torno de elementos intrínsecos da obra - e não em função de seus referentes externos - que compõem sua literariedade, ou seja, fazem dela uma obra literária. É nessa perspectiva que Maria Luiza Ramos, em Fenomenologia da Obra Literária, propõe uma aplicação do método fenomenológico de Roman Ingarden, partindo da critica teórica para alcançar a aplicabilidade de seus princípios em textos significativos da literatura brasileira. Assim, numa abordagem fenomenológica do estudo da literatura, a autora ressalta seu caráter descritivo, partindo das estruturas implícitas da obra - denominadas sistemas de estratos - para colocar "em relevo as funções dos diversos elementos da obra literária, não apenas considerando-os em si mesmos, mas, sobretudo, na reciprocidade das suas relações"38.

Na medida em que decompõe o objeto estético, numa análise de sua estrutura poemática, a crítica fenomenológica, que, nesse sentido aproxima-se do estruturalismo, segundo Ramos — embora faça distinções fundamentais entre essas duas correntes da critica contemporânea - , permite emergirem os elementos que desvelam a plenitude desse objeto estético, caracterizando, portanto a fenomenologia como um método de evidenciação. Arealização da experiência estética se dá através da complexidade da estrutura poemática, que faz parte do objeto estético, mas não é evidente: precisa ser desvendada. É o que pretende a autora através de seus sistemas de estratos.

O estrato fônico destaca-se por sua dupla função: como veículo dos outros estratos, através do qual os elementos semânticos se concretizam e como material estético peculiar e intransferível, através de sons e ritmos que sugerem a ânima do poeta. Os efeitos tónicos da obra literária, cuja matéria é de natureza rítmica, vão da métrica, eufonia, variações tímbricas, musicalidade,à utilização funcional de determinados sons. Não se trata de salientar, sob a perspectiva do estrato fônico, a linguagem onomatopaica de um poema. Ela difere essencialmente da "imagem acústica de clima poético"39, proveniente dos elementos sonoros da linguagem: para Staiger40, os sons evocam a situação anímica, no contexto lírico, o que dificulta ou até mesmo torna impossível a tradução poética para outro idioma. Universal é a expressividade dos elementos sonoros como recursos poéticos, estabelecendo-se a relação entre som e sentido na poesia. Destaca-se, ainda como recurso utilizado na poética contemporânea, a palavra transracional: realçada por sua sonoridade e efeitos articulatórios, mesmo desprovida de carga semântica. O ritmo é primordial na estrutura do poema, enquanto elemento fônico: de qualidade intrínseca aos versos, associa-se aos efeitos poéticos da aliteração, rima, paronomásia. Ramos faz uma associação entre o verso livre e a musicalidade do canto gregoriano, cujo ritmo aproxima-se do ritmo da fala. Ambos, poemas contemporâneos e canto gregoriano, atendem a uma intenção expressiva, em que a pausa passa a constituir fator significante da forma literária: dai o silêncio como recurso expressivo, uma conquista do verso livre. As pausas não têm, portanto, intenção puramente semântica, mas associam-se ao processo rítmico e, mais além, à funcionalidade expressiva da linguagem poética, alcançando resultados originais. A palavra adquire, assim, a condição de objeto intransferível» com valor próprio, tornando irreversível o discurso poético.

O estudo da palavra em suas possibilidades de significação é objeto do estrato das unidades de sentido. A linguagem poética, por representar a fixação momentânea, se constrói com valores estáticos, que correspondem a significados nominais. Ramos se vale do estudo de Roman Ingarden sobre a natureza dos nomes e os elementos encontrados em sua significação: conteúdo material (momentos de significação da palavra), direção intencional ( a palavra se relaciona a determinado objeto e a nenhum outro, ressaltando-se a importância do contexto), conteúdo formal (toda a conotação que uma palavra pode implicar), caracterização existencial (existência real ou ideai de determinado objeto) e posição existencial (o nome ganha caracterização existencial através da obra de arte, pois esta não se confunde com o real; é o caso dos neologismos, por exemplo). No contexto poético, interessam particularmente, as palavras de significação nominal, pela possibilidade de atuação conjunta dos elementos heterogêneos sobre elas (que lhes conferem um efeito polifônico) e por sua complexidade, que pode torná-las metáfora e mitos. Ao contrário, as palavras que funcionam (como os verbos) são condicionadas pela lógica de natureza monofônica, não tendo caracterização formal. Assim, a lírica se distancia de uma estrutura hipotática - que reúne elementos sintáticos heterogéneos e

subordinados - e privilegia a estrutura paratática - que coordena valores homogéneos, com uso de palavras de grande potencialidade multívoca.

Em função da expressividade da linguagem figurada, no âmbito estético ou apenas da comunicação. Ramos dedica-lhe estudo especifico, evidenciando seu caráter substitutivo em função da sua intencionalidade.Destaca-se,aqui,a metáfora, "apenas o resultado da multi-radiação do fatordireção intencional que integra a estrutura nominal"41.

A metáfora, segundo a autora, caracteriza-se pela analogia entre conteúdos formais, possibilitando ao leitor uma percepção conotativa fora do contexto, numa perspectiva paradigmática, o que confere maior abertura ao seu poder expressivo. Considerada síntese de todo processo figurado, a metáfora distingue-se pela relação lógica entre dois significados (como a metáfora aristotélica, clássica e tradicional) e pela relação psicológica, considerada mais hermética, em que há maior sutileza e esforço de associação. A imagem metafórica resulta do processo simultâneo de afinidade e divergência, verificados respectivamente, segundo Ramos, na dimensão do conteúdo formal e do conteúdo material: percebe-se a unidade dos objetos através de suas diferenças aparentes. Ainda, a relação metafórica entre dois termos pode particularizar-se pelo símbolo ou mito, cuja síntese provoca a total abstração de um desses termos. O sentido do termo explicitado será determinado pelo contexto, ou mesmo por seu valor universal ou cultural, no caso do mito.

Ramos faz referência a relações expressivas da poética moderna, ainda não registradas entre as figuras tradicionais: os shifters, classe de palavras que têm seu sentido variado de acordo com a situação - a autora salienta os pronomes e advérbios, como exemplos; a inconseqüência, que se caracteriza pelo rompimento da sequência lógica do discurso, como um desvio que correlaciona idéias aparentemente paradoxais; e a desordenação, que representa uma relação desconexa na ordenação das palavras e que a autora associa a uma forma de inconsequência, cujo uso intensivo se verifica na poética contemporânea, em função da fragmentação característica dessa época.

2. PROCEDIMENTOS DA POÉTICA CONTEMPORÂNEA Em Poética do Pós Modernismo42, Linda Hutcheon procura, através da história, teoria e ficção, caracterizar a produção artística pós anos sessenta como uma poética baseada na auto-reflexividade: questiona, contesta e desafia a cultura, a partir de seu interior. Tal poética -fundamentalmente contraditória, segundo Hutcheon - busca afirmar a diferença, colocando-se fora do centro de valores estabelecidos, quer sociais ou estéticos: é, portanto, uma arte "ex-cêntrica". Assim, o desafio da poética contemporânea é transgredir os limites das fronteiras das convenções artísticas - como as fronteiras fluidas entre os gêneros literários, segundo Emil Staiger em Conceitos fundamentais da Poética43 - cuja radicalidade se verifica na transgressão existente entre ficção e não-ficção e, em síntese, como afirma Hutcheon, entre arte e vida.

Para legitimar a condição excêntrica da poética contemporânea, a autora se vale de dois estudos específicos sobre a perda na estética contemporânea: a "perda da aura", conforme Walter Benjamin, e a "perda de sentido", que leva à crise da legitimação, de que trata o filósofo Jean-François Lyotard.

Walter Benjamin observa as tendências evolutivas da arte dentro das condições atuais de sua produção, no ensaio "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução"44: o

intenso poder de ação dos homens sobre as coisas, hoje, interfere na própria noção de arte, a partir das inovações nas técnicas das artes, o que proporciona modificações profundas na indústria do belo. Por principio, a arte sempre foi passível de reprodução (como a imitação dos poetas clássicos pelos seus discípulos). Porém, as técnicas de reprodução - como a imprensa e a litografia, no século XIX - são um fenômeno novo. No século XX, elas se desenvolveram de tal forma que, mais que reproduzirem arte, impuseram-se como a própria arte: a fotografia e o cinema representam o foco principal do citado ensaio. Essa nova visão da produção - e reprodução - estética leva à renúncia de grande número de noções tradicionais na arte, como o poder criativo e a genialidade, o valor de eternidade e mistério. Benjamin faz uma distinção entre a reprodução humana (a cópia de um quadro, por exemplo) e a reprodução técnica. Na primeira, a obra original mantém sua autoridade - não há interferência de uma "nova visão" do copiador. Já nas técnicas de reprodução, desvaloriza-se o que o crítico denomina hic et munc, a obra em si, sua autenticidade, sua própria autoridade: "na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura [...], única aparição de uma realidade longínqua,por mais próxima que esteja"45, envolvendo um estado contemplativo, que representa o valor de culto da obra de arte. Assim, as técnicas transformam essa arte num evento de massas, pela sua multiplicação:quanto mais ela perde seu valor de culto - de base ritualistica -, adquire maior valor de realidade exíbivel. Pela reprodução, despoja-se o objeto estético de sua aura, o que altera de forma quantitativa a exibição da arte, mas também de forma qualitativa, pois afeta sua própria natureza,na medida em que esse objeto reproduzido tem atualidade permanente, o que abala a postura da tradição na concepção estética. Assim, retomar o passado ou reproduzir a tradição estética pode não ser apenas retomada nostálgica ou mera cópia, mas interferência crítica ou "recodificação moderna que estabelece a diferença no coração da semelhança"46.

No ensaio "O Pós-moderno"47, o filósofo Jean François Lyotard discute as funções do saber na sociedade, hoje, caracterizando-a como a época da deslegitimação, em que prevalece o critério de desempenho no saber, pela flexibilidade de seus meios (saber científico, saber narrativo- os relatos) e multiplicidade de suas linguagens.

Para Lyotard, o saber pós-moderno não passa mais pela verdade dos conceitos, apenas, mas pela questão da operacionalidade, baseando-se na lógica de melhor desempenho; mesmo porque o saber é medido, segundo o filósofo, não apenas pelo critério da verdade, mas também da eficiência/técnica, justiça, etc., formando competências culturais. Não se trata, portanto/da reiteração de valores paradigmáticos: sobrepõe-se a marca da diferença, o que provoca a crise da legitimação. Com isso há um questionamento da própria noção de consenso, com idéia totalizante. Perde-se, então, o sentido da autoridade, que Lyotard denomina deslegitimação: à noção de ordem, sobrepõe-se a noção de desordem, próxima ao excêntrico, de que fala Linda Hutecheon, e seu caráter questionador com relação ao modelo, ao centro.

Assim, ao creditarem a marca da diferença ao que denominam cultura pós-moderna. Linda Hutcheon e Jean François Lyotard contrastam-na com a chamada cultura dominante, contra a qual ela reage, recusando-se a propor qualquer estrutura (a narrativa-mestra, de que fala Lyotard, como a arte ou o mito), o que leva a uma aparente perda de sentido da

linguagem, que, na verdade, sofre uma ampliação dos seus limites -e mesmo a sua transgressão - e uma quebra de sua sistematização:

Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta, pelos conflitos de informação não completa, pelos "fracta", pelas catástrofes, pelos paradoxos paradigmáticos,a ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução descontínua, catastrófica, não reificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e diz como essa mudança pode-se fazer. Produz, não o conhecido, mas o desconhecido. E sugere um modelo de legitimação que não é de modo algum o da melhor performance; mas o da diferença compreendida como paralogia48.

2.1. O Sujeito da Enunciação

Como tem necessidade constante de questionamento, na medida em que não se dispõe no centro, a poética contemporânea produz uma arte de inquietação. Assim, Linda Hutcheon49 aproxima a critica e a produção literária contemporâneas como criações contraditórias, plurais, auto-definitórias: questionam a natureza da linguagem, do fechamento narrativo, do contexto, das condições de produção e recepção. Tanto a teoria quanto a criação literária questionam valores estéticos ligados à autonomia,centro,exclusividade, origem, que estariam sendo discutidos através da paródia e da postura auto-reflexiva da poética contemporânea. A perda da aura - que leva a uma nova visão da produção estética - de que fala Walter Benjamin, e a perda da autoridade - relacionada ao saber na sociedade contemporânea, que Jean-François Lyotard denomina deslegitimação fazem-nos considerar a problemática da enunciação e a expressão do sujeito verbal na poética contemporânea. Também Linda Hutcheon (assim como vimos em Robert Jauss, Umberto Eco e outros) vê na literatura contemporânea a ênfase no papel do receptor, mas sem reprimir o processo de produção que, afinal, não deixa de restringir, pelos limites textuais, a atuação do leitor. Assim, a entidade enunciativa, o eu decodificador e senhor da produção textual cede lugar à idéia de texto como ênfase ao processo de produção, ao contexto e também à situação enunciativa:

... ao enfatizarem o papel do receptor, as obras pós-modernas nunca reprimem o processo de produção. Conforme Barthes afirmou, pode perfeitamente estar morto o conceito do artista como fonte única e originante do sentido final e autorizado [...]. Contudo, é possível afirmar que essa posição de autoridade discursiva ainda sobrevive, pois está codificada no próprio ato enunciativo. Cada vez mais, esse mesmo paradoxo tem passado a constituir o foco de grande parte da arte e da teoria pós-modernas: juntamente com uma derrubada gera l da autoridade suspeita e do pensamento centralizado e totalizante, estamos presenciando um renovado interesse estético e teórico pelas forças interativas envolvidas na produção e na recepção de texto50.

Se houve um tempo em que o foco de interesse da critica literária incidiu ora sobre o autor, ora sobre o texto e, ainda, sobre o leitor,o que se percebe, hoje, é o interesse em relação ao ato enunciativo e seus agentes (as condições e a natureza da enunciação, sua contextualização, enfim) e pelo modo como ele alcança o leitor: haveria um jogo de provocação do receptor pelo produtor (a tentativa de aliciamento do leitor, conforme Júlio Cortázar em Valise de Cronópio), através da enunciação e do contexto, o que põe em relevo, não o produto, mas o processo de produção e

• sua estrutura de relações contextuais, ativadas pelo leitor. Considerando-se, ainda, a arte como produção histórica e como prática social, torna-se mais propicia a relação produção e inferência - em lugar de autor e autoridade - e a condição de "posições de sujeito"51 para produtores e receptores de texto, na medida em que são ambos elementos constitutivos essenciais do texto. A entidade enunciativa, esse sujeito do discurso que, segundo Hutcheon, tece, hoje, uma rede descontinua, uma estrutura fragmentada, que desafia a tradicional convenção narrativa, coerente e continua - é, portanto, também um instrumento de análise, pois mesmo a liberdade' e o controle de leitura do receptor passam pelo produtor e seu processo discursivo - intencionalidade, relações contextuais e interação com o leitor:

Compreender minha intenção é compreender minha fala e meu comportamento em relação a um contexto significante. Quando compreendemos as "intenções" de um fragmento de linguagem interpretamo-lo como sendo, em certo sentido, orientado, estruturado para atingir certos efeitos; e nenhum desses efeitos pode ser compreendido independentemente das condições práticas em que a linguagem opera52.

2.2-0 Processo Intertextual Em sua análise de determinada tendência da narrativa contemporânea, que ela denomina metaficção historiográfica, Linda Hutcheon afirma a respeito do romance The White Hotel (O Hotel Branco) de D.M.Thomas: "O uso declarado demúltiplos intertextos [...] sugere uma recusa textualizada no sentido de "expressar" a subjetividade singular ou o sentido único"53. Hutcheon incorpora, portanto, o processo da intertextualidade ao caráter da multiplicidade da poética contemporânea, em sua postura auto-reflexiva, o que, por outros caminhos, foi também considerado pelo escritor italiano Italo Calvino na conferência "Multiplicidade", em Seis propostas para o próximo milênio; incorpora-se à poética do "eu" o conhecimento da multiplicidade que permite a "rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo"54.

Assim, o texto multíplice "substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo"55, no sentido mesmo da polifonia, segundo Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiewski56, como metáfora da ruptura de limites da unidade monológica, como a polifonia musical, pela multiplicidade de vozes - as várias vozes "plenas de valor", que, soando simultâneas, permanecem independentes, como afirma Calvino:

No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e muitifacetada do mundo57.

A prática do intertexto, reflete, portanto, tal tessitura poética, em seu processo discursivo de multiplicidade e fragmentação e, ainda, numa visão contemporânea, segundo Linda Hutcheon,

a intertextualidade [...] é uma manifestação formal de um desejo de reduzir a. distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto58.

Essa referência cultural, absorvida não de forma passiva, mas transformadora, revela o pensamento critico do poeta T.S.Eliot -no ensaio "Tradição e talento individual"59, ele próprio um representante dessa visão pluralística e multifacetada do mundo, segundo Calvino, para quem o poeta "dissolve o projeto teológico na leveza da ironia e no vertiginoso encantamento verbal"60, o que confere a sua obra a condição de "poética do fragmento": o critico Ivan Junqueira, em introdução à Poesia61 de Eliot, assim denomina as múltiplas influências com que o poeta estrutura sua obra, pelo uso da técnica da fragmentação que remete um texto a outro, criando correspondências e analogias, como em The Waste Land, que se compõe de multiforme mosaico, segundo Junqueira, e cujo processo de fragmentação lembra uma procissão de reminiscências de personagens:

Do ponto de vista estrutural, toda a poesia de Eliot, salvo alguns poucos poemas da primeira fase, caracteriza-se pela experiência da fragmentação, da multiplicidade descontínua de matrizes composicionais, do desenvolvimento assimétrico de partes isoladas, as quais, ou se reúnem numa "espécie de todo", isto é, no mosaico do organismo poemático maior (The Waste Land [...]), oupermanecem como tais, solitárias e mesmo " Inacabadas "[.. .]62.

Para Eliot, o sentido da tradição não é a colagem do fenômeno poético imediatamente anterior, não é herança, mas conquista, pois envolve particularmente o sentido histórico - indispensável ao poeta -, que é a percepção da presença do passado e reflete um paradoxo (recurso muito próprio da poética contemporânea, segundo Linda Hutcheon, como veremos adiante) quanto ao sentido da arte como algo simultâneo, na relação do poeta com o passado:

... o sentido histórico Implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença;o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela Incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é Isso que ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade64'

Portanto, conforme Eliot, quando se busca valorizar o artista pela sua originalidade destacando os aspectos inovadores da sua obra, a individualidade, sua essência –pode -se incorrer no equivoco de não se perceber que o vigor um artista está justamente naquilo que ele revela do ;passado, na busca de uma consciência da presença do passado, "num sentido e numa extensão que a consciência que : passado tem de si mesmo não pode revelar"65. Ampliando ao limite máximo o sentido da arte como multiplicidade, rede de conexões, presença do passado,Laurent Jenny, em "A estratégia da forma", situa a intertextualidade essencialmente ligada à poeticidade e à evolução literária, mesmo que sua compreensão seja de certo modo, relativamente nova: partindo do simbolismo de Mallarmé (período que, para Umberto Eco66, apresentou a primeira intenção explicita de obra aberta, que introduz o leitor a um novo modo de leitura) e sua noção de arte como fusão de qualquer repetição, Jenny considera que

Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda desconhecida. De fato, só se apreende o sentido e a estrutura duma obra literária se a relacionarmos com os seus arquétipos - por sua vez abstraídos de longas séries de textos, de que constituem, por assim dizer, a constante. Esses arquétipos, provenientes de outros tantos "gestos literários", codificam as formas de uso dessa "linguagem secundária^ (Lotman) que é a literatura. Face aos modelos arquetípicos, a obra literária entra sempre numa relação de realização, de transformação ou de transgressão67.

A intertextualidade seria, portanto, implícita (considerando-se a relação obra literária/arquétipos, ou seja, a constante abstraída de uma série de textos, aquilo que codifica a linguagem literária - e explicita. Tal perspectiva aproxima-se do que Gérard Genette, em Palimpsestes69, denomina transtextualidade: a relação implícita ou explicita de um texto com outros, enfim, todas as suas relações possíveis. Para o termo intertextualidade, ele particulariza a noção da presença efetiva de um texto no outro, enquanto a arquitextualidade seria a mais implícita e mais abstraia das relações: uma espécie de paratextualidade (uma relação menos explícita e mais distante de um texto com o seu "paratexto": título, notas etc) que transcende o texto e alcança outras perspectivas, teóricas (como a de gênero) - a macroestrutura da obra literária. A relação de transformação entre um

texto, de origem (hipotexto) e outro texto, derivado (hipertexto) é denominada hipertextualidade e sua derivação pode ser de ordem descritiva, intelectual ou metatextual (relação crítica, mesmo sem a presença efetiva do outro texto). A transformação pode ser, portanto mais direta ou mais indireta quanto ao texto de origem e o resultado acaba por conferir ao texto contemporâneo, em maior ou menor grau, uma condição transgressora, ampliando seus limites:

sobretudo em relação à prática literária de hoje em que a produção de texto se funda muito mais na ausência dos cânones ou na sua miscigenação -resultando daí que o entendimento dos textos, se quiser exceder a percepção caótica ou a pura circunscrição empática, ganha em passar por um esforço de distinção de componentes que mais afortunadamente possa dar a imagem de riqueza e de sobreposição oblíqua que nos fascina no texto contemporâneo69.

Ao falar da sensibilidade do leitor à repetição, de ia competência, só adquirida na prática duma multiplicidade de textos, Laurent Jenny relaciona a competência desse decodificador à cultura e memória de cada época (assim, por exemplo, o dogma da imitação, próprio do Renascimento e a recorrência da paródia, segundo Linda Hutcheon, na poética contemporânea) , bem como às preocupações formais dos seus escritores, para quem a essência da intertextualidade se constituiria no

. . . trabalho de assimilação e de transformação que caracteriza todo e qualquer processo intertextual. As obras literárias nunca são simples memórias -reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus precursores, como diria Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define70.

É num sentido próximo a esse que Laurent Jenny71 interpreta o termo intertextualidade de Julia Kristeva, não apenas como critica das fontes, ou seja, a referência de um texto em outro, mas no sentido da transposição (termo que a autora prioriza): "qualquer texto se constrói como um mosaico de relações e é absorção e transformação dum outro texto"72.

Quanto às fronteiras da intertextualidade, Laurent Jenny procura delimitar a identificação do processo intertextual e o seu nível de relação – como, por exemplo, a intertextualidade fraca, pela retomada de um determinado sema em outra construção temática, mas sem uma relação estrutural, ou a intertextualidade forte, pelas correlações de simetrias e também contradições, que esfacelam a linearidade o texto: “O problema da intertextualidade é fazer caber vários textos num só, sem que se destruam mutuamente, e sem que o intertexto [...] se estilhace como totalidade estruturada"73. Assim, fala-se em intertextualidade quando se estabelece uma relação temática entre textos, peia imagem, sema, ideologia ou referência genérica que eles possam suscitar.

Determinadas figuras de retórica, seriam, segundo Laurent Jenny, mais propicias à intertextualidade e também UM instrumento eficaz de percepção dos tipos e níveis de alterações no processo intertextual. São elas:

- Paronomásia : o que se modifica em relação ao texto de origem é a grafia, antendo-se a sonoridade; com isso, cria-se um novo sentido para o texto.

- Elipse: “repetição truncada dum texto ou dum arquitexto"74, marcada pela descontinuidade e fragmentos justapostos.

-Amplificação: desenvolvimento das virtualidades semânticas do texto de origem, pela retomada e ampliação de seus temas, por meio de metáforas, por exemplo. Esta ampliação pode ser reforçada por um caráter irónico e pela inversão semântica.

- Hipérbole: intensifica-se a qualificação de um texto, até o limite de se caracterizar o próprio código representativo. - Interversões: o autor subdivide as ocorrências desta figura, cujo valor antifrástico torna-a recorrente na paródia, dada a sua interferência em elementos textuais diversos. Dentre elas, destacamos: a) Interversão da situação enunciativa: muda o sujeito da enunciação ou o interlocutor.

b) Interversão de qualificação: transformam-se, antiteticamente, os elementos (sujeitos, circunstâncias) do texto de origem. Quando tal interversão se dá a nível de símbolo, o autor a denomina interversão dos valores simbólicos.

- Mudança de nível de sentido: a apropriação do texto pressuposto se dá a partir de outras

conotações em relação a sua metáfora generalizada.

Desse modo, Laurent Jenny reitera a condição lúdicar transformadora e até transgressora da intertextualidade e ainda da sua carga múltipla de referências e da sua consciência critica cultural: "A intertextualidade é pois máquina perturbadora. Trata-se de não deixar o sentido em sossego - de evitar o triunfo do "clichê" por ura trabalho de transformação"75.

Intertextualidade e Paródia

A postura poética mais autenticamente contemporânea, segundo Hutcheon, é o paradoxo - pela sua condição excêntrica, não paradigmática - cuja linguagem toma quase sempre a forma paródica, intertextual, refletindo uma cumplicidade com o passado estético, porém de modo critico. Portanto, o recurso que melhor expressaria a postura auto-reflexiva da arte contemporânea seria a prática da paródia, que explicita a presença do passado: o repensar pela reflexão como reelaboração critica, nunca retorno nostálgico. A paródia, repensada por Hutcheon na poética contemporânea, assume sua condição paradoxal, na medida em que se coloca "contra" e "ao lado de" referentes culturais e estéticos passados, pela própria etimologia do prefixo para: representa a autoridade e a

transgressão, a continuidade e a mudança, pois retoma o passado (inclusive,depende dele para se realizar), mas subverte-o, marcando a diferença:

A linguagem das margens e das fronteiras assinala uma posição do paradoxo: tanto dentro como fora. Tendo-se essa posição, não surpreende que a forma muitas vezes assumida pela heterogeneidade e pela diferença na arte pós-moderna seja a da paródia - a forma Intertextual que constituir paradoxalmente, uma transgressão autorizada, pois sua irônica diferença se estabelece no próprio âmago da semelhança76,

Ao atuar paradoxalmente, inserindo e depois subvertendo os contextos como significantes, a poética contemporânea refaz o sentido de originalidade: utiliza a nostalgia, pela reescritura, mas, pela ironia, provoca a ruptura e permite o distanciamento critico. Assim, o texto contemporâneo problematiza toda a noção da criação estética e utiliza a paródia como forma de incorporar literalmente o passado no presente:

Em certo sentido, a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois paradoxalmente incorpora e desafia aquilo a que parodia.Ela também obriga a uma reconsideração da ideia de origem ou originalidade[...]

A paródia, enquanto expressão dessa poética que restabelece a posição do produtor textual como uma das posições de sujeito no processo da enunciação, parece pressupor o que Hutcheon denomina intenção codificadora, oSEJA a performance do produtor textual, hoje, com sua interação interativa, que leva à inferência do leitor:

...quando chamamos a alguma coisa uma paródia, postulamos alguma Intenção codificadora que lance um olhar critico e diferenciador ao passado artístico, uma intenção que nós, como leitores , inferimos, então, a partir da sua inscrição (disfarçada ou aberta) no texto [...]. Todavia, o texto pode implicar o que lhe aprouver, e o leitor pode não “apanhar", mesmo assim, a implicação. Por esta razão, talvez seja mais verdadeiro para a nossa experiência de leitura da paródia falar do codificador inferido e do processo de codificação. Mas esta manobra de desvio não nos isenta ainda de ter de tratar do produtor textual da paródia, ainda que inferido por nós, como leitores78.

Então o processo paródico envolve, além da sua condição intertextual, uma intenção de parodiar outra obra, bem como de lembrar esse texto de fundo, interpretando-o na sua relação com a paródia e levando o leitor à condição de decodificador da intenção codificada.

Quando trata da competência do leitor, Hutcheon deixa clara a necessidade de os códigos serem “compartilhados para que a paródia seja compreendida como paródia”79. Então, o leitor pode inferir uma intenção paródica quando percebe essa voz dupla em contraponto:

Sem dúvida que a paródia exige do parodista (real e Inferido) multa perícia, saber, entendimento critico e, muitas vezes, finura [...]. Mas também o leitor deve partilhar uma certa quantidade desta sofisticação, se não desta perícia, pois é o leitorque tem de efectuar a descodificação dos textos sobrepostos, por meio da sua competência genérica80.

O leitor deve conhecer o texto ou as convenções que estão sendo parodiadas, o que já pode ter sido inferido pelo produtor textual. Caso não haja essa confiança plena no conhecimento do leitor em relação ao texto ou código parodiado, os textos paródicos tenderão a ser mais abertamente didáticos. Portanto, no processo geral da intertextualidade, a paródia evidencia seu caráter particular: em seu diálogo com o passado, assume uma postura transformadora, de dessacralizaçao, assinalando a mudança no lugar da submissão, pois institui ao que foi retomado novos valores e sentidos. A paródia se individualiza em relação a outros procedimentos intertextuais - como o pastiche, a citação e a alusão - na medida em que transcontextualiza (conforme Genette, em Palimpsests) o que foi lembrado: apropria-se da estética do passado, fazendo-a recircular com a marca da diferença critica, enquanto o pastiche e a alusão, por exemplo, se dão a nível de imitação, pela semelhança e correspondência em relação ao modelo:

A paródia está, pois, relacionada com o burlesco, a farsa, o pastiche, o plagiarismo, a citação e a alusão, mas mantém-se distinto deles. Partiha com eles uma restrição de foco: a sua repetição é sempre de outro texto discursivo. O ethos desse acto de repetição [sua contextualizaçâo, a relação produção/inferência] pode variar, mas o seu "alvo"é sempre intramural neste sentido. Como pode então chegar a contundir-se a paródia com a sátira, que é extramural (social, moral) no seu objectivo aperfeiçoador de ridicularizar os vícios e loucuras da Humanidade, tendo em vista a sua correção? É que a confusão existe, sem a menor dúvida81.

Portanto, em sua afinidade natural com a sátira - e cambem a ironia - evidencia-se o distanciamento critico da paródia. A sátira, em sua crítica social, moral, seria a afirmação negativa sobre o que é satirizado, mas a paródia (intramural) não tem necessariamente julgamento negativo. Quanto à ironia, esta se caracteriza pelo contraste de sentimentos associado a uma intenção avaliadora (que representa a sua função pragmática), enquanto a paródia não possui tal intenção, mas, por também apresentar sentido contrastante, a nível textual, a paródia serve-se da ironia como mecanismo retórico preferido. Dai a referência à paródia hoje, como "a este jogo irónico com convenções múltiplas, a esta repetição alargada com diferença crítica^82. A ironia funciona como estratégia no discurso paródico,

na medida em que insere a posição do leitor -pela sua avaliação e interpretação a partir do contraste entre o que está implícito e o que é realmente afirmado:

Conquanto a realização e a forma da paródia seja os da incorporação, a sua função é de separação e contraste. Ao contrário da imitação, da citação ou até da alusão, a paródia exige essa distância irônica e crítica83.

3. O SENTIDO DO SOM : A LÍRICA NA OBRA DE JOÃO ROSCO

Ao centrarmos nossa análise na obra de um compositor da música popular brasileira, torna-se relevante situar a poética na sua relação com a música e buscar o valor estético dessa conjugação.

Mikel Dufrenne, em seu estudo sobre o poético r confere a legitimidade da aproximação entre poesia e música, lembrando a origem da poesia e sua relação com o canto:

Se a música se interessa pela poesia (...) é porque a poesia já encerra, mais que uma promessa de música, uma música espontânea. A palavra poética canta. É esse canto que a leitura em voz alta realiza e que o poeta põe à prova84.

Essa música imanente, de que a poesia é susceptível, revela-se na própria função poética que a música pode representar, em virtude da carga de expressão que se transfere do poema para a música. Dufrenne reconhece, no verbo poético, a conjugação do aspecto musical e da função semântica das palavras e nos permite reconhecer, na relação poesia e música, uma conjugação de efeitos, capaz de possibilitar nova dimensão significante e imaginante à percepção do poético: o poeta-músico alia a uma linguagem necessariamente poética, toda a expressividade da voz, a improvisação e os ritmos, num manuseio sonoro da linguagem que, aliado ao sentido e às intenções, conduz a palavra para novas aventuras. Também representa, para nós, importante referência quanto à relação poesia e música, a teoria dos gêneros proposto por Northrop Frye que, em Anatomia da critica35, constrói sua análise a partir do que ele denomina radical de apresentação, baseando-se na expressão oral da linguagem poética. Para Frye, a criação poética é um processo retórico associativo, abaixo do limiar da consciência: são ligações de som e de sentido ambíguo, ligações de memória. Há, portanto, o gênero especifico da palavra falada e do ouvinte: épos, poemas destinados à recitação. Assim, o processo associativo oracular se dá pela concentração de som e ambigüidade de sentido. Frye retoma as ligações tr adicionai s da lírica com a música, através dos poemas para serem cantados, termo que o teórico substitui por entoados, pois a entoação enfatiza as palavras enquanto palavras e o canto intensifica a música. Tal processo recebe, em Frye, a denominação específica de mélos, poesia ánaloga à música, pelas associações sonoras: rima, issonância, aliteração, trocadilhos (com seu sentido humoristico, irónico, paródico).

Nesse caso, o ritmo íntecede à seleção de palavras, ao "conteúdo" do poema, a seu sentido. O principio fundamental do mélos é, assim, oencanto, padrão oracular, que o teórico associa ao sentido figurado da harmony:

... a música não é uma seqüência de harmonias, de modo algum, mas uma seqüência de dissonâncias que terminam em harmonia, sendo a única "harmonia” estável e permanente, em música, o acorde da tónica final que harmoniza. É mais provável que seja o poema áspero, desagradável, dissonante (presumindo-se, por certo, alguma competência técnica no poeta) o que mostre na poesia a tensão e o acentuado ímpeto motriz da música86.

A harmonia representa, portanto, seqüências dissonantes com final harmônico. Assim, o poeta musical não é aquele que cria um fluxo equilibrado de sons, mas sons agudos, linguagem intrincada e obscura, desequilíbrio sonoro (entre vogais e consoantes) e de ritmo. Mais propicio a tal linguagem poética, parece-nos o que Frye denomina, quanto aos modos temáticos87, poema episódico, cuja forma tende a ser descontinua, e para o qual é fundamental o momento estético, intemporal. Dentre os modos temáticos, particulariza-se o modo irônico que, segundo Frye, é explicado pelas teorias críticas da descontinuidade essencial da poesia, próxima à fragmentação da linguagem poética, como vimos anteriormente em Hugo Friedrich. Como exemplo, Frye, assim como Friedrich, retoma a poesia simbolista, por renunciar à retórica e assumir a função literal do poeta: de ser um fazedor de poemas, a partir de sua perícia profissional. Propondo-se a uma análise das possíveis conexões entre poesia e música, o escritor e critico literário Affonso Romano de Sanf’Anna, em Moderna poesia e música popular brasileira, configura a nossa música popular como produto estético possível, considerando as relações de equivalências e identidades entre música e poesia, enquanto processos históricos e culturais brasileiros. O autor registra a marca da evolução da música popular brasileira -das origens do samba à Bossa nova, Tropicalismo, canções de protesto e outras manifestações - num fenómeno não apenas sonoro, mas num produto escrito, estendendo, com isso, o conceito de música popular e, principalmente, o de literatura:

Os textos de música popular brasileira passaram a ser estudados rotineiramente nos cursos de literatura de nossas Faculdades de Letras. Isto se deve a uma expansão da área de interesse dos professores e alunos, e a uma confluência entre música e poesia que cada vez mais se acentua88,

Tal fenómeno se manifesta desde a década de cinquenta, a partir de elementos decisivos, como a criação da Revista de música popular brasileira, de Lúcio Rangel e a integração do poeta Vinícius de Moraes com a música popular, tornando mais sistemática a ligação entre música e literatura.

Efeitos de ordem estilística, expressos no samba brasileiro, teriam relação com a estética do nosso modernismo, em sua prática poética - a construção do ritmo interior do poeta, rimas organizadas de modo imprevisto, o sentido da liberação e espontaneidade da construção textual, a linguagem prosaica:

(...) os poetas modernistas redescobriram a língua que se falava no país r abrasileiraram a sintaxe, a semântica e o vocabulário na tentativa de se alcançar aquilo que se chamou "língua brasileira" - conforme as muitas tentativas de Mário de Andrade principalmente. Descobriu-se a ineficácia do conceito de "palavra poética^ e "palavra não poética^. O poético nascia do contexto, da maneira de se empregar esse ou aquele termo no estranhamento que o poema trazia ao seu leitor89.

Tal efeito de estranhamento poderia ocorrer a nível morfológico (construção de palavras), sintático (organização não convencional das palavras na frase) e de género (desvio dos tipos tradicionais de composição), acentuando, parece-nos, a estrutura lúdica da expressão poética, o jogo de ambiguidade e multiplicidade - onde a verdade não tem centro - e o caminho para as próprias relações intertextuais, cujos níveis Affonso Romano estabelece, em Paródia, Paráfrase & Cia90: verbal (a nível da palavra textual), formal (retomada de estilo e efeitos técnicos de um texto por outro) e temático (a releitura da forma e do espírito de um autor).

Assim, na relação estética entre poesia e música popular brasileira,

o que se refez, de certo-modo [...], foi a tradição do poeta como cantor da sociedade quando não havia a divisão entre "literatura de massa" e "literatura literária” [...]. O que importa é que a poesia, que é a reinvenção da palavra, se realize porque ela é a reinvenção da vida da própria comunidade91.

3.1 Música e interdiscursividade

A música, particularmente, possui também amplas possibilidades de transtextualizar-se, a nível de forma ritimo,texto, confrontação estilística, o que nos leva a ar de empréstimo, em Linda Hutcheon, o termo interdiscursividade, "mais preciso para as formas coletivas dediscurso" passíveis de uma postura paródica temporânea:

... um dos efeitos dessa pluralizaçao discursiva é o de que o centro [. . .] é disperso. As margens e as extremidades adquirem um novo valor. O "ex-cêntrico" - tanto como off-centro quanto como descentralizado -passa a receber atenção. Aquilo que

é "diferente" é valorizado em oposição à "não identidade^ elitista e alienada e também ao impulso uniformizador da cultura de massa93.

Hutcheon estende, assim, a paródia - como um fenômeno plexo nas artes, hoje - à paródia musical, cujo processo dá pela integração da revisão, reexecução e inversão de obras de arte anteriores. Tem um poder transformador, capaz de criar novas sínteses, nova maneira de ler o convencional num processo de liberação do discurso e numa tomada de consciência critica. A música seria, portanto, também uma expressão estética que permuta valores próprios e alcança os processos de intertextualidade, na busca de novas formas de relação estética que a redimensionam e lhe conferem um caráter de criatividade e produtividade a partir da tradição, da revisão transformadora do legado do passado:

A música tem participado, com as outras artes, neste "virar-se para dentro" geral, a fim de reflectir sobre a sua própria constituição. Segundo alguns analistas, o principal assunto e fonte de interesse de grande parte da música contemporânea são as suas propriedades formais (Morgan, 1977). Uma das principais maneiras da música se poder comentar a si mesma do interior (por oposição ao apoio em descrições de planeamento pré-compositivo) é através de reelaborações paródicas de música já existente94.

Na paródia musical, cujo diálogo com o passado o faz recircular, em vez de imortalizar, também se aplicaria a perspectiva teórica dualista assumida por Hutcheon - a análise formal e pragmática, tornando necessária a "consciência dual do ouvinte da música de voz dupla”95, para se perceber a ampliação, distorção, variação, reelaboração num novo contexto, por uma nova consciência musical, a confrontação estilística e sua recodificação: "Na música, aquilo a que vulgarmente se chama citação, ou empréstimo, tornou-se um expediente estético autoconsciente e significativo apenas neste século"96. Esse abrir-se para a história de modo não inocente, com distância crítica, não tem necessariamente, na paródia, uma intenção ridicularizadora, especialmente na paródia musical, cujo conceito é mais amplo e, segundo Hutcheon97, possui dois sentidos distintos: o primeiro, mais próximo do ethos respeitoso da paródia (a intenção de um texto literário inferida pelo decodificador) em que a paródia musical é uma reelaboração de material preexistente, sem intenção ridicularizadora. Seria um "exercício genuinamente recriativo de variação livre"98. Mas, o que acentua, na música, o traço moderno de paródia como repetição com diferença é a "distância entre o modelo e a paródia que é criada, por meio de uma dicotomia estilística"99. Assim, a paródia se dá na música, por exemplo, pela inversão do ritmo clássico, ao qual se sobrepõe o popular, desvestido de aura. Ainda, a paródia manifesta-se na transcontextualização de citações de outros compositores, em que se percebe a diferença pela transformação mútua das partes da obra. O segundo sentido, não genérico, é a paródia como criação intencionalmente humorística: fenómeno limitado, reduzido à citação de temas isolados, ritmos, acordes, etc. É, portanto, o primeiro sentido de paródia musical que pode envolver, numa visão contemporânea, cumplicidade e distância, "reorquestrando" o antigo para o propósito presente, que é mostrar a diferença. Na obra O som e o sentido100, José Miguel Wisnik, pianista, compositor e professor de literatura brasileira na universidade de São Paulo, tematiza a história da linguagem musical do Ocidente, não especificamente pela evolução dos estilos musicais, mas pela

interconexão das estruturas produtoras de sentido - a experiência acústica concreta, a língua, o mito, a sociedade -, fato que nos parece acentuar, nas possibilidades de análise da estética musical, seu caráter de interdiscursividade:

Se é história, o livro poderia ser definido como o esboço de uma história da linguagem musical, em seu contracanto com a sociedade e com certas construções mitológicas, filosóficas e literárias.

O núcleo dessa história está nos capítulos "Modal”, "Tonal” e "Serial", precedidos de uma descrição geral do fenómeno sonoro e de seus modos de uso (^Som,ruído e silêncio”), e seguidos de um comentário sobre as músicas da atualldade ("Simultaneldades^)101.

O autor parte da explicitação dos elementos compositivos de som (emissões pulsantes, baseadas nas dimensões de durações rítmicas e alturas melódico-harmônicas) e suas relações de interdependência. Assim, a música, em sua história, é uma conversa redimensionada, a cada tempo, entre som e ruído, sendo mais frágil o limiar dessa distinção na música contemporânea.

O grau de ruído que se ouve num som varia conforme o contexto. De todo modo, o ruído é um som que desorganizaoutro e se traduz, em arte, como um elemento virtualmente criativo e provocador de novas linguagens:

Os pulsos rítmicos são complexos e se traduzem em tempos e contratempos; os pulsos melódico-harmônicos são complexos e prometam estabilidades e instabilidades harmônicas. Tempo e contratempo, consonância e dissonância são modos como interpretamos certas combinações de certas propriedades básicas do som [...]. Os sons entram em diálogo e exprimem semelhanças e diferenças na medida em que põem em jogo a complexidade da onda sonora. É o diálogo dessas complexidades que engendra as músicas102.

A música das várias culturas estará ligada, portanto, à oposição e mistura entre som e ruído, o que confere ao som um sentido antropológico de produção e interpretação das culturas, evidenciado nos campos modal (voltado para a pulsação rítmica), tonal (em que a melodia e harmonia estão em primeiro plano, enquanto o ritmo representa o suporte e o ruído é sublimado, por exemplo, na música clássica) e serial (contraposição à tonalidade, polifonia).

Particularizamos o campo modal para análise, na medida da sua reconhecida relação, por Wisnik, com os acontecimentos simultâneos da música contemporânea: "Os últimos desdobramentos da música pedem que as músicas modais voltem a ser pensadas no quadro do contemporâneo"103, visto que a história da música, em geral, toma por parâmetro a predominância da música européia, tonal,enquanto a música, hoje, tornou-se simultânea e é preciso dar conta dessas situações novas.

O campo modal é próprio das sociedades pré-capitalistas, das tradições orientais e ocidentais (pré-modernas) e compõe-se das músicas dos povos africanos e árabes, entre outros - música como experiência do sagrado, de base ritualistica:

 música modal é a ruidosa, brilhante e intensa ritualização da trama simbólica em que a música está investida de um poder (mágico, terapêutico e destrutivo) que faz com que a sua prática seja cercada de interdições e cuidados rituais104.

Por rito sacrificial entende-se a sublimação da violência destruidora do sacrifício, justamente pela ritualização. Dessa ambivalência vem a analogia com a duplicidade do som, ordem e desordem, em que o ruído -destruidor, ameaçador, "sacrificado" - é convertido em som, de onde se extraem harmonias. Nessa visão mítica do mundo e de sua força sonora, se

revelaria a natureza essencialmente musical deste. A música aparece aí como o modo da presença do ser, que tem sua sede privilegiada na voz, geradora, no limite, de uma proferição analógica do símbolo, ligado ao centro, ao círculo, ao mito/rito e à encanta cão como modo de articulação entre a palavra e a música105.

É nesse sentido, de ambivalência da música contemporânea e modal (não no sentido do retorno ao campo modal, inclusive pela perspectiva de um mundo, hoje, descentrado e dessacralizado, como discutimos amplamente, a partir de Hutcheon e Benjamin, por exemplo), que compreeendemos certa linha do trabalho musical de João Bosco, particularizada na obra Gagabirô, cujo "símbolo" seria a música-titulo, de base ritualistica, como se pode comprovar no encarte que acompanha o citado disco:

CANTO DE WEMBA. Entre los abakuá existen cantos para cada uma de las funciones rituales. Los cantos son siempre aiternantes entre un solista y el coro. Los textos de los cantos tambiém hacen referencia a las leyendas originarias. Toda ia ceremonia no és mas que ia repetición de viejos pasajes que se atribuyen ai oriqen africano de ia secta. Ei canto de wemba (brujeria) se realiza dentro dei cuarto sagrado o fambá.

Do Ip "Viejos Cantos Afrocubanos”, produzido por EGREM, La Habana, Cuba106,

Assim, o ruído, como linguagem musical, interfere sobre o código tonal, provocando dissonância generalizada, alterações rítmicas, de timbres e texturas, e fazendo ressoar a música modal,

basicamente músicas do pulso, do ritmo, da produção de uma outra ordem de duração, subordinada a prioridades rituais. Pois bem: essas músicas não poderiam deixar de ter a presença muito forte das percussões (tambores, guizos, gongos, pandeiros), que são os testemunhos mais próximos, entre todas as famílias de instrumentos, do mundo do ruído. E é também um inundo de timbres: instrumentos que são vozes e vozes que são instrumentos (vozes-tambores, vozes-cítaras vozes-flautas, vozes-guizos, vozes-gozo)107.

Mas, o que Wisnik conclui, no capitulo "Simultaneidade"108, é que há uma espécie de combinação sincrônica entre os campos musicais e sua relação com o tom: assim, o mundo modal não deixa de existir em função do tonal e este, por sua vez, em função do serial. Ocorre, na verdade, um processo de circularidade e descentramento da música contemporânea, cuja linguagem criativa faz a diferença, tornando, inclusive, mais fluida a divisão entre música erudita e popular, embora haja ainda a distinção entre estrutura profunda (estruturas nao-lineares, texturas complexas) e estrutura superficial (os elementos mais aparentes da música: regularidade rítmica, linearidade melódica):

A música passou ã tramar outras tramas. Para muitos amantes da música isso é insuportável. Para outros, esse estado de coisas nega tudo o que ela foi. O meu assunto é manter vivo o campo da escuta, tomando como base o que se tornou evidente, que a música passa a pedir uma escuta propriamente musical, isto é, polifônica [...]. É possível ouvir tudo de novo e estar soando já diferentemente109.

3.2 - O discurso da crítica

João Bosco, compositor, cantor e violonista da música popular brasileira, tem uma trajetória artística expoente desde a década de 70, pautada na sua formação musicaleclética, "cercada peias sanfonas caipiras, pela banda local [de sua cidade, Ponte Nova], pelos cantores do rádio e ladainhas das igrejas"110 - influências, em clima barroco,das montanhas minerais. Atraído pelo jazz, bossa nova e tropicalismo, sua memória musical remonta às origens da música popular brasileira e seus grandes nomes, que perpassam as composições de Bosco e suas interpretações de canções alheias, como releituras da tradição: "o disco da Império Serrano destaca a leitura moderna (e primorosa) que João Bosco dá ao samba "Heróis da Liberdade"111.

As influências são múltiplas: Vilia Lobos, Jackson do Pandeiro, João da Baiana, Candeia, Silas de Oliveira,Aniceto, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Donga, Sinhô, Eivis Presley, Ravel ..., referenciados implícita ou explicitamente, através da palavra, ritmo e voz:

Gosto muito de uma palavra do Haroldo de Campos, trsnscriação. Acredito que uma das grandes funções do artista é transformar a criação. As coisas valiosas não podem ficar inertes. No Japão, eu acordava muito cedo e ficava acompanhando um canto feito por velhos que trabalhavam na feira. Era uma espécie de música e de código entre eles. Nessas horas você fica como a imagem de Michelângelo na Capela Sistina - tentando alcançar a mão do criador.

(Jornal do Brasil, 28 nov. 1993)

Podemos, então, falar em prática de interdiscursividade na obra musical de João Bosco, como pesquisador de novas sonoridades, combinando tradição e criação, por meio dejogos de palavras - que ressaltam o caráter percussivo de sua música - e versos desconcertantes em ritmos insólitos deversificados. Para tanto, contribui sua condição de grande ouvinte a par de tudo que se faz no mundo" (Veja, 22 out. 1991) , por sua inquietude criadora. Suas experiências com o som e a palavra geram uma sonoridade ligada a um vocabulário próprio, com implicações ideológicas e culturais, peia apropriação do passado com a consciência da distância critica. Dal se explicita uma visão interdiscursiva ,e intertextual - particularmente paródica, em sua concepção contemporânea - da música popular brasileira: a memória cultural revisitada em novo contexto. Há, em João Bosco, a reinterpretação das próprias canções, num processo de recriação pela auto referência e jogo verbal: fragmentação e recomposição, associando o lírico e o lúdico, pelos quais atribui novos sentidos ao som.

A identificação entre o autor e suas fontes se dá numa perspectiva verbal, formal e temática. Verbal, pela busca constante da palavra:

Não vivo sem a poesia. É o meu alimento diário. Trabalhei com grandes poetas e letristas como Vinícius de Moraes, Aldir Blanc, Capinam, Abel Silva, António Cícero e Wally Salomão. A poesia me ajuda a traduzir e me estimula a ter raciocínios musicais diferentes. Como trabalho muito com onomatopéias, eu sinto uma grande necessidade de buscar a forma primitiva das palavras.

(Jornal do Brasil, 28 nov. 1993)

formal, pela criação de novas estruturas rítmicas e harmônicas:

O que faz de Bosco um intérprete tão inspirado é sua capacidade de reinventar

a estrutura rítmica e harmônica da composições sem descaracterizar as

músicas. Violonista seguro, ele adiciona elementos às canções sem tirar os que já

nasceram com elas. No "Forró em Limoeiro", por exemplo [da obra "Dá licença

meu senhor"], ele cria e executa um coro de vozes femininas típicas de uma

região da África muçulmana. Mas o acordeom de Sivuca está la, garantindo

a identidade nordestina do forró de Edgar Ferreira.

(O Globo, 17 out. 1995)

Temática, pelo sentido cultural que Bosco atribui a sua obra:

A música brasileira é forte o suficiente para resistir e saber incorporar qualquer

tipo de experiência. Ela é a porta-voz de uma riqueza cultural muito ampla e através dela podemos reconstituir cada detalhe da história do pais,

(Jornal do Brasil, 28 nov. 1993)

João Bosco é, assim, um operador da língua com intenção transformadora, e pela prática do intertexto - uma necessidade da arte contemporânea - revê o passado de modo critico e consciente, buscando novas formas de relação estética e cultural.

Nos anos 80, João Bosco parte para novas pesquisas i:noras, em estilo vigoroso e pessoal. Já em Comissão de Frente, de 1982, busca um novo caminho além da proposta musical já consagrada por crítica e público. "Sou um mestiço mesmo, quero é ir mais longe para ver as coisas melhor. Acho que meus discos são diferentes entre si, como devem ser os discos de um pessoa que busca sempre". (O Globo, 19 dez. 1982). Cria uma linguagem própria, com base em suas referências culturais e na relação intransferível da música com sua expressão verbal:

... a sonoridade da música popular brasileira está muito ligada ao nosso vocabulário. Se invertermos essa sonoridade, nós podemos perder nas sonoridades e, ás vezes, isso é complicado, e depois, se uma música tem que ser bem sucedida fora de seu habitat, ela deve ser bem sucedida no seu idioma, para preservar inclusive a sua origem cultural.

(Tribuna da Tarde, 4 nov. 1991)

Há, aqui a consciência da poesia como linguagem universal: "Minha preocupação é ver o Brasil lá de fora e pensar nessa teoria da universalização da música. Nada de cantar meu samba em inglês ou francês"(Jornal de Ponte Nova, 20 jan. 1984); ao mesmo tempo, permanece o sentido de pluralidade: "... a ideia de diferentes caminhos sempre me fascinou. Sou descendente de árabe, nômade por natureza" (O Globo, 11Set. 1995). Por isso, "... Bosco sabe fundir mundos musicais (aparentemente) diversos" (O Globo, 17 set. 1994).Essa multiplicidade sonora leva seu dialeto, de forma compreensível, além das nossas fronteiras, em suas apresentações internacionais:

Bosco é um encantador, um contista, um mágico, um aventureiro e, sobretudo, um ritmista implacável.

Não se dirá de um poeta mais do que ele é. Ele não só acompanha o violão: ele dá ao Instrumento, como puro músico, uma cor verbal. Ele não joga com a língua, ele a ref'az, ele a inventa, ele a vê112.

Entre ritmos compostos por jongos, sambas, cantos afros e outros, Bosco cria as grandes obras desse momento instigante de sua produção artística - a década de 80 -, buscando novos sons e nova linguagem, em Gagabirô (1984) .Cabeça de nego (1986), Ai ai ai de mim (1986) e Bosco (1989), obras que representarão, para nós, objetos de análise da lírica de João Bosco.

A negritude brasileira e a sonoridade poética traçam seu caminho inicial em Gagabirô:

"Gagabirô" (...), gravado ao vivo - e a sequência de shows pelo Brasil e pela Europa, só voz e violão - já faziam prever uma mudança no caminho musical de João Bosco. Mas que ele subisse à densidade desse "Cabeça de nego" (...), nem mesmo João Bosco poderia adivinhar. Há todo um toque místico que ele não nega - e mágico, por ele assumido nos caminhos e descaminhos das oito surpreendentes faixas de “Cabeça de nego", trabalho intenso e definitivo.

(O Globo, 11 out. 1986)

Cabeça de nego se projeta, assim, como o grande momento dessa intenção transformadora: "...é a escala madura de uma trajetória iniciada nas dançantes congadas do interior de Minas Gerais" (Isto é, 25 jul. 1986). O resultado é pura ousadia:

... a imagem que fica de "Cabeça de nego" é a da ponta do iceberg. Neste rumo, João envereda por atalho inexplorado na selva selvagem, (como a das tumbadoras de Torquato Neto, que estaria dando pulos de felicidade, se pudesse ouvir o disco) da geléia geral que desenha a música popular brasileira. Só que, partindo de João, selva e geléia bem. equalizadas: o misticismo, o "cabôco" Silas, o susto transparente da novidade funcionando a serviço da consciência de raça, da preocupação étnica, da busca de uma identidade cultural

(O Globo, 11 out. 1986)

Em Ai ai ai de mim, João Bosco retoma o trabalho pessoal com a linguagem poética, tematizada, agora, tanto pela lembrança de uma cena, que ficou na memória ("Das Dores de Oratórios"), como pela expressão metalingüistica da percepção de sua arte ("Eu e minha guitarra"):

João iniciou, no LP AI ai ai de mim.um período de pesquisas com novas sonoridades, e acabou se transformando num mago da pesquisa de ritmos. Ele é capaz de combinar jongos e scats de jazz numa mesma música sem, com isso, deixar de soar como João Bosco.

(Veja, 23 out.1991)

BOSCO é um disco "à disposição das exigências sonoras"(Bosco, 1989 - encarte) conjugadas, mais do que nunca, à palavra, numa relação efetiva entre sentido e som (a maioria dos versos desse disco são de autoria de João Bosco):

Por isso, "Bosco" se organizou como boca cheia de retalhos, que contam histórias do passado, presente e futuro se misturando. Velhas pedras para novas construções, velhas madeiras ideais para novas chamas. Se a paisagem não muda, troca-se de olho. Essa é a medida cie "Bosco": para lá de babá, e para cá de ali.

Abraços, João Bosco (Bosco, 1989-encarte)

Assim, na linha do não convencional, em termos de palavra e som,

... João Bosco está despudoradamente reinventando a música popular brasileira, alinhando novas formas rítmicas, devastando horizontes melódicos, metamorfoseando harmonias, poetizando a realidade com uma sonoridade impar e, dignamente, cantando sem nenhum temor.

(Bosco, 1989 – encarte)

Na década de 90, João Bosco sustenta, a partir de novas perspectivas estéticas, a condição interdiscursiva de sua obra, como ele mesmo atesta, em Zona de fronteira:

A unidade do disco é o cruzamento entre as culturas (...). Quero improvisar novos espaços, inventar novos países musicais. Continuar cruzando as Clementinas com os Gillespie s e ver no que dá. Acho gue as coisas ficam mais ricas assim.

(Zona de fronteira, 1991-encarte)

Percebe-se tal fusão, por exemplo, em "Granito", "um samba solenizado pelos violinos, (...) seu "canto negroriano", uma fusão de sua descendência árabe com vilia-Lobos"(Jornal do Brasil, 1991), e "Paranóia", em que

há espaço para uma poesia "formal", escrita pêlos poetas, e outra "informal", em que João faz desfilar o sotaque negróide de marca registrada (...). "Paranóia", um samba com letra "que não é de samba", mas que "burla a alfândega do samba" e acaba sendo ouvido como tal.

(Estado de São Paulo, 22 out.1991)

Esse "samba" tem, segundo João Bosco, uma linha direta com seu trabalho anterior:

Um samba bem balançado (...). Faço improvisos, com a voz, sons percussivos, continuando um pouco aquela coisa do disco "Cabeça de Nego" que gravei em 85/86. Gosto de brincar com a sonoridade das palavras. Em alguns momentos começo com um som qualquer, ruído mesmo,para depois chegar nas construção das palavras.

(Zona de Foronteira, 1991 – encarte)

MTV acústico soa como um disco estranho, dado o universo estético dessa vertente musical da televisão, mas não é:

Contrabando na zona de fronteira: o violão batuqueiro de João Bosco infiltra samba na televisão do rock, a MTV(...). João Bosco tem um passado roqueiro rebatido por muita Angela Maria e Cauby Peixoto.

(Jornal do Brasil, 3 set. 1992)

Na verdade, esse disco é uma recriação de seus trabalhos anteriores (mais recentes), em que João Bosco

remodela sua obra com maestria (...). Da voz do cantor, saem sons percussivos de referências universais - já uma marca registrada das interpretações de Bosco (...). O repertório de "João Bosco MTV acústico" prioriza os últimos álbuns do artista. Mas as músicas reaparecem renovadas, em fusões sonoras e poéticas (...). Bosco evolui sem fronteiras.

(O Globo, 7 set. 1992).

É, nesse sentido, um trabalho importante, na perspectiva de nossa análise:

João Bosco fica à vontade para recriar treze temas de seus vinte anos de carreira e retrabalhar duas influências marcantes. Noel Rosa e os Beatles. Lapidada a tendência de tornar sílabas inteligíveis no antológico "Cabeça de nego" (...), o mineiro de ginga carioca e paixões mouras (...) vai além. Diminui o acento pop das parcerias com Cícero e Salomão ("Zona de fronteira", "Holofotes", "Trem Bala", "Memórias da Pele"), revitaliza a primitiva "Odilê, Odilá", feita com Maninho da Vila e exacerba o intimismo de "Papel Maché", o hit produzido por Capinam. Ensaia o momento mais emocionante do show, que faria a seguir, recriando o poema "E então, que quereis .. . ?", do russo Maiakóvski (...). João cria uma teia firme onde • amarra "Eleanor Rigby"(...), de Lennon e Mcartney com a "Fita amarela", de Noel Rosa.

(Folha de São Paulo, 10 set. 1992)

Assim, "apesar de revisional, o repertório de João Bosco acústico não apita na curva da nostalgia"(Jornal do Brasil, 2 set.1992).

O trabalho mais recente de João Bosco, Dá licença meu senhor, é uma espécie de síntese de todo esse processo interdiscursivo - nosso ponto de referência na totalidade de sua obra. É João Bosco quem o confirma:

É um projeto de pais e filhos (...). De Vílla-Lobos, que é pai de Tom Jobim, que por sua vez é pai de todos nós, passando por Zequinha de Abreu, Jackson do Pandeiro, Milton Nascimento, Ary Barroso, Derivai Caymmi, Ismael Silva, Gilberto Gil, Severino Araújo.

(O Globo, 18 jun. 1995).

Segundo Bosco, esse trabalho tem um papel similar ao disco "Cabeça de nego", quando mergulhou de corpo e alma nas raízes africanas da música popular brasileira:

Naquela época, subi a Serrinha [morro em Madureira, onde nasceu a escola de samba Império Serrano] para ficar mais perto do jongo, do samba de roda (...). Agora, quero recordar os compositores que fizeram a minha cabeça. A ideia é me esparramar e aluar antropofagicamente nisso tudo.

(O Globo, 18 jun. 1995)

Assim, desvela-se, para nós, a obra musical de João Bosco, esse criador-deglutidor de

nossos valores culturais, revestido com a simplicidade atroz de quem solta pipa e derruba fios. Apaga a luz e acende o sol.

3.3 A Prática da lírica Na lírica contemporânea, palavras, sons e conceitos se relacionam de modo novo para comunicar um certo significado aliado a uma emoção inusitada. Elaborados acima das regras de construção usual, tais textos poéticos mostram-se originais em sua organização e até mesmo na imprevisibilidade de seu resultado, que advém de um certo modo incomum de uso da linguagem, provocando o interesse estético do leitor, não só pelo que foi dito, mas pelos modos de dizer. Assim, não há, necessariamente, a linha sequencial de um tema que se desenvolva em disposição anímica diante do mundo (o que seria uma postura essencialmente lírica).Misturam-se termos dispares, cujo entrechoque vai formando o significado próprio do texto. As expressões de linguagem vão adquirindo estrutura significante própria. Num manuseio livre das palavras, o poeta cria uma linguagem lúdica aliada a uma intenção estética e cultural-recurso que pode passar pelo processo da intertextualidade e sua prática específica, a paródia. As palavras se fundem, se misturam e se recriam, o que ocorre, metalingüisticamente, com o próprio processo de criação. O efeito é dissonante: atrai e perturba. Mas permite sua compreensão além da proposta temática, pela intensidade de sua força formal. Dal a relação entre o texto e o leitor não se dar apenas a nível da compreensão, mas dia sugestão, possibilitando a representação estética da suposta imagem da desordem e do caos.

Constrói-se, então, a linguagem poética pela operação com impulsos da língua,

diferente da casualidade da inspiração. O texto lírico surge da conjugação das sonoridades da língua associadas aos significados múltiplos das palavras, advindos também dos próprios recursos sonoros da linguagem, como as aliterações e as assonâncias, que contribuem para desvelar o sentido do texto. Desse modo, tal expressão lírica apresenta uma postura original, pela inquietude das palavras, estranheza na conjugação sonora dos termos que geram, afinal, uma linguagem dissonante, fragmentária, conferindo ao texto poético um traço de ambiguidade, próprio da postura do "eu" contemporâneo em relação ao mundo.

No panorama da música popular brasileira contemporânea, João Bosco revela-se como um dos músicos mais instigantes, com sua pesquisa de novas sonoridades, ritmos e linguagens:

... acredito que a música tenha me exigido um esforço de palavras comprometidas com inquietações percussivas, sonoras. É bem aquela atitude de soprar a poeira do som pra ver o que há embaixo...

(Bosco, 1989-encarte)

A partir dos anos 80, João Bosco traça novos caminhos, numa inquietude estética que resulta em estilo vigoroso e muito peculiar. É o período que se inicia com Gagabirô - cuja faixa-titulo é o referido "Canto de Wemba", de base ritualística -, e culmina em Cabeça de nego, onde se efetiva o toque místico e mágico da sua criação poética e musical, o trabalho intenso de prospecção da negritude da alma brasileira, resultando numa sonoridade ousada.

Nesse período, passa a compor letra e música, numa linguagem monossilábica e percussiva, linguagem de atabaques e tamborins - visão ampla de negritude -, ginga vocal, palavreado rebuscado, cuja força estética é intensificada pela garganta - rico instrumento - e voz - inusitada criadora de imagens sonoras. É o que percebe Affonso Romano de Sanf’Anna:

João Basco, inventor ... um santo musical em estado de luz. Uma aura desce sobre seu corpo

e violão. Seu violão é orquestra, cachoeira de sons. Sua voz, mineira, carioca, baiana é ao mesmo tempo árabe, lusa, africana. João Pai João, macumba e jazz, Beatles e Noel. João, como o outro, o Rosa, tem dialeto próprio. Destruiu a letra dos letristas para chegar ao som puro, ao som João. Sua voz é o próprio texto, e o texto é puro pretexto.

(O Globo, 22 jan. 1992)

Som, voz e texto num processo interdiscursivo dialógico, polifônico -, perceptíveis no universo da criação de João Bosco, que estaremos reconhecendo, aqui, em algumas de suas músicas, particularmente as que compõem seu repertório da década de 80. Essa pluralidade discursiva, intertextual e essencialmente paródica - na sua concepção contemporânea, porque marca a diferença crítica na retomada do universo cultural do artista - faz-se presente em João Bosco, nos níveis rítmico - o cruzamento dos vários ritmosque cria e de que se vale -, harmônico - as criações sonoras inusitadas e as interferências transgressoras na tradição-, temático - a intenção crítica e/ou lúdica do texto e sua concepção estética - e linguistico, que torna pertinente, aqui, a referência aos sistemas de estratos de que fala Maria Luiza Ramos, especialmente o estrato fônico e o estrato das unidades de sentido. O primeiro é um forte referente na arte de João Bosco, propriamente por sua linguagem onomatopaica. Na verdade, o estrato fônico é- a estética verbal refletida em imagem acústica. Por isso, a expressividade dos elementos sonoros como recursos poéticos é única, intraduzível, universal e alcança, hoje, a palavra transracional, que é realçada por sua sonoridade e efeitos articulatórios mesmo desprovida de carga semântica. Com o ritmo, importante elemento do estrato fônico, essa linguagem chega a resultados originais e adquire valor próprio. Já o estrato das unidades de sentido privilegia os significados nominais, pois não são condicionados pela lógica de natureza monofônica. Enquanto nominais, são palavras de grande potencialidade multívoca, como os neologismos, por exemplo, em que o nome ganha caracterização existencial através da obra de arte, pois esta não se confunde com o real. Os elementos que atuam sobre esses significados nominais podem torná-los metáforas e mitos, abstraindo seu sentido imediato. Ramos destaca ainda outros procedimentos expressivos que podem atuar sobre a palavra nominal, como a inconseqüência - capaz de romper a sequência lógica do discurso, correlacionando idéias aparentemente paradoxais - e a desordenação - uma forma de inconsequência, em que a relação desconexa na ordenação das palavras que se verifica na poética contemporânea advém do sentido de fragmentação de seu próprio tempo.

Reconhecemos, na obra de João Bosco, toda essa amplitude estética - formal, linguistica, temática ..., e particularizamos músicas como "Tambores", do disco Gagabirô, significativa com pesquisa sonora, em que a linguagem poética dialoga com a pluralidade rítmica:

Caí no chá-chá-chá caí no maiobojá caí no sambabá caí no yorubá

Batá e Bembé,Yuka Arará ... Afrícaríbe, lyesa!

(Gagabirô, 1984)

Em "Bate um balaio ou Rockson do pandeiro", do mesmo disco, há um nítido intertexto com o cantor, compositor e ritmista Jackson do Pandeiro, cujo processo paródico registra a marca da diferença, um misto de homenagem e distância crítica, pela interferência do rocie no forró da "Sebastiana" (música de Rosil Cavalcanti, gravada por Jackson do Pandeiro):

Carolína Hulft! Hum! Hum! Hum!

Bate um balaio

Quero é mandacaru

ô cabra do bom!

A E I O U Y

(Gagabirô, 1984)

É em Cabeça de nego que João Bosco, de forma ousadamente homogénea, conjuga a vivência cosmopolita no campo do serialismo (jazz, rock, blues, simultaneidade e polifonia de sons) à influência da origem musical brasileira, estando, assim, aberto ao retorno e à diferença. Essa nossa origem musical remonta à modinha e ao lundu, como os primeiros gêneros musicais brasileiros: a primeira, música mais nostálgica, de salão, executada por pequenas orquestras e tem em Domingos Caldas Barbosa seu maior representante. Já o lundu é de origem africana e espelha-se na dança à base de umbigada e muito movimento, acompanhada ao violão. Tal género foi influenciado pelas orquestras de "pau e corda" (flauta, violão e cavaquinho):

Durante esses dois primeiros séculos de colonização, os únicos tipos de música ouvidos no Brasil seriam os cantos das danças rituais dos indígenas, acompanhados por instrumentos de sopro

(flautas de vários tipos, trombetas, apitos) e por maracás e bate-pés; os batuques dos africanos (na maioria das vezes também rituais, e à base de percussão de tambores, atabaques e marimbas, e ainda de palmas, xequerés e ganzás) e, finalmente, as cantigas dos europeus colonizadores1l3.

o samba surge em conseqüência dessa dança africana de roda. Seu ritmo é uma batida longa e duas breves. Em sua origem, o samba não era propriamente gênero de música, mas função, brincadeira e local do divertimento popular do som de batuques e danças, à base de umbigada. Vem, enfim, das manifestações musicais urbanas, populares, de negros e mestiços, como os batuques e rodas de pernadas ou de capoeira, na Bahia. Assim da "batucada" (música à base de percussão), nasce o samba com Caninha, João da Baiana e Donga, "dos quais os dois últimos chegaram à década de 70 do século XX, não apenas como sobreviventes de uma era extinta, mas continuando a demonstrar a validade da sua arte"114.

O primeiro samba, gravado e editado de que se tem noticia é "Pelo telefone", de Sinhô:

Pelo telefone marcou a vitória do novo ritmo que, afinal, caberia a Sinhô ajudar a estruturar, tornando-o o primeiro produto cultural urbano moderno de aceitação realmente nacional. Na verdade, ninguém melhor do que Sinhô estava preparado para isso (...). Ouvia e conhecia de cor tudo o que os baianos e descendentes dos antigos escravos africanos cantavam e dançavam sob o nome de partido alto, e foi isso que lhe permitiuimediatamente estilizar ao violão e ao piano o novo ritmo, a ponto de chegar a merecer o título famoso de "Rei do Samba "115.

Jackson do Pandeiro é outro nome ligado à tradição do samba

brasileiro:

ritmista,

cantor

e

compositor,

caracteriza-se pela "rudeza de um primitivismo e humor da Criação vocabular urbana e regional “116”.

Candeia, compositor voltado para as nossas raízes, criou o grêmio recreativo "Quilombo", em que se preservava a origem do samba: o jongo, capoeira, lundu, maracatu.

Silas de Oliveira Assumpção é autor de grandes sambas enredo, ao lado de Mano Décio da Viola, destacando-se "Heróis

da

liberdade",

que

João

Bosco

gravaria

recentemente: Com mais apenas aos Silas (...) samba.

de vinte anos, ouvidos acostumados

hinos religiosos, o contido professor começava a descobrir o som marcado do

Seus primeiros e mais empolgantes contatos com os ritmos afros se deram no

Prazer da Serrinha, uma das escolas de samba mais ricas, em termos musicais, que jamais existiu. Lá se cultivava, além das modalidades mais comuns, o jongo e o samba de partido-al td17.

É assim que "Cabeça de nego", faixa-título do disco

o mergulho africano de João Bosco está completo na faixa-título

"Cabeça de nego", onde exercita o jongo, uma tradição negra em extinção. Aprendeu que nesta arte a festa só começa depois de decifrado o enigma proposto pelo jongueiro. Armou os enigmas de seu jongo e desenlaça um rosário de homenagens.

(Isto é, 23 jul.1986)

Reverenciando a arte negra, João Bosco explora suas sonoridades com liberdade, intervindo na sua criação – a linguagem é enigma para a composição do jongo, e é pretexto para a recriação da arte de "Mãe" Clementina ("Joelha e me peça perdão,joelha") :

Cabeça de nego

Cacuracai eu tô

Perengando tô

De Aniceto é o jongo

Ô Donga Sinhô

Ô Sinhô Donga

É Gagabirô

Gagabirá

Ô zimba cuba cuba

Ô zimba cubão Zimba

cubacubá Ô zimbacu

Ô João da Bahiana!

Ô Candeia!

Ô ya Quelé Mãe

Ô Mãe Quelé Mãe Ya Quele

Mãe

Ô Clementina

Ô yaô Pi

Ô Pião Xi

Yaô Xi

Ô Pixinguinha!

Ô Batista de Fá

Ô ária de Bach

Choro de Paulo da Viola!

Ô zimba cuba

Ô zimba cubão

Silas de Oliveira Assumpção

Joelha, joelha

Joelha e me peça perdão

Joelha

Oi tarantá, menino, tarantá

Menino gosta de cavucá

Oi cavucá, menino, cavucá

Menino gosta de tarantá

Carreiro bebe

Candeeiro também bebe

Sinhô mandou dizer

Aqui não ensina boi beber.

Em "Bote babalu pra pular no pagode", há declarados

elementos roqueiros, intercalados de brasilidade:

Logo de saída, João nos surpreende com "Bote babalu pra pular no pagode", um afoxé cujo circo rítmico é desenhado pela emissão gutural de sílabas desconexas: ele assume o papel de um sambista tentando compor rock e o trabalho de letra sugere palavras num falso inglês-meio nagô, capaz de forjar desenhos sonoros audaciosos.

(O Globo, 11 out.1986)

Assim, um clássico latino é revisado em novo contexto:”Babalu” no pagode, a partir de jogos sonoros com uma linguagem pretensamente coloquial, aproxima, obliquamente, o inglês roqueiro de Elvis Presley(“Tutti – Frutti” à brasilidade sonora de João Bosco (“tutifrurê”)que retoma, parodicamente, uma das vertentes de sua formação musical(“X-Gare”, influência do rock,foi seu primeiro conjunto musical):

Bote babalu pra pular no pagode

É babalu,é...

Baby iê

Baby iê

Tutifrurê Oriure Baby iê Baby iê Creole King Pau é no ringue Johnny Batebronha é comigo Alguenfras in birinaite eu castigo

Fogo no fausguéri meu bem Pra repiendi é só dá dois no trem ... Vamo pro beco ié, ié, ié Anda no seco X-Gare é Roque Haroldo Oclóque Is banjo no xote! - Bote Babalu pra pular no pagode!

Esse texto seria um dos exemplos possíveis para se efetivar a denominação específica de épos que Northrop Frye, em sua teoria dos gêneros literários, confere aos poemas destinados à recitação, ou seja, que possuem algum modo de conexão com a audiência, mais especificamente por seu processo

associativo

oracular

que

se

pela

concentração

de

som

e

ambigüidade

de

sentido

particularizado no mélos, poesia análoga à música, pelas associações sonoras. Tais processos destacam-se nesse texto,

de modo dissonante,

pela intensidade de sua

ambigüidade semântica e associações sonoras: ~Baby" é

pronunciado com o fonema lal da nossa língua, aberto mesmo;seguem-se, em sua contextualização semântica e sonora, “birinaite", “repiendi", “X-Gare"...

Em “Funk de guerra", a homenagem é oblíqua, pois vira do avesso esse ufano Brasil brasileiro, em ritmo e tom que o título já antecipa:

Meu Brasil Brasileiro Quero ver quem pode Ser santo sincero Honesto sem ter Nenhum entrevero Com esse pagode Prá cantá - uvirundum Quero alguém que me acode!

“Sinceridade" é a retomada de um sucesso da década de 50, de autoria de Gaston Perez, no sentido mesmo de transformar a criação:

Avesso a qualquer tipo de reprodução exa ta ('me interessa transformar o que ouço'), a melodia de "Sinceridade" sofreu algumas alterações e ganhou versos atuais. O arranjo de cordas de Luiz Avelar serve para enriquecer ainda mais este "bolero¬ mouro", conforme João, "ao estilo da minha ascendência árabe", brinca. (Bosco, 1989-encarte)

Em "Varadero", nada da força política e social de um "Potemkin" - o encouraçado aqui, é outro; "composta em 81, por ocasião do Festival Internacional na cidade cubana, cujos versos colocados recentemente, em tonalidade espirituosa, saúdam o País (Bosco, 1989-encarte):

Encouraçado pato quentim Sabe se vem do Pará Ave metálica ao tucupi Sabe se tem no angar Zem! Rango que tem cheiro de flor Bem Jasmim... louvado seja o tempero Panuelo só se for em Varadero.

A obra musical de João Bosco prossegue, assim, em sua criação e transcriação, chegando, pelo som, ritmo e palavras até mesmo à significação mais essencial do lírico - a expressão ai, tom lírico por excelência, inserida "nos segredos que só pertencem ao violão e seu dono o Estão protegidos pelas paredes da posse, da intimidade e da paixão" (Ai ai ai de mim, 1986 - encarte):

Eu e minha guitarra ...Era um quê de égua e aço Fiquei um dia de montar No deitar cabelo Na trilha, carreira

É pa-ca-ta-pa-ca-tá Passa um

trem de estrela Pego a jardineira

Vou pra lá de Bagdá

Sou do engenho, sou

menino Água de rodar

moinho

Costas no meu peito

Gostas do meu jeito

Na introdução dirás:

ai ai ai ai ai ai ai ai ai

4. CONCLUSÃO A configuração da poética contemporânea, em sua condição paradoxal e excêntrica, particularizada numa possível leitura da obra musical de João Bosco, resultou na objetivação de um estudo da lírica em sua perspectiva histórica, a partir de determinada crítica literária, no nosso século. O sentido de historicidade e temporalidade na visão evolutiva dos gêneros literários tornou-se fundamental ao estudo da lírica para que se determine, hoje, sua condição múltipla, polifônica com Emil Staiger, efetiva-se o reconhecimento do caráter impuro e variável das categorias formais de composição dos gêneros, numa perspectiva teórica. Para tanto, contribui o sentido explícito de abertura da obra literária nas poéticas contemporâneas, como modelo de estrutura das possibilidades frui ti vas da obra literária, que vão da condição fundamentalmente ambígua de toda obra de arte a uma postura intencionalmente explícita de abertura na estética contemporânea. A relação fruitiva entre a literatura e o leitor explicita-se na estética da recepção, até mesmo pela condição provocadora da arte contemporânea quanto à reação do lei tor-fruidor, por sua participação experimentadora. Tal estética conduz o processo dinâmico de produção - inferência textual ao que, hoje, se denominam posições de sujeito, que representam tanto o leitor-fruidor quanto a entidade enunciativa, tornando-se ambos elementos constitutivos essenciais de texto. A condição da poética contemporânea - com seu perfil paródico, metadiscursivo, e também pela transgressão do discurso previsível, por sua linguagem dissonante (em que a comunicação antecede a compreensão) e tensões formais e de conteúdo - se dá, em parte, pela perda do sentido aurático(de origem, centro) da obra de arte,por suas possibilidades de reprodução, ampliadas no século XX, que alteram o próprio conceito de origem e pela deslegitamação do saber na sociedade contemporânea, que privilegia o critério de melhor desempenho em detrimento do critério único da verdade. o processo de intertextualidade é inegável, hoje, à condição da estética contemporânea. Implícito à arte, em geral - não há nenhuma obra de arte que seja inteiramente original, o que acarretaria, culturalmente, sua total incompreensibilidade a intertextualidade se explicita como condição efetiva da arte, hoje. As teorias do intertexto dão conta das várias possibilidades de referências textuais e até mesmo interdiscursivas. Dessas relações, a mais compatível com a visão excêntrica e paradoxal das poéticas contemporâneas é a paródia. Verifica-se, em Linda Hutcheon, a condição paradoxal da paródia, como uma estrutura que esteja, sujeito, que representam tanto o leitor-fruidor quanto a entidade enunciativa tornando-se ambos elementos constitutivos essenciais de texto. A condição da poética contemporânea - com seu perfil paródico, metadiscursivo, e também pela transgressão dodiscurso previsível, por sua linguagem dissonante (em que a comunicação antecede a compreensão) e tensões formais e de conteúdo - se dá, em parte, pela perda do sentido aurático (de origem, centro) da obra de arte por suas possibilidades de reprodução, ampliadas no século XX, que alteram o próprio conceito de origem e pela deslegitamação do saber na sociedade contemporânea, que privilegia o critério de melhor desempenho em detrimento do critério único da verdade o processo de intertextualidade é inegável, hoje, à condição da estética contemporânea. Implícito à arte, em geral - não há nenhuma obra de arte que seja inteiramente original, o que acarretaria, culturalmente, sua total incompreensibilidade a intertextualidade se explicita como condição efetiva da arte, hoje. As teorias do intertexto dão conta das várias possibilidades de referências textuais e até mesmo interdiscursivas. Dessas

relações, a mais compatível com a visão excêntrica e paradoxal das poéticas contemporâneas é a paródia. Verifica-se, em Linda Hutcheon, a condição paradoxal da paródia, como uma estrutura que esteja, etimologicamente, ao lado de portanto, retoma as referências culturais - e, ao mesmo tempo, em oposição, a partir da marca da diferença. A paródia é, assim, um misto de homenagem, na medida em que faz recircular o obj eto estético, e distância crítica. Pelo processo de interdiscursividade, poesia e música se aliam na poética contemporânea. O ponto básico da aproximação é a linguagem pretensamente sonora da lírica, que está na origem da sua própria concepção, mas também na ligação dissonante entre som e sentido ambíguo da poética contemporânea. A música é particularizada em seu processo paródico corno uma postura autoconsciente, sem intenção ridicularizadora. Configura-se corno um exercício recriativo de variação livre e também de revisão, reexecução e inversão transformadora do legado do passado. Alcança um sentido antropológico, com José Miguel Wisnik, que conjuga a linguagem musical do ocidente e a interconexão das estruturas produtoras de sentido, ou seja, a língua, a experiência acústica, o mito, a sociedade, num processo nitidamente interdiscursivo. A obra musical de João Bosco representou, para nós, uma tentativa de abordagem das condições da lírica contemporânea. A postura estética desse autor corno um refazedor da tradição, um artista inquieto com sua condição criadora, que o leva a uma busca constante, sem que se percam suas referências culturais, um inventor da linguagem poética dentro de uma perspectiva sonora instigante e pessoal configura a sua condição de representante da poética contemporânea. Trata-se, portanto, de uma poética auto-reflexiva, na medida em que retoma a cultura, de forma crítica, a partir de seu interior; contraditória, pois afirma a diferença, a partir das referências cultuais; excêntrica, ao transgredir as fronteiras das convenções. Chega a essa condição por sua interferência cultural transformadora: o sentido da tradição se dá, paradoxalmente, como algo simultâneo na percepção da estética cultural - pela presença do passado; explicita sua condição interdiscursiva e intertextual, sem a qual não se compreende a arte, hoje. O olhar crítico da poética contemporânea propõe, enfim, face a seus arquétipos, a realização, transformação e transgressão cultural.